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PROCESSO JUDICIAL DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
CARÁCTER RESERVADO DO PROCESSO
CONSULTA DO PROCESSO
RESTRIÇÕES
CITIUS
Sumário
1. O art. 88º da LPCJP concretiza o princípio da privacidade estabelecido no referido art. 4º, al. b) da LPCJP 2. O princípio da privacidade pode determinar que mesmo a consulta do processo autorizada nos termos dos nºs 3, 4 e 5 do art. 88º da LPCJP se faça em termos limitados, tendo em conta o superior interesse da criança. 3. O carácter reservado do processo implica, ainda, o respeito do segredo sobre determinados dados (nº 8 do art. 88º), e a sua necessária destruição nos termos dos nºs 6, 7 e 9 do art. 88º, a implicar que a extração de eventuais cópias ou certidões do mesmo careçam, necessariamente, de ser autorizadas pelo juiz, ponderados o interesse da criança e eventual necessidade de exercício do contraditório (art. 104º da LPCJP). 4. Nos termos do disposto no nº 3 do art. 27º da Portaria nº 280/13, de 26.08, à consulta eletrónica de processos aplicam-se as restrições de acesso e consulta legalmente previstas. 5. A ponderação conjugada do referido nº 3 do art. 27º com o art. 88º da LPCJP, obsta a uma consulta aberta e ilimitada por via da aplicação informática CITIUS.
Texto Integral
Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
No procedimento judicial de promoção e proteção relativo à menor Maria, feita conclusão com a informação de que “… Relativamente à disponibilização dos autos no citius, o mesmo não será possível, porquanto ao fazê-lo o mesmo ficará disponível a todos os advogados com ou sem procuração nos autos. Ora tratando-se de um processo de Promoção e Proteção o mesmo tem que constar no citius como processo de acesso confidencial, uma vez que o mesmo é de carácter reservado conforme o disposto no art.º 88º da LPCJP e conforme o art.º 27, n.º 3 da Portaria 280/2013 de 26 de agosto. Assim, V. Exa. ordenará o que tiver por conveniente”, foi proferido o seguinte despacho: “Deflui do normativo inserto no artigo 88.º da LPCJP que: “1 - O processo de promoção e proteção é de caráter reservado. 2 - Os membros da comissão de proteção têm acesso aos processos em que intervenham, sendo aplicável, nos restantes casos, o disposto nos n.os 1 e 5. 3 - Os pais, o representante legal e as pessoas que detenham a guarda de facto podem consultar o processo pessoalmente ou através de advogado. 4 - A criança ou jovem podem consultar o processo através do seu advogado ou pessoalmente se o juiz ou o presidente da comissão o autorizar, atendendo à sua maturidade, capacidade de compreensão e natureza dos factos. 5 - Pode ainda consultar o processo, diretamente ou através de advogado, quem manifeste interesse legítimo, quando autorizado e nas condições estabelecidas em despacho do presidente da comissão de proteção ou do juiz, conforme o caso. (…). Por seu turno, o artigo 27º, nº 3 da Portaria nº 280/2013, de 26 de agosto estabelece que à consulta eletrónica de processos aplicam-se as restrições de acesso e consulta legalmente previstas. Assim, e em obediência ao retro mencionado artigo 88º da LPCJP, indefere-se o requerido por inadmissibilidade legal, sem prejuízo da autorização da consulta presencial do processo, nos termos referidos na informação supra. Sem custas atenta a simplicidade do incidente. Notifique”.
Não se conformando com a decisão, apelou F (mãe da menor), tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1 O processo dos autos tem, efetivamente, natureza reservada, reserva que não se aplica à mãe da menor, ora recorrente, pela expressa licença contida no art.º 88º, nºs 1 e 3, da LPJCP.
2 A portaria nº 280/2013, de 26 de agosto, na redação atual, preceitua que advogados e solicitadores podem consultar eletronicamente os processos via Citius; mas naqueles em que não exerçam mandato judicial, tal consulta é solicitada, casuisticamente, à secretaria judicial, que, sendo o processo reservado, terá de recusar tal solicitação, atento o regime do referido art.º 88º, nºs 1 e 3.
