Estando o recurso de revista excepcional sujeito a formalidades próprias em razão da respectiva particularidade, se o recorrente não cuidou de cumprir os ónus adjectivos decorrentes do nº 2 alªs a), b) e c) do artº 672º do Código de Processo Civil, isso determina, sem mais, a rejeição do recurso de revista excepcional.
I - RELATÓRIO
Real Estate Médio Tejo, Lda, intentou ação declarativa comum contra Fungere — Fundo de Gestão de Património Imobiliário, gerido por G.N.B. - Sociedade gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A., pedindo a sua condenação a reconhecer como existente e válido o contrato de compra e venda celebrado entre A. e a sociedade Juvenal Serviços de Gestão Empresarial, S.A. em 5 de Dezembro de 2011 que tinha como objecto a compra e venda de Cortiça na Árvore da Herdade de … e a permitir a entrada da autora na propriedade por si ou por terceiro, para proceder a extração da dita cortiça na Herdade de …, ou, em alternativa, restituir à autora o montante de 125.000,00€ correspondente ao preço pago pela autora pela compra da cortiça, acrescido dos juros à taxa legal comercial a contar da citação.
Em síntese, alegou que celebrou com as sociedade - Juvenal - Serviços de Gestão Empresarial, S.A., um contrato de compra e venda de cortiça na árvore em 05.12.2011, arrendatária da Herdade …, sita na freguesia de …, concelho de …, incluindo a exploração florestal e a extração de cortiça.
Posteriormente, em Junho de 2013, a R. adquiriu a Herdade … .
O contrato deveria ser executado em Junho de 2017 e foi acordado o valor de € 125.000,00, que a autora já liquidou.
Em Fevereiro de 2017, a autora solicitou à ré autorização para entrar na herdade e extrair a cortiça, o que foi recusado pela ré, apesar de a ré ter conhecimento da venda da cortiça à autora.
Por despachos de fls. 65 e 78 foi determinado ficarem sem efeito os actos praticados pelo Mandatário da ré e desentranhada a contestação.
Por despacho de fls. 120-121, foram considerados confessados os factos articulados pela A, nos termos do art° 567° n° 1 do Código de Processo Civil.
A autora apresentou alegações.
Seguidamente, em 04.09.2019, foi proferida a seguinte sentença:
“Termos em que, julgo a acção procedente, por provada e, em consequência, condeno a ré:
a) a reconhecer como existente e válido o contrato de compra e venda celebrado entre A., e a sociedade Juvenal Serviços de Gestão Empresarial, SA., em 5 de Dezembro de 2011, relativo à compra e venda de cortiça na árvore da Herdade de …, e a permitir a entrada da A., na propriedade, por si ou por terceiro, para proceder a extração da dita cortiça na Herdade de …; ou, em alternativa,
b) restituir à A. o montante de 125.000,00€ (cento e vinte e cinco mil euros) correspondente ao preço pago pela Autora pela compra da cortiça, acrescido dos juros a contar da citação”.
A ré interpôs recurso de apelação e a Relação de Évora, por acórdão de 30.01.2020, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.
O acórdão recorrido encontra-se assim sumariado:
“I. - O contrato tipificado no art° 880°/1 do C Civil, é um contrato de compra e venda de frutos naturais pendentes, cuja álea, não a atribuída pelas partes (n° 2), mas a que resulta da natureza das coisas, é temperada pelo dever de diligência que incide sobre o vendedor, para que ao comprador sejam asseguradas as maiores possibilidades de recolha dos frutos e na maior quantidade possível (n° 1, 2ª parte).
II. - A aquisição dos frutos pendentes nesta compra e venda é automática porque tem como fonte o contrato, mas a transferência material da coisa, seu objeto, só ocorre no momento da separação dos frutos da árvore, como estipula o art° 408°/2 in fine do CC.
III. - O que está em causa nesta transferência é apenas a forma de tomar a posse do bem que foi objecto da compra e venda, porque a propriedade já se constituiu na esfera jurídica do comprador, por mero efeito do contrato de compra e venda, o que atribui ao titular do direito de propriedade a possibilidade de o defender erga omnes, como é típico dos direitos reais, uma vez que se trata de um direito desta natureza e não meramente obrigacional.
IV. - Tendo o comprador adquirido cortiça ao vendedor arrendatário e vindo a herdade a ser vendida a terceiro antes da recolha da cortiça, está o novo proprietário obrigado a permitir o acesso às árvores a fim de ser recolhida a cortiça ou a restituir o preço já pago pelo comprador.
Não se conformando com aquele acórdão, a ré interpôs recurso de revista excepcional, invocando o disposto nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1. - Ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 672º do CPC que, excepcionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação quando esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para a melhor aplicação do direito.
2. - O douto acórdão ora em crise, confirmando a decisão proferida pela primeira instância, e ignorando os elementos probatórios trazidos aos autos (e respectiva força probatória), ignora o direito de propriedade do aqui recorrente, direito constitucionalmente protegido e que, face a tais decisões, ficará gravemente coarctado.
