Revista: Tribunal recorrido – Relação de Coimbra, 1.ª Secção
Recorrente: Massa Insolvente de Duarte, Lda.»
DESPACHO (arts. 652º, 1, h), 679º, CPC)
1. Por apenso aos respectivos autos de insolvência, «Massa Insolvente de Duarte, Lda», tendo sido «Duarte Lda.» declarada insolvente por sentença de 11/11/2011, instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum (cfr. despacho proferido a fls. 151) contra AA e BB e CC e DD, peticionando o seguinte: “Devem: A) os 1.os e os 2.os Réus ser condenados solidariamente a reconhecer a aquisição por parte da A. através da figura da acessão imobiliária, do prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 39, da freguesia de ..., composto por Terra de semeadura e pastagem, e descrito na C.R.P de ... sob o n.º 1420, ou se assim não se entender, em virtude da propriedade daquele prédio ter sido transmitida pelos 1.os Réus aos 2.os Réus, através da compra e venda que celebraram por escritura pública datada de 31-07-2012, e serem estes últimos, os legítimos donos e deterem a presunção do registo a seu favor, então que sejam os 2.os Réus condenados a reconhecer a realização das benfeitorias supra referidas por parte da A. no seu prédio, cujo custo delas ascendeu a pelo menos 563.000,00 Euros, e concomitantemente o preço é de valor superior ao do prédio acima referido, que ascende a 200,000 Euros, e portanto em valor superior ao que aquele detinha antes da realização das benfeitorias em causa, para o caso de assim não se entender, B) serem os RR. (nos termos expostos no pedido anterior) condenados a pagar à A. o custo das benfeitorias erigidas por si a expensas suas, por constituírem benfeitorias úteis, e cujo preço ascendeu a pelo menos 563.000,00 Euros, assistindo-lhe o direito de retenção sobre o imóvel até que esta indemnização seja paga”.
Os Réus CC e mulher DD apresentaram Contestação, excepcionando a sua ilegitimidade passiva, defendendo-se por impugnação e sustentando a não verificação dos pressupostos da acessão industrial imobiliária, concluindo pela absolvição da instância em função da procedência da excepção invocada e, caso assim não se entendesse, pela improcedência da acção e respectiva absolvição do pedido (fls. 174 e ss dos autos).
Tendo em conta o falecimento dos Réus AA e BB, após suspensão da instância decretada a fls. 218-219, foi admitida nos autos a Intervenção Principal Provocada da respectiva herdeira EE, casada no regime de comunhão geral de bens com FF (fls. 212 e ss, 222 e ss, 230). Citada, acompanhada pelo marido, apresentou Contestação, através da qual excepcionou a respectiva ilegitimidade e se defendeu por impugnação e pugnando pela não verificação dos pressupostos da acessão industrial imobiliária, concluindo pela respectiva absolvição da instância e, subsidiariamente, pela improcedência da acção (fls. 233 e ss).
Notificada para o efeito (fls. 252), a Autora apresentou Resposta às excepções, pugnou pela improcedência, e, considerando a alegada venda comunicada pelos 2.os Réus, requereu a habilitação da «CUPH – Travessa da Ponta, CRL» como cessionária ou adquirente do prédio objecto do litígio após a propositura da acção, onde se encontram implantadas as benfeitorias invocadas pela Autora, ou, se assim não se entender, a intervenção provocada para acompanhar os demais Réus na prossecução dos autos (fls. 253 e ss). A habilitação foi liminarmente indeferida e foi admitida a requerida intervenção principal provocada (despacho que faz fls. 260-261 dos autos). Uma vez citada a cooperativa interveniente-chamada, não contestou.