3 O despacho a quo funda-se no regime do art.º 27º, nº 3, da Portaria nº 280/2013, na redação atual, que limita a consulta eletrónica pelas restrições de acesso e consulta legalmente previstas, inaplicáveis à ora recorrente.
4 O despacho a quo viola, assim, os art.ºs 88º, nºs 1 e 3, da LPJCP, e 27º, nºs 1 e 3, da Portaria nº 280/2013, na redação atual, e os art.ºs 3º, nº 3, e 4º, do CPC, porquanto o MP tem livre acesso ao processo e o contraditório da ora recorrente está continuadamente dificultado pela falta de acesso tempestivo aos autos, o que determinará a nulidade dos atos processuais em que a não violação da lei fosse essencial.
5 Deve, assim, ser revogado o despacho recorrido e autorizada a recorrente a consultar eletronicamente os autos.
O MP contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação e confirmação do despacho recorrido. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC) a única questão a decidir é se a progenitora da menor pode, através do seu mandatário, ter acesso ao processo eletronicamente (através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais). Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante é a constante do relatório supra. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Insurge-se a apelante contra o despacho recorrido sustentando que o mesmo viola os arts. 88º, nºs 1 e 3 da LPCJP (porquanto a natureza reservada do processo não se aplica à apelante, pela expressa licença contida neste artigo), 27º, nºs 1 e 3 da Portaria nº 280/2013 (porque os advogados e solicitadores podem consultar eletronicamente os processos via citius, mas naqueles em que não exerçam mandato judicial, tal consulta é solicitada casuisticamente, à secretaria judicial, que, sendo o processo reservado, terá de recusar tal solicitação), e 3º, nº 3 e 4º do CPC (porquanto o MP tem livre acesso ao processo e o contraditório da apelante está continuamente dificultado pela falta de acesso tempestivo as autos).
Vejamos.
O que está em causa no presente recurso é, apenas, se a mãe da menor a que respeita o presente processo de promoção e proteção pode ter acesso ao mesmo através do citius, por intermédio do seu mandatário.
Estamos no âmbito de um processo de promoção e proteção de menor, regulado pela Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei nº 147/99, de 1.09 [1].
Como resulta do nº 1 do art. 3º da LPCJP a intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.
O objetivo da intervenção do sistema de proteção é o de pôr termo a uma determinada situação de perigo e estabilizar a situação da criança e do jovem, seguindo-se a definição do seu projeto de vida.
A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo deve obedecer aos princípios enunciados no art. 4º da LPCJP, entre os quais consta o do interesse superior da criança e do jovem (al. a) do referido artigo), segundo o qual a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem.
Outro dos princípios a que deve obedecer a intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo é o da privacidade (al. b) do mesmo artigo), segundo o qual a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada.
O art. 88º da LPCJP concretiza o princípio da privacidade estabelecido no referido art. 4º, al. b) da LPCJP, em sintonia com o disposto no artigo 16º da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90, publicada no DR nº 211/90, Série I, de 12.09 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90, de 12.09.
Em anotação ao art. 88º, escreve-se no Comentário à Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, da Procuradoria-Geral Regional do Porto, Almedina, pág. 405, que “Concretiza-se, neste preceito, o princípio da privacidade, estabelecido no art. 4º al. b) como princípio orientador da intervenção, visando assegurar que a intervenção seja efetuada no respeito pela intimidade e reserva da vida privada da criança ou jovem, pelo seu direito ao bom nome e à imagem, como também no respeito pelo seu direito à segurança e tranquilidade”.
