I. Pode afirmar-se que tanto a obrigação do FGADM – fundada num princípio de solidariedade social - como a obrigação do alimentante – fundada, via de regra, num princípio de solidariedade familiar - visam a mesma finalidade: assegurar a segurança económica de existência do alimentando. Nessa medida, ambas se revestem de natureza alimentar ou assistencial.
II. Embora seja suscetível de se consubstanciar numa obrigação própria – e não alheia, id est, do alimentante -, autónoma, fixada segundo critérios um pouco diferentes daqueles previstos no art. 2004.º do CC, que apenas nasce com a decisão judicial que a determina, de natureza social, não deixa de ser uma obrigação dependente e subsidiária – surgindo após o incumprimento da obrigação de alimentos anteriormente estabelecida - daquela do alimentante. Apesar da sua (relativa) autonomia, a “obrigação de garantia” do FGADM encontra-se ligada genética, funcional e extintivamente à obrigação do alimentante.
III. Em virtude dos interesses em jogo e da finalidade comum – assegurar a segurança económica de existência do alimentando - a ambas as obrigações – do FGADM e do alimentante -, não pode aplicar-se o prazo de trinta dias à interposição de recurso da decisão final proferida no incidente respeitante à intervenção do FGADM (art. 3.º da Lei n.º 75/98) e o prazo de quinze dias à interposição de recurso da decisão final adotada no incidente de incumprimento do alimentante (arts. 41.º e 32.º, n.º 3, do RGPTC).
IV. Por razões de coerência do sistema, o prazo de interposição de recurso das decisões finais proferidas em ambos os incidentes tem que ser aquele estabelecido no art. 32.º, n.º 3, do RGPTC: quinze dias.
A obrigação de alimentos
A obrigação de alimentos perante filhos menores emerge das responsabilidades parentais (art. 1878.º do CC) que, para os progenitores, decorrem do art. 1874.º do CC, como efeito essencial da filiação jus-atendível. Nos termos do art. 2009.º, n.º 1, al. c), do CC, a obrigação de alimentos impende sobre os parentes na linha reta ascendente, como corolário do dever recíproco de assistência entre pais e filhos.
Tendo a filiação biológica como fundamento, além do princípio da solidariedade familiar, a responsabilidade dos progenitores pela conceção e nascimento dos filhos, independentemente da relação afetiva e do convívio (in)existente entre os progenitores e os filhos (art. 1917º), dispõe de um conteúdo especial, mais intenso e extenso. Trata-se da expressão daquela solidariedade mais intensa própria das relações da família nuclear convivente.
A obrigação legal de alimentos apenas surge na família nuclear quando desaparece a convivência.
A tutela do ser humano em estado de necessidade continua a ser confiada, em larga medida, à solidariedade familiar, desempenhando a obrigação legal de alimentos uma relevante função social. Está em causa a necessidade de faire vivre o alimentando. Em geral, a obrigação de alimentos funda-se na solidariedade decorrente da existência de laços pessoais e tem por finalidade assegurar a segurança económica de existência do sujeito necessitado. É uma obrigação de faire vivre o alimentando. Por força desta sua natureza alimentar ou assistencial, a obrigação de alimentos caracteriza-se pela urgência (il faut vivre) – por isso lhe subjaz um interesse público e, pela mesma razão, está sujeita à cláusula rebus sic stantibus -, de um lado e, de outro, pela atualidade (não se vive retroativamente) – in praeteritum non vivitur, aliments ne s’arréragent pas.
Obrigação do FGADM e obrigação de alimentos
Pode afirmar-se que tanto a obrigação do FGADM – fundada num princípio de solidariedade social - como a obrigação do alimentante – fundada, via de regra, num princípio de solidariedade familiar - visam a mesma finalidade: assegurar a segurança económica de existência do alimentando. Nessa medida, ambas se revestem de natureza alimentar ou assistencial.
É por isso mesmo que, em conformidade com o art. 4.º, n.os 4 e 5, do DL n.º 164/99, de 13 de maio, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 12/2009, de 7 de julho, estabeleceu que “A obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, nos termos previstos nos artigos 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, e 2.º e 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores.” A esta decisão subjaz a natureza alimentar ou assistencial de uma obrigação social.
