REGIME GERAL DO PROCESSO TUTELAR CÍVEL
MEDIDA TUTELAR URGENTE
PANDEMIA
FACTO NOTÓRIO
SUPERIOR INTERESSE DO MENOR
RESIDÊNCIA ALTERNADA
SUSPENSÃO
Sumário

I. O artigo 28.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível – RGPTC permite ao tribunal dar resposta adequada e imediata a questões cujo conhecimento seja conveniente, viabilizando a proteção e a defesa do superior interesse da criança, de modo a adequar a decisão à sua situação actual, porém, não podem tais questões consubstanciar apenas a inaplicabilidade de uma decisão ainda objecto de apreciação de recurso, cujo efeito foi fixado como sendo suspensivo.
II. O estado pandémico da nação e do mundo face à declaração da situação de Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional da doença COVID-19, como facto notório, pode ser considerado pelo Tribunal como motivo para determinar provisoriamente a suspensão dos efeitos de uma decisão que concluiu pela guarda partilhada, mas para tal terá de ser ponderada a existência de maior risco da menor junto de um progenitor em relação ao outro, bem como as condições que permitam ter aulas à distância apenas facultadas por um dos progenitores.
III. Exercendo ambos os progenitores a profissão em ambiente hospitalar, o risco acrescido de infeção por SARS Cov 2 é idêntico para ambos.
IV. Assim, sendo ambos os progenitores médicos, não representa a manutenção/implementação do regime de residência alternada um perigo maior do que o que existiria se os progenitores vivessem juntos e tomando estes as mesmas precauções face à doença, pelo que não se encontram quaisquer razões para suspender aquele regime durante o atual estado de pandemia, impondo-se aos pais um especial dever de cuidado a observar na transição entre as duas casas.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO:
LR, após ter sido notificada da sentença proferida nos autos de regulação do exercício das responsabilidades parentais, relativamente à sua filha menor, MRC, intentou contra o progenitor da mesma, JC, a presente providência cautelar, invocando que ocorreram factos importantes no ínterim e desconhecidos da sentença, invocando ainda que tal decisão se encontra desadequada da realidade e do superior interesse da menor. Apresenta assim, os seguintes pedidos: que deve ser ouvida a menor antes de se iniciar qualquer regime de visitas e avaliar-se as condições do pai para o regime de contactos.
Em abono de tal pretensão alega, em suma, que a sentença proferida nestes autos está desactualizada da vida actual da criança, pois a mesma apenas reside com a mãe e não contacta com o pai desde 12 de março, por acordo deste, devido ao facto do pai ser médico cirurgião e trabalhar num cenário de pandemia. Refere que mantendo-se o estado pandémico não deve ser implementado o regime constante da sentença, pois pese embora a requerente também seja médica, a sua especialidade é obstetrícia, exercendo a sua actividade em tempo reduzido e realiza os partos em ambiente isento de covid. Mais refere que a menor não está a frequentar o colégio, tendo aulas á distância, com todas as condições já instaladas em casa da mãe. Por fim, reitera que o regime da residência alternada não é o pretendido pela criança, que desde que foi proferida a sentença se encontra manifestamente perturbada por saber que tem de ir residir com o pai, invocando a obrigatoriedade de a mesma ser ouvida. Conclui que pretende que se mantenha a situação de confinamento da menor na sua casa até que a risco do Covid seja atenuado significativamente.
Importa ter presente que no âmbito dos autos principais, o processo seguiu os seus termos, nomeadamente realizou-se perícia médico-legal na especialidade de psicologia, na pessoa de ambos os progenitores, foi realizada a audição técnica especializada e junta aos autos a respectiva informação social, realizou-se a conferência de pais, as partes apresentaram alegações e requerimentos probatórios.
Por fim, realizou-se a audiência de julgamento, após o que, com data de 3/4/2020, foi proferida sentença, que na parte relevante contém o seguinte teor decisório:
«Face ao exposto, e ao abrigo das normas legais citadas, decido proceder à regulação do exercício das responsabilidades parentais, da criança MRC, nos seguintes termos:
I- Residência e exercício das responsabilidades parentais
1.º - A menor MRC residirá uma semana com cada um dos progenitores, de forma alternada. O progenitor com quem a menor irá residir deverá recolher a filha no equipamento educativo, no fim das atividades escolares e/ou extracurriculares de sexta-feira, e entregar a menor no mesmo local, na sexta-feira da semana seguinte, no início das atividades escolares. Caso a sexta-feira corresponda a um dia em que a menor não se encontra no equipamento educativo, o progenitor que for passar a semana seguinte com a filha, irá buscar a menor a casa do outro progenitor, às 19:00 horas.
2.º - As responsabilidades parentais quanto às questões de particular importância para a vida da menor, serão exercidas em comum por ambos os progenitores, definindo-se como questões de particular importância, dependentes de decisão conjunta: a) A alteração de residência para fora da área metropolitana de Lisboa ou para o estrangeiro; b) Os tratamentos e intervenções médicas que possam causar perigo para a vida ou integridade física da menor, ressalvadas as situações urgentes em que cada um dos progenitores pode agir singularmente e comunicar ao outro logo que possível; c) A opção entre ensino público ou privado; d) As saídas para o estrangeiro.
3.º - As questões da vida corrente serão decididas pelo progenitor com quem a menor se encontrar a residir.
II- Regime de contactos
4.º - A menor MRC... poderá jantar e pernoitar, às terças feiras, com o progenitor com quem não está durante essa semana, indo o progenitor buscar a filha ao equipamento educativo, no fim das atividades escolares e/ou extracurriculares, e aí a entregando, na quarta-feira no início das atividades escolares, sem prejuízo de acordo diverso entre os pais.
5.º - Os contactos telefónicos, ou por qualquer meio que permita a visualização da imagem, dos progenitores com a filha MRC..., no período em que esta estiver à guarda do outro progenitor, ocorrerão preferencialmente entre as 19:00 e as 20:00 horas, competindo ao progenitor que não estiver com a criança efectuar a ligação. Os pais poderão acordar um horário diverso, desde que respeitem as actividades escolares e os períodos de descanso da menor.
6.º - Cada um dos progenitores deverá informar o outro, semanalmente e por correio electrónico, sobre todos os aspectos relevantes da vida da filha MRC..., nomeadamente sobre a situação de saúde e escolar da menor.
III- Férias e Datas Festivas
7.º - Nas férias do Carnaval da menor, o tempo será repartido de forma igualitária entre os progenitores, em moldes a combinar entre os pais, sendo que, em caso de falta de acordo, a progenitora tem preferência de escolha nos anos pares e o progenitor nos anos ímpares.
8.º A menor passará as férias da Páscoa, alternadamente, uma semana com o pai e a outra com a mãe, em moldes a combinar entre os progenitores, sendo que, em caso de falta de acordo, a progenitora tem preferência de escolha nos anos pares e o progenitor nos anos ímpares.
9.º - Nas férias escolares de Verão, a menor passará períodos de 15 dias com cada um dos progenitores, em moldes a combinar entre os pais até ao final de Abril de cada ano. No caso de falta de acordo, a progenitora tem preferência de escolha nos anos pares e o progenitor nos anos ímpares.
10.º - As férias de Natal serão passadas com ambos os progenitores, alternadamente, sendo que em 2020, na primeira semana, a menor passará com a mãe até às 11:00 horas do dia 25 de Dezembro, indo o pai buscar a filha a casa da mãe, passando com a mesma a segunda semana até às 11:00 horas do dia 01 de Janeiro, alternando nos anos seguintes.
