ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
JURISPRUDÊNCIA UNIFORMIZADA
Sumário

I - “Jurisprudência uniformizada”, para efeitos da verificação do pressuposto de admissibilidade de recurso constante da alínea c), do nº 2, do art. 629º, do Código de Processo Civil, não significa jurisprudência maioritária, sequer jurisprudência uniforme, constante ou reiterada do STJ, menos ainda de outro Tribunal, mas tão só a jurisprudência fixada em Acórdão uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça;
II - Com a referida previsão, visou o legislador potenciar a obediência aos acórdãos uniformizadores de jurisprudência, pelo que para efeitos da verificação de tal pressuposto de admissibilidade do recurso releva apenas a contradição da decisão com jurisprudência uniformizada pelo STJ respeitante a questão de direito idêntica e reportada ao “núcleo essencial de acórdão de uniformização de jurisprudência”.

Texto Integral

Processo nº 179/20.5T8VFR.P1
3ª Secção Cível
Processo do Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 3

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I- Relatório
Recorrente: B…
Recorrida: C…

A recorrente nos presentes autos, B…, nos quais figura como Recorrida/Requerente do procedimento cautelar de arresto, C…, notificada da decisão singular proferida pela relatora, a rejeitar o recurso de apelação, por legalmente inadmissível, dela veio reclamar para a conferência, nos termos e ao abrigo do disposto no nº3, do artigo 652º, do CPC, com vista a que a reclamação seja recebida e admitido o recurso e, por via dele, a sentença revogada e proferida outra que aplicando a jurisprudência constante aos factos, revogue o arresto decretado, com as demais consequências legais, alegando e concluído nos seguintes termos:
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A recorrida apresentou contra-alegações, pugnando por que, em conferência, se mantenha a decisão singular reclamada, confirmando-se a inadmissibilidade legal do recurso, concluindo:
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Foram cumpridos os vistos legais.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.A FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
As vicissitudes processuais relevantes para a decisão a proferir são as que constam do relatório que antecede, conjugadas com o teor da decisão singular proferida.

II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Consagrando o nº3, do art. 652º, do CPC, que “…quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão”, cumpre, nos termos do referido preceito e ouvida que se mostra a parte contrária, à conferência apreciar.
Fazendo-o, cumpre referir que a Requerida, ora reclamante, apresentou recurso da decisão proferida, com a seguinte parte dispositiva:
“Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais, julgo improcedente, por não provada a presente oposição, e em consequência:
- Mantenho o arresto do montante depositado pela entidade patronal, no âmbito do Processo nº 4188/18.6T8VFR, a correr os seus termos no Juízo do Tribunal de Trabalho de Santa Maria da Feira-J2, até a montante de € 2.624,50, acrescido de juros e custas prováveis.
Custas a cargo da Requerida, nos termos do disposto no artº 539º do Código de Processo Civil”,
pretendendo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por acórdão que revogue o arresto decretado, com as demais consequências legais, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
1 – A Douta Sentença Recorrida manteve o Arresto do montante depositado pela entidade patronal no âmbito do processo n.º 4188/18.6T8VFR, a correr os seus termos no Juízo do Tribunal de Trabalho de Santa Maria da Feira – Juiz 2, até ao montante de 2.624,50€ acrescido de juros e custas prováveis, e com a qual a Recorrente não se conforme, por a mesma contrariar a Jurisprudência Constante sobre no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, ou seja, verificação do requisito do justo receio de perda da garantia patrimonial;
2 - O Tribunal “a quo” entendeu na decisão recorrida que, se verifica o pressuposto do justo receio de perda de garantia patrimonial pela Requerente/Recorrida, uma vez que, a Requerida/Recorrente cessou o subsidio de desemprego e não aufere qualquer rendimento, que se encontra desempregada, sem quaisquer bens móveis ou imóveis da sua titularidade;
3 – Porém, tais factos não permitem, no sentido unânime e maioritária da Jurisprudência, considerar verificado tal requisito, tendo o Tribunal “a quo” decidido contra Jurisprudência Constante;
4 – Ora, não obstante, desconhecer a existência de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência sobre esta matéria proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, entende, salvo o devido respeito, que o presente recurso, nos termos do disposto no artigo 629º, n.º2, alínea c) do CPC, deve ser admitido, por ser premente que, na aplicação do direito os Tribunais têm de necessariamente tomar em consideração os valores da segurança, da certeza jurídica e da eficácia, como fatores que concorrem para a legitimação das decisões judiciais, sob pena de violarem os princípios constitucionais de igualdade que emerge do art. 8º, nº 3, do CC, e de tutela dos vectores da certeza e da segurança jurídica na aplicação da lei e na resolução dos litígios.
