APÓLICE DE SEGURO
CLÁUSULA SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL
REPARAÇÃO AUTOMÓVEL
BOA-FÉ
Sumário


I - Na delimitação da responsabilidade operada pelas cláusulas de exclusão contidas nas Condições Gerais e/ou Especiais das apólices dos contratos de seguro caberá distinguir as cláusulas de exclusão da responsabilidade que se mostram proibidas à luz do artigo 18º, do DL 446/85, de 25-10, das que visam a delimitação do objeto do contrato, visto estas se configurarem plenamente válidas.
II - Nessa distinção importa acima de tudo atender ao objeto do seguro e aos riscos cobertos na apólice.
III – Uma cláusula ínsita em contrato de seguro de responsabilidade civil extracontratual por danos causados pela atividade de reparação de automóveis, que excluísse da responsabilidade da seguradora os danos causados a veículos objeto dessa atividade de reparação, desrespeitaria o princípio fulcral de lisura contratual ao retirar, na prática, a utilidade ao seguro contratado, retirando do âmbito da cobertura da apólice as causas mais comuns dos danos produzidos em tal atividade.
IV - E porque neste domínio a ponderação da boa fé deverá ser feita em função da confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis, como impõe o artigo 16º, al. a), do DL 446/85, de 25.10, uma tal cláusula de exclusão consubstanciaria um atropelo à dinâmica de um adequado funcionamento do vinculo contratual estabelecido, sendo, por isso, desproporcional e violadora do princípio da boa-fé e, consequentemente, haveria de ser considerada proibida e, como tal, nula (arts. 12º, 15º e 18º, al. b), do citado diploma legal). (sumário do relator).

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
A… – Automóveis, Lda., instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Seguradoras …, S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 7.532,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, estimando os primeiros, à data da apresentação da petição, em € 89,56.
Alegou, em síntese, que no âmbito da sua atividade de reparação de veículos automóveis recebeu nas suas instalações para reparação, o veículo da marca e modelo Audi A5, com a matrícula 71…, na sequência de sinistro no qual o mesmo havia sido interveniente e que, encontrando-se aquele veículo no interior do seu parque automóvel, quando os seus funcionários desbloqueavam as barras de segurança do mesmo, foi pressionado o respetivo vidro, o que veio a provocar a sua quebra, a qual inutilizou igualmente a capota do veículo e provocou estragos no montante peticionado, dos quais se quer ver ressarcida, encontrando-se a responsabilidade decorrente da sua atividade transferida para a ré.
A ré contestou, impugnando no essencial que os danos do veículo tenham sido provocados já no interior das instalações da Autora e não no acidente em que o mesmo fora interveniente, declinando a sua responsabilidade pela respetiva indemnização, a qual, afirma, sempre estaria fora do âmbito da cobertura da apólice.
Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, sendo a final proferida sentença que julgou a ação procedente e condenou a ré no pedido.
Inconformada, a ré apelou desta decisão, pugnando pela respetiva revogação e substituição por outra que a absolva do pedido formulado, rematado a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. Entende a ora Recorrente que a MMa Juíza do Tribunal “a quo” apreciou de forma incorreta a prova produzida, devendo ser acrescentado um facto ao elenco dos factos provados com a seguinte redação “16. Por referência à responsabilidade civil de exploração, estabelece o artigo 63º, nº 5, alínea K que “Para além das Exclusões previstas nos artigos 3º e 39º da Secção I e no Artigo 2° da Secção II, ficam também expressamente excluídos do âmbito da presente cobertura: […] K) Os danos causados ao objecto dos trabalhos, bem como à maquinaria e/ou equipamento auxiliares dos trabalhos.
2. Tal facto resulta demonstrado das condições Gerais e Especiais da Apólice de Seguro, juntas aos autos como documento º 1 da Petição Inicial.
3. Da própria matéria de facto considerada como provada pelo douto Tribunal a quo, resulta que o sinistro em causa nos presentes autos não tem enquadramento nas coberturas da apólice de seguro contratada, uma vez que resulta de forma clara e expressa, que a apólice em causa tem como objeto do seguro a responsabilidade civil extracontratual da Recorrida, não existindo qualquer elemento nas Condições Gerais da Apólice que permita concluir que a mesma abrange toda e qualquer responsabilidade civil da Recorrida.