Por outro lado, embora seja suscetível de se consubstanciar numa obrigação própria – e não alheia, id est, do alimentante -, autónoma, fixada segundo critérios um pouco diferentes daqueles previstos no art. 2004.º do CC - relevando apenas a situação de necessidade do menor, assim como as circunstâncias económicas da pessoa ou agregado familiar a cujo cargo esteja, e já não os meios do obrigado (pois estes meios já foram levados em devida linha de conta aquando da fixação do montante da respetiva obrigação) -, que apenas nasce com a decisão judicial que a determina, de natureza social, não deixa de ser uma obrigação dependente e subsidiária – surgindo após o incumprimento da obrigação de alimentos anteriormente estabelecida - daquela do alimentante.
Na verdade, apesar da sua (relativa) autonomia, a “obrigação de garantia” do FGADM encontra-se ligada genética, funcional e extintivamente à obrigação do alimentante, porquanto se verifica a existência de uma relação de dependência da “obrigação de garantia” – do FGADM – perante a “obrigação garantida” – do alimentante. Desde logo, uma dependência genética, na medida em que a “obrigação de garantia” pressupõe o estabelecimento prévio e o incumprimento da “obrigação garantida”. Depois, uma dependência funcional, pois que o FGADM pode opor ao credor meios de defesa que competem ao alimentante (verbi gratia, causas de cessação da obrigação de alimentos). Por último, uma dependência extintiva, justamente porque a extinção da “obrigação garantida” conduz à cessação da “obrigação de garantia”. De resto, a “obrigação de garantia” apenas dura enquanto se mantiver o incumprimento da “obrigação garantida” (art. 9.º, n.º 1, do DL n.º 164/99, de 13 de maio). Essa dependência da obrigação do FGADM perante a obrigação do alimentante manifesta-se ainda noutros aspetos, designadamente no que respeita ao âmbito da “obrigação de garantia”, que não pode exceder a “obrigação garantida”. Com efeito, o AUJ n.º 5/2015, de 19 de março, fixou jurisprudência no sentido de o FGADM não poder ser condenado ao pagamento de uma prestação de montante superior àquela do alimentante. Esta solução foi, de resto, adotada pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, que aditou à Lei n.º 75/98 o art. 4º-A, segundo o qual o quantum da obrigação a cargo do FGADM não pode exceder o montante daquela estabelecida no acordo, na decisão judicial da regulação do exercício das responsabilidades parentais ou de fixação de alimentos (ou também, provavelmente, na decisão da conservatória do registo civil homologatória de acordos de regulação do exercício das responsabilidades parentais que prevejam obrigações de alimentos).
Acresce que, em vista tanto do reembolso das quantias pagas como de impedir um locupletamento indevido por parte do alimentante, o FGADM sub-roga-se nos direitos do alimentando perante o alimentante, nos termos previamente estabelecidos no âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais (art. 6.º, n.º 3, da Lei n.º 75/98 e art. 5º, n.os 1 e 2, do DL 164/99).
Prazo de 15 dias (art. 32.º, n.º 3, do RGPTC) versus prazo de 30 dias (art. 638.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC) para a interposição de recurso
Em virtude dos interesses em jogo e da finalidade comum – assegurar a segurança económica de existência do alimentando - a ambas as obrigações – do FGADM e do alimentante -, não pode aplicar-se o prazo de trinta dias à interposição de recurso da decisão final proferida no incidente respeitante à intervenção do FGADM (art. 3.º da Lei n.º 75/98) e o prazo de quinze dias à interposição de recurso da decisão final adotada no incidente de incumprimento do alimentante (arts. 41.º e 32.º, n.º 3, do RGPTC). A relativa autonomia das duas obrigações em apreço como que é, para este efeito, consumida pela relação de dependência - e até de simbiose, dada a natureza alimentar ou assistencial comum a ambas as obrigações: assegurar a segurança económica de existência do alimentando - que intercede entre ambas.
A decisão de incumprimento da obrigação de alimentos declara que não está a ser observada a obrigação de assegurar a segurança económica de existência do alimentando e a decisão que condena o IGFSS, na qualidade de gestor do FGADM, na realização da respetiva prestação social, visa, precisamente, assegurar a referida segurança económica de existência. Por razões de coerência do sistema, o prazo de interposição de recurso das decisões finais proferidas em ambos os incidentes tem que ser aquele estabelecido no art. 32.º, n.º 3, do RGPTC: quinze dias.