5 – Pelo que, admitindo-se o presente Recurso, deve, em obediência aos critérios que norteiam a jurisprudência sobre o requisito do justo receio de perda de garantia patrimonial, e os factos considerados pelo Tribunal “a quo”, que seja revogada a decisão recorrida, por não se verificar o mencionado requisito, e em consequência revogue o arresto decretado, com as demais consequências legais.
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A apelada apresentou contra-alegações a pugnar por que seja rejeitado o recurso, legalmente inadmissível, por falta de verificação do disposto na al. c) do nº 2 do artigo 629º do CPC (jurisprudência uniformizada do STJ), e atento o nº 1 do mesmo normativo (valor da causa), com as legais consequências e, se assim se não entender, se negue provimento ao mesmo, confirmando-se a decisão recorrida.
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O Tribunal de 1ª instância proferiu o seguinte despacho:
Por versar sobre decisão recorrível e ter sido interposto em tempo por quem para o efeito tem legitimidade, nos termos do disposto nos artºs 627º, 629º, 631º e 638º, nº 1, do Código de Processo Civil, admito o recurso interposto refª 10247609, o qual é de apelação, a subir nos próprios autos e imediatamente, e com efeito meramente devolutivo, nos termos conjugados dos artºs 644º, nº 1, al. a), 645º, nº 1, al. a), 647º, nº 1, todos do referido diploma legal.”.
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Observado o contraditório quanto à inadmissibilidade legal do recurso, apresentou-se a apelante a responder, manifestando dever o recurso ser admitido, por estarem reunidos os pressupostos necessários para o efeito. Sustenta que “a admissibilidade do presente recurso tem como finalidade ou objetivo latitudinário de evitar a propagação do erro de direito judiciário pela ordem jurídica, como garantia do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, na sua conjugação com o princípio da independência e liberdade interpretativa do julgador, na linha da diretriz hermenêutica do n.º 3 do art.º 8.º do CC.
Pois que, é inegável a basta jurisprudência sobre a mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, tal como dá conta a própria Recorrida.
Sabiamente refere Manuel de Andrade, na Sep. do Vol. XLVIII do BFDUC, de 1972, em trabalho intitulado “Sentido e Valor da Jurisprudência”, utiliza a expressão “jurisprudência” no seu sentido mais amplo, de modo a abarcar “o conjunto das disciplinas votadas ao estudo do direito positivo, em ordem à sua aplicação aos casos da vida” (pág. 8). Com tal amplitude, acrescenta que a jurisprudência está “ao serviço da lei, mas num sentido de obediência pensante, que atende menos à letra que mata do que ao espírito que vivifica” (pág. 40).
Ora, tal e tanta jurisprudência constante, deve merecer da parte de todos os juízes uma atenção especial, que dignifique quer a unidade da ordem jurídica quer da igualdade dos cidadãos perante a lei.
A rejeição ou não admissibilidade do presente recurso representará uma quebra injustificada do valor da segurança jurídica e das legítimas expectativas da Recorrente.