3. O recorrente adquiriu o imóvel mediante escritura pública outorgada em 28 de Junho de 2013, no Cartório Notarial sito na Avenida …, número …, 7º piso, em …, perante o notário AA,
4. A primeira instância deu como provada tal aquisição que foi registada mediante a Ap. 1315 de 2013/07/05.
5. A parte rústica do imóvel é constituída por, nomeadamente, montado de sobre ou sobreiral.
6. Da referida aquisição, não foi, pelas respectivas partes, excluída a cortiça.
7. Que, nos termos do disposto nos artigos 204º, nº 1 alínea c) e 212º reveste a natureza de coisa imóvel.
8. Não obstante, considerou o douto acórdão que se encontra demonstrado nos autos que, aquando da referida compra e venda, o aqui recorrente tinha conhecimento da suposta celebração de um contrato de compra e venda de cortiça.
9. Defendendo que, atenta a natureza de contrato com eficácia real, a propriedade da cortiça havia sido anteriormente transferida para a recorrente.
10. Excluindo, desta forma e sem qualquer suporte probatório cabal para o efeito, a cortiça da compra e venda exarada em 2013.
11. Não se encontrando carreada qualquer prova documental aos autos que demonstre, com a força probatória da escritura de compra e venda do imóvel que não exclui a cortiça de tal transação, e da certidão permanente de registo predial, que o anterior proprietário do imóvel informou o recorrido que tais frutos haviam sido anteriormente vendidos.
12. E que, por conseguinte, estariam excluídos da venda.
13. Pelo contrário, todas as comunicações juntas pela recorrente relativas a esta hipotética compra e venda são de data muito posterior à venda da herdade ao recorrente.
14. Não demonstrando sequer a recorrida que tais comunicações foram encetadas junto dos efectivos representantes do recorrente.
15. A decisão em crise, ignora a força probatória plena da escritura pública de compra e venda e das declarações na mesma insertas, restringindo, de forma gritante, o direito constitucionalmente protegido à propriedade privada da aqui recorrente.
16. Vendo, assim, o recorrente vê o seu direito coarctado, pela suposta celebração de um denominado (pelas respectivas partes) contrato de compra e venda de cortiça, denominando-se estas, no entanto, nas respectivas cláusulas como promitente vendedor e promitente comprador.
17. Revelando-se, assim, imperioso, uma vez demonstrada a dignidade constitucional do direito arrogado pelo recorrente, proceder a uma acurada apreciação da questão, nomeadamente dos efeitos (meramente obrigacionais) ou reais do suposto contrato de compra e venda de cortiça sobre o terceiro de boa fé – o aqui recorrente.
18. Delimitando a força e efeitos do respectivo contrato, perante o terceiro de boa fé, que demonstra, com a força probatória plena conferida pela escritura de compra e venda e pela certidão permanente de registo predial do imóvel, que adquiriu o prédio misto, composto na parte rústica, de montado de sobre ou sobreiral incluindo, nos termos legais, os respectivos frutos (cortiça).
19. Sendo esta apreciação e delimitação dos efeitos de cada um dos contratos, premente e imperiosa para uma correcta e acurada aplicação do direito, que este douto tribunal aprecie a questão.
20. Sendo ainda fundamental uma apreciação acurada dos efeitos de um suposto contrato de compra e venda de cortiça, em que as partes se autodenominam promitente vendedor e promitente comprador sobre um terceiro de boa fé que declara na escritura de compra e venda que a coisa (o prédio misto) é adquirido, livre de ónus ou encargos, pagando o respectivo preço e não excluindo do objecto do negócio os frutos que, ao abrigo do disposto no artigo 882º, nº2 do Código Civil abrangem a coisa vendida.
21. Conforme consta aliás do respectivo registo de aquisição.
22. É assim necessária a apreciação e delimitação do âmbito e alcance do disposto no número 2 do artigo 408º no que se refere à transferência da propriedade dos frutos naturais nas situações em que, à semelhança da presente, um terceiro de boa fé adquire o bem imóvel do qual os frutos naturais fazem parte e declarando, no acto da venda, que o adquire livre de ónus e encargos e não constando na escritura pública de compra e venda que, nos termos do disposto no artigo 875º do Código Civil, é a requisito formal de validade do negócio, qualquer declaração que exclua, da referida compra e venda, os frutos, no caso em epígrafe, a cortiça.
23. E inegável a relevância jurídica e social dos efeitos e alcance do contrato de compra e venda de cortiça (não sujeito a registo) considerando que o sobreiro é, a par do pinheiro-bravo, uma das espécies de árvores mais predominante no nosso país.
24. Ora, de facto, determinar o alcance e efeitos específicos destes contratos, muitas vezes nem sequer reduzidos a escrito, sobre terceiros que gozam da presunção conferida pelo registo, nos termos do disposto no artigo 7º do Código de Registo Predial, consubstancia uma questão de particular relevância social, nos termos da alínea b) do artigo 672º do Código de Processo Civil.
25. Sobretudo num país, com forte predominância agrícola e sendo o sobreiro uma das espécies arbóreas mais predominantes no país, em particular no interior.
26. Impondo-se a douta apreciação por este tribunal de revista sobre a questão não somente pela sua relevância social.
27. Revelando-se tal apreciação essencial face à inexistência de qualquer uniformização jurisprudencial quanto aos efectivos efeitos de um contrato em que, nos termos do artigo 408º, nº 2 do Código Civil, goza de eficácia real, adquirindo o respectivo comprador a propriedade, por mero efeito de contrato, sendo que a transferência de tal direito só ocorre, no caso dos frutos naturais, com a separação da coisa.
28. O que se afigura crucial para uma correcta aplicação do direito e determinação dos direitos do adquirente dos frutos até à respectiva separação material ou colheita.
