RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABUSO SEXUAL DE PESSOA INCAPAZ DE RESISTÊNCIA
PROVA PERICIAL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
DIREITO DE DEFESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
IN DUBIO PRO REO
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
MEDIDA DA PENA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
PENA SUSPENSA
INDEMNIZAÇÃO
REDUÇÃO
Sumário

I – O Ministério Público deduziu acusação, imputando ao arguido a prática em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de seis crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e p. pelo artigo 165.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
II – B J, admitido a intervir nos autos como assistente, aderiu à acusação pública e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 25.000,00€ a título de danos pessoais.
III – Por acórdão do Colectivo do Juízo Central Criminal de ...- Juiz 2, foi o arguido absolvido de todos os crimes de abuso sexual que lhe vinham imputados, bem como do pedido de indemnização civil contra si deduzido.
IV – O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, pedindo a revogação do acórdão recorrido, ordenando-se o reenvio para novo julgamento.
V – O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de Novembro de 2017, veio a determinar “o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à concreta questão da incapacidade da vítima para se opor aos atos sexuais propostos pelo arguido descritos nos pontos 7 e 8 do acórdão recorrido, nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal”.
VI – Imediatamente antes, foi explicitado: “Assim, incumbindo ao juiz o ónus de investigar e determinar oficiosamente o facto submetido a julgamento, afigura-se pertinente solicitar a realização de nova perícia – art 158.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal – com o objectivo de dissipar a aludida dúvida no que respeita à (in)capacidade do ofendido para entender e avaliar a natureza das consequências e o alcance de atos de natureza sexual e para se autodeterminar sexualmente, formar e exprimir a sua vontade no sentido da resistência ao ato sexual”.
VII – Na 1.ª instância veio a determinar-se a realização de novo exame pericial ao assistente, visando o apuramento daquelas questões, tendo sido elaborado o “Relatório da perícia médico-legal - Avaliação Psiquiátrica” .
VIII – O novo julgamento foi circunscrito à questão objecto de reenvio, na presença do arguido, com intervenção de outros juízes.
IX – Por acórdão do novo Colectivo, datado de 8 de Janeiro de 2019, na sequência de alteração parcial de matéria de facto, foi deliberado:
Julgar parcialmente procedente a acusação e, em consequência, condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. pelo art.º 165.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de dois anos e dez meses de prisão e de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. pelo art.º 165.º, n.º1 e 2, do Código Penal, na pena de quatro anos e oito meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos e sete meses de prisão.
Julgar parcialmente improcedente a acusação e, em consequência, absolver o arguido AA da prática dos demais quatro crimes abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. pelo art.º 165.º, n.º 1 e 2, do Código Penal.
Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e, em consequência, condenar o arguido AA a pagar a BB, a quantia de cinco mil euros, acrescida de juros de mora à taxa legal e no demais, julgar improcedente o pedido de indemnização civil, dele absolvendo o arguido.
X – A questão da competência para cognição do recurso foi abordada nos acórdãos de 9-01-2008, processo n.º 3281/07; de 6-02-2008, processo n.º 3759/07; de 7-05-2008, processo n.º 1511/08; de 14-05-2008, processo n.º 1133/08; de 14-09-2011, processo n.º 9/10.6PACTX.E1.S1 e de 14-03-2013, processo n.º 991/08.3PRPRT.P1.S1, estando em causa recursos interpostos de acórdãos finais de tribunal colectivo para o Supremo Tribunal de Justiça, não visando os recorrentes exclusivamente o reexame de matéria de direito, mas em que era pretendida reapreciação de matéria de facto, com invocação de vícios decisórios ou errada valoração da prova, em todos eles julgando-se incompetente o Supremo Tribunal de Justiça, mas ordenando a remessa imediata para o Tribunal da Relação, invocando-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 80/2001, de 21 de Fevereiro de 2001, publicado no Diário da República, I Série - A, de 16 de Março de 2001.
XI – É uniforme a orientação segundo a qual é da competência dos Tribunais da Relação, e não do STJ, o conhecimento dos recursos interpostos de acórdãos finais de tribunal colectivo, que se não limitem a questões de direito, encontrando-se nesta situação os recursos em que vem alegada a ocorrência de algum dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, visando-se com tal arguição a colocação em causa da bondade ou correcção da decisão proferida sobre a matéria de facto.
XII – Em causa está a competência deste Supremo Tribunal para conhecer do recurso em que, face às conclusões apresentadas, se verifica estar em causa, para além do mais, independentemente da questão de saber se a arguição é feita de modo correcto, o reexame da matéria de facto através da invocação do vício decisório previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
XIII – No caso presente o recorrente insurge-se contra a modificação da matéria de facto operada pelo acórdão recorrido.
XIV – No acórdão ora recorrido o Colectivo alterou matéria de facto, distinguindo entre factos provados não abrangidos pelo reenvio, enunciados sob a letra A. com os n.ºs 1 a 12; factos provados reapreciados na decorrência do reenvio – B. n.ºs 13 a 17 – e factos provados relativos à situação pessoal actualizada do arguido – C. n.ºs 18 a 29.
XV – A alteração substancial resultou do novo julgamento feito na sequência do determinado reenvio pelo acórdão da Relação de Coimbra de 15-11-2017, sendo o segmento B. 13 a 17, o contraponto do que foi dado por não provado no primeiro julgamento nas alíneas d) a j) do segmento 2.2. Matéria de Facto Não Provada, a fls. 303, que conduziu então à absolvição do ora recorrente.
XVI – O presente recurso não se cinge a matéria de direito, pretendendo o recorrente a erradicação dos factos provados 13 a 17, os quais em seu entendimento, foram fixados com base em erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP e em errada valoração da prova.
XVII – É uniforme a orientação segundo a qual é da competência dos Tribunais da Relação, e não do Supremo Tribunal de Justiça, o conhecimento dos recursos interpostos de acórdãos finais de tribunal colectivo, que se não limitem a questões de direito.
XVIII – Não releva para efeitos de atribuição de competência a deficiência ou manifesta improcedência do recurso neste sector. Por outras palavras. É irrelevante para a definição da competência a formulação de qualquer juízo prévio sobre o bem fundado da pretensão recursória, a procedência do pedido, pois a emissão de pronúncia sobre tal matéria já é conhecer e a cognição pertence à Relação.
XIX – Foi declarada a incompetência hierárquica e funcional deste Tribunal, para conhecimento do recurso do arguido AA, determinando-se a remessa dos autos, por ser o competente, nos termos do artigo 33.º, n.º 1, do CPP, ao Tribunal da Relação de Coimbra.

Texto Integral


No âmbito do processo comum com intervenção de tribunal colectivo n.º 254/14.5JACBR, do Juízo Central Criminal de ... – Juiz 2, Comarca de ..., foi submetido a julgamento o arguido
AA, nascido a ..-..-1967, natural da freguesia de …, concelho de …, casado, trabalhador da construção civil por conta própria, residente na Av. …., n.º …., …, … .


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   O Ministério Público deduziu acusação de fls. 123 a 126, em processo comum e perante tribunal coletivo, contra o arguido, imputando-lhe a prática em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de seis crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo artigo 165.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

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  Foi concedida protecção jurídica ao assistente, conforme fls. 145/146 verso, 157 e 165/166/167, e ao arguido, conforme fls. 147/148 verso e 154/155/156 verso.

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  BB, admitido a intervir nos autos como assistente, aderiu à acusação pública e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 25.000,00€ a título de danos pessoais, acrescida de juros de mora desde a sentença até integral e efetivo pagamento. (Requerimento de fls. 160 a 164 e despacho de admissão a fls. 206).
O arguido ofereceu o merecimento dos autos (fls. 201) e contestou o pedido de indemnização civil, negando a prática dos factos imputados e pugnando pela improcedência do pedido de indemnização civil (fls. 230/1).
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O julgamento inicialmente marcado para 31-03-2016 (fls. 175), com transferência para 26-05-2016 (fls. 200), por repristinado o feriado religioso de Corpo de Deus, transferido para 18-01-2017 (fls. 243), data em que se iniciou o julgamento, conforme acta fls. 284 a 289, e tendo sido considerado pertinente a tomada de esclarecimentos à médica psiquiátrica que elaborou o relatório pericial, foi continuado em 25-01-2017, conforme acta de fls. 296/7.
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Por acórdão do Colectivo do Juízo Central Criminal de ... - Juiz 2, Comarca de ..., foi proferido o acórdão de 1-02-2017, constante de fls. 299 a 316, depositado no mesmo dia, conforme declaração de depósito de fls. 318, foi deliberado:
a) absolver o arguido AA de todos os crimes de abuso sexual que lhe vêm imputados;
b) julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil contra si deduzido e consequentemente absolver o arguido do mesmo.
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Inconformado com o deliberado, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, conforme fls. 324 a 361, pedindo a revogação do acórdão recorrido, ordenando-se o reenvio para novo julgamento, assim como o fez CC, na qualidade de legal representante do ofendido e assistente BB, conforme fls. 262 a 373 (1.º volume).
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Admitidos os recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente, por despacho de fls. 376 (2.º volume), o arguido apresentou resposta, conforme fls. 381 a 410.
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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra emitiu douto parecer de fls. 418 a 421, invocando Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, Verbo, 1999, vol. II, pág. 178, e o acórdão deste Supremo Tribunal de 1-10-2008, por nós relatado no processo n.º 2035/08, defendendo, face à necessidade de fundamentar a divergência com o juízo contido no parecer dos peritos, que deveria “ordenar-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à concreta questão da incapacidade da vítima para se opor aos actos sexuais propostos pelo arguido descritos nos pontos 7 e 8 do não obstante acórdão recorrido, nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal”.
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O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de Novembro de 2017, constante de fls. 428 a 452, veio a determinar “o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à concreta questão da incapacidade da vítima para se opor aos atos sexuais propostos pelo arguido descritos nos pontos 7 e 8 do acórdão recorrido, nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal”.
Imediatamente antes, no último § de fls. 451, foi explicitado:
“Assim, incumbindo ao juiz o ónus de investigar e determinar oficiosamente o facto submetido a julgamento, afigura-se pertinente solicitar a realização de nova perícia – art 158.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal – com o objectivo de dissipar a aludida dúvida no que respeita à (in)capacidade do ofendido para entender e avaliar a natureza das consequências e o alcance de atos de natureza sexual e para se autodeterminar sexualmente, formar e exprimir a sua vontade no sentido da resistência ao ato sexual”.
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Recebidos os autos na 1.ª instância veio a determinar-se a realização de novo exame pericial ao assistente, visando o apuramento daquelas questões. (fls. 462).
Foi elaborado o “Relatório da perícia médico-legal - Avaliação Psiquiátrica” junto a fls. 478 a 482.
Em requerimento de fls. 494/5, o arguido veio pedir que a médica psiquiátrica prestasse esclarecimentos complementares na data da audiência, promovendo o Ministério Público o indeferimento, a fls. 510/verso, sendo a pretensão indeferida por despacho de fls. 511.
A reabertura da audiência foi agendada para 30-10-2018 (fls. 492), sendo transferida para 13-11-2018 (fls. 506) e reagendada para 12-12-2018 (fls. 515).

Realizou-se o julgamento em 12-12-2018, circunscrito à questão objecto de reenvio, na presença do arguido, com intervenção de outros juízes, como consta da acta de fls. 521 a 523.
Por acórdão do novo Colectivo, datado de 8 de Janeiro de 2019, constante de fls. 526 a 540, depositado no mesmo dia, conforme declaração de depósito de fls. 543, na sequência de alteração parcial de matéria de facto, foi deliberado:
«A.
Julgar parcialmente procedente a acusação e, em consequência, condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. pelo art.º 165.º, n.º 1, do Código Penal na pena de dois anos e dez meses de prisão e de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. pelo art.º 165.º, n.º1 e 2, do Código Penal, na pena de quatro anos e oito meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos e sete meses de prisão.
B.
Julgar parcialmente improcedente a acusação e, em consequência, absolver o arguido AA da prática dos demais quatro crimes abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. pelo art.º 165.º, n.º1 e 2, do Código Penal.
C.
Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e, em consequência, condenado o arguido AA a pagar a BB, a quantia de cinco mil euros, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a presente data até integral e efetivo pagamento.
No demais, julgar improcedente o pedido de indemnização civil, dele absolvendo o arguido.
D.
Condenar o arguido no pagamento das custas criminais do processo, fixando para o efeito a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta e, bem assim, condena-lo no pagamento dos demais encargos com o processo, tudo nos termos do disposto no art. 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, art.º 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e tabela anexa III.
E.
Condenar o assistente demandante e o arguido demandado, no pagamento das custas cíveis do processo, na proporção do decaimento
– art.º 523.º do Código de Processo Penal, 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, art. 6.º, n.º 1, e tabela I, ambos do Regulamento das Custas Processuais.»
 

***

       Inconformado com o assim deliberado, o arguido interpôs recurso a fls. 545 e verso para este Supremo Tribunal, apresentando a motivação de fls. 546 a 566, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição integral, incluindo realces):

1. O recorrente foi condenado a uma pena de prisão de 5 anos e 7 meses, pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. pelo art. 165º nº 1 do Código Penal na pena de dois anos e dez meses de prisão e de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. pelo art. 165º nº 1 e nº 2 do Código Penal, na pena de quatro anos e oito meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos e sete meses de prisão.

2. Parece-nos uma Decisão que consubstancia erro notório na apreciação da prova, senão vejamos:

3. A convicção do Tribunal a quo, assentou no exame médico junto aos autos a folhas 478 a 482, que referiu estar subtraído à livre convicção do julgador e por outro lado, assentou no exame médico que inicialmente já havia sido feito, o qual foi complementado com os esclarecimentos da senhora médica perita que o elaborou;

4. Salvo o devido respeito, não concorda o arguido com esta conclusão, porquanto o juízo elaborado pela Sra. Perita em questão, nunca foi sujeito ao contraditório, porque assim o Tribunal a quo não quis, ao indeferir a sua inquirição, requerida pelo arguido ao abrigo do art. 340º CPP.