11.º - No dia de aniversário da menor, esta tomará uma das principais refeições (almoço/ jantar) com cada um dos progenitores, alternadamente, e pernoita em casa do progenitor com quem jantar, sem prejuízo dos horários de descanso, alimentação e atividades escolares e/ ou extracurriculares da criança.
12.º - No dia do aniversário do pai, aniversário da mãe, dia do pai e dia da mãe, a menor passará o dia com o respetivo progenitor aniversariante e pernoita com o mesmo, sem prejuízo dos horários de descanso, alimentação e atividades escolares e/ ou extra curriculares da criança. (…)».
A progenitora inconformada com tal decisão recorreu da mesma, tendo o recurso o seguinte objecto:
- Nulidades imputadas à sentença recorrida.
- Impugnação da decisão de facto.
- A não audição da menor.
- Adequação do regime de residência e exercício das responsabilidades parentais fixado.
O recurso foi admitido, a 27/08/2020, nos seguintes termos: «Por ser admissível, estar em tempo e ter legitimidade, admite-se o recurso interposto por LR da sentença de fls. 177-200 dos autos, que é de apelação, sobe nos autos e a que se atribui efeito suspensivo, por, salvo melhor opinião, se nos afigurar que só assim se acautela uma alteração abrupta e imediata na vida da criança, atualmente com apenas 5 anos de idade, suscetível de fazer perigar o seu superior interesse caso a decisão sindicada venha a ser objeto de censura, mormente se considerada a sua idade, o tempo contínuo de separação da progenitora (7 dias), sua principal cuidadora até à data, e ainda, o regime de convívios provisoriamente fixado entre o progenitor e a criança, circunscrito a fins de semana quinzenais e a um período da tarde (terça feira, das 13h00 às 20h00) (cfr. artigos 644º, n.º 1, alínea a), 645º, n.º 1, alínea a), e 647º, ns.º 1 e 4, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 549º, n.º 1, do mesmo diploma e 32º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível)».
Por Acórdão proferido a 8 de Outubro de 2020, foi julgada improcedente a nulidade e rejeitada a impugnação da matéria de facto. No mais, acordou-se ainda em julgar improcedente a apelação.
No tocante à não audição da menor, expõe-se no Acórdão o seguinte: «No caso, concordamos com a apreciação efectuada pela Exma. Juiz a quo.
A idade da menor – nascida em 1 de Setembro de 2014 – indicia fortemente falta de maturidade e de capacidade para compreender os assuntos em questão, nomeadamente a opção entre uma residência exclusiva com a mãe e uma residência alternada/partilhada com ambos os progenitores.
Pelo contrário, essa audição poderá ter efeitos perniciosos no seu crescimento e construção de personalidade, na medida em que, de futuro, poderá consolidar uma ideia de que a sua opinião foi decisiva para a decisão do julgador, quando não se encontrava em condições de a tomar, pela sua tenra idade.
Isto, independentemente de se reconhecer o contrário, ou seja, que a opinião da menor não é determinante na decisão, exactamente pela natural falta de maturidade da mesma – circunstância que não evita aqueles efeitos perniciosos, porque relativos à apreensão que a criança de tão tenra idade faz da diligência processual.
Ou seja, o reconhecimento formal de um direito a ser ouvido pode ter efeitos negativos de futuro, que não suplantam as vantagens dessa audição, nesta altura.
Reconhecendo-se que a situação é de fronteira – 5 anos à data da decisão sob recurso e 6 à data presente – e afastando-se a existência de um limite mínimo etário automático para a audição, parece-nos que as vantagens e riscos dessa audição para a própria criança, justificam que, agora, não seja ouvida.
Acompanhando-se, pois, o juízo da Exma. Juiz a quo.».
No que diz respeito ao regime do exercício das responsabilidades parentais fixado na sentença, também o Acórdão manteve tal decisão, dizendo-se, além do mais, que:
«(…)só podemos acompanhar a solução jurídica alcançada pelo Tribunal a quo, como a fundamentação coerente e consistente em que assentou, que, em nossa opinião, é aquela que melhor acautela o superior interesse da menor MRC....
Na verdade, entendemos que nenhum dos factos que resultaram provados é contraditório com a decisão proferida.
A regulação do exercício das responsabilidades parentais comporta três aspectos: a guarda, o regime de visitas e os alimentos.
O critério legal de atribuição ou repartição das responsabilidades parentais é, como se sabe, o “superior interesse da criança“ – artigos 1905.º do Cód. Civil, 42.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC, supra citado) e 3.º, n.º 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança.
E o “interesse superior da criança“, enquanto conceito jurídico indeterminado carece de preenchimento valorativo, cuja concretização deve ter por referência os princípios constitucionais, como o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral (art.º 69.º, n.º 1, da CRP), reclamando uma análise sistémica e interdisciplinar da situação concreta de cada criança, na sua individualidade própria e envolvência (cf. acórdão da Relação de Coimbra, de 3/5/2006, disponível em www. dgsi.pt).
O exercício das responsabilidades parentais deve ter presente ainda o princípio da dignidade da pessoa humana, legitimador do menor enquanto sujeito de direitos e não como mero objecto, o princípio da continuidade das relações familiares e da convivência familiar e o princípio da igualdade dos pais.
Deve, ainda, promover a cooperação dos pais no bem-estar emocional da criança, exaurindo qualquer factor propiciador da hostilidade psicológica dos progenitores.
Daí que a lei privilegie a consensualização, ou seja que os conflitos familiares sejam dirimidos por via do consenso, com recurso a audição técnica especializada e ou à mediação [com o consentimento das partes], sempre que necessário – art.ºs 4.º, n.º 1, 23.º e 44.º, alínea b), do RGPTC.
Na ausência desse consenso, o Tribunal tem de decidir tendo sempre como pano de fundo “o superior interesse da criança”.
Foi o que o Tribunal a quo fez, em nossa opinião.
Ambos os progenitores mostram competências adequadas, sendo irrelevante o distinto grau de disponibilidade (comum à maioria dos casais e que não pode constituir, por si só, factor de desequilíbrio na ponderação), atendendo até ao apoio da família alargada tanto paterna como materna; a proximidade geográfica de ambas as residências, quer entre elas quer com a instituição que a menor frequenta, constitui também um elemento favorável.
Dificilmente se consideraria que o exercício da medicina, com horários mais ou menos extensos, desaconselha a guarda de filhos menores, sendo que as dificuldades naturais são ultrapassadas pela rede familiar alargada ou por terceiros com vínculo laboral – como acontece na maioria dos núcleos familiares.
Por fim, pondera-se a inexistência de circunstâncias que desaconselhem o regime de residência alternada, como fez notar a Exma. Juiz a quo.
Não se argumente com o corte profundo que a residência alternada representa para o actual status quo e que, por isso, poderá afectar a estabilidade emocional da menor.
Admite-se que a residência alternada cause perturbações temporárias, mas nada faz indiciar que sejam graves e definitivas.
Pelo contrário, as vantagens a médio e longo prazo do regime fixado na primeira instância poderão contribuir para a consolidação das relações de vinculação com os pais e para a estabilidade emocional e o desenvolvimento harmonioso da menor (nas palavras da Exma. Juiz a quo), quebrando um ciclo de desarmonia e afastamento, esse sim com consequências perniciosas a nível psicológico e afectivo.
Dessa forma, se conclui pela inconcludência da alegação da recorrente e consequente improcedência da apelação.»