29. Determinando quais os direitos – se meramente obrigacionais – que ao adquirente assistem até à transferência da propriedade.
30. Sendo fundamental apreciar e delimitar, tendo em consideração o disposto no artigo 880º, nº 1 do Código Civil, a obrigação que impede sobre o vendedor em exercer as diligências para que o comprador adquira os frutos.
31. E determinar como tal obrigação (ou a demonstração de tal obrigação) se coaduna e compatibiliza com a venda, do imóvel constituído, na sua parte rústica, por sobreiros¸ não tendo ocorrido qualquer exclusão, de tal venda, dos frutos naturais, por natureza, integrantes da coisa imóvel, da referida venda.
32. É imperioso compatibilizar esta aquisição com o supra referido direito de crédito que apenas assistirá ao adquirente da cortiça nos termos do artigo 880º nº 1 do Código Civil?
33. E densificar como se consubstancia a obrigação que impende sobre o vendedor nos termos do artigo 808º nº 1 do Código Civil de exercer as diligências para que o comprador adquira os bens vendidos nos casos em que tais diligências tenham de ser encetadas perante terceiros.
34. Também no entendimento do aqui recorrente, encontra-se amplamente demonstrado que estamos perante interesses de particular relevância social.
35. Sendo improfícua a jurisprudência emanada de tribunais superiores no que concerne aos efeitos e eficácia dos contratos de compra e venda de cortiça, dada a sua relevância social e implicações muitas vezes incompatíveis com direitos legalmente adquiridos por terceiros.
36. Cabe ainda revista excepcional quando o acórdão da Relação esteja em contradição com outro proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, nos termos do disposto no número 1 alínea c) do artigo 672º do Código de Processo Civil.
37. O acórdão ora proferido está em contradição com o Acórdão proferido também pelo Tribunal da Relação de Évora no âmbito do processo 55/09.2 TBODM.E1 em 12/06/2019.
38. Que, sumariamente, defende que se o terreno for vendido, a menos que haja declaração em contrário, a venda abrangerá a cortiça dos sobreiros do terreno.
39. Também o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 26/09/1995 no âmbito do processo 96A071 defende que “assim, se o terreno for vendido, a menos que haja declaração em contrário, a venda abrangerá a cortiça dos sobreiros”.
40. Em ambos os Acórdãos, as respectivas instâncias consideraram, sem margem para incertezas, que se o terreno for vendido, a menos que haja declaração em contrário, a venda abrangerá a cortiça dos sobreiros.
41. Uma vez admitida a presente revista, resulta cabalmente demonstrado nos presentes autos, que o terreno foi vendido, por escritura pública de compra e venda outorgada em 28 de Junho de 2013, no Cartório Notarial sito na Avenida …, número …, 7º piso, em …, perante o notário AA.
42. Na referida escritura, não consta qualquer declaração expressa, por qualquer dos outorgantes, a excluir da compra e venda, a cortiça cuja propriedade a Recorrida se arroga.
43. A Recorrida não demonstra documentalmente a existência de qualquer declaração anterior à supra mencionada escritura de compra e venda, que exclua do negócio a cortiça a extrair em 2017.
44. O Acórdão em crise, ao arrepio das supra parcialmente transcritas decisões proferidas também pelo Tribunal da Relação de Évora e por este tribunal de revista, defende que a inexistência de qualquer declaração nesse sentido na escritura, não significa que a cortiça, enquanto fruto natural, não tenha sido também adquirida pelo aqui Recorrente.
45. Nos termos do disposto no número 3 do artigo 674º do Código de Processo Civil, deverá o tribunal de revista, apreciar as provas e a fixação dos factos materiais da causa nas situações em que tenha ocorrido uma ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
46. Entendeu a primeira instância ter ficado provado que a vendedora da cortiça informou o comprador da Herdade – o aqui Recorrente – de que a cortiça a cortar das árvores no ano de 2017 já se encontrava vendida à Recorrida.
47. A matéria supra descrita resultou provada por intermédio apenas e, tão só, de mensagens de correio electrónico juntas com a petição inicial.
48. Sendo o primeiro desses emails datado de 05.08.2015, ou seja, em data muito posterior à outorga da escritura de compra e venda mediante a qual o Recorrente adquiriu o imóvel composto, na sua parte rústica por “montado de sobre ou sobreiral (…)”.
49. Nenhum documento foi pela Recorrida carreado nos autos com data anterior à compra pelo Recorrente da Herdade, que comprove o conhecimento inequívoco por parte do mesmo de que a cortiça, que faz parte integrante dos sobreiros, que por sua vez lhe foram vendidos, estava excluída da venda.
50. Não existe qualquer documento nos autos que consubstancie qualquer informação
prestada em momento anterior à outorga da escritura de compra e venda relativamente à venda da cortiça à aqui Recorrida.
51. Não existe qualquer documento nos autos que ateste que o Recorrente foi informado da venda da cortiça, excluindo-a da compra e venda outorgada em 2013, e que ateste que o vendedor da cortiça encetou as diligências a que alude o artigo 880º, nº 1 do Código Civil.
52. O conteúdo das mensagens de correio electrónico (enviadas anos após a outorga da escritura e do registo de aquisição a favor do Recorrente) não é apto a, por si só, fazer prova cabal do conhecimento a venda da cortiça pelo Recorrente.
