LIQUIDAÇÃO PENA ACESSÓRIA
INIBIÇÃO CONDUZIR
CUMPRIMENTO
ENTREGA TÍTULO CONDUÇÃO
INÍCIO DA CONTAGEM
Sumário


A aceitação pela secretaria judicial do título de condução - entregue voluntariamente pelo condenado para cumprimento da pena acessória de inibição de conduzir - antes do trânsito em julgado da condenação, impõe, em respeito pelo princípio do "processo equitativo" (art. 20º, nº 4, da CRP), que o período de inibição se conte desde a data da entrega..

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. No processo sumário com o nº 119/19.4PFBRG, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Braga – Juiz 3, o Mmo. Juiz proferiu o seguinte despacho, datado de 23/01/2020 (transcrição):
I
Compulsados devidamente os presentes autos, resulta que o arguido foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 03 (três) meses e 15 (quinze) dias (cfr. fls. 33-verso).
O arguido entregou a sua carta de condução no dia 2 de janeiro de 2020, sem ter expressamente renunciado ao recurso e não obstante ter sido expressamente informado que a sentença condenatória apenas transitaria em julgado no dia 10 de janeiro de 2020 (cfr. fls. 39).
Conforme decorre da ata da audiência de julgamento, o arguido e o Ministério Público não prescindiram do prazo de recurso.
A sentença condenatória transitou em julgado no dia 10-01-2020 (cfr. o processo eletrónico).
Conforme decorre da articulação dos artigos 69.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal e 500.º do Código de Processo Penal, a pena acessória produz efeito a partir do trânsito em julgado da sentença e desde que a carta de condução já se encontre junta aos autos.
Assim, a pena acessória termina no dia 25 de abril de 2020.
O arguido poderá proceder ao levantamento da mesma a partir da referida data.
Durante o período de 03 (três) meses e 15 (quinze) dias supra referido, o arguido não poderá conduzir veículos motorizados, sob pena de incorrer na prática de um crime de violação de proibições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal.
Notifique, sendo o arguido igualmente do teor do presente despacho.
Dê conhecimento do presente despacho igualmente à autoridade policial competente da área da residência do arguido.

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II.
Comunique o teor do presente despacho à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., mais remetendo cópia bem legível da carta entregue pelo arguido.
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2 – Não se conformando com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, oferecendo as seguintes conclusões (transcrição):
1. Não obstante o prescrito no art.º 69.º, n.os 2 e 3 do Código Penal e no art.º 500.º, n.º 2 do Código do Processo Penal, tem-se vindo a entender que, nos casos em que os arguidos procedem à entrega voluntária dos seus títulos de condução antes do transito em julgado da sentença condenatória, é nessa data que se inicia o cumprimento da pena acessória.
2. Uma interpretação meramente literal e formalista é violadora dos princípios da confiança e da lealdade processuais e ainda do direito a um processo equitativo, bem como defrauda a legítima expectativa do condenado no sentido de o prazo de cumprimento da pena acessória se iniciar a partir do preciso momento da entrega/recebimento daquele documento.
3. O arguido entregou o seu título de condução, na secretaria, no dia 02/01/2020, antes do trânsito em julgado da decisão, estando em crer que, a partir daí, começava a cumprir a pena acessória.
4. Com tal acto, o arguido renunciou, ainda que tacitamente, ao recurso, demonstrando, assim, aceitação da decisão e considerando-se, desta forma, a sentença transitada em julgado.
5. Mesmo que assim não se entenda, em situações como a dos autos, deve ser aplicado o instituto do desconto, previsto no art.º 80.º, n.º 1 do Código Penal, tomando- se em conta os dias em que o arguido se viu desapossado do seu título de condução e privado de conduzir até ao trânsito em julgado da sentença

Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogado o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que tome em devida conta o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor antes do trânsito em julgado da sentença, que voluntariamente o arguido já cumpriu, liquidando-se a pena da seguinte forma:
Termo inicial: 02/01/2020
Termo final: 17/04/2020,
assim se fazendo a
INTEIRA E ACOSTUMADA JUSTIÇA!”
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3 – O arguido/recorrido não apresentou resposta ao recurso.
4 – O Mmo. Juiz a quo sustentou a decisão proferida.
5 - Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de ser provido o recurso.
6 – No âmbito do disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta.
7 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, al. b), do Código de Processo Penal.
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II - Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação (artº 412º, nº 1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas (artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal) – cfr. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48.
2 - A única questão a decidir consiste em saber se, no caso de entrega voluntária da carta de condução na secretaria judicial, para cumprimento do período de inibição de condução de veículos motorizados, antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, a contagem do período se deve iniciar na data da entrega ou só na data do trânsito em julgado da decisão.
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3 – A decisão condenatória – proferida em 28/11/2019 e da qual não foi interposto recurso – tem o seguinte teor (transcrição):