4. No caso em apreço está causa a responsabilidade civil contratual da Recorrida, uma vez que o sinistro ocorreu durante a execução do contrato celebrado entre esta e o proprietário do veículo QO para reparação de danos que este apresentava na sequência de um acidente.
5. Pelo que o presente sinistro não se encontra no âmbito de aplicação das coberturas contratadas no contrato de seguro aqui em causa. E, como tal, não pode a Recorrente ser responsabilizada pelos danos decorrentes deste sinistro.
6. Os danos que estão a ser reclamados nos presentes autos foram causados pela Recorrida ao objeto dos seus trabalhos, o veículo QO, pelo que nos termos do disposto no artigo 63º, nº 5, alínea k) das Condições Gerais e Especiais da Apólice, o sinistro em causa nos autos está excluído do âmbito da cobertura de responsabilidade civil exploração.
7. Nesta medida, nenhuma responsabilidade pelo sinistro em causa nos presentes autos pode ser assacada à Recorrente, devendo a mesma ser absolvida do pedido.
8. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 483º e 798º do Código Civil.»

A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões essenciais a decidir consubstancia-se em saber:
- se ocorreu erro de julgamento no que respeita à matéria de facto;
- se o evento danoso que atingiu o veículo automóvel deixados nas instalações da autora, para reparação, se encontra coberto pela garantia do seguro multi-riscos/estabelecimentos, que a ré celebrou com a autora.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade comercial que tem por objeto o comércio de veículos automóveis e acessórios, reparações automóveis, consultoria empresarial, elaboração de projetos e investimentos, transportes rodoviários de mercadorias, exploração de estabelecimentos de restauração e bebidas, compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, execução de trabalhos de construção civil e obras públicas, aluguer de veículos automóveis, comércio de vestuário e acessórios de informática, telecomunicações, consultoria em recursos humanos, formação profissional, seleção, orientação profissional e intermediação de créditos.
2. No âmbito da sua atividade de reparação de veículos automóveis, a Autora recebeu nas suas instalações o veículo de Marca Audi, A5, 2000 TDI, com a matrícula 71….
3. Que apresentava diversos estragos resultantes de sinistro automóvel,
4. E foi transportado para o interior do recinto adstrito à Autora, mas no exterior onde labora a sua oficina de reparação, aí aguardando para ser intervencionado ao nível da chapa e pintura que se encontravam estragadas.
5. Sucede que no dia 31.07.2018, o funcionário da Autora, R…, mecatrónico auto, entrou no interior do veículo a fim de poder desbloquear as barras de segurança aí existentes que salvaguardam os tripulantes em caso de capotamento do veículo.
6. Nisto, ao tentar efetuar o desbloqueio dessas mesmas barras de segurança existentes no veículo e ao fechar a capota em lona que se encontrava no mesmo, sem que nada o fizesse prever, as barras efetuaram pressão/carga sobre o vidro traseiro da capota,
7. Que não suportando tal carga acabou por se partir e estilhaçar por completo.
8. O vidro em questão é um vidro temperado, galvanizado à lona da capota e não é comercializado em separado.
9. A Autora participou o sinistro à Ré que declinou a sua responsabilidade na reparação dos danos.
10. A apólice do seguro celebrado entre a Autora e a Ré tem o número 34 00079025.
11. O custo de uma nova capota em lona, com o vidro galvanizado àquela lona é de € 7 532, 00.
12. O artigo 37.º, n.º 2, das Condições Gerais de Apólice, estabelece que: “o contrato abrange igualmente até ao limite do capital definido nas Condições Particulares, a responsabilidade civil extracontratual, legalmente imputável ao segurado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiro no exercício da atividade declarada nas condições particulares da apólice”.