Pois, não se pode, nem deve, fazer uma interpretação restritiva dos direitos ao Recurso, sob pena, de afetar os direitos e garantias da Recorrente, sendo inconstitucional o facto do valor da causa, por ser inferior ao da alçada da 1ª instancia, impedir o acesso a pelo menos um grau de recurso, o que viola o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da Republica Portuguesa”.
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Cumpre decidir se é ou não de admitir o recurso, sendo que, face ao que dispõe o nº5, do art. 641º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados, não está este Tribunal vinculado pela decisão do Tribunal de 1ª instância.
Entendeu-se, em decisão singular deste Tribunal, não ser admissível o recurso.
Cumpre, pois, analisar se o recurso é admissível ou se, ao invés, é de o rejeitar.
Não se subsumindo, efetivamente, o caso a nenhuma das exceções, consagradas no art. 629º nem noutra disposição legal, cai-se na regra geral consagrada no nº1, do art. 629º, que estabelece que “O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”.
Uma vez que a alçada do tribunal de 1ª instância é de € 5.000,00, em regra, só é admissível recurso de apelação quando o valor processual superar aquele limite e, além disso, quando a sucumbência da parte superar metade desse valor (isto é seja superior a €2.500,00[1]).
“Esta segunda condição, cumulativa, cede apenas nos casos em que exista fundada dúvida acerca da sucumbência, ou seja, uma situação de incerteza que não possa ser razoavelmente decidida em face dos elementos disponíveis (STJ 24-6-08, 08A1736), caso em que se aplica apenas o critério geral assente no valor do processo em conexão com a alçada do tribunal que proferiu a decisão”[2].
Ora, dos elementos disponíveis, resulta que o valor da causa é inferior a 5.000,00€.
Assim, não se subsumindo o caso a nenhuma das exceções, consagradas no art. 629º nem noutra disposição legal, e não tendo a causa valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, o recurso não é legalmente admissível, tendo de ser, na verdade, rejeitado.
Tal foi decidido na decisão singular e, aqui, não pode deixar de ser mantido.
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Bem se analisou na decisão singular:
- da existência de direito ao recurso;
- dos limites impostos a tal direito;
- e da constitucionalidade dos mesmos, referindo:
É um direito fundamental constitucionalmente consagrado o “direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva”, a todos, amplamente, conferido nos termos da lei, para que, de modo informado, consciente e esclarecido o possam exercer, pois que “só quem tem consciência dos seus direitos consegue usufruir os bens a que eles correspondem e sabe avaliar as desvantagens e os prejuízos que sofre quando não os pode exercer ou efetivar ou quando eles são violados ou restringidos”[3].
O acesso à jurisdição e os princípios da juridicidade e da igualdade postulam um sistema que assegure a proteção dos interessados contra os próprios atos jurisdicionais, incluindo um direito de recurso, sendo “jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Por maioria de razão, a constituição não exige a consagração de um sistema de recursos sem limites ou ad infinitum (Ac. nº 125/98)”[4].
O Direito de Recurso, garantia constitucionalmente consagrada - cfr. nº1, do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa, que compreende o próprio direito de acesso aos tribunais e o direito de recorrer para tutela jurisdicional efetiva (v. art. 20º, daquela Lei), sendo o recurso um meio específico de impugnação de decisões judiciais que visa o reexame da matéria apreciada na decisão recorrida -, não é um direito absoluto, sendo-lhe impostos limites, desde logo, pelo nº1, do art. 629º, do Código de Processo Civil, artigo que, com a epígrafe “Decisões que admitem recurso”, estatuí duas condições limitadoras daquele direito, que de inconstitucionalidade material não padecem, suposto que seja o respeito pelo princípio da proporcionalidade[5].