5. Com efeito, tal interrogatório, apesar do seu caracter excecional, teria toda a razão de ser no caso ora sob recurso.

6. Aliás, basta ver que o motivo da repetição do julgamento foi o de esclarecer a situação da incapacidade do ofendido para compreender atos de cariz sexual e de se opor à prática dos mesmos.

7. Quando uma Senhora Perita elabora um parecer que é claramente desfavorável ao arguido e que, acaba por ser contrário ao entendimento do primeiro Tribunal, seria de todo pertinente ouvir a mesma para que esclarecesse de forma cabal como chegou à conclusão que chegou.

8. Mais ainda, porquanto o Tribunal que ora se recorre não ouviu o ofendido, nem o arguido, não beneficiou da imediação e dá um “salto” incompreensível, relativamente aos factos que agora dá como provados, porquanto da prova produzida nesta fase (apenas o relatório médico junto a folhas 478 a 482) não poderia chegar às conclusões que chegou, nomeadamente os pontos 15 e 16 dos factos dados agora como provados (como se explicará mais adiante).

9. Salvo o devido respeito por opinião contrária, não andou bem o Tribunal a quo, ao indeferir a requerida inquirição nos termos do disposto no artigo 340º, nº 1 do Código de Processo Penal, sendo que, tal indeferimento, constituiu violação dos direitos de defesa do arguido, face ao disposto no artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa.

10. Ademais, não se pode desconsiderar o facto de o Relatório ter sido elaborado com base em elementos processuais facultados pelo tribunal, por um exame direto realizado ao ofendido e ainda por uma entrevista complementar à mãe do ofendido, nitidamente pessoa parcial neste processo e que curiosamente, só aparece nesta circunstância/fase.

11. A conclusão a que a Sra. Médica perita chegou foi suportada por elementos que não puderam ser contraditados em Tribunal e bem assim, foi tomada num ambiente/contexto muito diferente daquele que necessariamente resulta da circunstância de se estar numa sala de audiência de julgamento, sujeita ao escrutínio e inquirição de diversos sujeitos processuais.

12. Nomeadamente, era de extrema importância perceber-se como é que alguém (ofendido) que teve um discurso coerente, articulado e lógico durante a audiência (conforme fundamentação da primeira Decisão) é agora declarado como sendo suscetível de ser interditado, algo que a primeira Perita nunca referiu ou sequer equacionou!

13. Aliás, em face do tempo já decorrido entre a prática dos factos (Maio/Junho 2014) e a data da realização do Relatório (Março de 2018), seria importante, averiguar-se, se a incapacidade do ofendido, veio a intensificar-se com o passar dos anos, ou pelo contrário, se estabilizou ou até se manteve sempre no mesmo grau durante toda a sua vida.

14. Isto porque, o próprio relatório refere – pág. 6 – “Desde o nascimento, o examinado patenteou um desenvolvimento intelectual incompleto. Atualmente, objetivam-se importantes limitações das suas capacidades globais (…) que interferem em áreas como a utilização e gestão de recursos, autocontrolo e desempenho ocupacional/laboral compatível com o exercício de uma atividade profissional com o mínimo de regularidade e constância de rendimento, com compromisso da sua capacidade de adaptação efetiva às normas de independência pessoal e de responsabilidade social esperadas, de acordo com a idade e grupo sociocultural a que pertence. (sublinhado e negrito nosso).

15. Mais, conclui a Senhora médica perita que o ofendido “é portador de um Atraso Mental Moderado, com deterioração do comportamento, requerendo tratamento” (sublinhado e negrito nosso).

16. Refira-se que o Primeiro Relatório foi elaborado mais próximo da data dos factos e não foi conclusivo.

17. Acresce ainda que, como é que se pode concluir que o ofendido é incapaz de se autodeterminar sexualmente, quando o próprio Relatório (folhas 478-482) refere que o mesmo terá tido outros relacionamentos afetivos, com mais de uma rapariga, identificando-as (DD e EE) e referindo-se a elas como “namoradas”?

18. Mais, consta do mesmo Relatório que o ofendido já teria tido relações sexuais com prostitutas (!!), tendo a elas recorrido acompanhado por familiares e depois com colegas da A………..

19. Acrescendo que, da demais prova produzida – em que se inclui o declarado pelo próprio ofendido em audiência de julgamento - o mesmo foi bastante claro ao referir que compreendia termos como “ereção”, “ejaculação” ou “vibrador”!

20. Ora, não será legítimo concluir, que alguém que teve relacionamentos afetivos, que sabe o que é um relacionamento afetivo, pois teve “namoradas”, que recorre a prostitutas, não só acompanhado de familiares, mas também de colegas da Instituição que frequenta (logo, depreende-se com as mesmas limitações do ofendido), não seja capaz de formar a sua própria vontade no que concerne à prática ou não de atos sexuais e de se opor ou não a eles?

21. Acresce ainda que, ambos os Relatórios juntos aos autos, não contém um juízo técnico-científico sobre uma situação de incapacidade do ofendido no momento da suposta prática do crime.

22. Assim, os factos agora declarados como provados não partem de uma premissa correta e não fazem uma análise global de toda a prova produzida, baseando-se apenas num único relatório, que padece das deficiências que aqui se apontam.

23. O vício da decisão da matéria de facto previsto no artigo 410º nº 2 al. c) do CPP ocorre nas situações em que a prova é avaliada de maneira contrária a todas as evidências, sem a mínima adequação às regras da lógica e da experiência comum, de forma clamorosamente enganada ou omissa, podendo verificar-se isso pela mera leitura da decisão, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência e até por oposição à anterior sentença proferida nestes mesmos autos e que, do nosso ponto de vista, analisou de forma correta a situação dos mesmos.
24. Por outro lado, ao fazer-se uma análise acrítica de um juízo, ainda que pericial, tal repercute-se numa manifesta violação das regras de garantia de defesa do arguido.
25. Embora não detendo conhecimentos técnicos, cabe ao Tribunal analisar toda a prova produzida de acordo com as regras de ciência, de experiência e bom senso, e, nesta análise, não será de desconsiderar o apoio de outros meios de prova que confirmem ou infirmem os Relatórios.
26. Sem abandonar o campo objetivo inerente a um juízo técnico ou científico, ao tribunal é lícito afastar os juízos ou conclusões do relatório pericial com o apoio de outros meios de prova que comprovem ou inquinem os fundamentos em que se fundaram as perícias.
27. O Acórdão ora recorrido, salvo melhor opinião, olvidou toda a restante prova produzida, analisou acriticamente um relatório médico, como se o mesmo pudesse ser uma peça isolada e desenquadrada de todo o resto do processado, condenando assim e sem mais o arguido.
28. E reforçando a tese que neste Recurso se proclama, invoca-se jurisprudência que defende que o facto de, existir anomalia psíquica, não significa incapacidade para formar ou exprimir a vontade da prática do ato sexual, tal como não significa que pessoa com limitação de capacidade intelectual esteja privada de se envolver sexualmente – neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23-10-2009, in www.dgsi.pt; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.04.2013, in www.dgsi.pt: artigo 3º da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Resolução da Assembleia da Republica nº 56/2009, DR I, nº 146 de 30 de Julho de 2009.
29. E prova disso mesmo é o facto de ofendido, não obstante o seu grau de deficiência, procurar, conscientemente, satisfazer as suas necessidades sexuais com “namoradas” ou prostitutas.
30. Diga-se ainda que, o Tribunal a quo, deu como provado que “o arguido sabia que por via da doença de que padecia, o assistente acederia a deslocar-se para o interior da sua residência e a não oferecer resistência a qualquer proposta de trato sexual que lhe formulasse, como veio a acontecer” (15);
31. E ainda que: “decidiu aproveitar-se da doença do assistente” (16);
32. Ora, dos demais factos dados como provados apenas resulta que o arguido era conhecedor que o ofendido padecia de um atraso mental, logo desconhece-se e que factos/provas o tribunal a quo se baseou para dar como provados os pontos 15 e 16.
33. Poderá inferir-se desse conhecimento por parte do arguido, que este também sabia que por via desse atraso, o ofendido seria incapaz de opor resistência a qualquer proposta de cariz sexual?
34. Podemos razoavelmente afirmar, nestas circunstâncias, que o arguido, ao atuar da forma que atuou, tinha consciência da ilicitude da sua conduta?
35. Nos autos, e como facilmente se constata da análise dos meios de prova, nenhuma testemunha presenciou o alegado abuso, e não foi recolhido qualquer elemento objetivo que permita conferir especial credibilidade à versão do assistente.
36. Mais, ainda que à luz do princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), não seja de afastar a possibilidade de reconhecer a versão do assistente como a que corresponde ao de facto sucedido, a racionalidade pressuposta e exigida por toda a decisão judicial sempre implicará a análise crítica da versão dos factos apresentada pelo arguido, sem esquecer que compete à acusação a prova de todos os elementos do crime, independentemente da posição que o arguido no processo assuma.
37. O certo é que não resultou provado que o arguido exercesse qualquer tipo de ascendência sobre o ofendido, ou que tivesse exercido qualquer tipo de violência para com o assistente, ou que, de alguma forma o tivesse ameaçado (aliás, conforme resulta da fundamentação da primeira decisão).
38. Aliás, pelo contrário, pois que, resulta dos factos provados que “o assistente e o arguido abandonaram juntos o café “M……..” e dirigiram-se à residência deste…” “Aí chegados, como o assistente e o arguido concordassem fazer sexo entre si, dirigiram-se para o interior do quarto…” (negrito e sublinhado nosso).
39. Se o assistente e o arguido concordaram em fazer sexo entre si, (não tendo havido violência, ameaça, etc.) como é que se conclui que o arguido se aproveitou da doença do ofendido e sabia que a mesma o impedia de resistir a qualquer proposta de cariz sexual?
40. O Tribunal a quo formulou juízos meramente conclusivos, que não poderão proceder, devendo por isso, ser revogada a Decisão proferida que condenou o arguido e substituída por outra que decida pela sua absolvição.
41. Foram pois incorretamente julgados os factos provados sob os pontos 13 a 17, por violação do art. 340º nº 1 do CPP, por errada valoração da prova e por violação dos princípios in dúbio pro reo e presunção de inocência.
42. Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio, diga-se ainda que, mantendo-se a condenação, entendemos que a pena aplicada ao arguido - 5 anos e 7 meses – é deveras exagerada, desproporcional, injusta e ilegal tendo em consideração, entre outros, os fatores sociais e pessoais do mesmo.
43. A escolha e a determinação da medida da pena são operações subordinadas a princípios constitucionais, na medida em que a imposição de penas criminais contende com os direitos fundamentais da pessoa, a começar, obviamente, pelo direito à liberdade.
44. Com efeito, a determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, levando-se em conta determinados fatores, que não fazendo parte do tipo legal de crime, tenham relevância para aquele efeito, quer esses fatores estejam previstos, quer não previstos legalmente (art. 71º nº 1 e 2 do CP).
45. A pena tem como principal finalidade a tutela dos bens jurídicos, a que está ligada a função de prevenção geral positiva, não podendo todavia ultrapassar a medida da culpa, e também a reinserção social do condenado, a que está ligada a função de prevenção especial ou de sociabilização (art. 40º nº 1 e 2 do CP).
46. Considera o arguido, que a pena que lhe foi aplicada, é demasiado gravosa e desproporcional face às circunstâncias em que os factos ocorreram, pois que, os factos já remontam a Maio de 2014;
47. O arguido encontra-se inserido social e familiarmente, vivendo com os pais;
48. O arguido não tem antecedentes criminais e sempre pautou a sua vida de acordo com as regras do direito;
49. No meio de residência, e no contexto familiar de origem, o arguido é descrito como uma pessoa pacífica, de relacionamento interpessoal adequado, não tendo havido impacto na sua inserção social e familiar na sequência deste processo;
50. O arguido é tido como pessoa de bem, honesto, respeitador e trabalhador;
51. O sucedido não trouxe perturbações profundas ao ofendido, que à data dos factos tinha 25 anos;
52. Os factos ocorreram (apenas) por duas ocasiões;
53. A família do arguido constituirá com toda a certeza um apoio, um suporte e uma mais-valia na sua reinserção na sociedade, uma vez que têm as suas vidas organizadas e estruturadas.
54. Assim, todos estes fatores levam-nos a ponderar na emissão de um juízo de prognose favorável na prevenção da sucumbência ao crime.
55. Aliás, nem mesmo resultou provado que a população teve conhecimento ou ficou alarmada com os factos descritos na Acusação, nem o arguido ficou sujeito a prisão preventiva com base na perturbação da ordem pública.
56. Logo, não se compreende a opção por uma medida da pena que não permita sequer a suspensão da mesma, pois que militam a favor do arguido: (i) o lapso temporal decorrido desde da data da prática dos factos, bem como o facto de não lhe ser conhecida a prática de quaisquer ilícitos criminais ou de outra índole, desde então; (ii) o facto de ter 51 anos de idade, dois filhos, um deles ainda menor; (iii) o facto de estar integrado socialmente; (iv) ser primário; (v) ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime.
57. Com efeito, volvidos quase 5 anos sobre a prática dos factos, a ser determinada uma pena de prisão efetiva é uma violência gritante que importa a destruição da vida do recorrente, hoje com 51 anos!
58. Naturalmente que as necessidades de prevenção especial vão-se naturalmente mitigando com o decorrer do tempo.
59. Por tudo isto, parece-nos claramente excessiva a pena aplicada, ainda que em cúmulo jurídico.
60. Dispõe o art. 77, nº 1, do Código Penal que "Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena."
61. Ora, salvo devido respeito por opinião contrária, o Tribunal a quo aplicou penas singulares muito elevadas, o que acabou por redundar que na realização do cúmulo, fosse praticamente imperativo a aplicação de uma pena efetiva de prisão, uma vez que só por um dos crimes determinou uma pena de prisão de 4 anos e 8 meses.
62. Ora, pelo que atrás se deixou dito, estas penas singulares e consequentemente a pena aplicada em cúmulo são manifestamente exageradas, uma vez que ultrapassam de forma clara e desproporcional a medida de culpa do arguido.
63. Os danos decorrentes de uma condenação, tendo em conta a idade do arguido, a falta de antecedentes criminais, a não ocorrência de uma carreira criminosa ou uma tendência para a prática de crimes, desta ou de outra espécie, são exagerados tendo em conta os factos ocorridos.
64. Assim, a haver condenação, o que se admite apenas por cautela de patrocínio, esta deverá situar-se em penas muito mais perto do seu limite mínimo (6 meses e dois anos, respetivamente) e a pena única a ser aplicada, deverá ser suspensa na sua execução, ainda que sujeita a regime de prova, se assim se entender.
65. Entende-se de igual modo, que ao caso dos autos deve ser aplicada a atenuação especial da pena, constante do art. 72º nº 2 alínea d) do CP por: “ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta”, em virtude dos factos terem ocorrido no ano de 2014 e o arguido em nada ter contribuído, dolosa ou negligentemente para delongar o processo judicial.
66. Assim, entende-se que em concreto não deve ser aplicado ao arguido pena superior a cinco anos de prisão, a qual deverá ser sempre suspensa na sua execução por igual período de tempo, em virtude de o arguido preencher os pressupostos legais para o efeito.
67. Sendo certo que, a censura e ameaça da prisão, são adequadas neste caso em concreto, a realizar as finalidades de punição.
68. A medida da pena aplicada pelo Tribunal a quo, é excessiva face à prova produzida, violando assim os arts 40º, 71º, 72º e 73º do CP.
69. Além do mais, o montante indemnizatório que foi fixado pelo Tribunal a quo é desproporcional e inadequado.
70. A reparação dos danos não patrimoniais visa compensar a vítima pelo sofrimento, dor e desgostos sofridos, através da fixação de uma quantia em dinheiro que lhe permita obter satisfação passível de os minimizar ou atenuar.
71. Para o que no caso interessa, ficou provado o seguinte: “10. Após os factos e até à queixa do dia 14.07.2014, o assistente tornou-se reservado, isolando-se com frequência e deixando de acompanhar com a mesma assiduidade a equipa do ………………., uma das suas distrações preferidas, deixando de sair assiduamente de casa nomeadamente parta ir ao café e/ou frequentar a atividade escolar na A………… de ……... (sublinhado e negrito nosso); 11. O assistente não gosta de falar do sucessivo com ninguém e fica constrangido quando tem de relatar os factos ocorridos; 12. Em consequência dos factos descritos, no âmbito dos presentes autos o assistente teve de se deslocar acompanhado à Policia, ao Hospital Psiquiátrico, ao Instituto de Medicina Legal e aos serviços do Ministério Público.”
72. Tendo em consideração estes factos e o grau de culpabilidade do arguido, bem como a sua situação económica, muito precária, entende o arguido que a quantia fixada de € 5.000,00 é injusta e nada equitativa.
73. Atendendo aos factos provados, o ofendido ficou “perturbado” apenas durante cerca de dois meses (Maio a 14 de Julho de 2014).
74. A restante matéria dada como provada (pontos 11 e 12), afigura-se absolutamente normal, tendo em consideração que decorrente da apresentação de queixa por aquele feita, houve necessidade de observar um conjunto de formalismos que não permitiram que o ofendido olvidasse o sucedido.
75. E bem assim, compreende-se, que o mesmo não goste de falar do sucedido e fique constrangido, pois que, socorrendo-nos da fundamentação do primeiro Acórdão, à qual aderimos e concordamos, este sentimento de vergonha é bem revelador da importância dada pelo assistente aos atos sexuais ocorridos, atendendo às conceções e preconceitos sociais dominantes.
76. Acresce que, não resulta provado que os acontecimentos tenham, pelo menos de forma permanente, afetado a forma como o assistente perspetiva a sua sexualidade, visto ter já tido namoradas, e recorrido a prostitutas!
77. Logo, deve o valor de indemnização civil ser reduzido em conformidade e atendendo aos reais danos não patrimoniais sofridos pelo ofendido, sendo que, dos factos provados e salvo melhor opinião, não resulta verificar-se algum.

