I. Configura-se como requisitos de admissibilidade e procedência dos embargos de terceiro: a) a qualidade de terceiro do embargante; b) a existência de posse; c) a circunstância de a diligência ordenada judicialmente ter ofendido a posse do embargante, sendo que, em regra, será “terceiro” aquele que é estranho à acção, seja ela, por exemplo, executiva, isto é, que não é exequente nem executado.
II. A usucapião assenta na posse, podendo ser invocada pelo respetivo interessado, e encerra um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica de uma situação de facto, de mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa.
III. A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, por usucapião, depende da verificação de determinados condicionalismos mínimos de posse, como seja o exercício reiterado de poderes de facto sobre o bem ao longo de um determinado período de tempo, de forma ininterrupta ou contínua, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente ou de modo público, sempre na convicção de agir como dono, a preencher por elementos de facto, sendo que o prazo de usucapião varia conforme as características da posse exercida,
IV. A posse é integrada por dois elementos - o corpus e o animus - o primeiro a constituir o domínio de facto sobre a coisa e, o segundo, a significar a intenção de exercer sobre a coisa o direito real correspondente àquele domínio de facto.
V. A presunção de má-fé que emerge da inexistência de título para a ocupação do imóvel, pode ser ilidida se do quadro factual resultar uma actuação na convicção de exercer, em exclusivo, um direito de propriedade sobre o imóvel, importando a ignorância do possuidor de que lesava direitos de terceiros.
VI. A usucapião vale por si, como forma de aquisição originária que é, não podendo ser prejudicada pelas eventuais inscrições registais e daí que não impeça o reconhecimento da propriedade daquele que invoca esse direito com fundamento na usucapião, sobre o imóvel em litígio, a circunstância demonstrada do registo de propriedade.
I – RELATÓRIO
1. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que Banco Comercial Português, SA. move a Sociedade Agrícola da Quinta de Santa Lucrécia, Lda., vieram AA e BB, deduzir embargos de terceiro, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a parte urbana do imóvel penhorado, com o inerente levantamento da penhora, nessa parte, alegando que a adquiriram por usucapião.
2. Recebidos os embargos, vieram o Exequente Banco Comercial Português, SA, e a Executada Sociedade Agrícola da Quinta de Santa Lucrécia, Lda., contestar os embargos, impugnando parte dos factos e suscitando as seguintes questões: - O erro no meio processual utilizado, por os embargos de terceiro não serem o meio adequado ao reconhecimento do direito de propriedade sobre imóvel, tendo por base a sua aquisição originária; - A indivisibilidade da parcela em causa do imóvel penhorado e a insusceptibilidade de ser adquirida por usucapião, na medida em que o imóvel não foi objecto de fraccionamento/destaque e nem tal foi aprovado/autorizado pela câmara municipal; - A oponibilidade do registo da hipoteca sobre a totalidade do imóvel; - Subsidiariamente, a delimitação da pretensão dos Embargantes à área de construção da edificação existente, sem abranger a área rústica circundante.
3. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho-saneador, com a fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova.
4. Calendarizada e realizada a audiência final foi proferida sentença a julgar os embargos de terceiro totalmente procedentes, consignando-se no respectivo dispositivo: “a) Reconhecer os embargantes AA e BB como proprietários da parcela de terreno composta por casa e logradouro, totalmente murada e fisicamente independente, com a área de cerca de 5.600 metros quadrados, a qual se encontra inscrita na matriz urbana sob o artigo U-0…9 e integra o prédio misto (penhorado) descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 9; b) Determinar o levantamento da penhora sobre a parcela de terreno referida em a)”.
5. Inconformada com o decidido, a Embargada/Executada/Sociedade Agrícola da Quinta de Santa Lucrécia, Lda. e o Embargado/Exequente/Banco Comercial Português, SA. interpuseram apelação, tendo o Tribunal a quo conhecido dos recursos, proferindo acórdão em cujo dispositivo enunciou: “Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedentes as apelações e, revogando-se a sentença recorrida, absolvem-se as Embargadas dos pedidos e ordena-se o prosseguimento da execução.”