2. A Autora requereu a modificação dos pedidos iniciais, nos seguintes moldes:
“A) Serem os 1.os e os 2.os Réus, e a Ré chamada (CUHP – Travessa da Ponte, C.R.L, com o NIPC 0000, com sede na Travessa …, n.º00, freguesia de ..., ...) serem condenados solidariamente a reconhecer a aquisição por parte da A. através da figura da acessão imobiliária, do prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 3329-P, da freguesia de ..., Concelho de ... composto por Condomínio Habitacional com Três Moradias unifamiliares, Bloco I, Bloco II e III, e dois edifícios de habitação colectiva Bloco IV e V, constituídos por cave para garagem, rés-do-chão e primeiro andar para habitação, arruamento passeios, estacionamentos, zonas de espaços verdes, zona de equipamento (piscina) e casa de condomínio de utilização colectiva, descrito na C.R.P. de ... sob o n.º 1420/20010803,
ou se assim não se entender,
em virtude da propriedade daquele prédio ter sido transmitida pelos 1.os Réus aos 2.os Réus, através da compra e venda que celebraram por escritura pública datada de 31-07-2012, e dos 2.os Réus à sociedade chamada (CUPH – Travessa da Ponta, C.R.L, com o NIPC 0000) por escritura de compra e venda datada de 13/02/2015 e serem estes últimos os donos e deterem a presunção do registo a seu favor, então que seja a Ré chamada condenada a reconhecer a realização das benfeitorias supra referidas por parte da A. no seu prédio, cujo custo delas ascendeu a pelo menos 563.000,00 Euros, e concomitantemente o preço é de valor superior ao do prédio acima referido, que ascende a 200,000 Euros, e portanto em valor superior ao que aquele detinha antes da realização das benfeitorias em causa,
para o caso de assim não se entender,
B) serem os RR. e a Ré, chamada (nos termos expostos no pedido anterior) condenados a pagar solidariamente à A. o custo das benfeitorias erigidas por si a expensas suas, por constituírem benfeitorias úteis, e cujo preço ascendeu a pelo menos 563.000,00 Euros, assistindo-lhe o direito de retenção sobre o imóvel até que esta indemnização seja paga”.
Mais requereu que fosse ordenado oficiosamente o registo da acção sobre o prédio em causa atento o novo pedido cuja modificação se requereu em face da nova identidade/configuração do prédio. Para tudo, cfr. fls. 275 e ss.
A alteração do pedido, que “envolve a sua ampliação na perspectiva da identificação do prédio objeto mediato da acção, nos termos do disposto no artigo 265º/2 do Código de Processo Civil”, foi admitida por despacho proferido a fls. 279. Neste foi ordenado que se procedesse ao registo da acção considerando a alteração do pedido admitida.
3. Foi realizada audiência prévia em 21/2/2017, onde foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial no sentido de se “precisar qual o valor do prédio em causa nos autos depois da incorporação das construções que sustenta ser edificado”, sendo que os Réus poderiam depois exercer o contraditório e pronunciar-se sobre o valor da causa a atribuir à causa (fls. 282 e ss). Na sequência, a Autora veio alegar que o valor do prédio que foi dos 1.os Réus, após a incorporação das construções levada a cabo pela devedora, passou a ser de € 763.000,00, valor esse correspondente ao valor do terreno acrescido das benfeitorias erigidas pela Autora (fls. 285 e ss). Mereceu Resposta dos Réus no exercício do contraditório e pronúncia sobre o valor processual da causa (fls. 304 e ss).
Na decisão do incidente de verificação do valor da causa, foi proferido despacho a fls. 318- 319, determinando-se esse valor em € 563.000,00.
4. Foi proferido despacho saneador, nele julgando-se improcedentes as excepções de ilegitimidade dos Réus e proferido despacho sobre o valor da causa, “fixado por despacho de fls. 318 e 319 p.p.”. Despacho esse que identificou o objecto do litígio e enunciou os temas (art. 596º do CPC). Tudo a fls. 332 e ss.
5. Tramitada a instância em termos probatórios, foi realizada audiência final em sessões de 13/3, 28/3 e 30/4/2019.
6. O Juiz 3 do Juízo de Comércio de ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... proferiu sentença em 2/7/2019 (fls. 544 e ss) na qual se decidiu “julgar a acção improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolver todos os Réus e Chamados de todos os pedidos contra si deduzidos”.