Nestes autos, por despacho de 6/5/2020, foi indeferida liminarmente a presente providência cautelar nos seguintes termos: «Os presentes autos foram distribuídos como
providência cautelar, ou seja, sob a 10ª espécie (cfr. artigo 212º do Código de Processo Civil). Porém, em face do pedido, da causa de pedir e do estado atual da ação de regulação das responsabilidades parentais, cremos que os fundamentos que determinaram a propositura da presente ação também ancoram o pedido de atribuição do efeito suspensivo da decisão final proferida no âmbito daquela ação. Pelo exposto, indefere-se liminarmente o requerido, determinando-se que o requerimento que antecede seja incorporado nos autos principais a fim dos respetivos factos serem ponderados no âmbito do efeito a atribuir ao recurso, a notificar à parte contrária conjuntamente com as alegações de recurso. Custas a cargo da requerente. DN. registo, notificação e baixa.».
Inconformada com tal despacho veio a requerente recorrer, apresentando as seguintes conclusões:
«1. A MM Juiz não fundamenta o indeferimento liminar da providência cautelar, não apreciando os factos, o que confere nulidade à sentença, que deve ser revogada por outra que aprecie as situações ali relatadas e que consubstanciam um pedido de alteração das responsabilidades parentais da MRC.... A MM Juiz viola o artº 42º do RGPTC, fazendo uma errada interpretação da lei, devendo, por tal a sentença ser revogada mandou-se prosseguir os autos.
2. O apelado não está a cumprir o regime que decorre da sentença – residência alternada –mantendo-se a cumprir o que anteriormente vigorava, a residência com a apelante e visitas ao pai, o que demonstra que existem motivos que preenchem os requisitos do art.º 42 do RPCPT para que a providência seja acolhida e que prossiga os seus termos o que se requer.
3. A MRC... com quase seis anos deve ser ouvida sendo que a sua não audição é uma nulidade, nunca seria de indeferir uma providência como a dos autos sem que o MM Juiz acautelasse os interesses da MRC... ouvindo a criança. Como aliás decorre da lei, a audição é um direito da criança.
4. Assim sendo, a falta de audição da MRC... viola as regras do art.º 4º nº 1, art.º 5º nº 3, art.º 5º e art.º 42º do R.G.P.T.C., do art.º 12º da “Convenção sobre os Direitos da Criança. Art.º 11, nº 2 do Regulamento ( C.E. ), no 2201/2003 do Conselho da União Europeia de 27/10/2003, publicado no jornal oficial da União Europeia em 23/12/2003 e ainda Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança“, adoptada em Estrasburgo em 25/01/1996, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 7/2014 em 13/12/2013, que entrou em vigor em Portugal a 01/07/2014, pelo que a decisão deve ser anulada e ouvida a MRC....
5. A matéria sobre a qual foi proferida a sentença está desatualizada (já o estava quando foi proferida), pelo que a sentença dos autos principais viola o princípio da atualidade da prova, baseando-se em relatórios de 2017, num a decisão proferida em 2020, razão mais do que suficiente para que a MM Juiz se dignasse a ouvir os factos que ocorreram posteriormente e que são requisitos bastantes do artº 42º do RGPTC. A Mm Juiz nem específica os fundamentos do indeferimento, pelo que é nula a sentença de acordo com o disposto no artº 615º b) do CPC
6. A sentença proferida é nula, por não pronúncia pela parte da MM Juiz das questões que foram colocadas para decisão sendo que, tal nulidade deriva do disposto no art.º 615º, alínea d) do CPC, aplicados aos autos ex vi do art.º 33 do RGPTC. Devendo a sentença ser revogada mandando-se prosseguir os autos.
7.A MM Juiz fez tábua rasa dos factos que lhe foram relatados, desvalorizando-os, violando as regras e os princípios orientadores do RGPTC ( artº 4º da LPCJP, aplicados aos autos ex vi do artº 4º do RGPTC, mormente o principio da intervenção rápida, adequação e atualidade), fazendo a MM Juiz uma errada interpretação da lei, sendo por tal, nula a sentença que se quer revogada.
8. A sentença de que se recorre viola o disposto no artº 20 da CRP, pois impede a apelante de exercer o seu direito em Tribunal em representação da sua filha, numa situação urgente e que a não se decidir compromete o superior interesse da criança.
9. O apelado não aderiu à decisão da residência alternada, continuando a pagar a pensão de alimentos à apelante e referente à MRC..., mantendo o apelado o regime de visitas á MRC... nos termos que vigoravam antes da à sentença proferida nos autos principais e em recurso, que se concretiza em visitas de sexta a segunda feira, e às terças feiras das 13 as 20 Horas. Mantendo-se a MRC... em aulas virtuais com aceitação tácita do pai, que após o mail enviado pela apelante não responde. Este é mais fundamento que justifica a alteração peticionada na providência de cujo indeferimento liminar ora se recorre.
10. Os factos que consubstanciam a alteração das circunstâncias formuladas no pedido da providência, a que acrescem as circunstâncias ocorridas posteriormente à formulação de tal pedido, e já supra referidas, concretizam os fundamentos e preenchem os requisitos do art.º 42º do RGPTC. Pelo que, a não apreciação da MM Juiz do pedido, consubstancia uma nulidade da sentença nos termos do disposto do art.º 615º, nº 1, alínea d) do CPC, aplicada aos autos ex vi do art.º 33º do RGPTC, devendo por tal, ser revogada prosseguindo os autos, a sua normal tramitação.
11. Os fundamentos da decisão não se podem subsumir às causas de indeferimento previstas no art.º 42º do RGPTC, já que os factos levados aos autos apontam para a necessidade urgente de uma apreciação e intervenção de acordo com o princípio da atualidade. Pelo que, a sentença deve ser revogada apreciando-se assim, o pedido.
12. A sentença é nula como o indica o disposto no artº 615o, b), c) e d) do CPC, já que não existe fundamentos de facto, existindo sim obscuridade e ininteligibilidade na decisão, já que a MM Juiz não se pronuncia sobre a razões para não dar provimento ao processo, devendo a sentença ser revogada pro outra, fazendo-se JUSTIÇA».
O Recorrido contra alegou, concluindo da seguinte forma:
a) As conclusões invocadas pela recorrente são, salvo o merecido respeito, falaciosas, não respeitam os requisitos exigidos para as providências cautelares, nem sequer as alegações do seu próprio recurso apresentado na mesma data nos autos principais.
b) A adopção de uma providência cautelar depende da verificação cumulativa dos requisitos periculum in mora e do fumus boni iuris.
c) O que não se verifica na providência cautelar apresentada.
d) Para além disso da análise dos pedidos formulados no recurso e na providência cautelar, resulta patente que entre a pretensão cautelar formulada e a pretensão definitiva, não se verifica uma relação de instrumentalidade, dada a manifesta inexistência de dependência entre as mesmas.
e) Os pedidos e os efeitos úteis pretendidos na providência cautelar e no recurso apresentado na mesma data, são exactamente os mesmos.
f) Configura assim a providência cautelar apresentada, uma mera duplicação do pedido, o que, no nosso entendimento, não passa de uma manobra dilatória que a apelante lançou mão para tentar impedir que o exercício das responsabilidades parentais, conforme decidido pelo Tribunal a quo se torne definitivo e passe a vigorar com a celeridade que se impõe.
g) No que diz respeito à alegação de que o apelado não aderiu ao regime de residência alternada, mantendo-se na vigência do regime anterior, o que demonstra que na verdade, para a MRC..., o regime que melhor se lhe adequa é a residência exclusiva com a apelada e que, a mesma pese embora seja médica, a sua especialidade é obstetrícia, exercendo a sua actividade profissional em tempo reduzido e para fazer partos em ambiente COVID free, enquanto que, o pai está na linha da frente no combate à pandemia, estamos perante uma afirmação completamente despropositada e afastada da realidade.
h) O que leva o apelante a questionar seriamente se a apelante tem competências para um exercício capaz das responsabilidades parentais.
i) O pai aqui apelado, simplesmente respeita a tramitação processual.
j) Não usa manobras dilatórias que visam exclusivamente sabotar e impedira relação paterno-filial.
k) O apelante não abdica da fixação do regime de residência alternada fixado e bem, pelo Tribunal a quo.
l) O apelado vai aguardar e respeitar o efeito a atribuir ao recurso apresentando pela apelante e as subsequentes decisões desse Venerando Tribunal.