Conforme mencionado supra, o incidente previsto no art. 3.º da Lei n.º 75/98 encontra-se intimamente ligado àquele de incumprimento disciplinado no art. 41.º do RGPTC, sendo, de resto, processado, nos próprios autos do último.
Poderia ainda dizer-se que o art. 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98, segundo o qual “Da decisão cabe recurso de agravo com efeito devolutivo para o tribunal da relação”, não estabelece, necessariamente, uma remissão, em todos os aspetos, para o regime de recursos plasmado no CPC. Importa levar em conta que até à emanação do RGPTC os prazos para interposição de recurso previstos no CPC se aplicavam aos processos tutelares cíveis regulados na OTM (art. 66.º, n.º 1) e, assim, não suscitava perplexidade atribuir àquela norma - art. 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98 - o sentido de estabelecer uma remissão para o regime do recurso de agravo estabelecido no CPC. Todavia, na verdade, o preceito do art. 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98, não estabelece, direta e expressamente uma remissão com função integradora total para o CPC. Essa remissão poderia entender-se tanto para o regime do CPC como para a disciplina da OTM (art. 66.º, n.º 1) – atualmente para o RGPTC (art. 32.º, n.º 3) – nos aspetos por ela regulados. A consideração dos elementos teleológico (natureza alimentar ou assistencial de ambas as obrigações e, por isso, urgência enquanto característica de qualquer obrigação de alimentos), sistemático (postulado da coerência intrínseca do ordenamento; recurso ao lugar paralelo do art. 32.º, n.º 3, do RGPTC, onde o legislador tratou de um problema de regulamentação fundamentalmente idêntico) e histórico (o prazo de dez dias era aplicável à interposição de recurso tanto da decisão final proferida no incidente relativo à intervenção do FGADM como de decisões proferidas nos processos tutelares cíveis regulados na OTM) da interpretação da lei conduziriam a esse resultado.
O prazo para a interposição de recurso da decisão final proferida no incidente relativo à intervenção do FGADM era, com efeito, aquando da sua instituição, de dez dias (porquanto o art. 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, remetia para o regime do recurso de agravo, cujo prazo de interposição era então de dez dias, segundo o art. 685.º, n.º 1, do CPC). De acordo com o art. 4.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 303/2007, de 24 de agosto, que eliminou o sistema recursório bipartido de agravo/apelação, “Para efeitos do disposto em legislação avulsa, entende-se o seguinte b) As referências ao agravo interposto na 2.ª instância consideram-se feitas ao recurso de revista”. Segundo o n.º 2 do mesmo preceito, “Os recursos previstos nos números anteriores seguem, em cada caso, o regime instituído pelo Código de Processo Civil, sem prejuízo das adaptações necessárias”. É, justamente, o caso: essa “adaptação necessária” traduz-se, pois, na aplicação do art. 32.º, n.º 3, do CPC. Grosso modo, como que esta “adaptação necessária” implicaria a consideração da norma do art. 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98 como uma remissão à segunda potência.
Note-se, ainda, que os prazos estabelecidos no CPC para a interposição de recurso eram também aplicáveis aos recursos das decisões proferidas nos processos tutelares cíveis regulados na OTM, assim como aos recursos das decisões adotadas em sede de incidente de intervenção do FGADM. Havia, pois, coerência axiológico-valorativa do sistema.
Além do mais, pode dizer-se que o RGPTC e a Lei n.º 75/98 contêm normas especiais relativamente ao CPC - direito comum -, pois consagram uma disciplina nova ou diferente para círculos mais restritos de pessoas ou relações[1] (alimentado, alimentante, FGADM).
Uma vez que a OTM foi revogada pelo RGPTC, e que este estabelece, no art. 32.º, n.º 3, que o prazo de alegações e de resposta é de quinze dias, não pode deixar de ser este o prazo de interposição de recurso da decisão adotada em sede de incidente de intervenção do FGADM e não aquele de trinta dias, previsto no art. 638.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC.