       Nestes termos, e nos mais de direito que V/Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência:

       a) Ser revogado o Douto Acórdão recorrido, pelo qual foi aplicada ao recorrente a pena de cinco anos e sete meses de prisão, pela prática, em cúmulo jurídico, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. pelo art. 165º nº 1 do Código Penal e de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. pelo art. 165º nº 1 e nº 2 do Código Penal, sendo o arguido absolvido desses factos e consequentemente a absolvição do arguido no pagamento da indemnização deduzida pelo ofendido;

      b) Caso assim não se entenda, o que só se admite por mera cautela de patrocínio, deve o Douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que reduza a pena aplicada ao arguido, condenando em medida concreta não superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, e caso se considere necessário, sujeita a regime de prova, devendo igualmente ser reduzido o valor indemnização fixado pelo Tribunal a quo.


***

   O recurso foi admitido por despacho de fls. 567.

 ***

   O assistente respondeu conforme consta de fls. 571 a 580 verso, rematando com as seguintes conclusões (em transcrição integral, incluindo realces):

1ª- O douto Acórdão proferido pelo Coletivo do Tribunal “a quo” não merece qualquer reparo ou censura, sendo a mais correta subsunção jurídica da matéria de facto provada ao direito aplicável no caso sub judice;

2ª- Com efeito, o Acórdão recorrido não enferma de qualquer erro de julgamento da matéria de facto, designadamente quanto aos factos provados sob os pontos 13 a 17, em que a convicção do Tribunal “a quo” assentou, e bem, no exame médico-legal de fls. 478 a 482.

3ª- O erro notório na apreciação da prova previsto no art.º 410º, n.º 2, al c) do CPP, apenas existe e é relevante quando o homem médio, perante o que consta da sentença recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, se dá conta que o Tribunal errou manifestamente na apreciação ou valoração que fez das provas produzidas em julgamento, seja porque violou as regras de experiência comum, seja porque se baseou em critérios ilógicos, arbitrários ou contraditórios.

4ª- No caso concreto, o Tribunal “a quo” fundou a sua convicção no exame de perícia médico-legal de fls. 478 a 482, com o juízo técnico inerente, o qual está subtraído, de forma presuntiva, à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no art.º 163º, n.º 1 do CPP.

5ª- O predito exame de perícia médico-legal é claro e preciso nas suas conclusões técnico-científicas que aqui se reproduzem:

O examinando é portador de um Atraso Mental Moderado, com deterioração do comportamento, requerendo tratamento (F71.1 da CID-10).

  Uma tal condição, coloca-o numa posição de vulnerabilidade à influência negativa de terceiros. Igualmente, incapacita-o de perceber (em toda a sua extensão) a natureza do ato sexual, de se autodeterminar sexualmente e de forma a exprimir a sua vontade no sentido da resistência ao ato sexual;

   O grau de deficiência mental de que é portador limita-lhe, também, a perceção do perigo e do lícito e do ilícito. Em termos emocionais, apresenta uma afetividade imatura e ambivalente.

   Não sendo objeto da presente perícia, mais se pode acrescentar que do ponto de vista psiquiátrico-forense, o Examinando mostra-se incapaz de reger, assente no seu próprio juízo (entendimento), a sua pessoa e bens, pelo que somos de parecer que poderá beneficiar de uma ação de Interdição (em razão de anomalia psíquica).

6ª- A este propósito não é despiciendo mencionar que o aqui assistente foi declarado interdito por anomalia psíquica, no âmbito do processo de interdição que correu termos sob o Proc. N.º 499/16.3... do Juízo Local Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... .

7ª- No recurso interposto pelo arguido não foi invocada qualquer prova produzida em julgamento, de igual natureza e valor pericial, que tenha divergido do exame de perícia médico-legal supra aludido e que poderia, de alguma forma, por em causa a valoração que o Tribunal “a quo” deu à prova pericial.

8ª- Ao invés do alegado pelo arguido, o Tribunal “a quo” apreciou de forma crítica os dois exames de perícia médico-legais efetuados no âmbito destes autos, tendo verificado que o primeiro exame médico não chegou a conclusão diversa daquela firmada no exame médico realizado por força do reenvio do TRC, antes e só não foi conclusivo.

9ª- Melhor dito, o Tribunal “a quo” apurou que ambos os relatórios periciais apontam no mesmo sentido e, por isso, não existem razões ou meios de prova para, fundamentadamente, divergir do juízo técnico da perícia médico-legal, nos termos do art.º 163º, n.º 2 do CPP.

10ª- Portanto, não existe qualquer erro de apreciação da prova pericial no douto Acórdão recorrido.

11ª- Sobre o valor da prova pericial, a doutrina e jurisprudência têm sido unânimes e vão no mesmo sentido vertido no douto Acórdão do STJ de 11.07.2007: «O art.º 163º do CPP fixa o valor da prova pericial, estabelecendo uma presunção iuris tantum de validade do parecer técnico do perito, que obriga o julgador, ou seja, a conclusão a que chegar o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser também de argumentos científicos (n.º 2 do art.º 163º do CPP).»

12ª- Destarte, dúvidas não restam de que o Tribunal “a quo” apreciou devidamente a prova pericial que foi renovada por determinação do Tribunal da Relação de Coimbra.

13ª- O arguido, ora recorrente, insurge-se também por o Tribunal “a quo” não lhe ter deferido o requerimento para a comparência da Sra. Perita Médica em audiência de julgamento para prestar esclarecimentos complementares, o que, segundo ele, lhe terá coartado o direito de defesa.

14ª- Porém, não assiste qualquer razão ao recorrente porque no seu requerimento apresentado, apenas discorda das conclusões vertidas no relatório pericial, sem sustentar a sua discordância em qualquer meio de prova de índole técnico-científica ou na preterição de formalidades legais.

15ª- Como vimos, as conclusões da perícia médico-legal são claras, precisas e concisas, não se antevendo em que medida é que a Sra. Perita Médica poderia em audiência de julgamento, com esclarecimentos complementares, concluir de forma diferente da que consta do relatório pericial que elaborou.

16ª- Pelo exposto, o Coletivo do Tribunal “a quo” julgou corretamente os factos provados sob os pontos 13 a 17, que assim se devem manter.

17ª- No que concerne à medida concreta da pena a que foi condenado o arguido, em cúmulo jurídico, 5 anos e 7 meses de prisão, o Tribunal “a quo” teve conta os critérios legais estabelecidos nos art.ºs 40º, 70º e 71º do Código Penal.

18ª- Saliente-se que o arguido em julgamento negou que tivesse praticado todos os factos que lhe foram imputados na acusação pública, conforme consta das suas declarações que estão gravadas no Sistema Habilus Media Studio das 10:01:59 horas às 10:24:44 horas da audiência de julgamento realizada em 18-01-2017.

19ª- Acresce que nem agora neste recurso, o arguido (recorrente) admite que tenha praticado os factos que levaram à sua condenação por ter cometido os crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. pelo art.º 165º, n.ºs 1 e 2 do CP.

20ª- O que demonstra que o arguido não mostra qualquer arrependimento pelos danos causados ao assistente e, por isso, não interiorizou o desvalor da sua conduta criminosa.

21ª- Tanto é assim que o arguido pugna, neste recurso, para que seja reduzida a quantia indemnizatória fixada pelo Tribunal “a quo”, por considerar que não resultaram dos factos provados quaisquer danos para o ofendido (assistente).

22ª- As penas parcelares penas aplicadas pelo Tribunal “a quo”, de 2 anos e 10 meses de prisão pelo crime p.p. pelo art.º 165º, n.º 1 do CP e a pena de prisão de 4 anos e 8 meses pelo crime p.p. pelo art.º 165º, n.º 2 do CP, são ambas inferiores a metade da moldura penal abstrata dos respetivos crimes, não merecem qualquer reparo porque são justas, adequadas e proporcionais à conduta criminal do arguido.

23ª- A pena única de de 5 anos e 7 meses de prisão a que o arguido foi condenado pelo Coletivo do Tribunal “a quo”, teve em conta os factos e a personalidade do arguido, conforme com os critérios específicos do art.º 77º do CPP, está devida e criteriosamente fundamentada, sopesados que foram os factos criminosos fixados, o grau de ilicitude e a intensidade da culpa do arguido, com as circunstâncias atenuantes que depõem a seu favor e, por isso, a pena é adequada e proporcional para satisfazer, sem excessos, as exigentes necessidades de prevenção geral neste tipo de criminalidade, crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, sem descurar as necessidades de prevenção especial.

24ª- Convém realçar que não existiu por parte do arguido qualquer ato revelador da interiorização do desvalor da sua conduta criminosa, confissão ou arrependimento, o que também revela elevadas exigências de educação para o direito e de socialização.

25ª- Ademais, o tempo decorrido desde a prática dos crimes e a boa inserção social do arguido, não conseguem esbater as consequências dos ilícitos cometidos, antes pode deixar perpassar na comunidade uma ideia de impunidade de ações tão graves como aquelas que o arguido cometeu.

26ª- É preciso não esquecer que a ressocialização, sendo um dos vetores basilares dos fins das penas, terá de ceder perante as exigências de tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas comunitárias, de modo a neutralizar o efeito dos crimes como exemplos negativos para a sociedade e simultaneamente contribuir para fortalecer a consciência jurídica da comunidade.

27ª- Este tipo de crimes (crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência) são vistos pela sociedade atual com especial apreensão, dado que a sociedade vê nos bens jurídicos lesados importantes bens a proteger, sobretudo quando praticados contra pessoas incapazes por anomalia psíquica, como acontece no caso concreto.