Deve, pois, ser julgado improcedente o recurso da apelante porque improcedente de facto e de direito, improcedendo todas as conclusões do recurso. Deve, assim, confirmar-se na íntegra a douto despacho de indeferimento liminar da providência cautelar apresentada, por razões não só de mera legalidade mas também da mais elementar Justiça.».
Nestes autos com data de 16/09/2020, foi proferido despacho a notificar a recorrente se em face do efeito atribuído ao recurso de apelação – suspensivo – se mantinha interesse no prosseguimento destes autos.
A recorrente informou que mantinha tal interesse.
O recurso foi admitido.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, apreciar:
- A nulidade do despacho por ausência de fundamentação;
- A não audição da menor;
- A situação de calamidade e confinamento associado, como situação não considerada na sentença e, neste momento, no Acórdão, mas que determina que a título cautelar seja considerado inaplicável o regime fixado na sentença, por constituir uma violação do interesse da menor.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO:
Os factos a considerar são os actos processuais e decisões referidos no relatório que antecede e que se reproduzem, considerando ainda os factos dados como provados na sentença e inalterados no Acórdão de 8/10/2020, a saber:
1. A Requerente e o Requerido viveram em união de facto entre 2010 e Abril de 2015.
2. MRC nasceu no dia 1 de setembro de 2014, e é filha da Requerente e do Requerido.
3. Após a separação dos pais, em Abril de 2015, a menor ficou a residir com a progenitora Requerente.
4. Inicialmente, as recolhas e as entregas da menor ao progenitor ocorriam em locais públicos, e depois passaram a realizar-se no prédio onde a progenitora reside.
5. Nos momentos de recolha/ entrega da filha ao progenitor, a progenitora Requerente fazia-se acompanhar de amigos e de familiares próximos.
6. A comunicação entre os progenitores efectua-se através de mensagens de correio electrónico ou de telemóvel.
7. Na informação sobre a audição técnica especializada, datada de 01.09.2017, e a informação adicional de 22.11.2017, da Equipa Multidisciplinar de Assessoria aos Tribunais- EMAT de Lisboa, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, consta que: « (…) Somos de parecer que a criança deve no imediato passar a estar com o pai quinzenalmente de quinta-feira ao final das actividades letivas a segunda-feira de manhã, entregando o pai a filha na escola, e na semana em que a menina estará com a mãe ao fim-de-semana, a MRC... poder pernoitar com o pai de quinta para sexta-feira, ocorrendo as recolhas e entregas da criança na escola, só não se procedendo desta forma em períodos de férias. Relativamente aos períodos de férias da criança com os pais, estes devem ser repartidos de forma equitativa por ambos os pais, e numa fase inicial em períodos que não excedam uma semana, salvo acordo contrário entre os pais. Consideramos que este regime de convívios que propomos deve durar no máximo até ao final do ano lectivo da criança (final de junho de 2018), e posteriormente iniciar-se de facto uma residência alternada semanal da criança (de sexta a sexta-feira), uma vez que a realidade desta criança é e sempre foi a de ter pais separados, e a de contar com dois agregados familiares distintos, que até evidência em contrário devem ser mantidos pela possibilidade da criança privar com ambos os pais, e poder beneficiar e aprender com ambos os pais, e restantes elementos da família alargada. (…) ».
8. Nos termos do regime provisório fixado, os contactos/ convívios entre a criança MRC... e o pai ocorrem da seguinte forma: «- O pai pode ver e estar com a menor todas as terças-feiras, indo busca-la a casa da progenitora pelas 13:00 horas e aí a entregando pelas 20:00 horas do mesmo dia. - O pai pode ver e estar com a menor, em fins-de-semana alternados, de quinze em quinze dias, indo para o efeito buscá-la ao respectivo equipamento de infância, à sexta-feira no final das actividades escolares e aí a entregando na segunda-feira, no início das respectivas actividades. Nos dias em que a menor não se encontre a frequentar o estabelecimento de ensino, o progenitor irá buscá-la a casa da progenitora, à sexta-feira pelas 16:00 horas e aí a entregando na segunda-feira seguinte pelas 09:00 horas.».
9. A criança MRC:
9.1. A menor MRC tem, actualmente, 5 anos de idade.
9.2. É descrita como uma criança sensível, afectuosa, alegre, divertida, amorosa e feliz.
9.3. Frequenta, desde Setembro de 2017, o Jardim de Infância no Colégio …, no qual se encontra bem integrada.
9.4. A criança manifesta interesse por dança e frequenta aulas de ballet.
9.5. A MRC... apresenta um bom desenvolvimento global e é uma criança saudável.
9.6. A MRC... mantém uma relação de forte vinculação e de afectividade com ambos os progenitores.
9.7. As necessidades da MRC..., ao nível da alimentação, vestuário, higiene, educação e saúde, são asseguradas de forma adequada, por ambos os progenitores.
9.8. A MRC... tem uma boa relação com a família alargada materna e paterna, designadamente avós e tios.
10. A progenitora Requerente, LR...:
10.1. LR... nasceu no dia 20 de fevereiro de 1975, tendo actualmente 45 anos de idade.
10.2. A Requerente pretende que a residência da sua filha MRC... seja fixada junto da progenitora.
10.3. A Requerente é descrita pelos familiares e amigos como uma mãe organizada, dedicada, afectuosa, atenta, cuidadora, disponível e presente na vida da filha MRC....
10.4. A progenitora apresenta competências parentais adequadas e tem estabelecida uma vinculação segura com a filha MRC....
10.5. A progenitora tem assegurado a prestação dos cuidados e a satisfação das necessidades da sua filha MRC..., ao nível da alimentação, vestuário, higiene, educação e saúde, revelando capacidade para estabelecer e zelar por regras e rotinas estruturantes.
10.6. A progenitora promove períodos de convívio da sua filha com a família materna, nomeadamente com os avós maternos, os quais residem próximo da Requerente e prestam toda a ajuda necessária à neta.
10.7. A progenitora contratou uma ama/ empregada doméstica para a auxiliar nos cuidados com a sua filha MRC....
10.8. A Requerente reside em Lisboa, na companhia da sua filha MRC..., em habitação própria, situada em condomínio fechado.
10.9. Exerce a actividade profissional de médica ginecologista/ obstreta no Hospital … auferindo o vencimento mensal de cerca de 2.382,00 euros.