6. É contra este acórdão, proferido no Tribunal da Relação de …, que os Embargantes/AA e BB se insurgem, formulando as seguintes conclusões:
“I - Até ao dia 2 de Setembro de 2014, data em que a Srª. Agente de Execução nomeada no âmbito dos autos principais se deslocou ao prédio dos Recorrentes para efetuar a penhora, nunca a posse ou o direito de propriedade dos Recorrentes com referência a esse prédio urbano situado na União de Freguesias de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artº 4…1, composto de cave, r/chão, andar e respetivo logradouro, possuindo a área de 5648 m2 totalmente murada e que confronta do norte com a ..., sul com ..., nascente com a ... e a poente com a ...;
II - Esse prédio foi destacado, do prédio rústico que pertence à Recorrida sociedade, há mais de 25 anos com referência a 2 de Setembro de 2014, encontra-se em impecável estado de conservação, sendo objeto duma utilização cuidada e permanente por parte dos Recorrentes;
III - O Recorrido BCP, SA sempre soube que o prédio e o respetivo logradouro, totalmente delimitado e murado, não era propriedade nem pertencia à Recorrida sociedade objeto de execução;
IV - Nunca, até à presente data, alguma vez o Recorrido BCP, SA ou alguém à sua ordem, visitou o prédio dos Recorrentes;
V - Nunca o Recorrido BCP, SA, ou alguém à sua ordem, inspecionou, avaliou ou fiscalizou o prédio dos Recorrentes e o modo como era gerido ou cuidado;
VI - Não restam quaisquer dúvidas da prova produzida nos autos que os Recorrentes, pelo menos desde data anterior a 1994, utilizam para seu exclusivo benefício pessoal o referido prédio e logradouro murado, suportando todas as despesas inerentes ao mesmo, fazendo-o de forma pública e pacífica, incluindo o total conhecimento e concordância dos Recorridos;
VII - Toda a prova adquirida nos autos, quer testemunhal quer documental, confirma que os atos praticados pelos Recorrentes como proprietários exclusivos do prédio em questão eram muito anteriores às cessões de quotas da sociedade Recorrida, seguramente há mais de 26 (vinte e seis) anos;
VIII - Resulta do conjunto dos factos provados que a posse dos Recorrentes sobre o imóvel em questão é de boa fé desde sempre, pois os Recorrentes atuaram sempre na convicção de serem proprietários legítimos do imóvel acima identificado, sem alguma vez terem lesado os direitos de outrém, nomeadamente de qualquer dos Recorridos, devendo considerar-se que, pelo menos, na data da cessão de quotas da Recorrida sociedade se verificou uma transição desse prédio em favor dos Recorrentes;
IX - Estão, pelo exposto, verificados e reunidos todos os pressupostos para a aquisição por usucapião, por terem decorridos mais de 15 (quinze) anos desde o início da posse de boa fé considerando mesmo a própria data em que foi instaurada a execução dos autos principais;
Ao decidir em sentido contrário o Acórdão Recorrido fez errada interpretação e aplicação do disposto no art.º 1296º do C. Civil devendo, em consequência, ser totalmente revogado e substituído por outro que confirme integralmente o teor da Douta Sentença proferida em 1ª Instância, por ser de inteira Justiça.”
7. Não foram apresentadas contra-alegações.
8. Foram dispensados os vistos.
9. Cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pelos Embargantes/AA e BB, consiste em saber se:
(1) Considerada a facticidade adquirida processualmente, o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica da mesma, na medida em que, contrariamente ao decidido, impõe-se reconhecer a titularidade da propriedade do prédio ajuizado aos Embargantes/AA e BB, adquirida por usucapião, repristinando o decidido em 1ª Instância?
II. 2. Da Matéria de Facto
Factos Provados:
“1. Na execução apensa, foi efectuada a penhora do “prédio misto - casa de cave, r/c e andar, com logradouro e terreno junto, sito em ..., na freguesia de ..., concelho de .... Descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número … e inscrito na respetiva matriz predial urbana pelos artigos U-1…9 e R-1…8.”, conforme auto de penhora de ….01.2014 junto na execução.