“1 – Condena-se o arguido M. F. pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos arts 292°, n° 1 e 69°, nº 1, al. a), do C. Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a multa global de € 385,00 (trezentos e oitenta e cinco euros).
2 - Condena-se o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias, nos termos do disposto no artº 69º, nº 1, al. a), do C.Penal.
3 – Condena-se ainda o arguido em 1 (uma) UC de taxa de justiça, que será reduzida a metade atenta a confissão livre, integral e sem reservas – art° 344°, n° 2, al. c), do C. P. Penal.
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Deverá o arguido, nos termos do disposto no art° 69°, n° 3, do C. Penal e 500º do C. P. Penal, no prazo de 10 dias após trânsito, fazer a entrega dos documentos que o habilitem a conduzir na Secretaria deste Tribunal, ou em qualquer posto policial, sob pena de os mesmos lhe serem apreendidos e incorrer na prática de um crime de desobediência.
Mais vai advertido de que se conduzir veículos motorizados durante o período da proibição imposta, incorre na prática de um crime de violação de proibições p. e p. pelo art° 353°, do C. Penal, a que corresponde pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
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Após trânsito:
Remeta boletim à DSIC.
Comunique à ANSR.
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Proceda-se ao depósito (art° 372°, n° 5, do CPP).
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Notifique.”
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4 – A fls, 8 do presente traslado consta um Termo de Entrega do seguinte teor:
“Em 02-01-2020, apesar de devidamente advertido que a sentença só transitará no dia 10-01-2020, pelo Arguido M. F., CC – ……, foi entregue o documento a seguir indicado:
- Carta de Condução N° …… 0, emitida em 05-12-2017, pelo IMT – Braga
De como entregou, vai assinar.”
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III - Apreciação do recurso

Não se vislumbra qualquer questão que haja de ser conhecida oficiosamente.
Delimitado pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação de recurso, a única questão a decidir é o modo de proceder à liquidação da pena acessória de inibição de conduzir, quando o condenado, voluntariamente e antes do trânsito em julgado da sentença que a decretou, procede à sua entrega na secretaria do tribunal. Mais precisamente, saber se a contagem deve iniciar-se na data da entrega ou na data do trânsito em julgado.
O Mmo. Juiz a quo, em conformidade com o que exarou no despacho recorrido, entende que “a pena acessória só produz efeito a partir do trânsito em julgado da sentença e desde que a carta de condução já se encontre junta aos autos”, como resulta da articulação do disposto nos arts. 69º, nºs, 2 e 3, do Cód. Penal e 500º do Cód. Processo Penal.
O recorrente defende que tal interpretação é “meramente literal e formalista, violadora dos princípios da confiança e da lealdade processuais e ainda do direito a um processo equitativo, bem como defrauda a legítima expectativa do condenado no sentido de o prazo de cumprimento da pena acessória se iniciar a partir do preciso momento da entrega/recebimento daquele documento”. Acrescenta que tal entrega configura uma aceitação da decisão e uma renúncia ao recurso, ainda que tácitas. Caso assim não seja entendido, deve aplicar-se o “instituto do desconto, previsto no art. 80º, nº 1, do Código Penal.”

Comecemos por realizar uma breve resenha dos factos:

- O arguido, por sentença proferida em 28/11/2019, à qual assistiu, foi condenado, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses e 15 dias;
- na referida sentença, o arguido foi advertido da obrigação de proceder à entrega do documento habilitante da condução “no prazo de 10 dias após trânsito”, sob pena de lhe ser apreendido e de incorrer num crime de desobediência, bem como num crime de violação de proibições se conduzir tais veículos no período da proibição;
- não tendo havido renúncia ao exercício do direito ao recurso, o trânsito em julgado da referida sentença só ocorreria em 10/01/2020;
- no dia 02/01/2020, o arguido apresentou-se na secretaria do tribunal e, apesar de advertido da data do trânsito em julgado da condenação, procedeu à entrega da carta de condução de que era titular.

As normas em causa (na parte atinente), estatuem:
- art. 69º do Cód. Penal:
2 – A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria.
3 – No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.
(…)
6 – Não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estivar privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança. “
- art. 500º do Cód. Processo Penal:
2 – (redacção similar à do nº 3 do art. 69º do Cód. Penal, somente alterando a designação de «título de condução» para «licença de condução»).
3 – Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.
4 – A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular.”
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Apreciando.
O art. 69º, nº 2, do Cód. Penal estatui, de modo indubitável, que a proibição produz efeitos a partir do trânsito em julgado da decisão, o que é a regra aplicável a todas as decisões condenatórias, por só então se tornarem “definitivas” e exequíveis – art. 467º, nº 1, do CPP.