O limitar da “recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das ações aos diversos “patamares” de recursos (Acs nºs 72/99, 431/02 e 106/06) (…)Assim, da mesma forma que se pode excluir o recurso, a lei também pode restringir o recurso em matéria de facto (Ac. nº 641/05)”[6]
É, pois, deixada ao legislador ordinário “ampla margem de liberdade na conformação do direito ao recurso, podendo regular diversamente a possibilidade e o modo de impugnação das decisões judiciais, designadamente em função da natureza do processo, do tipo e objetivo das ações, da relevância das causas, da importância das questões (Acs nºs 501/96, 125/98 e 77/01). O próprio estabelecimento das alçadas não suscita qualquer objeção constitucional, introduzindo diferenciações justificadas ou não intoleráveis à luz do princípio da igualdade. (Acs. nºs 163/90, 346/92, 475/94, 116/95, 239/97 e 14/99). Na liberdade de conformação do legislador inclui-se, ainda, para além obviamente da definição do regime do recurso (…) o estabelecimento de requisitos condicionadores dos recursos ou a alteração às regras sobre recorribilidade das decisões (Ac. nº489/95)”[7], sendo que, cabendo ao legislador ordinário definir o seu âmbito de aplicação e conteúdo, está-lhe, porém, “vedado abolir o sistema de recursos in toto ou afetá-lo substancialmente através da consagração de soluções que restrinjam de tal modo o direito de recorrer que, na prática, se traduzam na supressão tendencial dos recursos (Acs nºs 489/95, 673/95, 377/96 e 490/97 – cfr. ainda Jorge Miranda, Manual, IV, pág. 331).
As limitações ou restrições ao direito de recurso estão, por isso, sujeitas aos limites constitucionais gerais e, de modo especial, aos princípios da igualdade e da proporcionalidade, pelo que as diferenciações legais não podem ser arbitrárias e as medidas restritivas do direito de recorrer não devem ser excessivas[8],
Estatui o referido art. 629º, a consagrar duas condições limitadoras daquele direito, em observância dos referidos princípios, que: “1.O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”.
Assim, “em princípio, a parte vencida apenas poderá recorrer de qualquer decisão se o valor do processo exceder a alçada do Tribunal que a proferiu e, além disso, se o decaimento exceder metade dessa alçada”[9], sendo a admissibilidade dos recursos, ordinários, por efeito das alçadas regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a ação (v. nº3, do artigo 44º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto), o mesmo sucedendo quanto à apreciação do pressuposto da sucumbência.
A alçada do tribunal de 1ª instância está fixada em € 5.000,00 e a da Relação em € 30.000,00 (v. artigo 44º da referida Lei), pelo que no caso de a decisão da 1ª instância ser desfavorável em valor igual ou inferior a 2.500,00 € e a do Tribunal da Relação o ser em valor igual ou inferior a 15.000,00 €, em regra, são as mesmas irrecorríveis.
Apenas se não atende à sucumbência nos casos em que exista fundada dúvida acerca da sucumbência, ou seja, em caso de se estar perante “uma situação de incerteza que não possa ser razoavelmente decidida em face dos elementos disponíveis (STJ 24-6-08,08A1736), caso em que se aplica apenas o critério geral assente no valor do processo em conexão com a alçada do tribunal que proferiu a decisão[10].
A regra geral consagrada no nº1, do art. 629º não é, todavia, absoluta, comportando exceções, sendo que, para lá das consagradas em normas avulsas[11] e em preceitos dispersos pela lei adjetiva[12], temos as previstas nos nºs 2 e 3 daquele artigo, que estatui, a admissibilidade, excecional, do recurso, nos seguintes casos (sendo que, então, a ser, admissível recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, há que admitir o recurso, sendo o mesmo, contudo, restrito à questão suscitada e prevista nos referidos preceitos):
2- Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:
a)Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado;
b)Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;
c)Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça; (negrito nosso)
d)Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.
3- Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação:
a)Nas ações em que se aprecie a validade, a subsistência ou a cessação de contratos de arrendamento, com exceção dos arrendamentos para habitação não permanente ou para fins especiais transitórios;
b)Das decisões respeitantes ao valor da causa nos procedimentos cautelares, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;
c)Das decisões de indeferimento liminar da petição de ação ou do requerimento inicial de procedimento cautelar”.