2. Do registo predial do imóvel referido (junto na execução), constam as seguintes inscrições relevantes:
a. Aquisição, por compra, a favor de “Sociedade Agrícola da Quinta de Santa Lucrécia, Lda.” pela ap. 12, de 26.07.1988;
b. Hipoteca voluntária, a favor do Banco Comercial Português, S.A., pela ap. 4779, de 23.12.2010;
c. Penhora, no âmbito da presente execução, sob a ap. 8 de 11.12.2013.
3. Por escritura pública outorgada em 06.11.1987, foi constituída a sociedade executada Sociedade Agrícola da Quinta de Santa Lucrécia, Lda., nos termos da escritura junta a fls. 11 a 17, com o teor que aqui se dá por reproduzido,
4. Tendo como sócios os ora embargantes e um terceiro.
5. Por escritura pública outorgada em 21.03.1988, a sociedade executada, representada pelo embargante, declarou comprar o “médio rústico...descrito na Conservatória sob o número zero … zero … nove da freguesia de ... inscrito na matriz respetiva sob o artigo cento e … ...”, nos termos constantes da escritura de fls. 18 a 22, com o teor que aqui se dá por reproduzido.
6. Sendo que o prédio penhorado referido em 1. corresponde ao prédio referido em 5., pelo menos quanto à sua delimitação.
7. No prédio referido em 5., os embargantes, por si ou enquanto representantes legais/sócios da sociedade executada, procederam, em data anterior a 1994, à construção de uma casa composta de cave, rés-do-chão, andar e respetivo logradouro.
8. A qual ocupam, desde então, com exclusão de outrem, como casa de habitação (secundária) do seu agregado familiar.
9. Beneficiando das suas utilidades.
10. Cultivando e colhendo os seus frutos.
11. À vista de toda a gente.
12. De forma contínua.
13. Sem oposição de ninguém.
14. Actuando, pelo menos desde 03.04.1998 (data da escritura de cessão de quotas da sociedade executada infra referida), na convicção de exercerem um direito de propriedade (dos próprios embargantes) sobre tal parcela de terreno.
15. Pelo menos desde 03.04.1998 e por referência a tal parcela de terreno,
foram sempre os embargantes que suportaram os custos:
a. Com a energia eléctrica;
b. Com a água;
c. Com a internet e televisão;
d. Com a segurança do imóvel;
e. Com o seguro multirriscos da habitação;
f. Desinfestação das instalações;
g. Fornecimento de alimentação para animais e manutenção de espaços verdes.
16. Em 26.03.2009, o embargante celebrou com a EDP contrato de compra e venda de energia eléctrica para instalar uma unidade de microprodução na dita parcela de terreno, nos termos que constam do contrato de fls. 36 a 39, cujo teor se dá por reproduzido.
17. Pelo menos após 03.04.1998, por referência à parcela de terreno em causa, a executada limitava-se a pagar o IMI devido às finanças.
18. Sendo reembolsada pelos embargantes após solicitação para o efeito.
19. A casa e respectivo logradouro foram inscritos na matriz sob o artigo U-00199.
20. Estando, desde a sua construção, tal parcela de terreno totalmente murada e independente dos terrenos envolventes.
21. E tendo cerca de 5.600 metros quadrados.
22. Por escritura pública outorgada em 03.04.1998, os embargantes e os demais sócios da sociedade executada declararam ceder as suas quotas na executada, nos termos que constam da escritura de fls. 41 a 49, com o teor que aqui se dá por reproduzido.
23. Sendo que, nessa data, os adquirentes das quotas estavam cientes de que a parcela de terreno acima referida ocupada pelos embargantes não fazia parte do património da sociedade executada.