Por outro lado, se porventura estivéssemos perante uma hipótese de conflito entre as duas presunções (segundo as quais o intérprete presumirá que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” e que “consagrou as soluções mais acertadas”) estabelecidas no art. 9.º, n.º 3, do CC, em que a interpretação que melhor condiga com o significado natural e correto das expressões usadas (letra do art. 3.º, n..º 5, da Lei n.º 75/98) não corresponde à solução mais acertada (prazo de quinze dias para a interposição de recursos das decisões adotadas em sede de incidente de intervenção do FGADM), impor-se-ia a consideração das “circunstâncias em que a lei foi elaborada” (occasio legis – art. 9.º, n.º 1, do CC) – mencionadas supra – e das “circunstâncias específicas do tempo em que a lei é aplicada” (art. 9.º, n.º1, do CC). Enquanto a ponderação das primeiras conduz à identificação do ponto de vista valorativo que presidiu à elaboração da norma - os prazos estabelecidos no CPC para a interposição de recurso eram então também aplicáveis aos recursos das decisões proferidas nos processos tutelares cíveis regulados na OTM (art. 66.º, n.º 1) -, já a consideração das segundas - os prazos estabelecidos no CPC para a interposição de recurso não são agora aplicáveis aos recursos das decisões proferidas nos processos tutelares cíveis regulados no RGPTC (art. 32.º, n.º 3)- leva à transposição para o condicionalismo atual daquele juízo de valor e ao ajustamento do próprio significado da norma à evolução entretanto sofrida (designadamente pela introdução de novas normas – designadamente o art. 32.º, n.º 3, do RGPTC) pelo ordenamento jurídico. Por último, por força da consideração da “unidade do sistema jurídico” (art. 9.º, n.º 1, do CC), imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica, tendo em conta que o legislador insuflou de espírito novo o regime da matéria em apreço (mediante a introdução de novas normas e decisões valorativas), altera-se o termo de referência para a compreensão da fórmula verbal de uma norma antiga[2].
Acresce que sempre se poderia afirmar a existência de um lacuna, porquanto nenhum legislador é capaz de prever todas as relações da vida social merecedoras de tutela jurídica, subsistindo sempre situações que, ainda que previsíveis, escapam à sua previsão. Assim, exorbitando da previsão do legislador, essas situações têm de ser decididas de acordo com os processos de integração das leis. Existe um lacuna quando a lei não contém uma regulamentação exigida pela ordem jurídica global[3]. Está em causa o escopo subjacente à regulamentação legal, a ratio legis ou a teleologia imanente da lei. Trata-se de uma lacuna teleológica, determinada em face do escopo visado pelo legislador, em face da teleologia imanente a um complexo normativo[4]- RGPTC: a celeridade processual postulada pela urgência da estabilização de uma decisão judicial entendida como prioritária, porquanto respeitante à segurança económica de existência de um sujeito.
O RGPTC como que co-determinou o surgimento de uma lacuna subsequente ou superveniente. A norma do art. 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, hoje entendida por alguns como concretamente consubstanciada numa remissão para o art. 638.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC, contém uma regra aplicável à categoria de situações em apreço, mas por tal modo que, atendendo ao próprio sentido e finalidade da lei, se verifica que, mercê da evolução legislativa subsequente à sua consagração – introdução do RGPTC - , deixou de considerar a especificidade valorativamente relevante desses casos. Tornou-se, pois, claro o aparecimento de uma lacuna subsequente ou superveniente num regime especial – complexo normativo do RGPTC e Lei n.º 75/98 – que deveria ter harmonizado os prazos de interposição de recurso das decisões proferidas nos dois incidentes e não harmonizou. Surge, por isso, uma questão carecida de regulamentação no quadro da intenção reguladora e do setor de regulação compreendido pela intenção fundamental do RGPTC e da Lei n.º 75/98. Não existe razão para o estabelecimento de prazos diferentes de interposição de recurso das decisões adotadas em dois incidentes umbilicalmente ligados. A diferença que se possa pretender fazer valer não é justificada, pois afigura-se contrária à intenção reguladora da lei, ao plano e à teleologia imanente à lei.
Esta lacuna deve, então, ser integrada por via da analogia legis: a aplicação do art. 32.º, n.º 3, do RGPTC. Na verdade, devido à sua semelhança, ambas as situações devem ser identicamente valoradas nos aspetos decisivos, prevalecendo as semelhanças sobre as dissemelhanças, de acordo com a exigência da justiça de tratar igualmente aquilo que é igual. De outro modo, acolher-se-ia uma diferença de tratamento desprovida de justificação razoável, não se descortinando um motivo passível de fundar essa diferença de tratamento.