Em cada um destes concretos casos, seja qual for o valor da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação ou para o Supremo, ainda que circunscrito ao específico fundamento (STJ 15-2-17, 2623/11)[13].
Assim, em regra, a admissibilidade de recurso está, dependente da verificação, cumulativa, de um duplo requisito:
1- que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre;
2- que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre (ou havendo fundada dúvida sobre o valor da sucumbência, só aquele),
podendo, não sendo esse o caso, cair-se em situação excecional em que seja, não obstante isso, admissível recurso.
O referido regime misto consagrado quanto à admissibilidade do recurso, fazendo depender a recorribilidade, cumulativamente, do valor da causa (alçada) e da proporção do decaimento (sucumbência), a qual deve ser superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão impugnada, com a exigência complementar em razão da sucumbência, introduzida no Código de Processo Civil pelo DL nº 242/85, de 9 de Julho, teve em vista restringir as questões que devem ser submetidas à apreciação dos tribunais superiores, evitando que sejam confrontados com decisões em processos, cujo valor ou sucumbência não exceda determinado montante.
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Com este limite, o legislador pretendeu (cf. art. 9º, do Código Civil) compatibilizar o interesse da segurança jurídica potenciado por múltiplos graus de jurisdição, com outros ligados à celeridade processual, à racionalização dos meios e humanos e materiais ou a dignificação e valorização da intervenção dos tribunais, quer os de primeira instância, quer os de recurso[14].
E à recorrente não está limitado o direito de recurso em maior medida que a outrem, mas sim em condições de absoluta igualdade com todos os interessados em recorrer de uma decisão, assim se assegurando a observância do princípio da igualdade.
Salvaguardado se mostrando o núcleo fundamental do Direito ao Recurso, com proteção da parte mais frágil e acautelados os casos de essencial relevo, situações em que mais se reclama e justifica especial proteção, foi-o de forma constitucional, legal e igual para todos os interessados em recorrer.
Como, de modo esclarecedor, bem analisa o Exmo Senhor Desembargador Dr Carlos Gil, em nota ao referido artigo 629º, do Código de Processo Civil, divulgado, “Sobre a constitucionalidade da limitação do direito ao recurso em função da alçada do tribunal de que se recorre, no dia 31 de Outubro de 2016, o Sr. Professor Teixeira de Sousa inseriu no blogue do IPPC o seguinte “post”: “Direito ao recurso; alçada; sucumbência constitucionalidade” citando trecho do Ac. do STJ 19/5/2016 (122702/13.5YIPRT.P1.S1):"Atenta a natural escassez dos meios disponibilizados para administrar a Justiça, a necessidade da sua racionalização contende com a admissibilidade ilimitada de recursos que, aliás, não encontra sustentação no texto constitucional.
Por isso a jurisprudência constitucional vem expressando o entendimento de que, em matéria cível, o direito de acesso aos tribunais não integra forçosamente o direito ao recurso ou o chamado duplo grau de jurisdição. [Cfr. Lopes do Rego, Comentários ao CPC, pág. 453, e “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, págs. 763 e segs., citando jurisprudência do Tribunal Constitucional, segundo a qual o que existe é um “genérico direito ao recurso de actos jurisdicionais, cujo conteúdo pode ser traçado pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude”, ainda que seja vedada “a redução intolerável ou arbitrária” desse direito. Cfr. ainda diversa jurisprudência citada por Lebre de Freitas e Cristina Máximo dos Santos em O Processo Civil na Constituição, págs. 167 e segs. Sobre o princípio do duplo grau de jurisdição e sua conexão com a CRP cfr. ainda Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., págs. 72 a 76] Também tem sido assumido que tal direito não é necessariamente decorrente do que se dispõe na Declaração Universal dos Direitos do Homem ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. [Cfr. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, págs. 99 e 100].