28ª- A comunidade dificilmente compreenderá que alguém que pratica factos tão graves, atentatórios da liberdade e autodeterminação sexual, fosse punido com pena não privativa da liberdade. 

29ª- Ora, no caso em apreço, revelam-se, face às circunstâncias dos crimes cometidos pelo arguido, muito elevadas as exigências de prevenção geral.

30ª- Assim, a pena de 5 anos e 7 meses de prisão a que foi condenado o arguido é justa e adequada para salvaguardar as expectativas da comunidade na vigência e validade da norma violada e a fazer frente às exigências de socialização que o caso denota.

31ª- Pelo supra alegado, deve ser mantida a pena condenatória aplicada ao arguido de 5 anos e 7 meses de prisão.

32ª- Em relação ao quantum indemnizatório fixado pelo Tribunal “a quo” de 5.000,00 € pelos danos causados ao assistente, a merecer algum reparo só pode ser a de que esta indemnização “peca” por ser moderada, atendendo à gravidade dos factos praticados pelo arguido e às dores físicas e psíquicas sofridas pelo ofendido.

33ª- A quantia de indemnização civil arbitrada pelo Tribunal “a quo” corresponde ao valor mínimo para compensar o mal causado pelo arguido ao assistente, quantia essa que, muito provavelmente, o arguido não irá pagar face às suas condições económicas.

34ª- Deste modo, deve ser mantida a quantia de indemnização fixada no douto Acórdão recorrido.

35ª- Como defende o douto Acórdão do STJ de 18.12.2007: “A indemnização, porque visa oferecer ao lesado uma compensação que contrabalance o mal sofrido, deve ser significativa, e não meramente simbólica, devendo o juiz ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo valor de compensação.

       Termina, dizendo que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido, com todas as consequências legais.


***

   O Ministério Público no Juízo Central Criminal de ...-Juiz 2, respondeu, conforme fls. 582 a 597, sem apresentar conclusões, defendendo que o recurso interposto pelo arguido não merece provimento, devendo improceder.

  Por despacho de fls. 598 foi ordenada a remessa dos autos ao TRC. (sic)

  Pelo mesmo funcionário, no dia 24-05-2019, é referida a “subida ao Tribunal da Relação”, a fls. 601/602, e depois, em 31-05-2019, é referida a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 604/5, procedendo à remessa a fls. 606.


***

  O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu douto parecer de fls. 626 a 631 (depois de por lapso ter sido junto parecer respeitante a recurso de revisão de fls. 608 a 624, o que ficou sanado assim: “no sentido de sanar tal lapso, determina-se que o Sr. Técnico de Informática elimine do sistema tal acto processual, que tem a Ref.ª 865497, ficando nos autos o parecer que segue”), de que se extrai:

        “ (…)

3. Em peça de irrecusável qualidade, o Exmo. Procurador da República na 1ª instância contramotivou o recurso, afirmando a inexistência de invalidades no momento da fixação dos factos — seja por ocorrência do vício do art.° 410° n.° 2 al.ª c) do CPP seja por violação das garantias de defesa do arguido, dos princípios do contraditório, do in dubio por reo ou da presunção da inocência — e, por tudo, a falta de fundamento do recurso em matéria de facto.

   Quanto ao indeferimento da diligência de prestação de esclarecimento complementares de perito, afirmou a desnecessidade e a inutilidade do acto adicional e, de qualquer modo, a sanação da, eventual, nulidade que a sua omissão pudesse ter corporizado — art.° 120° n.º 1 al.ª d) do CPP — por o arguido não ter reagido, por qualquer forma, àquela decisão nos 10 dias subsequentes.

  Relativamente às penas, considerou-as correctamente fixadas, refutou qualquer violação de lei e pronunciou-se pela sua confirmação, inclusivamente no tocante à não suspensão da pena única.

4. Em resposta, também ela de mérito, o assistente pronunciou-se, igualmente, pela improcedência do recurso, mobilizando argumentação sobreponível, nos momentos fundamentais, à do Ministério Público.

5. Por douto despacho do Exmo. Presidente do Tribunal Colectivo de ..., o recurso foi admitido tal como requerido pelo arguido, isto é, per saltum para este STJ, com efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos — ad.°5 art.° 3990, 400°, a contrario, 401° n.º 1 al.ª b), 406.° n.º 1, 407.° n.º 2 al.ª a), 408.° n.º 1 al.ª a), 411.° n.º 1, 412.° e 432.° n.º 1 al.ª c), todos do CPP.

    

       B. Do parecer.

       a. Questão prévia: da incompetência deste STJ para conhecer do mérito do recurso.

  7. Como decorre do disposto no art.° 427.° do CPP, a regra geral é a de que, salvo os casos em que há recurso directo para o STJ, o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª Instância interpõe-se para a Relação.

       Tais casos estão densificados no art.° 432.° n.º 1 do CPP, dispondo a al.ª c) respectiva — que é a que aqui importa — que se recorre para o Supremo Tribunal de acórdãos finais proferidos pelo Tribunal Colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, desde que, «visando exclusivamente o reexame de matéria de direito». E acrescenta o n.º 2 da norma que, tirando o caso — que aqui não releva — do ad.° 414° n.° 8 do CPP[1], «na hipótese não é admissível recurso prévio para a relação».

    8. Como se sublinhou em 2. supra, o recurso questiona — aliás, em primeira linha — a matéria de facto fixada, dizendo-a firmada com, designadamente, erro notório na apreciação da prova previsto no art.° 410° n.° 2 al.ª c) do CPP, erro na valoração das provas, violação das garantias constitucionais de defesa e violação do princípio do contraditório e do in dubio pro reo, e pedindo, em conformidade, a sua revogação modificativa e, a final, a própria absolvição.

   De resto, o corpo motivação dedica, mesmo, a essa(s) questão(ões) de facto a maior parte do seu espaço e nomina-as expressamente.

   O que tudo vale por dizer que, independentemente do bem ou mal fundado da correspondente arguição, o recurso não visa exclusivamente matéria de direito, mas também matéria de facto.

  9. Lê-se no AcSTJ de 23.1.2008, Proc. n.° 4282/07, da 3, Secção, que «para aferir da competência é liminar atender ao enunciado das questões colocadas pelos recorrentes, independentemente da solução de direito a conferir, da sua razão ou falta dela», tendo a «questão [,..] alguma similitude com o que se passa no processo civil, em que para aferir da competência o que releva é a pretensão deduzida, o quid disputatum, e não o que, mais tarde, se saldará pelo quod decisum» [2]

       Por outro lado, decidiu-se no Acórdão do mesmo tribunal de 13.10.1999, Proc. n.º 99P739[3], que «[p]or força do disposto no artigo 432°, alínea d), do CPP revisto pela Lei 59/98, o recurso do acórdão final do tribunal colectivo só pode ser interposto, directamente, para o STJ se visar, exclusivamente, o reexame da matéria de direito, ou seja, se, impugnando a de direito, não puser minimamente em causa a decisão sobre a matéria de facto», sendo que «[0] que é fundamental para determinar o tribunal competente para o recurso não é a qualidade ou espécie do vicio que se invoca para recorrer mas antes a aceitação ou não da matéria de facto que vem provada» e que «[l]ogo que se põe em crise esta matéria tem de se recorrer para o Tribunal da Relação»

       E acrescentou-se, concordantemente, no AcSTJ de 27.1.2010, Proc. n.° 293/08 - 5ª Secção[4] que «I— compete ao Tribunal da Relação conhecer de recurso de acórdão final do tribunal colectivo em que venha invocado qualquer dos vícios previstos no art. 410.° do CPP; o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.° do CPP, por sua iniciativa, e nunca a pedido co recorrente» e que «II — A circunstância de a invocação dos vícios do art. 410.° do CPP ser manifestamente improcedente irreleva para o efeito de atribuição de competência ao Supremo Tribunal de Justiça, pois qualquer juízo prévio sobre o bem fundado do recurso já constitui conhecimento do recurso e esse cabe à Relação»[5] .

 10. A jurisprudência acabada de citar colhe, já se vê, no caso em apreço, acomodando-se-lhe por inteiro.

       Insiste-se: independentemente do bem ou mal fundado da arguição, a verdade é que a impugnação que o arguido aqui move é também de facto, por isso que da (exclusiva) competência do Tribunal da Relação, que conhece indistintamente de facto e de direito, nos termos do art.° 428° do CPP. E mesmo que seja para a rejeitar, essa é uma competência, exclusiva, da Relação.

  11. O que tudo significa – insiste-se ainda – que, apontando o recorrente, in casu, vícios na fixação da matéria de facto, não se verifica o pressuposto recurso visando exclusivamente a matéria de direito que, a um tempo, autoriza o recurso per saltum – art.° 432° n.º 1 c), parte final do CPP –, subtrai o procedimento à competência do Tribunal da Relação – art.° 432° n.° 2 do CPP – e se compatibiliza com a natureza de revista deste Supremo Tribunal – art.° 434° do CPP.

    Razões por que se entende que o recurso não deve ter aqui seguimento, sob pena de desaforamento – constitucionalmente vedado (ad.° 32°, n.º 9 da CRP) –, emitindo o signatário parecer no sentido de que se declare a incompetência material deste STJ para o seu conhecimento e de que se defira tal competência ao Tribunal da Relação de Coimbra, remetendo-se-lhe, oportunamente, os autos.

       b. Do mérito do recurso.

      12. Caso porventura assim se não entenda, e quanto ao mérito do recurso, apenas cabe aqui dizer que o signatário subscreve, nos seus traços gerais, a peça de contramotivação apresentada pelo Exmo. Procurador da República de ..., sendo, com ela, pela total improcedência do recurso.


***

       Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, recorrido e recorrente silenciaram.


***

     Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos do disposto no artigo 411.º, n.º 5, do Código de Processo Penal. 

*** 

       Como é jurisprudência assente e pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (neste sentido, Acórdão do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995, proferido no processo n.º 46580 - Acórdão n.º 7/95 -, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 298, de 28 de Dezembro de 1995, e BMJ n.º 450, pág. 72, que no âmbito do sistema de revista alargada fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”, bem como o Acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20 de Outubro de 2005, publicado no Diário da República, Série I-A, de 7 de Dezembro de 2005, em cuja fundamentação se refere que a indagação dos vícios faz-se “no uso de um poder-dever, vinculadamente, de fundar uma decisão de direito numa escorreita matéria de facto”) e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do Código de Processo Penal – é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

       Como assinalava o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 1996, proferido no processo n.º 118/96, in BMJ n.º 458, pág. 98, as conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso.

       As conclusões deverão conter apenas a enunciação concisa e clara dos fundamentos de facto e de direito das teses perfilhadas na motivação (assim, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 1998, proferido no processo n.º 53/98-3.ª Secção, in BMJ n.º 475, pág. 502).

       E como referia o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Março de 1998, processo n.º 1444/97, da 3.ª Secção, in BMJ n.º 475, págs. 480/8, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo de se pronunciar sobre questões de conhecimento oficioso; as conclusões servem para resumir a matéria tratada no texto da motivação.


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       Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.                                                                

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       Questões propostas a reapreciação.

       Atento o teor das conclusões, onde o recorrente sintetiza as razões de discordância com o decidido, vêm colocadas as seguintes questões a apreciar e decidir:

       Questão I – Erro notório na apreciação da prova e errada valoração da prova – Conclusões 1.ª a 3.ª, 23.ª, 25.ª a 41.ª;

       Questão II – Violação dos direitos de defesa, dos princípios do contraditório, do in dubio pro reo e da presunção de inocência Conclusões 4.ª a 22.ª e 24.ª; 

       Questão III – Medida da pena – Conclusões 42.ª a 53.ª, 58.ª a 64.ª e 68.ª;  

       Questão IV – Atenuação especial da pena – Conclusões 65.ª e 68.ª;

       Questão V – Suspensão da execução da pena – Conclusões 54.ª a 57.ª, 64.ª, 66.ª e 67.ª;

       Questão VI – Montante indemnizatório – Conclusões 69.ª a 77.ª.

      Abordar-se-á a questão prévia da competência para cognição do recurso suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no douto parecer emitido, matéria que sempre seria de conhecimento oficioso por estar em causa a definição de competência do tribunal de recurso – artigo 32.º, n.º 1, do CPP.


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       Apreciando. Fundamentação de facto.

       No acórdão ora recorrido o Colectivo alterou matéria de facto, distinguindo entre factos provados não abrangidos pelo reenvio, enunciados sob a letra A. com os n.ºs 1 a 12; factos provados reapreciados na decorrência do reenvio – B. n.ºs 13 a 17 – e factos provados relativos à situação pessoal actualizada do arguido – C. n.ºs 18 a 29.
       A alteração substancial resultou do novo julgamento feito na sequência do determinado reenvio, sendo o segmento B. 13 a 17, o contraponto do que foi dado por não provado no primeiro julgamento nas alíneas d) a j) do segmento 2.2.Matéria de Facto Não Provada, a fls. 303, que conduziu à absolvição do ora recorrente.