10.10. No relatório de exame pericial psicológico, relativo à progenitora LR..., datado de 08.05.2017, e respectivos esclarecimentos, datados de 07.12.2017, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, consta que: « (…) 1. Na organização da personalidade da examinada, destacam-se traços de defensividade, perfecionismo, convencionalismo, minimizando ou negando os problemas pessoais, um estilo passivo do manejo da personalidade, em que os seus conteúdos agressivos são expressos de forma encoberta, podendo manipular os outros para satisfazer as suas necessidades. Pode ainda ser descrita como confiante, segura, perspicaz, gostando de fazer as coisas bem feitas. 2. À data da observação, não apresenta alterações psicopatológicas. 3. No que concerne às práticas parentais, refere valorizar estratégias de negociação e comunicação, a estimulação da criança, a exploração do meio e a autonomia, bem como a interacção familiar; tende, contudo, a ser demasiado protectora e a fazer uma monitorização da filha com controlo excessivo; a isto associa-se baixa flexibilidade ou dificuldade em aceitar pontos de vista diferentes dos seus, não se adaptando facilmente a alterações do seu quotidiano. Demonstra conhecer práticas educativas adequadas, como dar conselhos, mandar a criança para o quarto sem fechar a porta, elogiar a criança quando se porta bem, explicar à criança o que fez mal, castigar a criança retirando-lhe coisas de que gosta; refere rejeitar punições físicas, práticas inadequadas mas não abusivas, práticas emocionalmente abusivas, comportamentos potencialmente maltratantes e maus- tratos físicos. (…) A relação conflituosa interparental descrita…. se se arrastar ou agravar, tem uma probabilidade alta de produzir efeitos negativos na criança, retirando-lhe a estabilidade e previsibilidade que garantiriam uma vinculação segura a ambos os progenitores e um desenvolvimento psicológico saudável. Assim, por exemplo, seria provável que a criança reagisse com um conflito interno de lealdades, sentindo que estar bem com um dos progenitores implica não poder estar bem com o outro, o que é gerador de stresse e tensão emocional; ou poderia desenvolver uma cumplicidade com um dos progenitores em detrimento do outro, mais concretamente uma relação cúmplice com a progenitora, a qual, dado o seu estilo protector, tem o potencial de provocar um contágio emocional em que a mãe não separa as suas próprias necessidades emocionais das da filha, projetando as suas emoções e podendo influenciar a perceção que esta faz ou venha a fazer do progenitor.»
10.11. Do certificado de registo criminal da progenitora não consta averbada qualquer condenação.
11. O progenitor Requerido, JC...:
11.1. JC... nasceu no dia 22 de fevereiro de 1970, tendo actualmente 50 nos de idade.
11.2. O Requerido pretende a partilha das responsabilidades relativamente à sua filha MRC..., e a fixação de residência alternada, uma semana com cada um dos progenitores.
11.3. O Requerido é descrito pelos familiares e amigos como um pai dedicado, amoroso, cúmplice, cuidador, disponível, presente na vida da filha MRC..., com quem brinca e organiza actividades.
11.4. O alargamento dos períodos de convívios entre o progenitor e a MRC... permitiu intensificar e consolidar a relação/ interacção pai/ filha, a qual tem evoluído de forma positiva.
11.5. O progenitor apresenta competências parentais adequadas e tem estabelecida uma vinculação segura com a filha MRC....
11.6. O progenitor tem assegurado a prestação dos cuidados e a satisfação das necessidades da sua filha MRC..., ao nível da alimentação, vestuário, higiene, educação e saúde, revelando capacidade para estabelecer e zelar por regras e rotinas estruturantes.
11.7. O progenitor promove períodos de convívio da sua filha com a família paterna, nomeadamente com os avós, tios e primos.
11.8. O Requerido reside na zona de Carnaxide, com a sua actual companheira, ML… e as filhas desta, de 15 e 20 anos de idade.
11.9. Exerce a actividade profissional de médico na especialidade de cirurgia geral, no Hospital… e no Hospital …, auferindo o vencimento mensal líquido médio de 3.979,49 euros.
11.10. Em Novembro de 2018, o Requerido tinha um contrato em funções públicas a termo certo, com a categoria de Assistente Convidado, a tempo parcial de 30%, na Universidade Nova de Lisboa, recebendo a quantia mensal líquida de 391,86 euros.
11.11. No relatório de exame pericial psicológico, relativo ao progenitor JC..., datado de 08.05.2017, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido consta que:
« (…) 1. Na organização da personalidade do examinado, destacam-se traços de suscetibilidade a críticas, ressentimento, tendências introspectivas e ruminativas, tensão,
 inquietação; nega os problemas pessoais e tem dificuldade em lidar com o stresse, tornandose exigente e resistente quando confrontado e reclamando falta de compreensão, projeta a hostilidade e a culpa para exprimir indirectamente os seus conteúdos agressivos ao mesmo tempo que pode assumir atitudes intrapunitivas e deprimir-se em reação a uma crise situacional. Daqui decorre a ansiedade como um traço de temperamento, com sentimentos intensos de nervosismo, tensão ou pânico em reação a várias situações, receio, apreensão ou ameaça pela incerteza, medo de se desfazer, perder o controlo ou de se envergonhar. 2. À data da observação, não apresenta alterações psicológicas significativas. O traço temperamental básico descrito…, a tendência para o stresse e a expectativa ansiosa, predispõe o examinado para uma Perturbação de Ansiedade Generalizada que, quando ativa, se caracteriza por preocupações excessivas e expetativas de apreensão acerca de vários acontecimentos e atividades, acompanhadas de sintomas como nervosismo, irritabilidade, dificuldades de concentração e perturbações do sono, com prejuízo das áreas laboral e familiar. Esta perturbação pode ser reativada por fatores de stresse intenso, seja na área profissional, seja na esfera das relações sentimentais e na conjugalidade. Provavelmente, foi reativada pelos problemas de relacionamento com a ex-companheira, quando ainda juntos, e nos meses subsequentes á separação, em que o examinado vivenciou uma expetativa apreensiva de ser afastado da sua filha e impedido de exercer funções parentais de pleno direito. 3. No que concerne às práticas parentais, refere valorizar estratégias de negociação e comunicação, a estimulação da criança, a exploração do meio e a autonomia, bem como a interacção familiar.
Demonstra conhecer práticas educativas adequadas, como dar conselhos, mandar a criança para o quarto quando se porta mal, elogiar a criança quando se porta bem, explicar à criança o que fez mal, castigar a criança retirando-lhe coisas de que gosta; refere rejeitar práticas inadequadas mas não abusivas, punições físicas, práticas emocionalmente abusivas, comportamentos potencialmente maltratantes e maus- tratos físicos. (…) A relação conflituosa interparental descrita…. se se arrastar ou agravar, tem uma probabilidade alta de produzir efeitos negativos na criança, retirando-lhe a estabilidade e previsibilidade que garantiriam uma vinculação segura a ambos os progenitores e um desenvolvimento psicológico saudável. Assim, por exemplo, seria provável que a criança reagisse com um conflito interno de lealdades, sentindo que estar bem com um dos progenitores implica não poder estar bem com o outro, o que é gerador de stresse e tensão emocional; ou poderia desenvolver uma cumplicidade com um dos progenitores em detrimento do outro.»
11.12. Do certificado de registo criminal do progenitor não consta averbada qualquer condenação.
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Da Nulidade da decisão:
A recorrente pretende que se considere nula a decisão por ausência de fundamentação que determinou o indeferimento liminar da providência cautelar, não apreciando os factos, pugnando pela revogação da decisão e a sua substituição por outra que aprecie as situações ali relatadas e que consubstanciam um pedido de alteração das responsabilidades parentais da menor.
O dever de fundamentação das decisões judiciais está previsto no art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa, que impõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, e encontra consagração na lei ordinária, por via da expressa previsão do n.º 1 do art.º 154.º do CPC ( aplicável ex vide artº 33º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, doravante designado RGPTC), de acordo com o qual “[a]s decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, e, bem assim, no art.º 6.º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, como uma componente essencial da garantia a um processo equitativo (cf. art.º 20.º, n.º 4, da CRP).