Em suma, o direito ao recurso, como na generalidade dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, não se apresenta com natureza absoluta, convivendo sempre com preceitos que fazem depender a multiplicidade de graus de jurisdição de determinadas condições objectivas ou subjectivas. [Cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 75].
Seguramente que a previsão da existência de três graus de jurisdição no ordenamento jurídico-constitucional implica que a lei ordinária admita a possibilidade de serem interpostos recursos para a Relação ou desta para o Supremo Tribunal de Justiça. Nessa medida, seria inconstitucional a exclusão arbitrária do direito de recorrer em determinados processos ou a elevação do valor das alçadas a tal ponto que vedasse a interposição de recursos relativamente a acções de valor significativo, contrariando o princípio da proporcionalidade.
Sendo permitido afirmar que está vedado ao legislador suprimir em bloco a recorribilidade ou fazê-la depender de circunstâncias que traduzam a violação do princípio da proporcionalidade [Cfr. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, pág. 101, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 377, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 75], tal não determina, porém, que toda e qualquer restrição a um ou mais graus de jurisdição traduza violação de regras ou de princípios constitucionais.
Como refere Lopes do Rego, as “limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais” [Em “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, inserido em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, pág. 764.]
Embora a este respeito não se identifique um critério formal delimitador dos poderes do legislador ordinário, pode concluir-se, com Ribeiro Mendes, que, dentro dos princípios enunciados, o legislador “poderá ampliar ou restringir os recursos civis, quer através da alteração dos pressupostos de admissibilidade, quer através da mera actualização dos valores das alçadas” [Recursos em Processo Civil, pág. 101. Cfr. ainda Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 378, ou o Ac. do Trib. Const., de 6-4-99, BMJ 486º/44. Noutro acórdão, de 11-2-98, BMJ 474º/85, refere-se que os limites do direito de recorrer decorrentes da articulação entre o valor da causa e as alçadas não consubstanciam restrições a um direito fundamental – o direito ao recurso – incompatível com a Constituição, já que desta não resulta a existência de um direito irrestrito a impugnar todas as decisões judiciais, não podendo inferir-se dos princípios constitucionais a existência de um triplo grau de jurisdição].
O critério adoptado pelo legislador ordinário assenta essencialmente no valor do processo e da sucumbência, conexo com o valor da alçada da 1ª instância ou da Relação, consoante o recurso seja interposto para a Relação ou para o Supremo Tribunal de Justiça.
É, pois, o valor da alçada o factor que é determinante para a recorribilidade, sendo relativamente a esse referencial que se poderá aferir se a norma que o fixa está ou não está afectada pela violação do princípio da proporcionalidade."
Revertendo para o caso, constata-se que:
- quanto ao primeiro requisito, o mesmo não tem verificação, como é reconhecido pela apelante, face ao valor da causa.
Assim, e porque, o caso se não enquadra em qualquer exceção, consagrada no CPC, designadamente na al. c), do nº2, do art. 629º ou em outro diploma, não é, na verdade, admissível recurso.
Não padecendo a decisão singular da invocada nulidade, bem foi rejeitado o recurso por legalmente inadmissível, cabendo a esta conferência confirmar a decisão singular que o rejeitou, decisão essa que, bem apreciando da admissibilidade do recurso, considerou que o primeiro requisito não tem verificação, como é reconhecido pela apelante, face ao valor da causa e que o caso se não enquadra em qualquer exceção. Assim, é inadmissível o recurso por falta de verificação de exceção, designadamente da prevista na al. c) do nº 2 do artigo 629º do CPC (jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça).
Na verdade, o referido preceito apenas se reporta a “jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça” e não a outra jurisprudência daquele ou de outro Tribunal, como resulta desde logo, sem margem para dúvidas, da letra da lei, mas decorre também do seu espírito.