13. No seu artigo 38.º, n.º 1, dispõe, ainda que: “desde que contratadas e expressamente mencionadas nas respetivas Condições Particulares, a garantia facultativa conferida pela apólice poderá abranger os danos emergentes da verificação dos seguintes riscos que se encontram definidos no artigo 58.º (…) 1.63 Responsabilidade Civil Exploração”.
14. Por referência à responsabilidade civil de exploração, estabelece ainda o artigo 63º das condições gerais que a apólice “garante a responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao segurado em consequência da exploração normal da actividade identificada nas condições particulares (…) 2. A cobertura garante os danos patrimoniais e/ou não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros em consequência de sinistros ocorridos em Portugal e sempre no local de risco expressamente mencionado nas Condições Particulares do contrato de seguro, até aos limites do capital indicado nas Condições Particulares”.
15. Nas condições particulares da apólice está consignada, entre o mais, a cobertura da “responsabilidade civil extracontratual de exploração até ao capital seguro de € 50 000, 00”.
E foram considerados não provados os seguintes factos:
a) A atuação do funcionário da Autora em nada contribuiu para a quebra do vidro da capota,
b) A qual ocorreu quanto o mesmo não estava sequer nas imediações do veículo.

Da impugnação da matéria de facto.
Entende a recorrente que o Tribunal a quo apreciou de forma incorreta a prova produzida, defendendo que deve ser acrescentado um facto ao elenco dos factos provados com a seguinte redação:
16. Por referência à responsabilidade civil de exploração, estabelece o artigo 63º, nº 5, alínea K que “Para além das Exclusões previstas nos artigos 3º e 39º da Secção I e no Artigo 2° da Secção II, ficam também expressamente excluídos do âmbito da presente cobertura: […] K) Os danos causados ao objecto dos trabalhos, bem como à maquinaria e/ou equipamento auxiliares dos trabalhos.”.
Não sofre contestação que o artigo em questão faz parte das condições Gerais e Especiais da Apólice de Seguro, juntas aos autos com a petição inicial.
Por sua vez, constitui jurisprudência sedimentada que os documentos não são factos, mas meros meios de prova de factos alegados e controvertidos, constituindo até prática incorreta, a evitar, portanto, na decisão sobre a matéria de facto remeter o Juiz para o teor daqueles.
Seja como for, no ponto 10 dos factos provados está dado como assente que a apólice do seguro celebrado entre a autora e a ré tem o número 34 00079025, isto é, está dado como assente que o contrato de seguro celebrado entre as partes é titulado pelas condições estabelecidas naquela apólice, a qual foi junta aos autos com a petição inicial, pelo que se afigura desnecessário acrescentar ao elenco dos factos provados o dito artigo 63º, nº 5, alínea k).
É certo que nos pontos 12, 13 e 14 dos factos provados se transcrevem, respetivamente, os artigos 37º, nº 2, 38º, nº 1 e 63º das da Condições Gerais de Apólice, provavelmente por se entender serem essas as disposições relevantes para a decisão a proferir.
Porém, o facto de não ter sido transcrito no elenco dos factos provados o teor do artigo 63º, nº 5, alínea k), isso não constitui um erro de julgamento de facto, havendo apenas que ter o mesmo em consideração na fundamentação de direito, atribuindo-se-lhe ou não a relevância que lhe dá recorrente.
Mantém-se assim inalterada a decisão sobre a matéria de facto.

Do mérito da decisão.
Está-se no âmbito de um contrato formal regido fundamentalmente pelas cláusulas da respetiva apólice, sem prejuízo das disposições do DL 72/2008, de 16/04 (Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
O contrato firmado, subscrito pela autora, no que respeita à questão que neste âmbito assume relevância, caracteriza-se, essencialmente, pela sua natureza de contrato de adesão determinado pela circunstância de um dos outorgantes (o segurado) não ter qualquer intervenção na preparação das cláusulas respeitantes às condições gerais e especiais, limitando-se a aceitar o clausulado elaborado e proposto pela seguradora.
Neste tipo de contratos a liberdade negocial do segurado circunscreve-se, para além do que toca às Condições Particulares, apenas à possibilidade de celebração do negócio pois que, querendo firmar o contrato, é obrigado a aceitar o clausulado que, nesse sentido, lhe é imposto – artigo 1º do DL 446/85, de 25.10.