53. Tais mensagens de correio electrónico, porque não se fazem acompanhar de qualquer comprovativo de entrega ou recibo de leitura foram valoradas em detrimento de documentos autênticos com força probatória plena como são a escritura de compra e venda da Herdade e a certidão permanente de registo predial.
54. O que não poderá deixar de consubstanciar uma ofensa grave e expressa à força probatória atribuída pela lei substantiva, mormente o artigo 371º do Código Civil, que atribui aos documentos plenos, como a escritura notarial de compra e venda e a certidão permanente de registo predial, uma força probatória plena.
55. Mediante escritura pública, o Recorrente adquiriu o imóvel pelo preço total de € 6.577.000, 00 (seis milhões e quinhentos e setenta e sete mil euros).
56. A parte rústica do prédio é, nomeadamente, composta por montado de sobro ou sobreiral.
57. Foi declarado na escritura que o Recorrente aceitava a venda nos termos exarados.
58. Constituída a parte rústica do imóvel por, nomeadamente, montado de sobre ou sobreiral, os respectivos frutos naturais – a cortiça – foram, porque não expressamente excluídos, objecto da compra e venda nos termos do notarialmente exarado e levado a registo.
59. É o que resulta, indubitavelmente, do disposto nos artigos 204º, nº 1 alínea c) que determina que são coisas imóveis os frutos naturais enquanto estiverem ligados ao solo, sendo o conceito de fruto natural definido nos números 1 e 2 do artigo 212º do mesmo diploma legal.
60. Caso os frutos naturais da coisa vendida não fossem, ao arrepio das disposições legais e por vontade das partes, incluídas na compra e venda, teriam as partes outorgantes de excluí-las do negócio, declarando-o de forma expressa, o que não aconteceu nem a Recorrida alega ou prova.
61. Ao invés, declararam os outorgantes proceder à venda, ao Recorrente, do prédio misto composto, na parte rústica, de “montado de sobro ou sobreiral”, “livre de ónus ou encargos”.
62. Sendo, na perspectiva do Recorrente, aberrante, esvaziar-se o conteúdo do negócio outorgado pelas partes e as respectivas declarações.
63. Sustentando, vagamente, como fez o douto acórdão recorrido, que nem a cláusula genérica de que adquiriu a herdade livre de ónus e encargos é suficiente para afastar o direito de propriedade da Recorrida.
64. Ora, o próprio acórdão recorrido pronunciou-se sobre a referida escritura de compra e venda, defendendo taxativamente que “nem a cláusula genérica de que adquiriu a herdade livre de ónus e encargos é suficiente para afastar o direito de propriedade da recorrida”.
65. As instâncias inferiores, num exercício de valoração entre documentos probatórios, valoram, documentos com a força probatória de meros documentos particulares (como as comunicações remetidas a terceiros alheios ao Recorrente posteriores à aquisição do terreno) em detrimento de documentos com força probatória plena como a escritura pública de compra e venda a que a própria Relação faz referência (e às suas cláusulas) e à certidão de registo predial permanente também junta aos autos.
66. A escritura pública de compra e venda e a certidão permanente de registo predial pertencem dos documentos autênticos.
67. Como tal, fazem prova plena dos factos que são atestados pela entidade documentadora, neste caso, o notário e a conservatória do registo predial.
68. Nos termos do disposto no número 1 do artigo 371º do Código Civil, os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, resultando líquido que, ao abrigo do estipulado no artigo 372º, nº 1 do Código Civil, a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade
69. Apreciando (acriticamente) as provas carreadas nos autos como apreciaram as instâncias inferiores, decidiram, esvaziando a escritura pública de compra e venda e as declarações nela insertas, fazendo tábua rasa da sua força probatória plena.
70. E bem assim, a certidão permanente do registo predial.
71. Os tribunais das instâncias inferiores, em claro atropelo do que foi declarado em documento autêntico como é a escritura pública de compra e venda exarada perante um notário, consideram que o que comprova o conhecimento do Recorrente da vendada cortiça são as mensagens de correio electrónico remetidas anos após a referida escritura pública, para destinatários cuja intervenção em representação do Recorrente não atestam ou sequer justificam.
72. Os emails cujo conteúdo o tribunal a quo deu como provado e revelador do conhecimento por parte do Recorrente foram remetidos anos após a escritura e registo a destinatários que não representavam o Recorrente.
73. O Recorrente é um fundo de gestão patrimonial, denominado Fungere - Fundo de
Gestão de Património Imobiliário, gerido e legalmente representado por GNB- Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A., sendo completa e juridicamente, distinto de qualquer instituição bancária, seja ela o Banco Espírito Santo, S.A. (antes da Medida de Resolução) ou Novo Banco, S.A..
74. Os endereços electrónicos dos representantes do Fundo, ora Recorrente, nunca poderiam ter como domínio “@bes.pt” antes da Medida de Resolução e, sobretudo, depois de tal Medida e da constituição do Novo Banco como banco de transição.
75. O único documento junto aos autos que demonstra inequivocamente ter sido subscrito pela Recorrente é a missiva datada de 31.03.2017, na qual e, contrariamente ao alegado pela Recorrida, resulta claro que não foi reconhecido qualquer direito à Recorrida para vender e/ou extrair cortiça, por ser propriedade do Recorrente.