A fundamentação das decisões, quer de facto, quer de direito, proferidas pelos tribunais estará viciada caso seja descurado o dever de especificar os fundamentos decisivos para a determinação da sua convicção, já que a opacidade nessa determinação sempre colocaria em causa as funções que estão ínsitas na motivação da decisão, ou seja, permitir às partes o eventual recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação em causa e, simultaneamente, permitir o controlo dessa decisão, colocando o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos seguros, um juízo concordante ou divergente.
No caso dos autos, perante uma acção que visava regular o exercício das responsabilidades parentais relativamente à filha menor da requerente e requerido, proferida que foi sentença, veio a progenitora, ora requerente, recorrer da mesma, invocando factos que consubstanciariam a possibilidade de ao recurso ser fixado efeito suspensivo. Ora, além de ter invocado tais factos, veio no mesmo dia em que apresentou o recurso da sentença, intentar a presente providência cautelar na qual invoca quer a obrigatoriedade de audição da menor, fundamento que repete em sede de recurso da decisão final, bem como a situação pandémica e que se vive desde março de 2020 e suas consequências na vida da menor e dos progenitores, constituindo este o único fundamento, aliado ainda à perturbação da menor face ao cumprimento do decidido na sentença.
Com efeito, os factos alegados nesta sede são no sentido de a manter-se o estado pandémico não deve ser implementado o regime constante da sentença, pois defende que pese embora a requerente também seja médica, a sua especialidade é obstetrícia, exercendo a sua actividade em tempo reduzido e realiza os partos em ambiente isento de covid. Mais refere que, à data ( 4/5/2020) a menor não está a frequentar o colégio, tendo aulas à distância, com todas as condições já instaladas em casa da mãe. Por fim, reitera que o regime da residência alternada não é o pretendido pela criança, que desde que foi proferida a sentença se encontra manifestamente perturbada por saber que tem de ir residir com o pai, invocando a obrigatoriedade de a mesma ser ouvida. Conclui que pretende que se mantenha a situação de confinamento da menor na sua casa até que a risco do Covid seja atenuado significativamente, pedindo ainda que sejam analisadas as condições do pai para o regime de contactos.
Em sede liminar, foram estes autos indeferidos liminarmente por se ter entendido que:«(…)em face do pedido, da causa de pedir e do estado atual da ação de regulação das responsabilidades parentais, cremos que os fundamentos que determinaram a propositura da presente ação também ancoram o pedido de atribuição do efeito suspensivo da decisão final proferida no âmbito daquela ação. Pelo exposto, indefere-se liminarmente o requerido, determinando-se que o requerimento que antecede seja incorporado nos autos principais a fim dos respetivos factos serem ponderados no âmbito do efeito a atribuir ao recurso, a notificar à parte contrária conjuntamente com as alegações de recurso.».
Com efeito, os fundamentos invocados pretendem desde logo evitar que a sentença proferida seja cumprida, porém, o facto de se poder considerar que este é um dos objectivos o requerimento não se limita a esta questão. No entanto, sempre o despacho pode revestir manifesta simplicidade, mas tal não determina a sua nulidade, podendo sim estar em causa o acerto ou não da decisão.
No caso dos autos entendeu-se considerar que a recorrente apenas pretendia a suspensão da decisão proferida quanto ao modo do exercício das responsabilidades parentais, porém, o requerimento não se limitava a esta questão, pelo que ainda possa ser considerada a omissão de pronúncia importará apreciar a questão neste recurso, pois o juízo que determinou o indeferimento liminar pode assentar na manifesta improcedência ( cf. Artº 590º do CPC), o que determinará a improcedência do recurso e, logo, da nulidade apontada.
A recorrente em sede de recurso veio invocar factos que não foram apreciados pelo Tribunal recorrido, pois nunca foram alegados perante o mesmo, dizendo que a existem factos que consubstanciam a alteração das circunstâncias formuladas no pedido da providência, bem como outros que ocorreram posteriormente à formulação de tal pedido, pelo que além da nulidade nos termos do disposto do art.º 615º, nº 1, alínea d) do CPC, conclui ainda que a sentença é nula como o indica o disposto no artº 615º, b), c) e d) do CPC, já que não existe fundamentos de facto, existindo sim obscuridade e ininteligibilidade na decisão, já que a MM Juiz não se pronuncia sobre a razões para não dar provimento ao processo.
Ora, os factos a considerar são apenas os relativos ao procedimento cautelar e fundamentos do mesmo, pois também as circunstâncias se alteram desde Maio a Novembro deste ano, mas a apreciação a ser feita deverá reportar-se aos factos tal como podiam ser considerados pelo Tribunal. Acresce que também será apenas de considerar os factos que consubstanciavam fundamento da providência cautelar, sem prejuízo dos factos notórios de que o Tribunal pode socorrer-se.
Assim, haverá que apreciar se é de manter o juízo que presidiu ao indeferimento liminar, mas face ao requerimento inicial e o pretendido não se verifica qualquer uma das nulidades apontadas à decisão.
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A não audição da menor:
Defende ainda a recorrente que a menor «com quase seis anos deve ser ouvida sendo que a sua não audição é uma nulidade, nunca seria de indeferir uma providência como a dos autos sem que o MM Juiz acautelasse os interesses da MRC... ouvindo a criança. Como aliás decorre da lei, a audição é um direito da criança. Concluindo que a falta de audição da MRC... viola as regras do art.º 4º nº 1, art.º 5º nº 3, art.º 5º e art.º 42º do R.G.P.T.C., do art.º 12º da “Convenção sobre os Direitos da Criança. Art.º 11, nº 2 do Regulamento ( C.E. ), no 2201/2003 do Conselho da União Europeia de 27/10/2003, publicado no jornal oficial da União Europeia em 23/12/2003 e ainda Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança“, adoptada em Estrasburgo em 25/01/1996, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 7/2014 em 13/12/2013, que entrou em vigor em Portugal a 01/07/2014, pelo que a decisão deve ser anulada e ouvida a menor.
Os factos alegados em sede de providência cautelar que se diferenciam do que resulta dos autos principais e foram objecto de decisão, prendem-se apenas com a situação pandémica vivida no país e no mundo e todas as vicissitudes que acarreta tal situação.
Ora, a invocação, de novo, da obrigatoriedade da audição da menor reporta-se ao regime já fixado e objecto do recurso quando foi intentada a presente providência cautelar.
Num atropelo manifesto às mais elementares regras do direito e do princípio de obediência às decisões judiciais proferidas, tal invocação apenas visa não dar cumprimento ao já decidido, neste momento por Acórdão, pois manifestamente na decisão foi ponderada e decidida tal questão.
Assim, nada mais há a decidir quanto à ausência da audição da menor, mantendo-se inalterada a decisão proferida no Acórdão de 8/10/2020 quanto a esta questão, e, logo, improcedendo o recurso nesta parte.
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III. O DIREITO:
Sob a epígrafe “Decisões provisórias e cautelares”, dispõe o artigo 28.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível – RGPTC que: Em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efectiva da decisão”. Como refere Tomé d’Almeida Ramião ( in O Regime Geral do Processo Tutelar Cível, Quid Juris, página 81) “o n.º 1 do preceito permite ao tribunal dar resposta adequada e imediata, a título provisório, a questões que lhe são colocadas e que tem de conhecer a final, cujo conhecimento se lhe afigure conveniente, viabilizando a protecção e a defesa do superior interesse da criança, de modo a adequar a decisão à sua situação actual.” Refere ainda este autor ( in ob. citada pag. 82) que “ao abrigo deste preceito legal, o tribunal pode fixar provisoriamente uma prestação de alimentos em benefício da criança e a cargo do respectivo progenitor, decidir da fixação da sua residência, do exercício das responsabilidades parentais, fixar um regime de visitas ao progenitor residente, entre outras, sem que isso afecte a decisão que vier a ser tomada a final.”