Dispõe o art. 88º da LPCJP, sob a epígrafe “Caráter reservado do processo”, que: “1 - O processo de promoção e proteção é de caráter reservado. 2 - Os membros da comissão de proteção têm acesso aos processos em que intervenham, sendo aplicável, nos restantes casos, o disposto nos nºs 1 e 5. 3 - Os pais, o representante legal e as pessoas que detenham a guarda de facto podem consultar o processo pessoalmente ou através de advogado. 4 - A criança ou jovem podem consultar o processo através do seu advogado ou pessoalmente se o juiz ou o presidente da comissão o autorizar, atendendo à sua maturidade, capacidade de compreensão e natureza dos factos. 5 - Pode ainda consultar o processo, diretamente ou através de advogado, quem manifeste interesse legítimo, quando autorizado e nas condições estabelecidas em despacho do presidente da comissão de proteção ou do juiz, conforme o caso. 6 - Os processos das comissões de proteção são destruídos quando a criança ou jovem atinjam a maioridade ou, nos casos da alínea d) do nº 1 e do nº 2 do artigo 63º, os 21 anos ou 25 anos, respetivamente. 7 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a informação a que alude o disposto no nº 1 do artigo 13º-A [2] é destruída assim que o processo ao abrigo do qual foi recolhida seja arquivado, pelo facto de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir. 8 - Em caso de aplicação da medida de promoção e proteção prevista na alínea g) do nº 1 do artigo 35º [3], deve ser respeitado o segredo de identidade relativo aos adotantes e aos pais biológicos do adotado, nos termos previstos no artigo 1985º do Código Civil e nos artigos 4º e 5º do Regime Jurídico do Processo de Adoção, aprovado pela Lei nº 143/2015, de 8 de setembro, e, salvo disposição especial, os pais biológicos não são notificados para os termos do processo posteriores ao trânsito em julgado da decisão que a aplicou. 9 - Quando o processo tenha sido arquivado nos termos da alínea c) do nº 2 do artigo 21º [4], é destruído passados dois anos após o arquivamento”.
O carácter reservado do processo significa que só as pessoas referidas nos vários números do art. 88º têm acesso ao processo, podendo consultá-lo.
Assim, podem consultar o processo os pais do menor, o seu representante legal ou as pessoas que detenham a sua guarda de facto, por si ou através de advogado (nº 3).
Também a criança ou jovem podem consultar o processo, através do seu advogado ou pessoalmente, caso a sua maturidade e capacidade de compreensão e natureza dos factos o consintam e o juiz o autorize (nº 4).
Por último, pode consultar o processo quem manifeste interesse legítimo, mediante prévia autorização, e nas condições estabelecidas em despacho pelo juiz, ou pelo presidente da comissão de proteção, conforme o caso (nº 5).
Afigura-se-nos, porém, que o princípio da privacidade pode determinar que mesmo aquela autorizada consulta do processo se faça em termos limitados, tendo em conta o superior interesse da criança (art. 4º, al. a)) [5].
Por outro lado, carácter reservado do processo tem outras implicações, para além das limitações impostas à sua consulta, que são, por um lado, a do respeito do segredo sobre determinados dados (nº 8), e, por outro, a da sua necessária destruição, nos termos dos nºs 6, 7 e 9, a implicar que a extração de eventuais cópias ou certidões do mesmo careçam, necessariamente, de ser autorizadas pelo juiz, ponderados o interesse do menor e eventual necessidade de exercício do contraditório (art. 104º da LPCJP) [6].
Nos termos do disposto no art. 27º da Portaria nº 280/13, de 26.08, que regulamenta a tramitação eletrónica dos processos nos tribunais judiciais, “1- A consulta de processos por parte de advogados e solicitadores é efetuada: a) Relativamente à informação processual, incluindo as peças e os documentos, existentes em suporte eletrónico, através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, com base no número identificador do processo; ou b) Junto da secretaria. 2- O acesso ao sistema informático de suporte à atividade dos tribunais para efeitos de consulta de processos requer o prévio registo dos advogados e solicitadores, nos termos do nº 2 do artigo 5º 3- À consulta eletrónica de processos aplicam-se as restrições de acesso e consulta legalmente previstas. 4- A consulta por advogados e solicitadores de processos nos quais não exerçam o mandato judicial é solicitada à secretaria, que disponibiliza o processo por um período de 10 dias para consulta na área reservada do mandatário no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais” (sublinhado nosso).