De resto, o art. 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98, nem se refere ao “agravo” interposto no Tribunal de 2.ª Instância. Poderá até, nesta sede, questionar-se a razoabilidade da solução que veda ao FGADM o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão final proferida no incidente respeitante à sua intervenção, quando, no âmbito do RGPTC – onde não se encontra norma como aquela do art. 65.º, n.º 3, da OTM, que estabelecia que “O recurso é interposto para a relação que julga definitivamente, de facto e de direito” -, se permite ao alimentante o recurso da decisão final adotada no incidente de incumprimento (art. 32.º, n.os 1 e 2). Uma vez mais se nota que a coerência intrínseca que se verificava na OTM e na Lei n.º 75/98, que obedeciam a um pensamento unitário, corre o risco de se perder no caso de se levar a cabo uma interpretação muito cingida ao texto da Lei n.º 75/98, e sem a devida consideração do RGPTC, descurando, por isso, porventura outros fatores hermenêuticos[5].
Note-se, por último, que não resulta do despacho reclamado[6] a qualificação automática do processo em apreço como urgente. De outro modo, não se admitiria, por extemporaneidade (art. 13.º do RGPTC), o requerimento sub judice. Isto não obsta, naturalmente, à urgência na estabilização de uma decisão judicial respeitante à segurança económica do sujeito necessitado. Essa urgência decorre claramente da natureza alimentar ou assistencial da obrigação de alimentos (il faut vivre).
IV – Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, confirmando-se o despacho reclamado (que, por sua vez, ainda que com diferente fundamentação, havia indeferido a reclamação do despacho proferido no Tribunal da Relação no sentido da não admissão do recurso).
Custas pelo Reclamante.
Lisboa, 13 de outubro de 2020
Sumário:
I. Pode afirmar-se que tanto a obrigação do FGADM – fundada num princípio de solidariedade social - como a obrigação do alimentante – fundada, via de regra, num princípio de solidariedade familiar - visam a mesma finalidade: assegurar a segurança económica de existência do alimentando. Nessa medida, ambas se revestem de natureza alimentar ou assistencial.
II. Embora seja suscetível de se consubstanciar numa obrigação própria – e não alheia, id est, do alimentante -, autónoma, fixada segundo critérios um pouco diferentes daqueles previstos no art. 2004.º do CC, que apenas nasce com a decisão judicial que a determina, de natureza social, não deixa de ser uma obrigação dependente e subsidiária – surgindo após o incumprimento da obrigação de alimentos anteriormente estabelecida - daquela do alimentante. Apesar da sua (relativa) autonomia, a “obrigação de garantia” do FGADM encontra-se ligada genética, funcional e extintivamente à obrigação do alimentante.
III. Em virtude dos interesses em jogo e da finalidade comum – assegurar a segurança económica de existência do alimentando - a ambas as obrigações – do FGADM e do alimentante -, não pode aplicar-se o prazo de trinta dias à interposição de recurso da decisão final proferida no incidente respeitante à intervenção do FGADM (art. 3.º da Lei n.º 75/98) e o prazo de quinze dias à interposição de recurso da decisão final adotada no incidente de incumprimento do alimentante (arts. 41.º e 32.º, n.º 3, do RGPTC).
IV. Por razões de coerência do sistema, o prazo de interposição de recurso das decisões finais proferidas em ambos os incidentes tem que ser aquele estabelecido no art. 32.º, n.º 3, do RGPTC: quinze dias.
Este acórdão obteve o voto de conformidade do Excelentíssimo Senhor Conselheiro Adjunto Fernando Dias e o voto de vencido do Excelentíssimo Senhor Conselheiro Adjunto António Magalhães, a quem o respetivo projeto já havia sido apresentado, e que não o assinam por, em virtude das atuais circunstâncias de pandemia de covid-19, provocada pelo coronavírus Sars-Cov-2, não se encontrarem presentes (art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, que lhe foi aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1 de maio).
(Maria João Vaz Tomé)
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Vencido.