  A.
 Factos provados não abrangidos pelo reenvio.
1. O assistente BB nasceu no dia ../../1989 e padece de “Deficiência Mental em grau Ligeiro a Moderado”, que poderá ser de nascença, caracterizando-se por défices cognitivo-intelectuais permanentes e irreversíveis, por virtude da qual apresenta atraso mental e diminuição da capacidade de entendimento.
2. Este atraso mental do assistente é do conhecimento de todas as pessoas que com ele convivem e que é imediatamente percetível em função do seu comportamento e do modo como se exprime.
3. Ao tempo dos factos e desde há vários anos, o arguido conhecia o assistente BB, tendo sido vizinhos, sabendo que ele padece de debilidade mental e que, por via dessa sua incapacidade, frequenta a A… de … .
4. Por serem das relações entre si, o arguido, o assistente e o pai deste costumavam conviver no “Café M…….”, sito em …., …, onde jogavam bilhar, conversavam e tomavam bebidas.
5. Em datas e horas não concretamente apuradas, mas situadas por volta das 23 horas entre o mês de maio e junho de 2014, em duas ocasiões distintas, o assistente e o arguido abandonaram juntos o “Café M……..” e dirigiram-se à residência deste, sita na Av. …, n.º …., …., … .
6. Aí chegados, como o assistente e o arguido concordassem fazer sexo entre si, dirigiram-se para o interior do quarto de dormir do arguido, onde se despiram.
7. Nessas duas ocasiões o arguido disse ao assistente para lhe chupar a “piça”, bem como que o deixasse “ir-lhe ao cú”, acabando um e outro por friccionar o seu pénis no ânus do outro.
8. Na segunda dessas ocasiões o arguido introduziu um objeto de plástico não concretamente apurado, com a forma de um pénis, no ânus do assistente, com o que lhe causou dor física.
9. O arguido agiu em todas as circunstâncias atrás descritas voluntária e conscientemente, com o propósito de satisfazer a sua lascívia e obter satisfação sexual.
10. Após os factos e até à queixa do dia 14.07.2014, o assistente tornou-se reservado, isolando-se com frequência e deixando de acompanhar com a mesma assiduidade a equipa do ………………., uma das suas distrações preferidas, deixando de sair assiduamente de casa nomeadamente para ir ao café e/ou frequentar a atividade escolar na A………… de ……..
11. O assistente não gosta de falar do sucedido com ninguém e fica constrangido quando tem de relatar os factos ocorridos.
12. Em consequência dos factos descritos, no âmbito dos presentes autos o assistente teve de se deslocar acompanhado à Polícia, ao Hospital Psiquiátrico, ao Instituto de Medicina Legal e aos serviços do Ministério Público.
    B.
  Factos provados reapreciados na decorrência do reenvio.
13. A doença mental do assistente impede-o de formar e exprimir a sua vontade em termos de sexualidade e de resistir à prática de atos desta natureza.
14. Igualmente, coloca-o numa posição de vulnerabilidade à influência negativa de terceiros.
15. O arguido sabia que por via da doença de que padecia, o assistente acederia a deslocar-se para o interior da sua residência e a não oferecer resistência a qualquer proposta de trato sexual que lhe formulasse, como veio a acontecer.
16. Por isso, o arguido decidiu aproveitar-se da doença do assistente, para praticar com ele relações sexuais e satisfazer os seus instintos libidinosos, o que fez livre, voluntária e conscientemente.
17. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
 C.
Factos provados relativos à situação pessoal atualizada do arguido.
18. O arguido é o mais velho de quatro irmãos, tendo crescido num contexto familiar descrito como gratificante e isento de problemáticas específicas.
19. O arguido, divorciado, reside com os pais, de 70 e 69 anos, ambos reformados, em casa destes. A habitação consiste numa vivenda unifamiliar, dispondo de boas condições de habitabilidade, sendo as despesas de manutenção asseguradas pelos pais.
20. O arguido encontra-se desempregado e não exerce qualquer atividade remunerada.
21. O arguido está nesta situação há mais de 5 anos altura em que ficou desempregado na sequência do encerramento da firma onde trabalhava desde que cumpriu o serviço militar.
22. Anteriormente, e após abandonar a escola aos 15 anos, concluindo o 4.º ano de escolaridade, trabalhou também na construção civil com o pai, à data empreiteiro.
23. Casou aos 27 anos, tendo dois filhos do casamento, um já maior, outo ainda menor.
24. Há cerca de seis anos, o arguido e a esposa separaram-se, tendo os filhos ficado à guarda desta. O filho mais novo vai com alguma regularidade a casa dos avós paternos, mantendo assim contactos. Com a filha, o arguido mantém apenas contactos se se cruzar com ela na rua.
25. O arguido teve a decorrer uma medida de suspensão provisória do processo, pelo período de 6 meses, sujeita à injunção de cumprimento de 80 horas de serviços de interesse público, pela alegada prática de um crime de violência doméstica, na pessoa da ex-mulher.
26. O arguido não apresenta problemas de saúde significativos, nem é alvo de qualquer acompanhamento médico regular, negando ter, atualmente, problemas de consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
27. No meio de residência, e no contexto familiar de origem, o arguido é descrito como uma pessoa pacífica, de relacionamento interpessoal adequado, não tendo havido impacto na sua inserção social e familiar na sequência da presente denúncia.
28. O arguido é tido como pessoa de bem, honesto, respeitador e trabalhador.
29. O arguido não tem antecedentes criminais.
D.
Factos não provados

Não se provou que:
a) em qualquer das ocasiões o assistente chupou o pénis do arguido; 
b) o assistente alguma vez tivesse feito sexo oral no arguido e vice-versa;
c) o arguido tivesse praticado quaisquer atos sexuais com o assistente em período diferente e em número de ocasiões superior ao dado como provado;
d) a conduta do arguido provocou um agravamento do estado psíquico do assistente.
E.
Outros factos

Inexistem ouros factos, provados ou não provados com relevo para a decisão a proferir
F.
A convicção do tribunal

Quanto aos factos provados elencados em A., (não abrangidos pelo reenvio) eles estão assentes por via do que ficou decidido, em termos de facto, no acórdão de fls. 299 a 316.
Quanto aos factos provados elencados em B., (reapreciados na decorrência do reenvio) eles resultaram:
i. do exame médico de fls. 478 a 482 [factos 13 e 14], com a nota de que, enquanto meio de prova pericial, o juízo técnico inerente, onde se fundou a afirmação da factualidade provada em 13 e 14, está subtraído (ainda que de forma presuntiva) à livre convicção do julgador – cf. art.º 163.º, n.º 1, do Código Penal;
ii. por outro lado, o exame médico que inicialmente foi feito nos autos, ainda que complementado com os esclarecimentos da senhora médica perita, não chegou a conclusão diversa daquela firmada no exame médico agora realizado, antes e só não foi conclusivo, como se alcança quer do acórdão recorrido – “... Isto porque o relatório de psiquiatria forense não foi conclusivo, afirmando a fls.113 que o BB poderia, naquelas circunstâncias em que ocorreram os factos, ser incapaz de opor resistência atendendo ao seu funcionamento prévio já deficitário sobretudo se sob o efeito do álcool ...” – quer do próprio acórdão do TRC que, exatamente por esse fundamento, ordenou o reenvio para dos autos para que se pudesse ultrapassar o resultado inconclusivo do exame pericial.
iii. o que quer dizer que não existe no processo qualquer outro meio de prova de igual valia (pericial) que permita ao tribunal, fundamentadamente – cf. art.º 163.º, n.º 2, do Código Penal - divergir do juízo técnico que esteve na base da afirmação da factualidade provada em 13 e 14;
iv.   como se deixou dito na fundamentação do acórdão de fls. 299 a 316 “... De resto o próprio relatório de clinica médico-legal de fls.27-9, o relatório informativo da A…… de …… de fls.49-50 e o relatório de psiquiatria forense de fls.110 ss descrevem os sinais de deficit cognitivo evidenciados desde logo no discurso, na postura e comportamento do assistente, não podendo passar despercebidos esses sinais evidentes de deficiência mental a quem, como o arguido, ao tempo seu vizinho, com ele frequentemente convivia, circunstância que o arguido referiu fazer com ele e/ou o pai nomeadamente no café M……., sito em …….., onde jogavam e bebiam nomeadamente à noite, como tudo explicou.
v. Por isso se julgou provado que “... Este atraso mental do assistente é do conhecimento de todas as pessoas que com ele convivem e que é imediatamente percetível em função do seu comportamento e do modo como se exprime ...”
vi.  Por outro lado, ainda, como também se julgou provado, o arguido conhecia o assistente à (SIC) vários anos e convivia com ele com regularidade (facto 3);
vii.Ressalta ainda da fundamentação do acórdão de fls. 299 a 316 e da própria matéria de facto provada, que a convivência entre o arguido e o assistente era de mera circunstância, logo, sem qualquer caráter, nomeadamente afetivo;
viii. Por assim ser, destes elementos probatórios, a conclusão lógica a retirar não poderia ser outra senão aquela provada em 15 e 16, ou seja, a ação do arguido só se compreende e justifica por via da vontade firmada de satisfazer os seus desejos libidinosos através do aproveitamento da doença (e todas as necessárias sequelas) do assistente;
ix.  Nada pôs em causa a natural capacidade do arguido em avaliar a ilicitude e de se determinar de acordo com essa avaliação, sendo que a ilicitude penal do conhecimento do comum das pessoas – atenta a carga valorativa do bem jurídico protegido – e, necessariamente, do arguido;
x. Logo, a ação do arguido não poderia deixar de ser, como se provou, fruto da sua vontade livre e intencionalmente direcionada para a prática do crime, tudo como se provou em 16, parte final, e 17.
xi. Finalmente, ainda quanto aos factos provados em C., (Factos provados relativos à situação pessoal atualizada do arguido) eles estão assentes,
uma vez mais, por via do que ficou de decidido, em termos de facto, no acórdão de fls. 299 a 316, com a atualização feita na audiência de julgamento por declarações do próprio arguido e com a atualização do CRC, que certifica a ausência de antecedentes criminais.
Quanto aos factos não provados remanescentes, permanecem, uma vez mais, válidas afirmações feitas no acórdão no acórdão de fls. 299 a 316 e que se resumem, em suma, à falta de meios de prova que prova que permitissem a sua afirmação.».

       Fundamentação de direito. Apreciando.

       Questão Prévia – Competência para cognição do recurso.

       Em causa está a competência deste Supremo Tribunal para conhecer do recurso interposto pelo arguido, em que face às conclusões apresentadas, se verifica estar em causa, para além do mais, o reexame da matéria de facto através da invocação do vício decisório erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, o que ocorre nas conclusões 2.ª e 23.ª, para além de vir invocada errada valoração da prova – cfr. conclusão 27.ª.

      O que no fundo vem questionado é a alteração da matéria de facto operada no novo julgamento com a introdução dos FP 13 a 17.

       É uniforme o entendimento de que é ilegítima a invocação de vícios decisórios como fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, podendo neste sentido ver-se o acórdão de 25-09-2019, proferido no processo n.º 60/17.5JAFAR.E1.S1-3.ª Secção, págs. 24 a 51.

       Extrai-se do acórdão deste Supremo Tribunal de 17-01-2007, proferido no processo n.º 4694/06-3.ª Secção:

       “Ao arguido está vedado fundar o recurso ante este STJ, que enquanto tribunal de revista, conhece, apenas, de matéria de direito, invocando aquele vício de confecção técnica do decidido, situado ao nível da matéria de facto, como é entendimento pacífico, embora possa sugeri-lo e este STJ, para afirmação daquela reserva de competência exclusiva, conhecer dele oficiosamente, para estabelecimento da coerência interna do decidido, ou seja, para bem decidir de direito, o que não dispensa a fixação de uma correcta, no sentido de suficiente, harmónica e clara base fáctica.

       Se o recorrente intenta ver reponderada a matéria de facto, nesta ordem de considerações terá de dirigir-se à Relação, tribunal de vocação para o importante papel de fixação, em definitivo, como regra, da matéria de facto, nos termos dos art. 427 e 428 do CPP, independentemente do bem ou mal fundado da arguição de qualquer daqueles defeitos, que hão-de resultar do contexto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regra s da experiência.

      No caso vertente a invocação daquele vício é explícita e não meramente perfunctória ou epidérmica”. (Realce nosso).

       Nos termos do artigo 427.º do Código de Processo Penal – Recurso para a relação –  “Exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso de decisão proferida por tribunal de primeira instância interpõe-se para a relação”.

       É admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos casos contemplados no artigo 432.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo de outros casos que a lei especialmente preveja, como explicita o artigo 433.º do mesmo diploma legal.

       Com a entrada em vigor, em 15 de Setembro de 2007, da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, foi modificada a competência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de recursos de acórdãos finais proferidos por tribunal colectivo e de júri.

       Com a reforma do Código de Processo Penal de 2007 o regime de recursos foi modificado em dois pontos: a propósito da recorribilidade, a nível de graus de recurso, e por outro, a definição do tribunal competente para apreciar o recurso directo de acórdão final do Tribunal Colectivo ou do Tribunal do júri, aqui face à transferência de competência do Supremo Tribunal de Justiça para a Relação, quando presentes penas de prisão iguais ou inferiores a cinco anos, atenta a nova redacção da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP.

       No que respeita às questões suscitadas com a transferência de competência nos casos de recurso directo e face à nova redacção da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, foi entendido que o direito ao recurso rege-se pela lei vigente à data em que a decisão é proferida, aplicando-se o novo regime nos recursos directos de decisões proferidas depois de 15-09-2007.

    

      Com a alteração introduzida na redacção do artigo 432.º do Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, entrada em vigor em 15 de Setembro de 2007 (Diário da República, 1.ª série, n.º 166, de 29 de Agosto, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 100-A/2007, Diário da República, I Série, n.º 207, Suplemento, de 26 de Outubro, por seu turno, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 105/2007, Diário da República, I Série, n.º 216, de 9 de Novembro de 2007), que procedeu à 15.ª alteração e republicou o Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, o preceito passou a estabelecer:


Artigo 432.º

 […]


1 – Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) ……………….………………………………

b) …………………....…………………………

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou do tribunal colectivo, que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito;

d) [Anterior alínea e)].

2 – Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º

      A propósito da ressalva do n.º 2 do artigo 432.° diz o acórdão deste Supremo Tribunal de 17-09-2009, proferido no processo n.º 421/07.8JACBRS1-3.ª, que a inadmissibilidade de recurso prévio para a Relação, a que alude este n.º 2, apenas existe quando o recurso visar “exclusivamente o reexame da matéria de direito”, o que, aliás, a alínea c) do n.º 1, explicitou na parte final, apesar de resultar da regra geral constante do artigo 434.° do CPP, contemplando o n.º 8 do artigo 414.° situações de conjunção de recursos.