De acordo com o nº 3 do citado artigo, à consulta eletrónica de processos aplicam-se as restrições de acesso e consulta legalmente previstas, afigurando-se-nos que a ponderação conjugada deste normativo com o art. 88º da LPCJP, nos termos acabados de referir, leva a concluir que bem andou o tribunal recorrido ao não permitir o acesso ao processo através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais (citius) ao mandatário da mãe da menor, sem prejuízo do acesso à consulta do mesmo presencialmente, nos termos permitidos por lei.
Como se sumariou no Ac. da RL de 12.1.2010, P. 487/08.3TMLSB.L1-7 (Tomé Gomes), em www.dgsi.pt, referido pelo MP, com perfeita pertinência embora em situação não absolutamente idêntica, “1. Segundo os nº 1 e 4 do artigo 88º do Dec. Lei nº 147/99, de 1 de setembro, o processo de promoção e proteção reveste carácter reservado, o que não obsta a que a criança ou jovem possam consultar o processo através do seu advogado ou pessoalmente se o juiz autorizar, atendendo à sua maturidade, capacidade de compreensão e natureza dos factos. 2. A natureza reservada do processo de promoção e proteção de menores tem em vista garantir, para além da proteção da identidade dos adotantes e dos pais naturais do adotando, uma forte proteção da intimidade, do direito à imagem e da reserva da vida privada do menor. 3. Tal nível de proteção não se pode traduzir num obstáculo ao acesso do advogado do menor aos elementos do processo, mormente os de natureza probatória, em que se alicerçou ou se possa alicerçar a convicção do tribunal. 4. Porém, não será lícita uma consulta aberta e ilimitada por via da aplicação informática CITIUS, não obstante esta se traduzir numa maior facilidade de acesso, na medida em que esta não permita fazer o controlo judicial do acesso aos elementos do processo, em especial quanto à extração das respetivas cópias. 5. Os direitos de defesa ficarão suficientemente garantidos pela consulta física dos autos pelas partes e seus advogados, nas condições previstas na lei, e pela obtenção discriminada e especialmente autorizada de certidões dos elementos relevantes para a organização da defesa, desde que não se imponham razões ponderosas de reserva que contrariem tal obtenção. …”.
O despacho recorrido não viola, pois, os arts. 88º, nºs 1 e 3 da LPCJP e 27º, nºs 1 e 3 da Portaria nº 280/2013, sendo de manter.
Nem os arts. 3º, nº 3 e 4º do CPC (este último de aplicação duvidosa atenta a natureza do processo em causa) uma vez que a apelante pode consultar o processo na secretaria, sendo-lhe assegurado o exercício do contraditório (art. 104º da LPCJP).
Com interesse nesta matéria, ver o Ac. do TC nº 62/2017, de 14.2.2017, P. 605/2016 (José António Teles Pereira), em www.dgsi.pt, também referido pelo MP em contra-alegações.
Porquanto se deixa escrito, conclui-se pela improcedência da apelação, e manutenção da decisão recorrida.
As custas do recurso ficam a cargo da apelante, por ter ficado vencida – art. 527º, nºs 1 e 2 do CPC. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se o despacho recorrido.
Custas pela apelante.
*
Lisboa, 2020.10.13
Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa
Carla Câmara
_______________________________________________________ [1] Alterada pela Lei nº 31/2003, de 22/08, Lei nº 142/2015, de 08/09, Lei nº 23/2017, de 23/05 e Lei nº 26/2018, de 05/07. [2] Acesso a dados pessoais sensíveis. [3] Confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista a adoção. [4] Arquivamento imediato do processo quando se verifique manifesta desnecessidade de intervenção. [5] Com interesse nesta matéria, cfr. o Ac. da RL de 2.5.2017, P. 14091/09.5T2SNE-A.L1-7 (Rosa Ribeiro Coelho), em www.dgsi.pt. [6] Neste sentido, com interesse, cfr. o Ac. da RC de 3.5.2010, P. 451/09.5TMCBR-A.C1 (Fonte Ramos), na CJ on line. Tomé d’Almeida Ramião, em Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, 7ª ed., pág. 190, entende, mesmo, que o art. 88º da LPCJP excluí a possibilidade de passagem de certidões ou cópias.