Salvo o devido respeito, penso que não existem razões suficientemente ponderosas que permitam sustentar a aplicação do nº 2 do art. 32º do RGPTC ao recurso da decisão do Fundo de Garantia. A coerência do sistema não o impõe: as obrigações do Fundo e a do alimentando, apesar de ligadas, não se podem confundir. O facto de o art. 3º, nº 5 da Lei nº 75/98 de 19/11 e o regime da OTM remeterem para o CPC não revelava intencional coerência axiológico-normativa, relativamente aos prazos, que possa servir agora de base a qualquer interpretação uniformizadora dos prazos de recurso. Tenho dificuldades, ainda, em configurar uma lacuna que justifique uma interpretação analógica do art. 32º, nº 2 do RGPTC. O legislador da Lei nº 141/2015 e os legisladores da Lei n.º 24/2017 de 24/05 e da Lei n.º 71/2018 de 31/12 (que alteraram a Lei nº 75/98) não introduziram qualquer alteração ao art. 3º da Lei nº 75/98.
Em resumo, teria concluído pela existência de um prazo de recurso de 30 dias e deferido, consequentemente, a reclamação.
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[1] Cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, p.95.
[2] Cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, pp.190-192.
[3] Cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, pp.192-194.
[4] Cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, p.196.
[5] De resto, há que levar em linha de conta as normas dos arts. 986.º e ss do CPC. O sentido e o alcance da proibição legal – plasmada no art. 988.º, n.º 2 - de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça têm vindo a ser esclarecidos em termos uniformes pela respetiva jurisprudência . Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de janeiro de 2010 (Lopes do Rego), proc. n.º 701/06.0TBETR.P1.S1[1], se observou o seguinte:
“A verdade, todavia, é que esta limitação não implica a total exclusão da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nestes recursos; apenas a confina à apreciação das decisões recorridas enquanto aplicam a lei estrita. É nomeadamente, o que se verifica, quer quanto à verificação dos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida a adoptar, quer quanto ao respeito do fim com que esse poder foi atribuído.
[…]
Tratando-se de pressupostos legais imperativamente fixados para que o juiz possa ponderar da conveniência e da oportunidade de decretar a medida que lhe foi requerida, cabe no âmbito dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça (…) a apreciação da respectiva verificação”.
Note-se que mesmo no âmbito de vigência da OTM, apesar da norma vertida no art. 65.º, n.º 3, havia quem admitisse o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões proferidas nos processos tutelares cíveis nela reguladas quando estivesse em causa a aplicação da lei estrita.
[6] Quando afirma que se trata “de uma lacuna teleológica, determinada em face do escopo visado pelo legislador, em face da teleologia imanente a um complexo normativo – RGPTC: a celeridade processual postulada pela urgência da estabilização de uma decisão judicial entendida como prioritária, porquanto respeitante à segurança económica de existência de um sujeito.”
XII. Igualmente, sobre esta mesma questão pronunciou-se recentemente a Veneranda Relação de Lisboa na decisão singular, de 19.03.2018, proferida no proc. 193/10.9TMFUN-D.L1, Relator Carlos de Melo Marinho, acima reproduzida, na qual após se referir expressamente o teor do douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 14 de Dezembro de 2016 - Proc. n.º 232/15.7T8GDM-B.P1.S1 — disponível em www.dgsi.pt, se conclui: "A decisão da qual se quis interpor recurso formou-se, claramente, num quadro de subsunção de factos à Lei 75/98, de 19 de Novembro, que regula a garantia dos alimentos devidos a menores. Aliás, esse diploma foi expressamente invocado nessa decisão. Estamos situados no domínio de referência do aresto acima invocado, em especial no seu contexto regulatório de incidência processual — o art. 3.º. É plenamente aplicável o esclarecido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça indicado. Não se entrevendo como sustentável outra resposta à questão em apreço.'X. Sobre a mesma questão pronunciou-se recentemente a Veneranda Relação de Coimbra na decisão singular, de 03.05.2017, proferida no proc. 619/09.4TMCBR-E.C1, acima reproduzida e onde se concluiu "... Assim, porque a decisão em causa admite recurso de apelação, porque o art. 32.º do RGPTC não é aqui aplicável e porque a decisão em causa não se enquadra em nenhuma das situações previstas no art. 644.º, n.º 2, do CPC, o prazo para a interposição desse recurso será de 30 dias, em conformidade com o disposto no art. 638.º, n.º 1, do CPC, conforme se decidiu, aliás, no Acórdão do STJ de 14/12/2016 (citado pelo Recorrente), proferido no processo 232/15.7TGDM-B.P1.S1 (disponível em http://www.dqsi.pt.)... .