       A questão da competência para cognição do recurso foi abordada nos acórdãos a seguir enunciados, estando em causa recursos interpostos de acórdãos finais de tribunal colectivo para o Supremo Tribunal de Justiça, não visando os recorrentes exclusivamente o reexame de matéria de direito, mas em que era pretendida reapreciação de matéria de facto, com invocação de vícios decisórios ou errada valoração da prova, em todos eles julgando-se incompetente o Supremo Tribunal de Justiça, mas ordenando a remessa imediata para o Tribunal da Relação, invocando-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 80/2001, de 21 de Fevereiro de 2001, publicado no Diário da República, I Série - A, de 16 de Março de 2001.

       Assim aconteceu nos acórdãos por nós relatados:

de 9-01-2008, processo n.º 3281/07 (arguido condenado por furto qualificado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, invoca o vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, violação do princípio do contraditório, da imediação da prova e da verdade material, pedindo  redução da medida da pena e suspensão da execução);

de 6-02-2008, processo n.º 3759/07  (arguida condenada por falsificação de documento e burla qualificada, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na execução, invoca declarações e depoimentos prestados em audiência, pedindo convolação de burla qualificada para simples, sem prejuízo de absolvição); 

de 7-05-2008, processo n.º 1511/08 (Recorre a arguida condenada por burla qualificada e falsificação de documento, na pena única de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na execução, invocando os vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) e c), pedindo a absolvição ou condenação em pena de multa. Recorreu igualmente o arguido, condenado na pena única de 7 anos de prisão, visando apenas redução da medida da pena com suspensão da execução);

 de 14-05-2008, processo n.º 1133/08 ( arguido condenado por tráfico de estupefacientes, na pena de  5 anos e 6 meses de prisão, invoca o vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP,  violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio in dubio pro reo, nulidade do artigo 379.º, n.º 2, alínea a), do CPP, por deficiente exame crítico das provas e pedindo a subsunção no tipo de menor gravidade, ou não o sendo, a fixação da pena em 4 anos de prisão).   

       Abordar-se-ão ainda os acórdãos de 14-09-2011, processo n.º 9/10.6PACTX.E1.S1 e de 14-03-2013, processo n.º 991/08.3PRPRT.P1.S1.

      Concretizando. 

      Extrai-se do acórdão de 9 de Janeiro de 2008, processo n.º 3281/07:

       “Em causa está a competência deste Supremo Tribunal para conhecer do presente recurso, em que face às conclusões apresentadas, se verifica estar em causa, para além do mais, o reexame da matéria de facto através da invocação de um dos vícios decisórios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

       O recorrente, pretendendo a reapreciação da matéria de facto dada por provada, embora pela forma mitigada e restrita consentida pelos estreitos limites impostos pelo artigo 410º, nº 2 do CPP, não pode dirigir-se, por sua própria iniciativa, ao Supremo Tribunal, uma vez que este, como tribunal de revista apenas conhece de matéria de direito, devendo antes demandar a intervenção do Tribunal da Relação, a quem compete a reapreciação da matéria de facto, não só do modo directo e mais abrangente consentido pelo artigo 412º do CPP, como também por via da alegação da verificação dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do CPP, apenas sindicáveis pela leitura do texto (e contexto) da decisão recorrida, de per si considerada, ou em conexão com as regras de experiência comum, sem possibilidade de reporte a outros elementos (peças processuais ou outros, não referenciados no texto) constantes dos autos.

       Face ao teor da motivação e das conclusões, é fora de qualquer dúvida que o recorrente, para além do mais, pretende, de forma clara, expressa e inequívoca, não meramente implícita ou lateral, a reapreciação da matéria de facto, o que faz, invocando a existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e a final pedindo se determine o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do CPP.

       Face a tal pretensão é este Tribunal incompetente, hierárquica e funcionalmente, como tem sido decidido de modo constante.

       É uniforme a orientação segundo a qual é da competência dos Tribunais da Relação, e não do STJ, o conhecimento dos recursos interpostos de acórdãos finais de tribunal colectivo, que se não limitem a questões de direito, encontrando-se nesta situação os recursos em que vem alegada a ocorrência de algum dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, visando-se com tal arguição a colocação em causa da bondade ou correcção da decisão proferida sobre a matéria de facto – i. a., acórdãos do STJ, de 15-03-2006, processo 2787/05-3.ª; de 17-01-2007, no processo 4694/06-3.ª; de 08-02-2007, processo 159/07-5.ª; de 28-02-2007, processo 334/07-3.ª; de 11-04-2007, processo 1126/07-3.ª; de 19-04-2007, processo 802/07-5.ª; de 16-05-2007, processo 807/07-3.ª.

       Sendo competente para o recurso, porque através dele também se intenta obter a reapreciação da matéria de facto, o Tribunal da Relação do Porto, para este serão os autos remetidos.

       A este propósito, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 80/2001, de 21-02-2001, in DR, I Série - A, de 16-03-2001, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do complexo normativo constante dos artigos 33.º, n.º 1, 427.º, 428.º, n.º 2 e 432.º, alínea d) do CPP, quando interpretadas no sentido de que, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal colectivo de 1ª instância pelo arguido e para o STJ, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele Tribunal de recurso não pode determinar a remessa do processo ao Tribunal da Relação.

       Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em declarar a incompetência hierárquica e funcional deste Tribunal, face ao segmento do recurso em que se visa a reapreciação da matéria de facto, remetendo-se os autos, por ser o competente, ao Tribunal da Relação do Porto”.

       Extrai-se do acórdão de 6 de Fevereiro de 2008, proferido no processo n.º 3759/07:

       “Em causa está a competência deste Supremo Tribunal para conhecer do presente recurso, em que face à motivação e às conclusões apresentadas, se verifica estar em causa, para além do mais, o reexame da matéria de facto através da invocação de declarações e depoimentos prestados na audiência de julgamento.

       Sendo certo e pacífico, que é pelas conclusões extraídas da motivação que o recorrente, exprimindo de forma sintética as razões do pedido – ou, noutra perspectiva, os fundamentos da discordância com o decidido - traça as balizas do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, há que, no caso concreto, atender a essas razões de discórdia, que não se cingem a matéria de direito, mas igualmente e de forma clara ao modo como foi fixada a matéria de facto, independentemente de se considerar ter sido manifestada essa discordância da forma correcta.

       Face ao teor da motivação e das conclusões, é fora de qualquer dúvida que a recorrente, para além do mais, pretende, de forma clara, expressa e inequívoca, não meramente implícita ou lateral, a reapreciação da matéria de facto, o que faz, expressando a sua posição quanto ao que ficou provado.

       Face a tal pretensão é este Tribunal incompetente, hierárquica e funcionalmente, como tem sido decidido de modo constante.

        É uniforme a orientação segundo a qual é da competência dos Tribunais da Relação, e não do STJ, o conhecimento dos recursos interpostos de acórdãos finais de tribunal colectivo, que se não limitem a questões de direito.

        Como decorre dos artigos 427.º e 428.º do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito.

       Sendo competente para o recurso, porque através dele também se intenta obter a reapreciação da matéria de facto, o Tribunal da Relação de Lisboa, para este serão os autos remetidos”. (Seguindo a invocação do acórdão do Tribunal Constitucional nº 80/2001).

       Na sequência foi declarada a incompetência hierárquica e funcional deste Tribunal, face ao segmento do recurso em que se visa a reapreciação da matéria de facto, remetendo-se os autos, por ser o competente, ao Tribunal da Relação de Lisboa.

       Extrai-se do acórdão de 7 de Maio de 2008, proferido no processo n.º 1511/08:

       “Em causa está a competência deste Supremo Tribunal para conhecer do recurso da arguida, em que face às conclusões apresentadas, se verifica estar em causa, para além do mais, o reexame da matéria de facto através da invocação dos vícios decisórios previstos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

       Definindo a competência do STJ, dispunha o artigo 432.º, alínea d), do CPP, na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25-08, que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito.

       Definindo os poderes de cognição deste Tribunal dispunha o artigo 434.º do CPP, introduzido pela mesma reforma que, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

      Com a nova redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto passou a dispor a alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º que: Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito.

       No artigo 434.º as alterações não têm significado, passando a estabelecer: «Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito».

       Face à nova lei não seria admissível recurso para este Tribunal por parte da arguida em razão da pena que lhe foi aplicada.

       Aplicar-se-á a anterior versão por mais favorável, pois a nova é mais restritiva, de acordo com posição que vem sendo assumida nesta secção.

       Acontece que mesmo face à anterior versão não é este o Tribunal competente para conhecer do recurso interposto pela arguida.

       A recorrente, que ao longo da motivação exprime a sua discordância com o que foi dado por provado, invoca os referidos vícios.

       Pretendendo a recorrente a reapreciação da matéria de facto dada por provada, embora pela forma mitigada e restrita consentida pelos estreitos limites impostos pelo artigo 410.º, n.º 2, do CPP, não pode dirigir-se, por sua própria iniciativa, ao Supremo Tribunal, uma vez que este, como tribunal de revista apenas conhece de matéria de direito, devendo antes demandar a intervenção do Tribunal da Relação, a quem compete a reapreciação da matéria de facto, não só do modo directo e mais abrangente consentido pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, como também por via da alegação da verificação dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, apenas sindicáveis pela leitura do texto (e contexto) da decisão recorrida, de per si considerada, ou em conexão com as regras de experiência comum, sem possibilidade de reporte a outros elementos (peças processuais ou outros, não referenciados no texto) constantes dos autos.

       Como decorre dos artigos 427.º e 428.º do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito.

       Sendo certo e pacífico, que é pelas conclusões extraídas da motivação que o recorrente, exprimindo de forma sintética as razões do pedido – ou, noutra perspectiva, os fundamentos da discordância com o decidido - traça as balizas do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, há que, no caso concreto, atender a essas razões de discórdia, que no que respeita à arguida não se cingem a matéria de direito, mas igualmente e de forma clara ao modo como foi fixada a matéria de facto, independentemente de se considerar ter sido manifestada essa discordância da forma correcta.

       Essas divergências no plano fáctico resumem-se, nas conclusões, a invocação do vício de insuficiência para a decisão de matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, versada na conclusão 4.ª e do erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do mesmo número na conclusão 5.ª.

       Face ao teor da motivação e das conclusões, é fora de qualquer dúvida que a recorrente, para além do mais, pretende, de forma clara, expressa e inequívoca, não meramente implícita ou lateral, a reapreciação da matéria de facto, o que faz, invocando a existência dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, embora a final não peça o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do CPP.

       Ao longo da motivação expressa a recorrente por variadas vezes a sua discordância quanto à forma de valoração dos depoimentos por parte do colectivo, esquecendo-se do limite incontornável da cognição da matéria de facto através da invocação dos vícios decisórios consistente em apenas ser possível uma análise a partir do texto da decisão.

       A recorrente não questiona sequer o texto da decisão, mas sim o modo como o tribunal procedeu à apreciação da prova produzida, sendo certo que actuando fora das condições previstas no normativo, afinal impugna a convicção do tribunal, o que extravasa os apertados limites do artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

       E fá-lo do seguinte modo: (…)

       Toda esta matéria que tem a ver com a fixação da matéria de facto, de acordo com o artigo 127.º do CPP, é insindicável por este Supremo Tribunal, conforme jurisprudência assente, uniformemente.

       Face a tal pretensão da recorrente é este Supremo Tribunal incompetente, hierárquica e funcionalmente, como tem sido decidido de modo constante.

       É uniforme a orientação segundo a qual é da competência dos Tribunais da Relação, e não do STJ, o conhecimento dos recursos interpostos de acórdãos finais de tribunal colectivo, que se não limitem a questões de direito, encontrando-se nesta situação os recursos em que vem alegada a ocorrência de algum dos vícios previstos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º, do CPP, visando-se com tal arguição a colocação em causa da bondade ou correcção da decisão proferida sobre a matéria de facto – i. a., acórdãos do STJ, de 15-03-2006, processo 2787/05-3.ª; de 17-01-2007, no processo 4694/06-3.ª; de 08-02-2007, processo 159/07-5.ª; de 28-02-2007, processo 334/07-3.ª; de 11-04-2007, processo 1126/07-3.ª; de 19-04-2007, processo 802/07-5.ª; de 16-05-2007, processo 807/07-3.ª, de 09-01-2008, processo 3281/07-3.ª, de 06-02-2008, processo 3759/07-3.ª.                             

       E o Acórdão n.º 10/2005, de 20 de Outubro, DR, I - A Série, n.º 234, de 07-12-2005, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo».

       Sendo competente para o recurso, porque através dele também se intenta obter a reapreciação da matéria de facto, o Tribunal da Relação do Porto, para este serão os autos remetidos.

       A este propósito, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 80/2001, de 21-02-2001, in DR, I Série - A, de 16-03-2001, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do complexo normativo constante dos artigos 33.º, n.º 1, 427.º, 428.º, n.º 2 e 432.º, alínea d) do CPP, quando interpretadas no sentido de que, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal colectivo de 1ª instância pelo arguido e para o STJ, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele Tribunal de recurso não pode determinar a remessa do processo ao Tribunal da Relação.

       Esta declaração de incompetência repercute-se no recurso interposto pelo arguido.

       Estabelece o artigo 414.º, n.º 8, do CPP, que havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente pelo tribunal competente para conhecer da matéria de facto.

       Este Supremo Tribunal pronunciou-se bastas vezes sobre esta questão prevista no anterior n.º 7 do mesmo artigo 414.º do CPP (a nova redacção é mais precisa ao definir que é competente o tribunal que o for para conhecer da matéria de facto).