24. Nunca tendo a sociedade executada reclamado tal parcela aos embargantes.
25. O fraccionamento do prédio referido em 1 e 5 não foi objecto de licenciamento/autorização administrativa.
26. O prédio referido em 1 e 5 encontra-se, pelo menos parcialmente, fora da área/perímetro urbano.
27. A execução apensa foi deduzida em 13.11.2013.”
Factos não provados:
“a) Os embargantes suportaram, pelo seu património pessoal o custo da construção da casa e dos muros envolventes referidos nos factos provados.
b) A convicção dos embargantes quanto ao exercício do direito de propriedade (a título pessoal) sobre a parcela de terreno murada referida nos factos provados iniciou-se em data anterior a 03.04.1998.
c) A exequente sabia, desde a constituição da hipoteca referida nos factos provados, que a parcela de terreno murada referida nos factos provados não pertencia à executada.
d) A parcela de terreno murada referida nos factos provados tem a área de apenas 281,69 metros quadrados”.
II. 3. Do Direito
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes/Embargantes/AA e BB, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjectivo civil - artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
II. 3.1. Considerada a facticidade adquirida processualmente, o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica da mesma, na medida em que, contrariamente ao decidido, impõe-se reconhecer a titularidade da propriedade do prédio ajuizado aos Embargantes/AA e BB, adquirida por usucapião, repristinando o decidido em 1ª Instância? (1)
Cotejado o acórdão recorrido, anotamos que o Tribunal a quo, perante a facticidade demonstrada nos autos, concluiu, no segmento decisório, e para o que aqui interessa, atento o thema decidendum da presente revista, revogar a decisão proferida em 1ª Instância, absolvendo as Embargadas dos pedidos, ordenando o prosseguimento da execução.
O aresto escrutinado ao problematizar as questões a apreciar, sopesando as conclusões formuladas pelas Apelantes/Embargadas/Sociedade Agrícola da Quinta de Santa Lucrécia, Lda. e Banco Comercial Português, SA., no confronto com a sentença recorrida e com a pretensão jurídica formulada e respectivos fundamentos, condensou as questões trazidas ao conhecimento do Tribunal da Relação, enunciando, a propósito, que as questões a resolver são as seguintes:
“i) Nulidade da sentença por “ausência total da fundamentação de facto” - 615º, nº 1, al. b), do CPC;
ii) Nulidade da sentença com base na “segunda parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil”;
iii) Não verificação dos pressupostos necessários para a aquisição da parcela por usucapião, por os Embargantes serem meros detentores e, subsidiariamente, não ter sido ilidida a presunção da má fé da posse não titulada;
iv) A indivisibilidade da parcela do imóvel penhorado e a insusceptibilidade de ser adquirida por usucapião (não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fraccionamento);
v) A oponibilidade do registo da hipoteca sobre a totalidade do imóvel;
vi) A inoponibilidade a terceiros do direito não inscrito.”
O Tribunal recorrido apreendeu a real conflitualidade subjacente à demanda trazida a Juízo tendo proferido aresto, fazendo apelo a um enquadramento jurídico-normativo posto em crise com a interposição da presente revista que, de resto, adiantamos desde já, não sufragamos.
Vejamos da bondade do enquadramento jurídico vertido no aresto escrutinado e da pertinência do sequente dispositivo.
Uma vez subsumidos os factos ao direito, o Tribunal a quo consignou a propósito dos pressupostos necessários para a aquisição da parcela ajuizada, por usucapião:
“(…) Nos termos do artigo 1260º, nº 2, a posse não titulada presume-se de má fé. Tal presunção é ilidível nos termos gerais do artigo 350º, nº 2, “mediante prova em contrário”.
Uma vez aqui chegados, pergunta-se: os Embargantes produziram “prova em contrário” susceptível de afastar a presunção de má fé da posse não titulada?
No nosso entender, a resposta é negativa.
Os Embargantes, para afastar a presunção, tinham de demonstrar que ignoravam, ao adquirir a posse no dia 03.04.1998, que lesavam o direito de outrem, no caso da Executada, legítima proprietária e possuidora do prédio na sua globalidade.
Ora, percorrendo a matéria de facto provada, não encontramos qualquer facto referente ao estado psicológico dos Embargantes quanto ao conhecimento ou desconhecimento do direito alheio, nem qualquer facto objectivo do qual resulte, por presunção judicial, tal estado de ignorância.