7. Inconformada com tal decisão, a Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC). Foram identificadas as seguintes questões decidendas: (i) “Se estão preenchidos os requisitos para a aquisição pela insolvente Duarte, Lda do terreno integrante do prédio então descrito sob nº 1420 por via do instituto da acessão industrial imobiliária”; (ii) “Assim[,] não se entendendo, se a A. tem direito a ser indemnizada pelo valor das benfeitorias úteis correspondentes às edificações que levou a efeito nesse prédio até Setembro de 2009”. E o acórdão proferido em 8/10/2019 pelo TRC confirmou a decisão recorrida, “ainda que com diversa fundamentação”.
8. A Autora, novamente inconformada, interpôs então recurso de revista para o STJ, visando a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que “julgue procedente a aquisição por parte da recorrente através da acessão industrial imobiliária do prédio descrito sob o artigo 1420 da CRP, e se assim não se entender[,] que sejam os recorridos condenados nos pedidos subsidiários, e consequentemente condenados a pagar o montante de 549.494,85 Euros, correspondentes ao preço das benfeitorias por si erigidas no prédio dos recorridos, calculado com base nas regras do enriquecimento sem causa”.
«CUPH – Travessa da Ponta, CRL», CC e DD, Chamada e Réus, contra-alegaram, pugnando pela inadmissibilidade da revista por preenchimento do bloqueio recursório previsto no art. 671º, 3, do CPC ou, se assim não se entender, pela improcedência do mérito da revista.
9. A finalizar as suas alegações, a Recorrente apresentou Conclusões divididas nas duas questões recursivas colocadas a escrutínio do STJ: (i) a aquisição da propriedade do prédio através do preenchimento dos requisitos legais da acessão industrial imobiliária, estabelecidos no art. 1340º do CCiv. (relativo ao pedido principal na acção); (ii) o direito de indemnização resultante das benfeitorias úteis realizadas no prédio (relativo ao pedido subsidiário na acção: art. 554º, 1, CPC) – cfr. fls. 615v-619v.
10. Confrontado com despacho do Relator, no âmbito do exercício previsto no art. 655º, 1, do CPC, a Recorrente respondeu, a fls. 675 e ss dos autos, pugnando pela admissibilidade do recurso, seja pela via do art. 629º, 1, do CPC, seja pela inexistência de dupla conformidade decisória. Por sua vez, a Chamada e demais Réus responderam, a fls. 662 e ss, reiterando que a admissibilidade da revista está inviabilizada pelo “efeito bloqueador da dupla conformidade de decisões”, conduzindo à sua rejeição.
Apreciemos.
11. Ao presente apenso aplicam-se as regras gerais sobre recursos, ex vi art. 17º do CIRE, o que se concluiu a contrario do art. 14º do CIRE, conforme é jurisprudência consensual desta 6.ª Secção do STJ.
12. O art. 629º, 1, do CPC determina que: «O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (…)».
Este preceito impõe que, enquanto condição geral de recorribilidade das decisões judiciais, a admissibilidade do recurso ordinário esteja dependente da verificação cumulativa destes dois pressupostos jurídico-processuais: (i) o valor da causa tem de exceder a alçada do tribunal de que se recorre; (ii) a decisão impugnada tem de ser desfavorável para o recorrente em valor também superior a metade da alçada do tribunal que decretou a decisão que se impugna. Tal significa que os requisitos previstos no art. 629º, 1, do CPC são cumulativos e indissociáveis (em rigor, um duplo requisito) e a observância do primeiro deles – “valor da causa” – precisa da averiguação (se possível: 2.ª parte do preceito) do segundo – “valor da sucumbência” – para, ainda que a título complementar[1], completar o requisito de admissibilidade[2].
Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000,00 (art. 44º, 1, da Lei 62/2013, de 26 de Agosto), anotando-se que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção (n.º 3 desse art. 44º).