Importa, porém, enfatizar que, como também refere aquele autor, a decisão proferida em qualquer estado da causa, mas antes da sentença, será sempre provisória e, atenta essa sua natureza, naturalmente, caduca quando for revogada, alterada ou proferida a decisão final.
No caso dos autos é por forma a inviabilizar o decidido na sentença e, neste momento do Acórdão, que a recorrente intentou a providência cautelar. Aliás, tal como defende o recorrente e ainda que no caso das decisões relativas aos menores os requisitos periculum in mora e do fumus boni iuris, sejam analisados casuisticamente tendo sempre na sua base o superior interesse dos menores, sempre a providência cautelar tem como subjacente a sua instrumentalidade e provisoriedade, o que manifestamente não ocorre nos autos, pois esta foi intentada tendo em vista obstar ao cumprimento da sentença já proferida.
Todavia, haverá que atender se ainda assim se pode considerar tal pedido cautelar no sentido de ser averiguada as condições do progenitor no acolhimento da menor nos termos pretendidos com a providência, ainda que em última análise só se vise não dar cumprimento ao decidido.
Alicerça a recorrente tal pretensão na existência de factos posteriores que, no seu entender, determinam uma decisão diferente da tomada na sentença final proferida.
Sustenta assim, que a sentença proferida nestes autos está desactualizada da vida actual da criança, pois a mesma apenas reside com a mãe e não contacta com o pai desde 12 de março, por acordo deste, devido ao facto de o pai ser médico cirurgião e trabalhar num cenário de pandemia. Refere que a manter-se o estado pandémico não deve ser implementado o regime constante da sentença, pois pese embora a requerente também seja médica, a sua especialidade é obstetrícia, exercendo a sua actividade em tempo reduzido, realizando os partos em ambiente isento de Covid. Mais refere que a menor não está a frequentar o colégio, tendo aulas à distância, com todas as condições já instaladas em casa da mãe. Por fim, reitera que o regime da residência alternada não é o pretendido pela criança, que desde que foi proferida a sentença se encontra manifestamente perturbada.
O recorrido em resposta, manifesta que esta não passa de uma manobra dilatória que a apelante lançou mão para tentar impedir que o exercício das responsabilidades parentais se torne definitivo e passe a vigorar com a celeridade que se impõe. No mais, impugna que não tenha aderido ao regime de residência alternada, pois alega o mesmo que ao contrário da recorrente respeita a tramitação processual. Pois haverá que considerar que aquando das alegações estava em causa a fixação do efeito suspensivo ao recurso, pelo que a decisão não poderia ter já aplicação imediata. Frise-se e foi assim que também foi entendido pelo tribunal recorrido.
Com efeito, a única circunstância diferenciada invocada em sede de providência cautelar é o estado pandémico da nação e do mundo, mas invocando o maior risco do progenitor, bem como as condições de aulas à distância da menor em casa da progenitora ora recorrente, à data, ou seja abril de 2020.
Vejamos então se tais factos em concretos são de molde a paralisar os efeitos da sentença como pretende a recorrente.
Com data de 30 de Janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou a situação de Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional da doença COVID-19, qualificando-a, subsequentemente, como uma pandemia, em 11 de Março de 2020.
À semelhança de outros países, tal facto exigiu do Estado Português, com a exacta percepção do seu profundo impacto em todos os sectores da sociedade, a adopção de um conjunto de medidas, até então, inimagináveis, visando conter a sua expansão geográfica descontrolada, minimizar a sua progressão e, com isso, o seu rasto de devastação.
Esta circunstância implicou uma profunda alteração da vivência diária, seja pessoal, seja profissional, das rotinas familiares e afectivas, daqueles gestos adquiridos e tomados como certos, os quotidianos, automáticos e rotineiros, de todos e de cada um de nós, independentemente da profissão exercida, do estrato social, do local de residência, ou do nível de vida, como única forma conhecida de tentar preservar a vida, a saúde e a ausência de lesões à integridade física.
Ora, como facto mundial nos termos sobreditos integra o mesmo o conceito de facto notório e deve ser considerado pelo juiz nas decisões a tomar, nos termos constantes do artº 5º nº 2 alínea c) do CPC.
Todavia, ao contrário do defendido pela recorrente apesar da situação excecional que vivemos, a distribuição de tempo com ambos os pais deve continuar a ser cumprida, excetuando os casos em que haja um evidente risco para a criança. Mas ainda que se deva considerar o interesse e bem-estar da criança, tal não deve ser usado como pretexto para legitimar afastamentos injustificados de um dos pais.
Manifestamente e tal como resulta da sentença e Acórdão proferido, a partilha equilibrada do tempo da filha com os dois progenitores é o modelo que deve ser assegurado em prol da criança.
A recorrente afasta a possibilidade de convívio com o pai por duas ordens de razões: a primeira pela existência de aulas à distância com a organização inerente às mesmas em casa da própria; a segunda pela alegação do maior risco de contágio junto do pai.
Como referimos, a 11 de março de 2020 a Organização Mundial de Saúde classificou a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19 como uma pandemia internacional, constituindo uma calamidade pública.
Tal situação evoluiu muito rapidamente em todo o mundo em geral, e, em particular, na União Europeia, justificando a adoção de medidas de forte restrição de direitos e liberdades, em especial no que respeita aos direitos de circulação e às liberdades económicas, como o objetivo de prevenção da transmissão do vírus. Portugal acompanhou esta realidade e, face ao crescimento dos novos casos de infetados no País, foram, numa primeira fase, adotadas diversas medidas de contenção, tendo sido declarado o estado de alerta, ao abrigo do disposto na Lei de Bases da Proteção Civil.
Neste quadro, o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, veio estabelecer medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus - COVID 19, com o objetivo de, para além do mais, aumentar as possibilidades de distanciamento social e isolamento profilático, cuidando da perceção do rendimento dos próprios ou daqueles que se vejam na situação de prestar assistência a dependentes. Assim, foram suspensas as atividades letivas e não letivas e formativas com presença de estudantes em estabelecimentos de ensino públicos, particulares e cooperativos e do setor social e solidário de educação pré-escolar, básica, secundária e superior e em equipamentos sociais de apoio à primeira infância ou deficiência, bem como nos centros de formação de gestão direta ou participada da rede do Instituto do Emprego e Formação Profissional.
Posteriormente, face ao agravamento da pandemia no contexto europeu e à previsão da verificação de idêntica situação em Portugal, por Decreto do Presidente da República n.º 14- A/2020, de 18 de março, foi declarado estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública. Nos termos do artigo 3.º, do citado Decreto Presidencial, foi assinalada ao estado de emergência a duração de 15 dias, com início às 0:00 horas do dia 19 de março de 2020 e cessação às 23:59 horas do dia 2 de abril de 2020, sem prejuízo de eventuais renovações, nos termos da lei.