(…) Assim sendo, objectivamente e salvo o devido respeito, o que os autos evidenciam é uma tentativa de apropriação indevida de um bem imóvel que integrava o património da sociedade. Como já referimos e voltamos a enfatizar, pelo menos o Embargante não podia deixar de saber que, ao iniciar a posse sobre a parcela, estava a lesar a sociedade Executada, causando-lhe um prejuízo correspondente ao valor da parcela.
Portanto, a posse dos Embargantes deve ser classificada como não titulada, de má fé, pacífica e pública.
Na falta de registo da mera posse, a usucapião de imóveis só pode dar-se no termo de vinte anos se a posse for de má fé - art. 1296º do Código Civil.
Nos termos do artigo 1288º, os efeitos da usucapião retrotraem-se à data do início da posse, in casu, a 03.04.1998.
O imóvel dos autos foi penhorado em 11.12.2013 e os Embargantes deduziram embargos de terceiro em 23.09.2014, data em que invocaram a aquisição por usucapião.
Assim sendo, por ainda não ter decorrido o prazo de 20 anos, é manifesto que não estavam reunidos os pressupostos para a aquisição por usucapião do direito de propriedade.”
A questão a resolver consiste em saber se, relativamente à casa ajuizada, composta de cave, rés-do-chão, andar e respetivo logradouro, inscritos na matriz sob o artigo U-0…9, edificada pelos embargantes, por si ou enquanto representantes legais/sócios da sociedade executada, no prédio identificado em 5. dos factos provados e mencionado no auto de penhora referido no item 1. dos factos provados, é legítima a defesa da arrogada posse, por parte dos Embargantes/AA e BB, de tal sorte que se encontram verificados os pressupostos necessários para a aquisição do identificado prédio, por usucapião.
Como sabemos, os embargos de terceiro constituem o mecanismo de defesa da posse, quando ofendida por qualquer diligência ordenada judicialmente (art.º 1285° do Código Civil e art.º 342º do Código Processo Civil).
Podemos, assim, configurar como requisitos de admissibilidade e procedência dos embargos de terceiro:
a) a qualidade de terceiro do embargante;
b) a existência de posse;
c) a circunstância de a diligência ordenada judicialmente ter ofendido a posse do embargante.
Enquanto pressuposto de atendibilidade dos embargos de terceiro, em regra, será “terceiro” aquele que é estranho à acção, seja ela, por exemplo, executiva, isto é, que não é exequente nem executado, como sucede com os Embargantes/AA e BB, colocando-se a dissensão em saber se a ordenada penhora da ajuizada casa composta de cave, rés-do-chão, andar e respetivo logradouro, inscritos na matriz sob o artigo U-0…9, edificada pelos embargantes, por si ou enquanto representantes legais/sócios da sociedade executada, no prédio identificado em 5. dos factos provados e mencionado no auto de penhora referido no item 1. dos factos provados, ofendeu a arrogada posse dos embargantes, importando, assim, apreciar se a invocada posse encerra virtualidade bastante ao reconhecimento da reclamada aquisição por usucapião, atentos os factos jurídicos donde emerge a pretensão jurídica deduzida, em conjugação com os factos adquiridos processualmente.
Sabendo-se que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes, a questão submetida a este Tribunal ad quem impõe que se aprecie da existência de uma situação possessória dos Embargantes/AA e BB, sobre a casa composta de cave, rés-do-chão, andar e respetivo logradouro, inscritos na matriz sob o artigo U-0…9, edificada no imóvel descrito nos autos de penhora mencionado em 1. da facticidade demonstrada.
É sabido que dos modos legítimos de aquisição, uns são meros actos translativos do direito, também designados de “modos de aquisição derivada”, como são os casos do contrato e da sucessão mortis causa, enquanto outros são constitutivos do próprio direito, e, por isso, designados de “modos de aquisição originária”, como acontece com a usucapião (art.º 1287º do Código Civil), a ocupação (artºs. 1318º e seguintes do Código Civil) e a acessão (artsº. 1325º e seguintes do Código Civil).
A usucapião assenta na posse, podendo ser invocada pelo respetivo interessado.
A usucapião veio substituir a prescrição positiva ou aquisitiva adoptada pelo legislador de 1867, mas, substancialmente, continuou a corresponder à mesma realidade, nomeadamente, a um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica de uma situação de facto, de mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª edição, 1984, página 64.