Daí que possam ocorrer, diversas situações:
- o título de condução já estava apreendido no processo aquando do trânsito em julgado:
- o período de inibição de condução conta-se a partir do trânsito (não havendo lugar a qualquer desconto do período decorrido antes do trânsito, por falta de previsão legal, não sendo aplicáveis as regras previstas nos arts. 80º a 82º do Cód. Penal);
- o título de condução não estava apreendido no processo aquando do trânsito em julgado:
- há que aguardar pela entrega voluntária do mesmo ou, caso não ocorra, pela sua apreensão, contando-se o período de inibição a partir do momento da junção aos autos.
Estas são as situações típicas que o legislador previu.
O caso em apreço é diferente, porque corresponde a uma entrega do título de condução na secretaria do Tribunal – e por esta aceite – feita pelo condenado, de modo voluntário e com o intuito do cumprir a sanção acessória aplicada, mas sem que a decisão haja transitado em julgado.
À primeira vista, este caso afigura-se similar àquele em que o título já estava apreendido nos autos, em que se “despreza” o período anterior decorrido – interpretação que não pode deixar de fazer-se, mais a mais quando a secretaria judicial, no próprio termo de entrega consignou o alerta de que a decisão não havia transitado em julgado, parecendo inculcar a ideia de que o condenado se conformou com o facto.
Porém, é preciso não olvidar que a noção de trânsito em julgado é um conceito de direito, não sendo do conhecimento comum da generalidade dos cidadãos. É claro que o condenado tinha defensor nomeado, que estaria em condições de lhe prestar os esclarecimentos necessários. Mas também é do conhecimento comum - principalmente nos casos de “menor” relevância penal e, amiúde, por culpa do arguido, que descura o dever de se informar, não contactando o defensor – que o desempenho do defensor assume um carácter meramente ou pouco mais que formal, de acompanhamento/assistência do arguido na audiência de julgamento.
A questão em análise não constitui novidade, tendo já sido suscitada em diversos recursos, nomeadamente do TRC: (Acórdão de 04/12/2019, no processo 37/17.0PTLRA-A.C1 e de 24/06/2015, no processo 137/14.9GAAVZ.C1, ambos relatados pela Desembargadora Maria Pilar de Oliveira) e (Acórdão de 01/07/2015, no processo 33/14.0GBMGL-A.C1, relatado pelo Desembargador Inácio Monteiro) e do TRL (Acórdão de 10/11/2016, no processo 27/14.5GALNH.L1-9, relatado pelo Desembargador Antero Luís) – todos disponíveis nas bases de dados do ITIJ.
Nesses acórdãos, consignou-se, em síntese, que a interpretação a efectuar não pode ser meramente literal, ainda que expressiva, mas ter em conta o espírito da norma e os fins pretendidos com a mesma, de acordo com o estatuído no art. 9º do Cód. Civil e os princípios constitucionais estruturantes.
Nos últimos, avulta o princípio do “processo equitativo” (art. 20º, nº 4, da CRP), segundo o qual em todos os termos do processo as partes devem ser tratadas com lealdade e podem depositar confiança na boa-fé com que atuam as instituições judiciárias.
O princípio da confiança está plasmado em diversas disposições legais ordinárias, como o actual art. 157º, nº 6, do CPCivil, segundo o qual as partes não podem ser prejudicadas por erros, omissões ou inexactidões praticados pelas secretarias judiciais.
Nesta decorrência – aplicável ao processo penal, por força do estatuído no art. 4º do CPP – o condenado não pode ser prejudicado pela entrega antecipada do título de condução no tribunal, quando este aceita tal entrega.
Tal interpretação é a que respeita o aludido princípio constitucional.
As leis disciplinam e regulam a vida em sociedade de forma legal e justa, com integral respeito pelos direitos, liberdades e garantias do cidadão.
Acresce que o fim visado com a entrega/apreensão da carta de condução é o não exercício desta durante o período da proibição, objectivo que foi alcançado desde a data da sua entrega na secretaria do tribunal.
O recurso interposto merece provimento.
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IV – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que tenha em conta, no cumprimento, todo o período em que o título esteve junto aos autos, mesmo antes de ocorrer o trânsito em julgado da decisão condenatória.
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Sem custas.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Guimarães, 23 de Novembro de 2020

(Mário Silva - Relator)
(Maria Teresa Coimbra - Adjunta)