Os seguros multi-riscos, como o dos autos, têm uma componente de danos próprios e outra de responsabilidade civil, sendo que ao caso importa considerar esta última.
Nesta vertente da responsabilidade civil, importa reter as condições gerais referentes ao objeto do contrato e ao âmbito da garantia e, em particular, o que dispõem o artigo 37º, nº 2 e o artigo 38º, nº 1.
O primeiro daqueles artigos preceitua que «[o] contrato abrange igualmente até ao limite do capital definido nas Condições Particulares, a responsabilidade civil extracontratual, legalmente imputável ao segurado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiro no exercício da actividade declarada nas condições particulares da apólice».
E o artigo 38º, nº 1, dispõe que «[d]esde que contratadas e expressamente mencionadas nas respectivas Condições Particulares, a garantia facultativa conferida pela apólice poderá abranger os danos emergentes da verificação dos seguintes riscos que se encontram definidos no artigo 58.º», onde se inclui a Responsabilidade Civil Exploração (1.63 da Secção II do artigo 38º).
Por sua vez, o nº 1 do ponto 63 da Secção II do referido artigo 58º, sob a epígrafe “63. Responsabilidade Civil Exploração”, dispõe que a apólice “[g]arante a responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao segurado em consequência da exploração normal da actividade identificada nas Condições Particulares», e o nº 2 que «[a] cobertura garante os danos patrimoniais e/ou não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros em consequência de sinistros ocorridos em Portugal e sempre no local de risco expressamente mencionado nas Condições Particulares do contrato de seguro, até aos limites do capital indicado nas Condições Particulares».
O que interessa saber, portanto, é se o sinistro cabe na previsão do ponto 63 acabado de transcrever, tendo a sentença recorrida respondido afirmativamente a esta questão nos seguintes termos:
«Decorre assim da interpretação destas cláusulas que estão cobertos pela apólice os danos causados a terceiro no exercício da actividade comercial da Autora.
Ou seja, o objecto do seguro é a responsabilidade civil decorrente da exploração da actividade da Autora, onde se inclui a reparação de veículos a motor.
Do mesmo modo, as condições particulares evidenciam que o objecto seguro foi a responsabilidade civil emergente do normal funcionamento e exploração do estabelecimento.
Sendo esse o entendimento que um declaratário normal colocado na posição da Segurada pode retirar das cláusulas contratadas.
Termos em que, tendo os danos materiais causados a terceiro (proprietário do veículo), sido produzidos no âmbito da actividade comercial da Autora, cujo risco de exploração se encontrava transferido pela Ré, urge concluir que a acção deverá proceder.»
Não vemos razão para dissentir desta fundamentação, que se subscreve.
É, assim, de afastar o entendimento da recorrente de que “o presente sinistro não se encontra no âmbito de aplicação das coberturas contratadas no contrato de seguro aqui em causa”, em virtude de os danos terem sido causados pela recorrida “ao objeto dos seus trabalhos, o veículo QO”, pelo que se encontrariam assim excluídos da cobertura de responsabilidade civil exploração, nos termos do ponto 63, nº 5, alínea k) das Condições Gerais e Especiais da Apólice.
Ora, o que se exclui do âmbito da cobertura da apólice nesta alínea k) do nº 5 do ponto 63 são «os danos causados ao objeto dos trabalhos, bem como à maquinaria e/ou equipamento auxiliares dos trabalhos», isto é, aos instrumentos de trabalho utilizados pela autora na sua atividade de reparação de veículos automóveis, e não, evidentemente, os bens de terceiros sobre os quais incide essa atividade, sob pena, além do mais, de ficar praticamente esvaziada a cobertura referente à responsabilidade civil prevista no acima transcrito ponto 63.
Ademais, se por mera hipótese aquela cláusula de exclusão fosse interpretada no sentido defendido pela recorrente, a mesma teria de ser considerada cláusula absolutamente proibida nos termos da alínea b) do artigo 18º do DL 446/85, de 25.10, preceito segundo o qual são absolutamente proibidas e, como tal, nulas (cfr. artigo 12.º, do DL 446/85, de 25-10), as cláusulas contratuais gerais que excluam ou limitem, de modo direto ou indireto, a responsabilidade por danos patrimoniais extracontratuais causados na esfera da contraparte ou de terceiros.