       Havendo vários recursos de uma determinada decisão, versando algum deles matéria de facto e outros, exclusivamente, matéria de direito, compete ao mesmo tribunal o seu julgamento conjunto, nos termos do art. 414.º, n.º 7, do CPP – acórdão de 17-02-2000, SASTJ, n.º 38, p. 81.

       Como se extrai do acórdão de 22-03-2000, processo 1158/99- 3.ª, SASTJ, n.º 39, p. 58: “A regra do artigo 414.º, n.º 7 do CPP será aplicável não apenas para o caso de vários recorrentes, mas também para o caso de um recorrente, uma vez que este impugne não apenas matéria de facto como de direito; o tribunal competente para apreciar deve obviamente deter poderes de cognição para as duas vertentes, já que a apreciação será conjunta”.

       Nas hipóteses de coexistirem diversos recursos da mesma decisão, abordando uns matéria de facto e outros matéria de direito o que corresponde à previsão do art. 414.º, 7 ou de, num mesmo recurso, se ventilarem ambas aquelas matérias, cabe às relações conhecer desses recursos - acórdão de 23-3-2000, processo 972/99-5.ª, SASTJ, n.º 39, p. 70”.

       Foi declarada a incompetência hierárquica e funcional deste Tribunal, face ao segmento do recurso da arguida, em que se visa a reapreciação da matéria de facto, remetendo-se os autos, por ser o competente, ao Tribunal da Relação do Porto.

    

       Extrai-se do acórdão de 14 de Maio de 2008, proferido no processo n.º 1133/08:

     “Estamos perante acórdão final condenatório de tribunal colectivo, tendo sido aplicada ao recorrente a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.

       Em causa está a competência deste Supremo Tribunal para conhecer do recurso em que, face às conclusões apresentadas, se verifica estar em causa, para além do mais, independentemente da questão de saber se a arguição é feita de modo correcto, o reexame da matéria de facto através da invocação do vício decisório previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

       Definindo a competência do STJ, dispunha o artigo 432.º, alínea d), do CPP, na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25-08, que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito.

       Definindo os poderes de cognição deste Tribunal dispunha o artigo 434.º do CPP, introduzido pela mesma reforma que, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

       Com a nova redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, passou a dispor a alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º que: «Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito».

       No artigo 434.º as alterações não têm significado, passando a estabelecer: «Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito».

      Embora sem relevo para a questão, sempre se dirá que nesta secção tem sido sufragado o entendimento de que é aplicável a redacção anterior do CPP, mesmo que a decisão recorrida tenha sido proferida já no domínio da nova versão, como acontece neste caso, pois a  anterior versão é mais favorável, sendo a nova mais restritiva.

       Acontece que mesmo face à anterior versão não é este o Tribunal competente para conhecer do recurso interposto pelo arguido.

       O recorrente, que ao longo da motivação exprime a sua discordância com o que foi dado por provado, invoca para além do mais, o referido vício decisório.

      Pretendendo o recorrente a reapreciação da matéria de facto dada por provada, embora pela forma mitigada e restrita consentida pelos estreitos limites impostos pelo artigo 410.º, n.º 2, do CPP, não pode dirigir-se, por sua própria iniciativa, ao Supremo Tribunal, uma vez que este, como tribunal de revista apenas conhece de matéria de direito, devendo antes demandar a intervenção do Tribunal da Relação, a quem compete a reapreciação da matéria de facto, não só do modo directo e mais abrangente consentido pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, como também por via  da alegação da verificação dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do CPP, apenas sindicáveis pela leitura do texto (e contexto) da decisão recorrida, de per si considerada, ou em conexão com as regras de experiência comum, sem possibilidade de reporte a outros elementos (peças processuais ou outros, não referenciados no texto) constantes dos autos.

       Como decorre dos artigos 427.º e 428.º do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito – o tribunal vocacionado para o reexame da matéria de facto é o da Relação, a quem cabe, em última instância, decidir a matéria de facto.

       Sendo certo e pacífico, que é pelas conclusões extraídas da motivação que o recorrente, exprimindo de forma sintética as razões do pedido – ou, noutra perspectiva, os fundamentos da discordância com o decidido - traça as balizas do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, há que, no caso concreto, atender a essas razões de discórdia, que não se cingem a matéria de direito, mas igualmente e de forma clara ao modo como foi fixada a matéria de facto, independentemente, repete-se, de se considerar ter sido manifestada essa discordância da forma correcta (aqui se divergindo da posição do MP na conclusão 3.ª da resposta apresentada).

       Face ao teor da motivação e das conclusões, é fora de qualquer dúvida que o recorrente, para além do mais, pretende, de forma clara, expressa e inequívoca, não meramente implícita ou lateral, a reapreciação da matéria de facto, o que faz, invocando, i. a.,  a existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, embora a final não peça o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do CPP.

       Ao longo da motivação expressa o recorrente por variadas vezes a sua discordância quanto à forma de valoração dos depoimentos por parte do colectivo, esquecendo-se do limite incontornável da cognição da matéria de facto através da invocação dos vícios decisórios consistente em apenas ser possível uma análise a partir do texto da decisão.

       O recorrente não questiona sequer o texto da decisão, mas sim o modo como o tribunal procedeu à apreciação da prova produzida, sendo certo que actuando fora das condições previstas no normativo, afinal impugna a convicção do tribunal, o que extravasa os apertados limites de cognição permitidos pelo artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

       Muito embora enuncie no início da motivação que o recurso se prende única e exclusivamente com a medida da pena aplicada, o recorrente logo de seguida enumera os factos provados e não provados, manifestando a sua discordância com a valoração da prova feita pelo colectivo, invocando contradição insanável, o princípio in dubio pro reo e erro notório na apreciação da prova, o vício de isuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127.º do CPP, para além da nulidade do acórdão, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, por deficiente exame crítico das provas.    

       Toda esta matéria que tem a ver com a fixação da matéria de facto e sua reponderação, de acordo com o artigo 127.º do CPP, é insindicável por este Supremo Tribunal, conforme jurisprudência assente, há muito e uniformemente, o mesmo se passando com a arguida violação do princípio in dubio pro reo, que no caso e na perspectiva do recorrente, valerá apenas em sede de valoração de provas.

       Face a tal pretensão do recorrente é este Supremo Tribunal incompetente, hierárquica e funcionalmente, como tem sido decidido de modo constante.

       É uniforme a orientação segundo a qual é da competência dos Tribunais da Relação, e não do STJ,

não do STJ, o conhecimento dos recursos interpostos de acórdãos finais de tribunal colectivo, que se não limitem a questões de direito, encontrando-se nesta situação os recursos em que vem alegada a ocorrência de algum dos vícios previstos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º, do CPP, visando-se com tal arguição a colocação em causa da bondade ou correcção da decisão proferida sobre a matéria de facto – i. a., acórdãos do STJ, de 15-03-2006, processo 2787/05-3.ª; de 17-01-2007, no processo 4694/06-3.ª; de 08-02-2007, processo 159/07-5.ª; de 28-02-2007, processo 334/07-3.ª; de 11-04-2007, processo 1126/07-3.ª; de 19-04-2007, processo 802/07-5.ª; de 16-05-2007, processo 807/07-3.ª, de 09-01-2008, processo 3281/07-3.ª, de 06-02-2008, processo 3759/07-3.ª, de 07-05-2008, processo1511/08-3.ª.                   

       E o Acórdão n.º 10/2005, de 20 de Outubro, DR, I - A Série, nº 234, de 07-12-2005, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo».

       A partir da reforma de 1998 operada pela Lei nº 59/98, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1999, quem pretenda impugnar um acórdão final de tribunal colectivo, de duas uma: se visar exclusivamente o reexame de matéria de direito - artigo 432.º d) - dirige o recurso directamente ao STJ; se não visar exclusivamente este reexame, dirige-o então, de facto e de direito, à Relação, caso em que da decisão desta, não sendo caso de irrecorribilidade nos termos do artigo 400º do CPP, poderá depois recorrer para o STJ.

       Com a reforma de 2007, nos termos da alínea c) do artigo 432.º, restringiu-se o recurso aos casos em que seja aplicada pena de prisão superior a 5 anos, mantendo-se, porém, os demais pressupostos, não se alterando, pois, este entendimento.

       A partir de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista ampliada com invocação dos vícios decisórios do artigo 410º, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto de decisão e uma outra, mais ampla e abrangente, não confinada ao texto da decisão, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se a observância de certas formalidades.

       As questões suscitadas pelo recorrente, substanciando no fundo a sua discordância em relação à forma como o Colectivo da 1ª instância decidiu a matéria de facto, respeitam exclusivamente a recurso em matéria de facto, estranha aos poderes cognitivos do STJ, que, exceptuados os casos limite de cognição – oficiosa - dos vícios decisórios e nulidades nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, efectua exclusivamente a reapreciação da matéria de direito – artigo 434.º, como aquele do CPP.

       Ao Supremo Tribunal de Justiça, como Tribunal de revista, apenas compete conhecer de direito.

       Sendo competente para o recurso, porque através dele também se intenta obter a reapreciação da matéria de facto, o Tribunal da Relação de Évora, para este serão os autos remetidos.

       Convoca-se uma vez mais o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 80/2001, de 21-02-2001.

       Foi declarada a incompetência hierárquica e funcional deste Tribunal, face ao segmento do recurso do arguido em que se visa a reapreciação da matéria de facto, remetendo-se os autos, por ser o competente, ao Tribunal da Relação de Évora.

       Acórdão de 14 de Setembro de 2011, proferido no processo n.º 9/10.6PACTX.E1.S1.

      Na situação o arguido M condenado na pena única de 8 anos de prisão dirige o recurso ao Tribunal da Relação de Évora, tratando-se de recurso sobre matéria de facto, com impugnação da mesma, nos termos do artigo 412.°, n.º 3, alíneas a) e b) e n.º 4, do CPP, e visando a fundamentação da matéria de facto provada, bem como a invocação do princípio in dubio pro reo.

      Por seu turno, o arguido W condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão dirigiu o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, restringindo-o ao reexame de matéria de direito, pretendendo discutir apenas a medida da pena, pugnando pela fixação de uma pena de prisão em medida inferior a 5 anos, suspensa na execução.

      Ambos os recursos foram admitidos para subirem para o Tribunal da Relação de Évora.

       O Desembargador relator determinou extracção de certidão integral do processado, que passou a constituir traslado a tramitar no Tribunal da Relação, remetendo-se os originais ao Supremo Tribunal de Justiça.

      Lê-se na fundamentação:

      “Assente a competência do Tribunal da Relação de Évora para conhecimento do recurso do arguido MS, tendo sido organizado traslado para o mesmo ser conhecido naquela Relação, a questão que se coloca é a de saber se era possível o desmembramento do processo e remessa para o STJ da parte relativa ao recurso do coarguido WRG, passando o recurso de um dos arguidos a ser julgado por um tribunal, e o outro recurso, interposto pelo co-autor do mesmo crime de roubo, por outro”.

       Após referir o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 80/2001, de 21-02-2001 e o que estabelece o artigo 414.°, n.º 8, do Código de Processo Penal, consta:

       «Este Supremo Tribunal pronunciou-se bastas vezes sobre este ponto face ao disposto no anterior n.° 7 do mesmo artigo 414.º do CPP, preceito introduzido pela Lei n.° 59/98, de 25-08, que estabelecia: “Havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente”.

       A nova redacção é mais precisa ao definir e clarificar que é competente para o julgamento conjunto o tribunal que o for para conhecer da matéria de facto.

      Segundo o acórdão de 26-01-2000, processo n.º 1112/99, in BMJ n.º 493, pág. 185, sempre que se impugne a decisão também por razões atinentes à matéria de facto, no âmbito da qual se incluem os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, na sequência da jurisprudência deste Supremo Tribunal, deve recorrer-se para o Tribunal da Relação por ser o competente para conhecer de facto e de direito e após afirmar-se que a norma do artigo 414°, n.º 7, do CPP encontra-se conexionada com o pressuposto processual da competência, adverte-se que a regra de competência que resulta da norma não é afastada pela circunstância de o Tribunal da Relação vir a rejeitar o recurso que tinha por objecto a matéria de facto, ficando a prosseguir apenas o recurso sobre matéria de direito. O Supremo Tribunal continuará a ser incompetente para conhecer de tal recurso, apesar do seu objecto, uma vez que a norma atributiva da competência continuar aí, nessa situação, a ser a do n.º 7 do artigo 414.”. A rejeição de um recurso não comporta o significado jurídico de ausência de recurso ou de destruição retroactiva do recurso interposto e admitido, significando tão somente que o recurso rejeitado não está em condições de poder prosseguir.

      No mesmo sentido, o acórdão proferido no processo n.º 995/99 no mesmo dia e pelo mesmo Colectivo, in BMJ n.º 493, pág. 294, reafirmando-se que fixada a competência do Tribunal da Relação, com a consequente incompetência do STJ, a circunstância de o recurso sobre matéria de facto vir a ser rejeitado não afecta a competência do Tribunal da Relação para conhecer do recurso sobre exclusiva matéria de direito; a rejeição não retira a competência para o conhecimento do recurso não rejeitado, competência que se estabilizou para ambos os recursos antes da rejeição de um deles, por força do referido n.º 7 do artigo 414.°.

       Como referia o acórdão deste STJ de 17-02-2000, SASTJ, n.º 38, pág. 81, havendo vários recursos de uma determinada decisão, versando algum deles matéria de facto e outros, exclusivamente, matéria de direito, compete ao mesmo tribunal o seu julgamento conjunto, nos termos do art. 414,°, n.º 7, do CPP.