A usucapião tem na sua origem razões de ordem económico-social, como a necessidade de tornar certa e estável o direito real a favor de quem mantém e exerce, ininterruptamente, a gestão da coisa, neste sentido, Rodrigues Bastos, in, Direito das Coisas, Volume I, 1975, página 79.
Reconhecemos que a aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, por usucapião, que aqui interessa, depende da verificação de determinados condicionalismos mínimos de posse, como seja o exercício reiterado de poderes de facto sobre o bem ao longo de um determinado período de tempo, de forma ininterrupta ou contínua, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente ou de modo público, sempre na convicção de agir como dono, conceitos estes, constitutivos dos requisitos objectivos e subjectivos necessários à prova da aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, a ser preenchidos por elementos de facto (a prova do corpus e do animus da posse nos termos daquele direito real, impostos pela lei [posse pública, contínua e pacífica] (artºs. 1251º, 1258º, 1261º, 1262º, 1263º, al. a) e 1287º e seguintes todos do Código Civil).
Assim, a posse, por certo lapso de tempo, e com certas características, conduz ao direito real que indica. É o fenómeno da usucapião, definido no art.º 1287º do Código Civil.
A usucapião opera para o beneficiário que a invoca com êxito, como já adiantamos, a transformação de um estado de facto em situação jurídica consolidada, daí que a posse consiste num “poder de facto em termos de um direito real”, isto é, na imissão de uma coisa na zona de disponibilidade empírica do sujeito - de tal modo que este possa, querendo, exercer poderes de facto sobre ela (os quais não pressupõem, necessariamente, um contacto “físico” com a mesma) - expressiva de uma intenção de domínio - neste sentido, Orlando de Carvalho, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122º paginas 105 e 106.
Sublinhamos que a posse é integrada por dois elementos - o corpus e o animus - o primeiro a constituir o domínio de facto sobre a coisa e, o segundo, a significar a intenção de exercer sobre a coisa o direito real correspondente àquele domínio de facto, sendo que a prova deste último elemento pode resultar de uma presunção, ou seja, a existência do corpus faz presumir a existência do animus - artºs. 1251º e 1252º do Código Civil, neste sentido, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 14 de Maio de 1996.
Na prescrição aquisitiva, o possuidor actual pode juntar à sua, a posse do seu antecessor (art.º 1256º do Código Civil) e mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar, presumindo-se que a posse continua em nome de quem a começou (art.º 1257º do Código Civil).
No caso que somos chamar a dirimir, a penhora incidiu sobre um imóvel registado a favor da executada, aqui embargada/Sociedade Agrícola da Quinta de Santa Lucrécia, Lda., daí que o demonstrado registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, conforme decorre do art.º 7º do Código do Registo Predial, querendo significar que se trata de uma presunção juris tantum, elidível por prova em contrário de que o direito registado existe e emerge do facto registado, pertence ao titular inscrito e tem determinada substância (a que o registo define).
Presumindo-se que o direito de propriedade inscrito, pertence à executada, aqui embargada/Sociedade Agrícola da Quinta de Santa Lucrécia, Lda., tal não invalida a consideração da arrogada aquisição de propriedade, por usucapião, de uma parte delimitada do imóvel penhorado, concretamente, a casa composta de cave, rés-do-chão, andar e respetivo logradouro, inscritos na matriz sob o artigo U-0…9, edificada no imóvel penhorado.
Na verdade, reconhecendo que a presunção constante do consignado art.º 7º do Código de Registo Predial - de que o direito existe e pertence ao titular inscrito - é uma presunção iuris tantum, ilidível por prova em contrário nos termos do art.º 350º n.º 2 do Código Civil, não se deve esquecer que a usucapião vale por si, como forma de aquisição originária que é, não podendo a mesma ser prejudicada pelas eventuais inscrições registais, e daí que não impeça o reconhecimento da propriedade daquele que invoca esse direito com fundamento na usucapião, sobre o imóvel em litígio, a circunstância demonstrada do registo de propriedade, conforme decorre do art.º 5º nºs. 1 e 2 al. a), do Código de Registo Predial.