76. O que, em conjugação com a força probatória plena da escritura pública de compra e venda e declarações nela insertas, e a própria certidão permanente de registo predial, é suficiente para provar, inequivocamente, que à data da escritura de compra e venda do prédio misto, o Recorrente desconhecia a celebração anterior do contrato de compra e venda de cortiça.
77. Decidindo como decidiram as instâncias anteriores, valorou-se documentos particulares em detrimento de documentos autênticos, com força probatória plena, ofendendo, desta forma, de forma expressa e grave a disposição legal que fixa a força probatória plena da escritura de compra e venda e das declarações, do vendedor e do comprador, nela insertas perante autoridade pública – o notário e o conservador de registo predial.
78. Pois, encontra-se junta aos autos a certidão permanente de registo predial (com o
código de acesso PP-1611-84…8-140104-001727).
79. Que descreve o bem como composto, nomeadamente, montado de sobro ou sobreiral.
80. A aquisição (sem qualquer anotação que excluísse do imóvel vendido qualquer parte integrante) foi, como já demonstrado, registada mediante a Ap. 1315 de 2013/07/05.
81. Nos termos do disposto nos artigos 204º, nº 1 alínea c) e 212º do Código Civil, os frutos naturais, no caso em epígrafe a cortiça, enquanto parte integrante do terreno foram abrangidos pela compra e venda, não se encontrando no registo de aquisição a favor do Recorrente qualquer anotação referente à exclusão da cortiça de 2017.
82. A certidão de registo predial é nos termos dos artigos 369º e 370º do Código Civil
um documento autêntico que, ao abrigo do disposto no artigo 371º do mesmo diploma legal, goza de força probatória plena.
83. Tal documento pertence, indiscutivelmente, à categoria dos documentos autênticos e, como tal, faz prova plena dos factos que são atestados pela entidade documentadora, neste caso, a Conservatória do Registo Predial que tem arquivado o título aquisitivo da propriedade a favor do Recorrente.
84. Também em claro atropelo do que foi declarado em documento autêntico como é a certidão de registo predial lavrada perante entidade pública, consideram que o que comprova o conhecimento do Recorrente da venda da cortiça são as mensagens de correio electrónico remetidas anos após a referida escritura pública, para destinatários cuja intervenção em representação do Recorrente não atestam ou sequer justificam.
85. Resulta gritante que, decidindo como decidiram as instâncias inferiores, ofenderam disposições legais expressas que fixam a força de determinado meio de prova – a escritura de compra e venda (tendo as instâncias julgado provada a aquisição pelo Recorrente em Junho de 2013) e a certidão de registo predial permanente.
86. Por outro lado, constitui também fundamento de revista, a violação ou a errada aplicação da lei de processo, ao abrigo do disposto no artigo 674º, nº 1 alínea b).
87. O artigo 567º, nº 2 da lei processual civil que, em caso de revelia (não absoluta, diga-se), a sentença julga a causa conforme for de direito.
88. Carreados os elementos probatórios nos autos permitindo a justa composição do litígio, sempre se diga que sobre o julgador impede uma obrigação de valoração critica das provas e do pedido formulado, aplicando o direito, à pretensão deduzida pelo Autor.
89. Tratando-se de uma revelia semiplena, cabe ao tribunal julgar a causa conforme for de direito, o que se traduz que, não obstante os factos reconhecidos por confissão, pode haver lugar à absolvição do Réu do pedido, com a correcta aplicação do direito.
90. Na aplicação do direito a que alude a parte final do número 2 do artigo 567º do Código de Processo Civil, teria, necessariamente, o julgador de se pronunciar e decidir sobre os efeitos meramente obrigacionais, até à transmissão da propriedade, que pendiam somente sobre o vendedor da cortiça e não sobre o aqui Recorrente.
91. Que, segundo a posição já sufragada por este douto tribunal, conferiria, apenas,
ao suposto adquirente da cortiça um mero direito de crédito sobre o vendedor – o de exigir que este lhe permita apartar do prédio os frutos objeto do contrato.
92. Não tendo havido a transferência dos direitos reais sobre a cortiça, e havendo apenas um direito de crédito da Recorrida sobre o vendedor, apenas poderá aquela resolver o referido contrato por incumprimento, requerendo a restituição do preço pago (a quem o prestou – a suposta vendedora da cortiça), tendo em consideração que tal cortiça foi, posteriormente, vendida ao aqui Recorrente.
93. Ao decidir como decidiu, o julgador decidiu como se a revelia do Réu fosse absoluta, dando por confessados os factos e, não aplicando o direito.
94. Para aplicação do direito, e não se encontrando nos autos qualquer elemento probatório, mormente um documento, que ateste que em momento anterior à aquisição do imóvel pelo Recorrente este foi informado que a cortiça já havia sido vendida, não poderia o tribunal, ao aplicar o direito, afastar a presunção decorrente do registo de aquisição a favor do Recorrente, conferida pelo artigo 7º do Código de Registo Predial, tendo o bem imóvel (constituído na sua parte rústica pelos sobreiros e, consequentemente, pela respectiva cortiça enquanto fruto natural) sido vendido ao Recorrente com os respectivos frutos.
95. E bem assim, a força probatória plena quer da escritura de compra e venda, tendo o tribunal a quo dado como provada a aquisição da herdade pelo Recorrente em 2013 e o acórdão em crise aludindo às próprias cláusulas da escritura, quer da certidão permanente de registo predial, nos termos dos artigos 369º, 370º e 371º do Código Civil.