12.1. No caso, a causa tem um valor processual, fixado pelo juiz de 1ª instância no despacho saneador (art. 306º, 1 e 2, CPC), em referência à decisão do incidente sobre o valor da causa, de € 563.000,00 (cfr. fls. 333, 318-319) – logo, superior a € 30.000,00, alçada do tribunal (da Relação) recorrido.
12.2. Quanto à sucumbência, o requisito terá que ser averiguado em função de dispormos de cumulação objectiva eventual nos termos do art. 554º do CPC, ou seja, terem sido formulados pedido principal (com pretensões alternativas: art. 553º, 1, CPC[3]) e, para o caso de este não proceder, pedido subsidiário (em referência à pretensão alternativa do pedido principal). Nesta situação processual, e tendo o tribunal recorrido considerado – reiterando o que houvera sido decidido em 1.ª instância – improcedentes o pedido principal e o pedido subsidiário, o valor da sucumbência deve ser determinado com autonomia para cada um deles[4]. Cada um deles, aliás, corresponde a questão recursiva autónoma da revista.
Assim:
(i) no que respeita ao principal (que não chega às instâncias recursivas na sua faculdade alternativa), estamos perante uma pretensão visando a constituição-aquisição de direito real de propriedade, que por natureza não apresenta uma tradução monetária e quantitativa clara ou precisa, que possa ser a base de quantificação de perda[5]; deste modo, nos termos do art. 629º, 1, 2.ª parte, do CPC («fundada dúvida acerca do valor da sucumbência»), vale para esse efeito de admissibilidade da revista apenas o valor da causa – que se preenche e determina, por agora por esta via, a admissibilidade do segmento decisório respeitante ao pedido principal;
(ii) no que respeita ao pedido subsidiário, a sucumbência pode ser avaliada, uma vez interpretada de acordo com o critério fixado pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ, de 14/5/2015 (AUJ n.º 10/15)[6]: “diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1.ª instância e no acórdão da Relação”. Ou seja, a diferença/perda entre o valor arbitrado na 1ª instância e o valor resultante da decisão proferida pelo acórdão da Relação. Sendo rejeitado o pedido em ambas as instâncias, não há perda para o Autora. Logo, por não preenchimento do requisito complementar imposto pelo art. 629º, 1, 1.ª parte do CPC, a parte vencida, aqui Recorrente, não tem qualquer decaimento entre o resultado declarado na sentença e o resultado declarado no acórdão recorrido e, por isso, no que a esse segmento decisório respeita, não é de todo admissível o recurso.
Vejamos, ainda e por isso, a admissibilidade da revista quanto ao pedido principal.
13. O art. 671º, 3, do CPC, determina a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância como obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal junto do STJ, em relação a todos os segmentos decisórios em que se verifica identidade de julgados sem voto de vencido com fundamentação essencialmente coincidente ou – equiparável – se revele mais favorável à parte recorrente.
13.1. A decisão da Relação, em sede do recurso de apelação da Apelante «Massa Insolvente de Duarte, Lda.», confirmou a decisão da primeira instância sem voto de vencido em relação ao segmento decisório relativo ao reconhecimento do direito de propriedade por via da acessão industrial imobiliária. Assim sendo, o acesso ao STJ, não obstante ser legítimo por via do art. 629º, 1, do CPC, é, em princípio, vedado pelo disposto pelo art. 671º, 3, ou seja, pela existência da denominada “dupla conforme”. Só não será assim se o acórdão recorrido, apesar de ter decidido de forma coincidente, tiver utilizado fundamentação essencialmente diferente daquela que foi usada pela primeira instância (e desde que não se integre o caso numa das hipóteses elencadas no art. 629º, 2, do CPC (“é sempre admissível recurso”), justamente salvaguardadas no corpo do art. 671º, 3, do CPC (“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível (…)”).