Admitido, sem reserva, que a aquisição originária não pode ser prejudicada pelas eventuais inscrições registais sobre o prédio em litígio, e destacando que a usucapião assenta na posse, importa dizer a propósito que a lei distingue diferentes espécies de posse - titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (art.º 1258.º do Código Civil) - ligando a cada uma delas, efeitos também diversificados.
Assim, o prazo de usucapião é diferente consoante a natureza da coisa de cuja aquisição se trate, e varia conforme as características da posse sobre ela exercida.
Neste contexto jurídico-positivo está demonstrada a seguinte facticidade:
“- Na execução apensa, foi efectuada a penhora do “prédio misto - casa de cave, r/c e andar, com logradouro e terreno junto, sito em ..., na freguesia de ..., concelho de .... Descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número … e inscrito na respetiva matriz predial urbana pelos artigos U-1…9 e R-1…8.”, conforme auto de penhora de 2 de Janeiro de 2014.
- No prédio referido em 5., os embargantes, por si ou enquanto representantes legais/sócios da sociedade executada, procederam, em data anterior a 1994, à construção de uma casa composta de cave, rés-do-chão, andar e respetivo logradouro.
- A qual ocupam, desde então, com exclusão de outrem, como casa de habitação (secundária) do seu agregado familiar.
- Beneficiando das suas utilidades.
- Cultivando e colhendo os seus frutos.
- À vista de toda a gente.
- De forma contínua.
- Sem oposição de ninguém.
- Actuando, pelo menos desde 3 de Abril de 1998 (data da escritura de cessão de quotas da sociedade executada infra referida), na convicção de exercerem um direito de propriedade (dos próprios embargantes) sobre tal parcela de terreno.
- Pelo menos desde 3 de Abril de 1998 e por referência a tal parcela de terreno, foram sempre os embargantes que suportaram os custos: Com a energia eléctrica; Com a água; Com a internet e televisão; Com a segurança do imóvel; Com o seguro multirriscos da habitação; Com a desinfestação das instalações; Com o fornecimento de alimentação para animais e manutenção de espaços verdes.
- Em 26 de Março de 2009, o embargante celebrou com a EDP contrato de compra e venda de energia eléctrica para instalar uma unidade de microprodução na dita parcela de terreno.
- Pelo menos após 3 de Abril de 998, por referência à parcela de terreno em causa, a executada limitava-se a pagar o IMI devido às finanças.
- Sendo reembolsada pelos embargantes após solicitação para o efeito.
- A casa e respectivo logradouro foram inscritos na matriz sob o artigo U-00199.
- Estando, desde a sua construção, tal parcela de terreno totalmente murada e independente dos terrenos envolventes.
- E tendo cerca de 5.600 metros quadrados.
- Por escritura pública outorgada em 3 de Abril de 1998, os embargantes e os demais sócios da sociedade executada declararam ceder as suas quotas na executada.
- Sendo que, nessa data, os adquirentes das quotas estavam cientes de que a parcela de terreno acima referida ocupada pelos embargantes não fazia parte do património da sociedade executada.
- Nunca tendo a sociedade executada reclamado tal parcela aos embargantes.”