96. Conforme os supra citados e parcialmente transcritos Acórdãos, é comumente defendido na jurisprudência superior que na compra e venda de um terreno, a menos que haja declaração em contrário, a venda abrange a cortiça dos sobreiros do terreno – Acórdão da Relação de Évora proferido em 12/06/2019 e do próprio Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito do processo 96A2017 proferido em 28/05/1996.
97. Nos presentes autos, nem a própria Recorrida alega, ou sequer indicia, que tenha havido qualquer declaração por parte do Recorrente (ou da vendedora da herdade) a excluir do âmbito da compra e venda a referida cortiça.
98. Pelo contrário, ao juntar a certidão de registo predial permanente, demonstra, de forma inequívoca, que o Recorrente adquiriu a herdade, constituída na sua parte rústica, pelos sobreiros (e, consequentemente, os seus frutos naturais).
99. Na aplicação do direito, não tiveram as instâncias inferiores em consideração as disposições legais, mormente os artigos 204º, 212º e 882º do Código Civil, que, definindo o que são frutos naturais, considera-os coisa imóvel e determinam que a compra e venda de um imóvel abrange os seus frutos naturais, a menos que haja declaração expressa em contrário.
100. Constituem, por outro lado, excepções aos efeitos da revelia consagrados no artigo 567º do Código de Processo Civil, as várias alíneas do artigo 568º, nomeadamente, a alínea d).
101. Defende o Recorrente, na esteira dos Acórdãos já citados que a compra e venda de um terreno abrange, salvo declaração expressa em contrário, a cortiça dos sobreiros.
102. Exigindo-se para prova de tal exclusão, uma declaração em contrário, não resulta vertido nos presentes autos, qualquer declaração que exclua da aquisição do terreno pelo Recorrido, a cortiça dos sobreiros que adquiriu em Junho de 2013, como foi dado como provado.
103. Exigindo-se para prova de tal exclusão, uma declaração em contrário, não resulta vertido nos presentes autos, qualquer declaração que exclua da aquisição do terreno pelo Recorrido, a cortiça dos sobreiros que adquiriu em Junho de 2013, como foi dado como provado.
Termina, pedindo que seja dado provimento à revista e, consequentemente, deverá ser revogado o douto Acórdão agora recorrido, substituindo-se por outro que absolva o ora Recorrente, para todos os efeitos legais.
A autora contra-alegou, dizendo, em síntese, que não se verificam os fundamentos previstos no artigo 672º nº 1 alíneas a), b) e c) do Código de Processo Civil, pelo que é inadmissível a revista excepcional.
Quanto à alínea a), argumentou que “o recorrente alega que face ao decidido em sede de primeira instância e confirmado pelo Tribunal da Relação de Évora o seu direito de propriedade “fica gravemente coarctado”. Esquece o recorrente que foi considerado provado a celebração de um contrato de compra e venda de frutos naturais pendentes celebrado entre a recorrida e a sociedade Juvenal Serviços de Gestão Empresarial, S.A.
E, por força deste contrato, a recorrida é também ela titular de um direito e propriedade, nomeadamente sobre a cortiça em causa. Ou seja, estão em confronto dois direitos reais de propriedade que merecem consagração constitucional.
Não se vislumbra o porquê do direito de propriedade do recorrente merecer maior proteção constitucional ou ter mais importância do que o direito de propriedade da recorrida para se sobrepor a este.
Ora, ao ter sido dado como provado que a sociedade vendedora da Herdade de … havia dado conhecimento ao respetivo comprador da existência de um contrato de compra e venda da cortiça respeitante à tiradia de 2017, antes mesmo da realização da escritura de compra e venda, necessariamente tal prevalece sobre a cláusula geral constante da escritura de compra e venda “livre de quaisquer ónus ou encargos”.
Ou seja, o comprador da Herdade de … sabia, quando celebrou a escritura de compra e venda, que a tiradia da cortiça a extrair no ano de 2017 não estava incluída na compra e venda.
Ou seja, não assiste razão ao Recorrente quando por esta via justifica a admissibilidade do recurso de revista agora apresentado”.
Quanto à alínea b) refere que “em causa nos presentes autos está a apreciação de um contrato de compra e venda relativo a uma matéria prima - a cortiça.
Obviamente que está em causa um sector de grande importância para a economia portuguesa; diga-se, a par de tantos outros, como por exemplo a produção frutícola, a agricultura.
No entanto o que está em causa é a existência de um contrato de compra e venda de frutos naturais pendentes, diga-se não é um contrato específico deste sector da cortiça, mas sim transversal à sociedade e a todas as atividades.
Assim, não pode sofrer um especial enquadramento por se reportar ao sector da cortiça.
Ou seja, também por aqui não assiste razão ao recorrente quando por esta via justifica a admissibilidade do recurso de revista agora apresentado”.
Quanto à alínea c) argumenta que “ para que o recorrente possa fundamentar a apresentação da presente revista não basta invocar e referir a existência de outro acórdão proferido pelo Tribunal da Relação.
Necessário e fundamental para que se verifique que tal fundamento está ou não preenchido necessário se torna: alegar qual a situação concreta sobre que versou o Acórdão-fundamento invocado, no âmbito de que legislação foi o mesmo proferido bem como juntar aos autos certidão judicial comprovativo, quer do teor do Acórdão- fundamento, quer da data de trânsito em julgado.