Ora, na delimitação da responsabilidade operada pelas cláusulas de exclusão contidas nas Condições Gerais e/ou Especiais nas apólices dos contratos de seguro caberá distinguir as cláusulas de exclusão da responsabilidade que se mostram proibidas à luz do citado artigo 18º, das que visam a delimitação do objeto de contrato, porquanto estas configuram-se plenamente válidas[1].
Nessa distinção importa antes de mais atender ao objeto do seguro e aos riscos cobertos na apólice. E, assim, apenas serão tidas como absolutamente proibidas as cláusulas que prevejam uma exclusão ou limitação da responsabilidade que desautorize (ou esvazie) o objeto do contrato.
Revertendo ao caso concreto, a ter-se como correta a interpretação sufragada pela recorrente, o que não se concede, então haveria que ter em conta que na avaliação a fazer quanto à natureza proibida da cláusula de exclusão de responsabilidade em causa, não poder deixar de se considerar a circunstância de a mesma estar inserida num contrato de seguro de responsabilidade civil através do qual a ré seguradora assumiu perante a autora segurada, a obrigação de pagamento dos danos (patrimoniais ou não patrimoniais) causados a terceiros pela atividade de reparação de automóveis.
Teria, pois, de se evidenciar que através da referida cláusula a ré seguradora teria feito introduzir uma limitação à responsabilidade assumida com o seguro que produziria o efeito de, na prática, esvaziar a garantia de proteção do risco que o contrato cabia assegurar, ou seja, a limitação dos danos operada pela cláusula em referência impossibilitaria a obtenção do fim visado com a celebração do seguro, que se cingia, precisamente, aos danos causados a terceiros pela atividade de reparação de veículos automóveis desenvolvida pela autora.
E porque neste domínio a ponderação da boa fé deverá ser feita em função da «confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis»[2], uma vez que por efeito da referida cláusula estariam excluídos da cobertura dos riscos do contrato de seguro celebrado os danos decorrentes de acidentes produzidos nos veículos de terceiros, caberia concluir que a mesma desrespeitava esse princípio fulcral de lisura contratual ao retirar, praticamente, a utilidade ao seguro contratado, esvaziando o conteúdo útil do objeto e finalidade do mesmo.
Assim, a referida cláusula, a ser entendida como de exclusão, não poderia deixar de ser entendida como desproporcional, «consubstanciando um atropelo à dinâmica de um adequado funcionamento do vínculo contratual estabelecido e, nessa medida, violadora do princípio da boa-fé, que se impõe em todas as etapas do desenvolvimento da relação negocial: formação, integração/interpretação e cumprimento – cfr. artigos 227.º, 239.º e 762.º, n.º2, todos do Código Civil»[3].
Consequentemente, em conjugação com o disposto nos artigos 15º e 18º, alínea b), do DL 446/85, de 25.10, haveria que considerar proibida e, como tal, nula (artigo 12.º, do mesmo diploma legal), a cláusula em questão.
Improcedem, pois, na sua totalidade, as conclusões do recurso.
Vencida no recurso, suportará a ré/recorrente as respetivas custas – artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Évora, 8 de outubro de 2020(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Tomé Ramião (2º adjunto)
______________________________________________

[1] Pedro Romano Martinez, Cláusulas Contratuais Gerais e Cláusulas de Limitação ou de Exclusão da Responsabilidade no Contrato de Seguro, in Scientia Iuridica - Tomo LV, nº 306, Junho de 2006, p. 258, citado no Acórdão do STJ de 24.01.2018, proc. 534/15.2T8VCT.G1.S1, in www.dgsi.pt.

[2] Cfr. artigo 16.º, alínea a), do DL 446/85, de 25.10.

[3] Cfr. o citado Acórdão do STJ de 24.01.2018, que vimos seguindo de perto.