Por outro lado, como adverte a doutrina processualista, “o objeto da conformidade será apurado no interior do objeto do recurso, ou seja, a verificação da conformidade restringir- -se-á, antes de mais, às decisões ou segmentos decisórios dos quais a parte interpõe concretamente recurso de revista”[7]. No caso dos autos, as Conclusões dos Recorrentes referidos (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1, CPC) delimitam em definitivo esse objecto e, nessa delimitação, cabe agora sindicar o art. 671º, 3, do CPC em relação ao segmento que dispôs sobre o pedido principal da Autora.
13.2. Quanto à verificação da coincidência essencial da fundamentação entre as instâncias concordantes no resultado, para o STJ “não existe diversidade essencial da fundamentação quando a Relação se limita a não aceitar uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado”[8] ou quando “a confirmação da sentença na 2.ª instância” não assenta “num enquadramento normativo absolutamente distinto daquele que foi ponderado na decisão da 1.ª instância, o que equivale por dizer que irrelevam (…) a não aceitação de um dos caminhos percorridos, ou a mera adição de fundamentos”[9]. Por outras palavras, para se implicar a intervenção do STJ “[é] necessário, para o efeito, uma modificação qualificada, essencial, da fundamentação jurídica que aos olhos das partes exiba a ideia de que as águas em que cada instância navegou são tão diferentes, que só mesmo as decisões são coincidentes”[10]. Isso significa que o obstáculo recursório da “dupla conforme” não se preenche com “qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica assumida pela Relação para manter a decisão já tomada em 1ª instância”; [é] necessário, na verdade, que estejamos confrontados com uma modificação qualificada ou essencial da fundamentação jurídica em que assenta, afinal, a manutenção do estrito segmento decisório – só aquela se revelando idónea e adequada para tornar admissível a revista normal”, só se podendo considerar existente essa fundamentação essencialmente diferente se “a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância”[11]. Em suma, para se activar o recurso de revista é imperativo que a essencialidade da diferença do fundamento que confirma a decisão determine uma sucumbência qualitativa da parte prejudicada[12].
13.3. Uma análise atenta leva-nos a julgar que, pelo confronto das duas decisões, não existe por parte do acórdão recorrido discrepância sobre o enquadramento jurídico em que se movera a decisão de 1.ª instância quanto ao pedido principal (ainda que este tivesse mais do que uma pretensão mas só a do reconhecimento do direito foi apreciada pela Relação, sendo a restante improcedente em 1.ª instância e, em rigor, absorvida no pedido subsidiário tocante à questão da indemnização de benfeitorias).
Na verdade, essa primeira pronúncia incidiu sobre a verificação dos requisitos da acessão industrial imobiliária (art. 1340º do CCiv.) como modo de aquisição da propriedade (arts. 1316º e 1317º, d), do CCiv.). E julgou-se que um desses requisitos (“incorporação [em terreno alheio] consistente no acto voluntário da realização da obra, sementeira ou plantação”) não se verificara, uma vez que “não existe apenas um autor da obra (…) mas dois”, não se provando que a Autora “tivesse sido a única dona da obra, a única responsável pela construção incorporada, facto constitutivo do direito da A.”, falecendo por isso a subsunção da situação em apreço na invocada acessão, “pelo que necessariamente improcedem os dois primeiros pedidos formulados sob a alínea A) do petitório alterado”.
Chegado tal juízo à Relação, o acórdão recorrido voltou a sindicar tais requisitos legais e concluiu que o art. 1340º não se preenchia mas, em diálogo com a matéria de facto provada, por outras razões: em síntese, a existência prévia de “obra” no prédio (“construção inacabada de seis edificações”), com o qual a Autora tem “relação ou vínculo jurídico” (não sendo portanto alheio); não ter ficado evidenciado que outrem para além da Autora tenha produzido “incorporação” no prédio; o edificado feito deveria ser antes qualificado como “benfeitoria útil” e não como “incorporação” à luz do art. 1340º. Em suma, coincidindo, ainda que com outra argumentação sobre a aplicação dos factos da causa aos pressupostos legais do instituto jurídico em causa mas sem poder ser vista como essencial no caminho jurídico do preenchimento desses pressupostos, sobre a inviabilidade da aquisição do prédio por força da acessão.