Pois a “uma impressão de um acórdão extraída a partir de uma base de dados não garante a verificação do trânsito em julgado nem sequer a sua genuinidade”,
Neste sentido, sumário do Acórdão de Revista excecional Nº 194/13.5TBMTR-A.C1.S1 de 09-01-2014 em que foi Relator Pires da Rosa.
Ora nada disto o recorrente alegou ou concretizou.
Não basta reproduzir o sumário de um acórdão proferido pela Relação de Évora em data anterior ao presente acórdão para que, sem mais se possa aquilatar da referida contradição de acórdãos proferidos”.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
A) Fundamentação de facto
A matéria de facto a considerar é a que resulta do relatório do presente acórdão.
B) Fundamentação de direito
Expurgando as conclusões formuladas pela recorrente do que nelas traduz mera argumentação ou se revela inócuo para a decisão a proferir, podemos concluir que está em causa, no âmbito do recurso, apenas o conhecimento da questão respeitante à admissibilidade da revista excepcional.
As partes estão de acordo com a existência da dupla conforme mencionada no nº 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil.
Verificada a dupla conforme, decorrente da aplicação do artigo 671º nº 3 do Código de Processo Civil, impõe-se que este Supremo Tribunal não conheça do objecto da revista, em termos gerais, por inadmissibilidade da mesma.
Por isso, o autor interpôs recurso de revista excepcional argumentando que estão verificados os pressupostos contidos nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil.
Neste particular haverá que considerar que incumbe à Formação a decisão quanto à verificação dos pressupostos do nº 1 do artº 672º do Código de Processo Civil, importando atender, previamente, se o recorrente/autor cumpriu, sob pena de rejeição, os ónus adjectivos decorrente do nº 2 do artº 672º do Código de Processo Civil.
Nos termos desse nº 2 “O requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição:
a) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;
b) As razões pelas quais os interesses são de particular relevância social;
c) Os aspectos de identidade que determinam a contradição alegada, juntando cópia do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição.
A questão que agora se coloca é a de saber se o recurso de revista excepcional deve ser rejeitado conforme vem previsto no citado nº 2 do artigo 672º.
O réu, ora recorrente, não juntou aos autos cópia de qualquer acórdão da Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça, tendo apenas invocado dois acórdãos, um da Relação de Évora e outro do Supremo Tribunal de Justiça – proferidos, respectivamente, em 12.06.2019, no Proc. nº 55/09.2TBODM.E1 e em 28.05.1996, no Proc. Nº 96A071 – e nem sequer alegou os aspectos de identidade que determinariam contradição com o acórdão recorrido.
O recorrente juntou cópia do acórdão do STJ a fls 228 vº a 229 vº retirada da plataforma digital www.dgsi.pt/jstj, mas nada alegou se é esse o acórdão-fundamento.
António Geraldes escreveu[1]:
“ Como requisito específico, de ordem formal, o recorrente deve enunciar nas alegações de recurso os aspectos de identidade que estão na génese da interposição excepcional do recurso de revista, apresentando cópia, ainda que não certificada, do acórdão-fundamento, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 637º nº 2 e 641º. Embora a lei não exija a certidão de tal acórdão, é indispensável a demonstração do respectivo trânsito em julgado, requisito formal demonstrativo do seu carácter definitivo. Esse trânsito deve ser anterior à prolação do acórdão recorrido. (…). Por razões que facilmente se compreendem, a sustentação da admissibilidade da revista excepcional deve fazer-se a partir da apresentação e apreciação de um único acórdão (relativamente a cada questão de direito cuja resposta motive a interposição de revista excepcional), não sendo de tolerar a apresentação de diversos arestos, deixando para o STJ o ónus de proceder à sua destrinça”.
Não basta a enunciação de dois acórdãos que, alegadamente, determinariam contradição com o acórdão recorrido.
Ora, estando o recurso de revista excepcional sujeito a formalidades próprias, em razão da respectiva particularidade, o recorrente não cuidou de cumprir os ónus adjectivos decorrentes do nº 2 alínea c) do artº 672º do Código de Processo Civil, o que determina, sem mais, a rejeição do recurso de revista excepcional.
Daí que mesmo a conceber a interposição de revista excepcional, cuja apreciação preliminar sumária caberia à Formação, importa reconhecer a inexistência do pressuposto necessário (n.º 2 alínea c) do artº 672º do CPC) para a intervenção da Formação nos termos e para os efeitos dos artigos 672º nº 3 e 672º nº 1, ambos do Código de Processo Civil.
Deve, igualmente, ter-se presente que: “as razões a que se refere a al. a) do nº 2 do artigo 672º, são razões concretas e objectivas que devem ser explicitadas através de argumentação sólida e convincente, susceptível de revelar a alegada relevância jurídica, a qual passa pela complexidade ou dificuldade da questão de direito que se pretende ver reapreciada, pela controvérsia que essa questão venha gerando na doutrina ou jurisprudência, e pela consequente susceptibilidade de produzir decisões divergentes ou mesmo contraditórias. As «razões» a que se refere a alínea b) traduzem-se na demonstração da presença de interesses particularmente importantes e significativos para a comunidade dos cidadãos em geral, interesses esses que devem ser afirmados e preservados, sob pena de se gerarem situações eventualmente capazes de causar alarme ou intranquilidade social. Os “aspectos de identidade” a que se refere a alª c), são a identidade das situações de facto analisadas nos arestos em confronto, de modo a poder concluir-se pela alegada contradição, que só se verifica quando a uma idêntica situação de facto, subsumível às mesmas normas jurídicas, correspondem decisões, entre si, incompatíveis. Deve ser rejeitado o recurso de revista excepcional cuja motivação é conclusiva, inconcludente ou redundante quanto às “razões” e é omissa quanto aos «aspectos de identidade”[2].