E inexistindo qualquer acórdão uniformizador de jurisprudência, emanado do STJ, sobre a questão de direito em causa (situações taxativas enquadráveis no conceito de justo receio de perda da garantia patrimonial na providência cautelar de arresto), como a recorrente deixa até expresso, não se verificando qualquer exceção consagrada, tem inteira aplicação ao caso a regra, constitucional, prevista no nº 1 do aludido artigo 629º do CPC, e uma vez que a presente causa tem valor processual inferior à alçada da relação (€ 5.000,00), não é admissível recurso da decisão.
Destarte, resulta da lei e da interpretação que dela é feita, sendo pacífico que para efeitos do disposto no art. 629º, nº2, c), do CPC, “jurisprudência uniformizada” não significa jurisprudência maioritária, predominante, sequer toda a jurisprudência, jurisprudência uniforme, constante ou reiterada do STJ , menos ainda de outro tribunal, mas tão só a jurisprudência cristalizada em acórdão uniformizador do STJ, visando a referida previsão potenciar a obediência aos acórdãos uniformizadores[15] [16]. Na verdade, no Ac. do STJ de 8/2/2018[17] esclarece-se “o conceito de jurisprudência uniformizada do STJ que consta da al. c) do n.º 2 do art. 629.º do CPC abrange apenas os acórdãos proferidos em recurso de revista ampliada ou em recurso para uniformização de jurisprudência e ainda os resultantes da conversão de anteriores assentos do STJ” e sendo que “para efeitos de verificação do pressuposto de admissibilidade de recurso constante da alínea c) do nº 2 do art. 629º, a contradição com jurisprudência uniformizada pelo STJ tem de reportar-se ao “núcleo essencial de acórdão de uniformização de jurisprudência”, tem de constituir uma “oposição frontal” e tem de respeitar a questão de direito idêntica e que tenha sido essencial para o resultado obtido numa e noutra decisões, devendo ainda ter ocorrido num quadro normativo substancialmente idêntico[18].
Nestes termos, nenhum Acórdão do STJ existindo, sequer sendo referido pela recorrente, que bem sabe não existir, nunca o caso se poderia enquadrar na al. c), do nº2, do art. 629, do CPC.
Assim, bem foi rejeitado o recurso, legalmente inadmissível.
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III. Decisão
Nos termos expostos, acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação do Porto, em desatender a reclamação, confirmando a decisão singular reclamada.
Custas do incidente pela requerente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.
Notifique.

Porto, 24 de setembro de 2020
(Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores)
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
_____________
[1] Ibidem, pág. 752
[2] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Universidade Católica Portuguesa vol. I, Pag. 310
[3] Ibidem, pág 328 e seg
[4] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 752 e Ac. STJ 19-5-16,122702/12, naquela aí citado
[5] Jorge Miranda e Rui Medeiros, idem, pag. 310
[6] Ibidem, pág. 330
[7] Ibidem, pág. 330
[8] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 752
[9] Ibidem, pág 752
[10] Tal verifica-se, designadamente, em matéria de insolvência, expropriações, registos, notariado, marcas e patentes.
[11] Cfr. designadamente o art.630, que tem a epígrafe “Despachos que não admitem recurso”.
[12] Ibidem, pág 753
[13] Nesse sentido, A. S. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., p. 41.
[14] Ac. do STJ, de 15/11/2015, Proc. 344/09: Sumários, 2015, p. 615, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, pág 962
[15] Ac. do STJ, de 8/9/15, Processo. 810/13: Sumários, 2015, p. 467 citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, pág 961
[16] Ac. do STJ de 08-02-2018, proc. 810/13.9TBLSD.P1.S1 (Relatora: Maria do Rosário Morgado), in dgsi.pt
[18] Ac. do STJ de 7/6/2018, Proc. n.º 77/14.1T8MFR-C.L1-A.S1 (Relatora: Rosa Ribeiro Coelho)