       Como se extrai do acórdão de 22-03-2000, processo n.º 1152/99-3.ª, SASTJ, n.º 39, pág. 58: “A regra do artigo 414.°, n.º 7 do CPP será aplicável não apenas para o caso de vários recorrentes, mas também para o caso de um recorrente, uma vez que este impugne não apenas matéria de facto como de direito; o tribunal competente para apreciar deve obviamente deter poderes de cognição para as duas vertentes, já que a apreciação será conjunta”.

      Nas hipóteses de coexistirem diversos recursos da mesma decisão, abordando uns matéria de facto e outros matéria de direito o que corresponde à previsão do art. 414.°, n.º 7, ou de, num mesmo recurso, se ventilarem ambas aquelas matérias, cabe às relações conhecer desses recursos - acórdão de 23-3-2000, processo n.º 972/99-5.ª, SASTJ, n.º 39, pág. 70.

       Neste sentido ainda o acórdão de 07-05-2008, proferido no processo n.º 1511/08-3.ª e o citado acórdão de 17-09-2009, processo n.º 421/07.8JACBR-S1-3.ª, que a propósito da ressalva do n.º 2 do artigo 432º diz que o n.º 8 contempla situações de conjunção de recurso.

Sempre que haja lugar ao conhecimento de matéria de facto, como fundamento ou objecto do recurso, não incumbe ao Supremo, mas sim ao Tribunal da Relação o julgamento do recurso.

       Como só os poderes de cognição do Tribunal da Relação abrangem a matéria de facto - artigo 428.º do CPP -, esse Tribunal será o único com competência para os recursos que versem também sobre tal matéria, aconteça isso no mesmo recurso ou em recursos autónomos.

      Nestes casos há nitidamente um desvio ã competência que existiria não fora o caso de haver outro recurso de co-arguido, versando matéria de facto; o recurso da matéria de facto faz agregar uma competência, que fora do quadro da comparticipação, seria atribuída ao Supremo.».

       Declarada a incompetência do Supremo Tribunal de Justiça, foi ordenada remessa para o Tribunal da Relação de Évora, para apreciação do recurso interposto pelo arguido W, muito embora visasse exclusivamente matéria de direito.

       Consta do sumário do acórdão de 14 de Março de 2013, por nós relatado no processo n.º 991/08.3PRPRT.P1.S1:

       “Como decorre do n.º 8 do art. 414.º do CPP, na redacção da Lei 48/2007, de 29-08, quando coexistam diversos recursos da mesma decisão, abordando uns matéria de facto e outros matéria de direito, ou de, num mesmo recurso, se ventilarem ambas aquelas matérias, cabe à Relação, e não ao STJ, conhecer desses recursos.

       Como só os poderes de cognição do Tribunal da Relação abrangem a matéria de facto – art. 428.º do CPP –, esse tribunal será o único com competência para os recursos que versem sobre tal matéria, aconteça isso no mesmo recurso ou em recursos autónomos.

       Nestes casos há um desvio à competência que existiria não fora o caso de haver outros recursos de co-arguidos, versando matéria de facto. O recurso da matéria de facto faz agregar uma competência, que fora do quadro da comparticipação, seria atribuída ao STJ”.

       Vejamos o que estava em causa.

       Em processo por tráfico de estupefacientes, com 49 arguidos, Ministério Público e quatro arguidos recorrem, impugnando matéria de facto, aquele quanto a algumas absolvições, dirigindo o recurso para o Tribunal da Relação do Porto. A arguida recorre para o STJ visando apenas redução da pena aplicada para patamar que proporcionasse suspensão da execução da pena.

       O Tribunal da Relação do Porto conhece dos recursos, negando provimento aos recursos dos arguidos e arguida. Esta argui nulidade insanável, alegando que o Tribunal da Relação do Porto não poderia ter conhecido do recurso por não ter havido decisão prévia que determinasse desvio à regra do artigo 432.º, n.º 2, a), do CPP. Por acórdão do TRP é declarado nulo o acórdão na parte em que apreciou o recurso da arguida, sendo ordenada subida ao STJ para apreciação do recurso da arguida.

      Após reportar acórdãos citados no anterior – acórdãos de 26-01-2000, processo n.º 1112/99, in BMJ n.º 493, pág. 185, no processo n.º 995/99 no mesmo dia e pelo mesmo Colectivo, in BMJ n.º 493, pág. 294, de 17-02-2000, SASTJ, n.º 38, pág. 81 e de 22-03-2000, processo n.º 1152/99-3.ª, SASTJ, n.º 39, pág. 58 – lê-se na fundamentação:

       «Nas hipóteses de coexistirem diversos recursos da mesma decisão, abordando uns matéria de facto e outros matéria de direito, o que corresponde à previsão do artigo 414.º, n.º 7, ou de, num mesmo recurso, se ventilarem ambas aquelas matérias, cabe às relações conhecer desses recursos – assim, acórdãos de 23-3-2000, processo n.º 972/99-5.ª, SASTJ, n.º 39, pág. 70 e de 10-04-2002, processo n.º 246/02-3.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 158, com um voto de vencido, declarando-se a incompetência do STJ para conhecer dos recursos e a remessa nos termos dos artigos 32.º, n.º 1 e 33.º, do CPP, para o Tribunal da Relação, ao qual um dos recorrentes se dirigiu. 

       Neste sentido, ainda o acórdão de 07-05-2008, proferido no processo n.º 1511/08-3.ª, o citado acórdão de 17-09-2009, processo n.º 421/07.8JACBR-S1-3.ª, que a propósito da ressalva do n.º 2 do artigo 432.º diz que o n.º 8 contempla situações de conjunção de recurso e o acórdão de 22-02-2012, processo n.º 130/11.3GTABF.S1-3.ª.

       Sempre que haja lugar ao conhecimento de matéria de facto, como fundamento ou objecto do recurso, não incumbe ao Supremo, mas sim ao Tribunal da Relação o julgamento do recurso.

       Como só os poderes de cognição do Tribunal da Relação abrangem a matéria de facto - artigo 428.º do CPP -, esse Tribunal será o único com competência para os recursos que versem também sobre tal matéria, aconteça isso no mesmo recurso ou em recursos autónomos.         

       Como referimos no acórdão de 14-09-2011, proferido no processo n.º 9/10.6PACTX.E1.S1, nestes casos há nitidamente um desvio à competência que existiria não fora o caso de haver outros recursos de co-arguidos, versando matéria de facto; o recurso da matéria de facto faz agregar uma competência, que fora do quadro da comparticipação, seria atribuída ao Supremo.

       No caso concreto, face à anulação do anterior acórdão confirmativo, a solução passará por remeter o processo ao Tribunal da Relação do Porto para que reaprecie de novo o recurso da arguida».

       Estes acórdãos de 2011 e 2013 foram citados no acórdão de 14-11-2019, processo n.º 104/16.8JAPTM.S1, em que a arguida recorreu para o STJ e o arguido para STJ e Tribunal da Relação de Évora.

       Extrai-se do acórdão de 23-01-2008, processo n.º 4282/07 -3. “Declina-se a competência do STJ para apreciar os recursos, independentemente de um deles visar matéria de direito e outro matéria de facto e de direito, atendendo ao disposto no artigo 414.º, n.º 8, do CPP, cabendo à Relação o seu julgamento conjunto”.

 

       Revertendo ao caso concreto.

 

       No caso presente o recorrente insurge-se contra a modificação da matéria de facto operada pelo acórdão recorrido.

     Como já referido, no acórdão ora recorrido o Colectivo alterou matéria de facto, distinguindo entre factos provados não abrangidos pelo reenvio, enunciados sob a letra A. com os n.ºs 1 a 12; factos provados reapreciados na decorrência do reenvioB. n.ºs 13 a 17 – e factos provados relativos à situação pessoal actualizada do arguido – C. n.ºs 18 a 29.
     A alteração substancial resultou do novo julgamento feito na sequência do determinado reenvio, pelo acórdão da Relação de Coimbra de 15-11-2017, sendo o segmento B. 13 a 17, o contraponto do que foi dado por não provado no primeiro julgamento nas alíneas d) a j) do segmento 2.2.Matéria de Facto Não Provada, a fls. 303, que conduziu então à absolvição do ora recorrente.
       Relembrando o que de novo foi fixado no 2.º julgamento:

                                                                     

B.
       
Factos provados reapreciados na decorrência do reenvio.
1. A doença mental do assistente impede-o de formar e exprimir a sua vontade em termos de sexualidade e de resistir à prática de atos desta natureza.
2. Igualmente, coloca-o numa posição de vulnerabilidade à influência negativa de terceiros.
3. O arguido sabia que por via da doença de que padecia, o assistente acederia a deslocar-se para o interior da sua residência e a não oferecer resistência a qualquer proposta de trato sexual que lhe formulasse, como veio a acontecer.
4. Por isso, o arguido decidiu aproveitar-se da doença do assistente, para praticar com ele relações sexuais e satisfazer os seus instintos libidinosos, o que fez livre, voluntária e conscientemente.
5. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

       No acórdão de 1 de Fevereiro de 2017, do segmento “Matéria de facto não provada” a fls. 302/3, consta:
“d) A doença psíquica do assistente impedia-o de formar e exprimir a sua vontade em termos de sexualidade e de resistir à prática de atos desta natureza, sabendo o arguido que por isso facilmente o conseguiria convencer a tanto;
e) por esse motivo, o arguido decidiu tirar proveito dessa situação para praticar com o mesmo relações sexuais e satisfazer os seus instintos libidinosos;
f) o arguido agiu com vontade de dominar a liberdade de determinação sexual do assistente;
g) mercê dos problemas de atraso de desenvolvimento de que padece, o BB não tinha capacidade para avaliar em toda a sua extensão o sentido e o significado dos referidos atos sexuais e das suas consequências e, também por esse motivo, de lhes resistir, circunstância que o arguido conhecia e de que se aproveitou para satisfazer os seus instintos libidinosos;
h) pela sua condição de debilidade mental o assistente é sexualmente muito sugestionável ou manipulável;
i) bem sabia o arguido que o BB, por causa da sua anomalia psíquica, não possuía a capacidade e o discernimento necessários para se autodeterminar sexualmente e era incapaz de opor resistência aos atos sexuais que com ele levou a cabo; 
j) o arguido sabia que por força dessa deficiência mental o assistente acederia a deslocar-se para o interior da sua residência e a não oferecer resistência a qualquer proposta de trato sexual que lhe formulasse, o que veio a acontecer”.

      Na alínea k) do primeiro acórdão constava:
      “k) o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”.
       No ponto 17 do novo acórdão repete-se “O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal” - fls. 528 -, mas no novo acórdão naturalmente com um sentido mais abrangente e compreensivo, por reportar os novos factos dados por provados.

       O presente recurso não se cinge a matéria de direito, pretendendo o recorrente a erradicação dos factos provados 13 a 17, os quais em seu entendimento, foram fixados com base em erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP e em errada valoração da prova.

       É uniforme a orientação segundo a qual é da competência dos Tribunais da Relação, e não do Supremo Tribunal de Justiça, o conhecimento dos recursos interpostos de acórdãos finais de tribunal colectivo, que se não limitem a questões de direito.

        Não releva para efeitos de atribuição de competência a deficiência ou manifesta improcedência do recurso neste sector. Por outras palavras. É irrelevante para a definição da competência a formulação de qualquer juízo prévio sobre o bem fundado da pretensão recursória, a procedência do pedido, pois a emissão de pronúncia sobre tal matéria já é conhecer e a cognição pertence à Relação.

       Os autos serão remetidos ao Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos do artigo 33.º, n.º 1, do CPP.

       Decisão

     Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em declarar a incompetência hierárquica e funcional deste Tribunal, para conhecimento do recurso do arguido AA, determinando-se a remessa dos autos, por ser o competente, ao Tribunal da Relação de Coimbra.

     Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 513.º, n.º s 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, in Diário da República, 1.ª série, n.º 40, de 26 de Fevereiro (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, in Diário da República, 1.ª série, n.º 81 e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, in Diário da República, 1.ª série, n.º 165, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro – Lei do Orçamento do Estado 2009 (Diário da República, 1.ª série, n.º 252, Suplemento), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril – Orçamento do Estado para 2010, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril, Diário da República, 1.ª série, n.º 73, de 13-04-2011, pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, in Diário da República, 1.ª série, n.º 31, de 13 de Fevereiro, que procedeu à sexta alteração e republicação do RCP, rectificada com a Declaração de Rectificação n.º 16/2012, de 26 de Março, in Diário da República, 1.ª série, n.º 61, de 26-03-2012, pela Lei n.º 66-B/2012, de 31de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de Agosto, in Diário da República, 1.ª série, n.º 167, de 30 de Agosto, pela Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro, pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, in Diário da República, 1.ª série, n.º 156, de 14 de Agosto e pela Lei n.º 27/2019, de 28 de Março, in Diário da República, 1.ª série, n.º 62, de 28 de Março), o qual aprovou – artigo 18.º – o Regulamento das Custas Processuais, publicado no anexo III do mesmo diploma legal, fixando, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 5 e Tabela III, a taxa de justiça em 3 UC.

       Mantém-se em vigor o valor da UC (Unidade de conta) vigente em 2018, conforme estabelece o artigo 182.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2019), publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 251, de 31-12-2018. Tal valor é de 102,00 €, que se tem mantido inalterado desde 20 de Abril de 2009.   

Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.°, n.º 2, do CPP.

                    

Lisboa, Escadinhas de São Crispim, 5 de Fevereiro de 2020

Raul Borges (Relator)

Manuel Augusto de Matos

___________
[1] Vários recursos da mesma decisão, uns de direito, outros de facto ou de facto e de direito.
[2] AcSTJ de 23.1.2008 - Proc. n.° 4282/07 – 3.ª Secção, sumariando em "Código de processo Penal Comentado”, António Henriques Gaspar et alii,, Almedina, 2014, pág. 1416.
[3] Acessível em www.stj.pt.
[4] Acessível em CJ (STJ), 2010, Tomo 1. pág. 206.
[5] Sublinhados do signatário.