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Março de 2013[3], em cujo sumário se consignou: “I - A excepcionalidade do recurso de revista, nas situações em que perpassa dos autos uma dupla conformidade entre as decisões da 1.ª instância e do Tribunal da Relação, impõe um ónus de alegação, a acrescer ao ónus de alegação sobre o objecto do recurso, que recai nas razões da admissibilidade da revista excepcional, “sob pena de rejeição” (art.721.º-A, n.º 2, do CPC). (…) VI - Se os recorrentes - alegando a oposição de acórdãos como fundamento de admissibilidade da revista excepcional - não indicam, em momento algum, os aspectos de identidade do acórdão fundamento com o acórdão recorrido, que determinem a alegada contradição, é de rejeitar o recurso de revista excepcional por falta de cumprimento do ónus imposto pela al. c) do n.º 2 do art. 721.º-A do CPC”.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 2016[4] (Processo n.º 102/13.3TVLSB.L1.S1), incluído nos Boletins Anuais disponibilizados em www.stj.pt, em cujo sumário se enunciou: “I - Constitui entendimento uniforme da Formação de apreciação preliminar, que a oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito, para efeitos de admissibilidade do recurso de revista excepcional ao abrigo do disposto no art. 672.º, n.º 1, al. c), do CPC, verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro caso, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação. II - Implica a rejeição do recurso de revista excepcional, por redundar em incumprimento dos ónus impostos pelas als. c) dos n.ºs 1 e 2 do art. 672.º do CPC, a mera transcrição, pelos requerentes, de excertos dos acórdãos alegadamente em contradição, omitindo a completa e relevante referência aos quadros factuais respectivos, que serviriam de pressuposto ou premissa dos silogismos judiciários em que se operaram as qualificações jurídicas alegadamente inconciliáveis.”
Na doutrina, perfilhando idêntica orientação, sustenta Abrantes Geraldes[5] que, “na apreciação de cada um dos requisitos constantes do nº 1 do artº 672º, existem poderes oficiosos que nem sequer dependem da actuação do recorrente, como sucede com a apreciação da identidade ou da dissemelhança substancial da legislação. Todavia, no que respeita às indicações referidas no nº 2, a sua falta implica, como efeito imediato, a rejeição do recurso.”
Por outro lado, atente-se que o recorrente, ao apresentar o recurso de revista excepcional, cotejadas as respectivas conclusões, em nenhum momento se vislumbra a invocação de que há razões pelas quais a apreciação da questão do objecto do recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
E o mesmo se diga quanto às razões pelas quais os interesses são de particular relevância social.
Incumbe, pois, à recorrente cumprir os ónus adjectivos decorrentes do nº 2 do artº 672º do Código de Processo Civil, nomeadamente, a recorrente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição, os aspectos de identidade que determinem a contradição alegada, juntando cópia do acórdão-fundamento transitado em jugado, com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição, implicando a rejeição do recurso de revista excepcional, nos termos enunciados, por redundar em incumprimento dos ónus impostos, a mera transcrição de excertos do acórdão alegadamente em contradição, omitindo a relevante referência aos quadros factuais respectivos, que serviriam de premissa dos silogismos judiciários em que se operaram as qualificações jurídicas sustentadamente inconciliáveis, outrossim, deve indicar, as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Da análise das conclusões do recorrente resulta, pois, claramente que o mesmo não cumpriu com os pressupostos previstos nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 672º, sublinhando-se que a sua omissão implica a rejeição da revista excepcional.
Pelo exposto, improcedem as conclusões das alegações da revista excepcional interposta pela ré, ora recorrente.
SUMÁRIO
Estando o recurso de revista excepcional sujeito a formalidades próprias em razão da respectiva particularidade, se o recorrente não cuidou de cumprir os ónus adjectivos decorrentes do nº 2 alªs a), b) e c) do artº 672º do Código de Processo Civil, isso determina, sem mais, a rejeição do recurso de revista excepcional.
III - DECISÃO
Atento o exposto, rejeita-se o interposto recurso de revista excepcional.
Custas pelo réu, recorrente.
Lisboa, 08 de Outubro de 2020
Ilídio Sacarrão Martins (Relator)
Nuno Manuel Pinto Oliveira
Ferreira Lopes
______
[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, Almedina, 2018, pág. 386.
[2] Cfr. Ac. do STJ de 16.06.2015, Procº nº 991/10.3TBGRD.C2.S1, incluído nos Boletins Anuais, in www.stj.pt , citado por António Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pág. 389, nota 566.
[3]Processo n.º 330/09.6TBPTL.G1.S1, incluído nos Boletins Anuais disponibilizados em www.stj.pt,
[4] Processo n.º 102/13.3TVLSB.L1.S1, incluído nos Boletins Anuais disponibilizados em www.stj.pt.
[5] Ob cit pág 391.