Nesse seguimento, procedendo à regulamentação da aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República e com o intuito de conter a transmissão do vírus e a expansão da doença COVID, o Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, adotou várias medidas consideradas essenciais, adequadas e necessárias para, proporcionalmente, restringir determinados direitos em vista da salvaguarda do bem maior que é a saúde pública e a vida de todos. Concretamente, para além da imposição de confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde ou no respetivo domicílio, para doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-Cov2 e, ainda, para os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa, e da restrição imposta a pessoas sujeitas a um dever especial de proteção ao nível da circulação em espaços e vias públicas ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, o artigo 5.º, do referido diploma, veio impor um dever geral de recolhimento domiciliário, limitando a circulação em espaços e vias públicas. A nível escolar importa ainda ter presente a Lei n.º 20/2020, de 1 de julho, que procedeu à primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 14-G/2020, de 13 de abril, que estabelece as medidas excecionais e temporárias na área da educação, no âmbito da pandemia da doença Covid 19. Tal foi de novo alterado pelo Decreto-Lei n.º 39-A/2020, desde 16 de julho.
Ora, na perspectiva actualista exigida pela recorrente, a menor já perfez 6 anos de idade, pelo que ao contrário do que ocorria aquando da sentença e da interposição deste procedimento cautelar, em que a menor apenas frequentava o ensino infantil, actualmente frequenta normalmente o 1º ano do ensino básico, com exigências de aprendizagem bem diferenciadas. Mas mesmo que tal não ocorra, na situação actual inexiste obrigatoriedade de aulas em estado de confinamento, sendo a regra o ensino presencial, apenas afastado em situação de contágio ou confinamento profilático, situação que pode ocorrer independentemente da residência onde esteja, pois pode inclusive ter origem no ambiente escolar.
Logo, em nada releva o alegado, pois a frequência escolar ocorre preferencialmente em ambiente presencial. Por outro lado, na eventualidade de tal ter de ser feito através de plataformas informáticas, qualquer um dos progenitores pode aceder às mesmas permitindo assim que a menor possa assistir às aulas independentemente do local em que se encontre.
Deste modo, improcede este argumento esgrimido pela recorrente no seu requerimento inicial.
No que diz respeito ao risco acrescido do progenitor apontado pela progenitora recorrente, também entendemos que não lhe assiste razão.
Senão vejamos.
Seguindo de perto o constante do e-book do CEJ, subordinado ao tema ”Estado de emergência Covid 19 – implicações na Justiça – sob tema “Exercício das responsabilidades parentais em tempos de pandemia e de isolamento social” - Pedro Raposo de Figueiredo, a preocupação de respeito pelos limites constitucionais e legais que norteou o Governo na adoção das medidas restritivas em vigor no atual estado de emergência, tem necessariamente que ser transposta para o campo da sua aplicação, devendo o intérprete limitá-las ao estritamente necessário, quer ao nível da compressão de direitos que as mesmas impõem quer ao nível da sua duração (impondo-se a cessação de eventuais medidas adotadas logo que seja retomada a normalidade).
Na aplicação de tais medidas restritivas não poderá deixar de ser considerado como preferencial critério interpretativo aquele que foi, no fundo, o objetivo da sua adoção: a prevenção da doença, a contenção da pandemia e a preservação da vida humana, limitando tal aplicação ao que seja essencial, adequado e necessário para, no respeito pelo princípio da proporcionalidade, salvar o bem maior que é a saúde pública e a vida de todos.
Num contexto de pandemia e no quadro do estado de emergência em que vivemos, a densificação do superior interesse da criança não pode ser desligada daquela que constitui a grande preocupação nacional nos tempos que correm: a preservação da saúde da criança e contenção da propagação da doença COVID 19, sendo em vista deste bem maior que os eventuais reajustes de regimes de regulação das responsabilidades parentais anteriormente definidos deverão ser perspectivados.
Adicionalmente, estando em causa a saúde pública, deverão ser equacionados também o interesse e o bem-estar das pessoas que compõem a rede de suporte à criança, o que impõe que se indague, designadamente, se a criança coabita com pessoas que se inserem nos grupos de risco, se as habitações têm condições para a manutenção de algum distanciamento, caso seja necessário, e se a deslocação da criança entre as residências dos progenitores é susceptível de aumentar o risco de exposição à doença.
Acresce se o progenitor com quem a criança reside habitualmente ficar sujeito à medida de confinamento obrigatório, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, als. a) e b), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril, impõe-se colocar a criança a residir junto do outro progenitor, caso este reúna as condições para esse efeito, ou junto de terceiro, se as não reunir.
Entende Pedro Raposo de Figueiredo ( in ob cit ) que «justifica-se, ainda, idêntica solução nas situações em que a profissão exercida pelo progenitor com quem a criança reside habitualmente representa ou pode representar para esta um risco acrescido de infeção por SARS Cov 2, exponenciando a sua exposição à doença COVID 19, nesta categoria se enquadrando, designadamente, os médicos e demais profissionais de saúde e de apoio social (vg. assistentes operacionais na área da geriatria), bem como agentes de proteção civil e mesmo agentes das forças policiais e de segurança».
Manifestamente aquando da publicação de tal entendimento não se previa o agudizar actual da situação pandémica e o prolongamento no tempo de tal situação, cuja previsibilidade de cessação inexiste em concreto.
Ora, não pode a recorrente pretender que o progenitor está sujeito a maior risco que a própria, pois ambos exercem a profissão em ambiente hospitalar.
Acresce que caso prevalece-se o entendimento da requerente tal obstaria que o pai pudesse contactar em absoluto com a menor, por um longo período, sem se antever sequer até quando.
Mas a situação só seria de considerar caso se revelasse que existia uma situação efectiva de contágio, que a requerente não alega e que pode ocorrer relativamente a qualquer um dos progenitores, mas neste caso por imperativo das normas da direção geral da saúde o regime de residência compartilhada ou alternada deverá ser imediatamente suspenso, mas limitado ao período de isolamento previsto e não de forma pouco definida em termos temporais.
No caso dos autos, ambos os pais da menor exercem a profissão de médicos, não estando evidenciado o maior ou menor risco, pois quer no âmbito da cirurgia, quer da obstetrícia podem ocorrer situações de urgência incompatíveis com a garantia que todos os actos médicos são realizados com testes negativos de covid. Acresce que ao contrário do exercício de outras actividades e ainda que manifestamente o perigo de contágio é maior, também a sua prevenção e forma como se exerce é feito com maiores cautelas.
Donde, sendo ambos os progenitores médicos, não representa a manutenção/implementação (face ao cumprimento da sentença e Acórdão) do regime de residência alternada um perigo maior do que o que existiria se os progenitores vivessem juntos e tomando estes as mesmas precauções face à doença, pelo que não se encontram quaisquer razões para suspender aquele regime durante o actual estado de pandemia, impondo-se aos pais um especial dever de cuidado a observar na transição entre as duas casas.
Só quando se concretize em termos factuais que o outro progenitor não adopta medidas de segurança por forma a salvaguardar a menor é que podemos entender como justificativo a aplicação de uma medida tutelar adequada, ao abrigo do disposto no artº 1918º do CC, mas desde que se concretize uma qualquer situação de risco de saúde. Mas tal não significa que o estado pandémico por si só seja utilizado para afastar a menor do outro progenitor.
Assim, ambos os progenitores devem endividar esforços para o ajustamento de medidas que não diminuam o direito de a criança estar com ambos os progenitores, ao mesmo tempo que se deve preservar a saúde de todos, de forma consciente e responsável.
Do alegado pela requerente nada nos permite concluir que tais deveres foram violados, pelo que o procedimento cautelar em causa seria de indeferir liminarmente também por este motivo, ou seja pela manifesta improcedência.
Improcede deste modo, o recurso interposto, mantendo-se o despacho que determinou o indeferimento liminar.
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IV. DECISÃO:
Nos termos expostos, acordam os Juízes desta Relação, em julgar o recurso improcedente, mantendo a decisão proferida.
Custas do recurso a cargo da apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 19 de Novembro de 2020
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas
Teresa Soares