Conclui-se, assim, que, pelas razões apontadas, assim como pela reiteração (com maior solidez na fundamentação, como se espera de instância recursiva) da improcedência da apelação da Recorrente, se preclude o respectivo interesse processual para aceder ao terceiro grau da jurisdição quando se recebem duas decisões que pelo seu teor definiram de modo consolidado a sua situação jurídica sem deixar lugar a dúvida razoável e objectiva na fundamentação, uma vez que as duas decisões acabam por ser fungíveis entre si nos seus efeitos[13] – o que conduz ao preenchimento do aludido bloqueio recursório da “dupla conformidade decisória” e inadmissibidade da revista quanto ao primeiro segmento decisório (pedido principal) à luz do art. 671º, 3, do CPC.
Pelo exposto, e de harmonia com o preceituado no art. 652º, 1, h), aplicável ex vi art. 679º, do CPC, julga-se findo o recurso interposto uma vez julgada a sua inadmissibilidade e não haver lugar ao conhecimento do respectivo objecto.
Custas pela Recorrente.
STJ/Lisboa, 16 de Outubro de 2020
O Relator
Ricardo Costa
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[1] Também porque, de acordo com o art. 629º, 1, 2ª parte, só se atenderá ao “valor da causa” – diz a lei – «em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência».
V. por todos, para se realçar a complementaridade do “valor da sucumbência” em relação ao “valor da causa” (na relação com a alçada do tribunal recorrido), ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 629º, pág. 44.
[2] Sobre a relação entre estes dois pressupostos (principal e complementar), v. o Ac. do STJ de 17/10/2019, processo n.º 255/10.2T2AVR-J.P1-A.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[3] V. por todos ANTÓNIO MONTALVÃO MACHADO/PAULO PIMENTA, O novo processo civil, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010, págs. 140-141, 142 (“Enquanto que, no caso da alternatividade, as pretensões se equivalem juridicamente, no caso da subsidiariedade, há uma gradução das pretensões do autor.”).
[4] Segue-se MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A impugnação das decisões judiciais”, Estudos sobre o novo Processo Civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, pág. 484.
[5] V. ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 629º, pág. 45.
[6] Processo n.º 687/10.6TVLSB.L1.S1-A, Rel. FERNANDO BENTO, in www.dgsi.pt; publicado in DR, 1.ª Série n.º 123, de 26 de Junho de 2015.
[7] V. RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546º a 1085º, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 671º, pág. 178.
[8] Ac. de 8/1/2015, processo n.º 346/11.2TBCBR.C2-A.S1, Rel. JOÃO BERNARDO, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça – Secções Cíveis, 2015, pág. 6, https://www.stj.pt/?page_id=4471 (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos), itálico nosso.
[9] Ac. (também) de 8/1/2015, processo n.º 129/11.OTCGMR.G1.S1, Rel. JOÃO TRINDADE, in www.dgsi.pt, com sublinhado nosso.
[10] Ac. do STJ de 19/2/2015, processo n.º 1397/10.0TBPVZ.P1.S1, Rel. PIRES DA ROSA, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça – Secções Cíveis cit., pág. 95, também com ênfase da nossa responsabilidade.
[11] V. Ac. do STJ (também) de 19/2/2015, processo n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, Rel. LOPES DO REGO, in www.dgsi.pt.
[12] Assim: ELIZABETH FERNANDEZ, Um novo Código de Processo Civil? Em busca das diferenças, Vida Económica, Porto, 2014, pág. 190; e o Ac. do STJ de 14/5/2019, processo n.º 526/15.1T8CSC.L1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[13] Segui Rui Pinto, Notas…, Volume II cit., sub art. 671º, pág. 181.