Da facticidade demonstrada decorre que a posse dos Embargantes/AA e BB sobre uma parte delimitada do imóvel penhorado, concretamente, a casa composta de cave, rés-do-chão, andar e respetivo logradouro, inscritos na matriz sob o artigo U-0…9, edificada no imóvel penhorado, é ininterrupta, pelo menos desde 3 de Abril de 1998; à vista de toda a gente; sem oposição de ninguém; e na convicção de que eram os exclusivos donos daquela parte delimitada do imóvel penhorado, sendo que até ao conhecimento da penhora do prédio misto - casa de cave, r/c e andar, com logradouro e terreno junto, sito em ..., na freguesia de ..., concelho de .... Descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número … e inscrito na respetiva matriz predial urbana pelos artigos U-1…9 e R-1…8, nunca ninguém contestou a ocupação da ajuizada parte delimitada do imóvel penhorado; e de boa-fé, na medida em que os Embargantes/AA e BB ignoravam que, ao ocupar a ajuizada parte delimitada do imóvel penhorado, lesavam o direito de outrem, sendo de destacar, a este propósito, que os Embargantes/AA e BB actuaram, pelo menos desde 3 de Abril de 1998 (data da escritura de cessão de quotas da sociedade executada), na convicção de exercerem um direito de propriedade (dos próprios embargantes) sobre tal parcela de terreno, sem oposição de ninguém, tanto mais que, à data da escritura pública, outorgada em 3 de Abril de 1998, onde os embargantes e os demais sócios da sociedade executada declararam ceder as suas quotas na executada, os adquirentes das quotas também estavam cientes de que a parcela de terreno, ocupada pelos Embargantes/AA e BB não fazia parte do património da sociedade executada, outrossim, a sociedade executada, nunca reclamou a aludida parcela aos embargantes.
Não deixamos de acentuar que o prazo de usucapião varia conforme as características da posse exercida, daí sublinharmos que, com a entrada em vigor do Código Civil de 1966, constitui apenas presunção de boa-fé a existência do titulo da posse, importando, assim, que se acaso a posse não seja titulada, como pacificamente é aceite no caso trazido a Juízo, é sempre admissível a prova do contrário, ou seja, de que a posse não titulada é de boa-fé - artºs. 1260º n.º 2 e 350º n.º 2, ambos do Código Civil.
Assim, revertendo ao caso sub iudice, e ponderando todo o circunstancialismo factual, acabado de enunciar, podemos confirmar que a posse dos Embargantes/AA e BB sobre a ajuizada parte delimitada do imóvel penhorado, condizente à casa, composta de cave, rés-do-chão, andar e respetivo logradouro, inscritos na matriz sob o artigo U-0…9, edificada no imóvel penhorado, é pública, contínua, pacífica e de boa-fé, elidindo assim a presunção legal decorrente do art.º 1260º n.º 2 do Código Civil, pois, conquanto a posse não seja titulada, demonstraram os Embargantes/AA e BB que ignoravam que a posse sobre a casa, edificada no imóvel penhorado, e respectivo logradouro, lesava o direito de outrem, donde, o seu comportamento não merece que seja qualificado de malfazejo, na medida em que actuaram, durante mais de 15 (quinze anos) na convicção de que não estavam a prejudicar outrem.
Reconhecida a inexistência de titulo e demonstrada a posse pública, contínua, pacífica e de boa-fé, mantida durante mais de quinze anos, impõe-se reconhecer a aquisição originária, por usucapião, por parte dos Embargantes/AA e BB, da casa, composta de cave, rés-do-chão, andar e respetivo logradouro, inscritos na matriz sob o artigo U-0…9, edificada no imóvel penhorado, ilidida que está a presunção de má-fé que emergia da inexistência de título para a ocupação do imóvel, com a consequência de o prazo de usucapião passar a ser de 15 (quinze) anos, nos termos do - art.º 1296º do Código Civil - .
Pelo exposto, na procedência das conclusões retiradas das alegações, trazidas à discussão pelos Recorrentes/Embargantes/AA e BB, reconhecemos à respectiva argumentação, virtualidade bastante no sentido de alterar o destino da demanda, importando revogar o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença proferida em 1ª Instância.
III. DECISÃO
Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar procedente o recurso interposto, e, consequentemente, concede-se a revista, revogando-se o acórdão proferido, repristinando a sentenciada procedência dos embargos de terceiro, declarada em 1ª Instância.
Custas em todas as Instâncias pelas Recorridas/Embargadas/Banco Comercial Português, SA. e Sociedade Agrícola da Quinta de Santa Lucrécia, Lda.
Notifique.
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Outubro de 2020
Oliveira Abreu (Relator)
Ilídio Sacarrão Martins
Nuno Pinto Oliveira
Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no acórdão proferido, atesto o respectivo voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos, Ilídio Sacarrão Martins e Nuno Pinto Oliveira.
(A redacção deste acórdão não obedeceu ao novo acordo ortográfico)