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PARTILHA DOS BENS DO CASAL
EMENDA
ERRO DE CÁLCULO
Sumário
1 – Na acção de emenda da partilha não está em causa qualquer reapreciação crítica dos actos praticados no decurso do inventário já findo, mas apenas apurar se um acto, específico e determinado, do processo – a partilha – padece ou não de alguma das deficiências ou irregularidades tipificadas nos artigos 1386º e 1387º do Código de Processo Civil. 2 – A emenda da partilha pode ter lugar por um de dois meios: por acordo dos interessados, portanto como incidente do próprio processo de inventário (artigo 1386º do Código de Processo Civil); ou, na falta de acordo, em acção própria, de emenda da partilha, acção que será dependência do processo de inventário (artigo 1387º do mesmo diploma). Existe ainda uma terceira que é a da anulação da partilha, com fundamento em erro-vício da vontade. 3 – Fora do contexto da emenda de partilha, o Tribunal pode determinar a modificação da partilha se a mesma assentar num erro de escrita ou de cálculo, que está sob a protecção da disciplina do artigo 614º do Código de Processo Civil. Esta alteração depende da circunstância de esse erro resultar de lapso manifesto, que se evidencie com absoluta clareza do contexto da declaração ou das circunstâncias em que a declaração é feita. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Processo nº 43/13.4TMFAR.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Família e Menores de Faro – J3 * Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
* I – Relatório:
No presente inventário para separação de meações em que são interessados (…) e (…), o primeiro não se conformou com a decisão de rectificação da partilha e interpôs recurso por considerar que o Tribunal alterou o conteúdo decisório da sentença proferida no processo. *
No dia 26/01/2018, em sede de conferência de interessados e após licitações, os interessados foram notificados para se pronunciarem quanto à partilha, nos termos do disposto no artigo 1373º do Código do Processo Civil.
*
Foi dada a forma à partilha.
*
Em 23/02/2018, foi proferido o seguinte despacho: “Nos presentes autos de inventário a que se procede por divórcio de (…) e (…), proceder-se-á à partilha da seguinte forma:
Somam-se os valores dos bens descritos, com os valores decorrentes do acordo celebrado em conferência de interessados;
A esse valor abate-se o passivo;
O remanescente será dividido em duas partes iguais, correspondendo cada uma à meação de cada um dos interessados;
Na composição dos quinhões ter-se-á em conta as licitações efectuadas em conferencia de interessados, repondo quem dever.
Proceda-se à elaboração do mapa informativo».
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O mapa informativo em apreço foi elaborado.
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Em 25/03/2018, foi elaborado despacho com o seguinte conteúdo: «Vi o mapa de partilha que antecede, o qual não contém rasuras nem entrelinhas, nem nada que me mereça dúvidas, pelo que o rubriquei.
Ponha em reclamação».
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Em 26/03/2018, as partes foram notificadas do teor de tal despacho e não apresentaram reclamações ao mapa de partilha.
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Em 15/06/2018, foi proferida a sentença homologatória da partilha, que decidiu: «(…) Vistos os autos e o disposto nos artigos 1382º e 1404º, do Código P. Civil, homologo, pela presente sentença a partilha constante do sobredito mapa, adjudicando os bens, pela forma constante do mesmo, a cada um dos interessados. Mais se condena o interessado (…) a pagar a quantia de € 112.791,25 de tornas à interessada … (…)».
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A referida sentença não foi impugnada por via recursal.
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A 27/09/2018, a interessada (…) intentou execução para pagamento de quantia certa.
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Em 08/01/2020, a sobredita (…) veio requerer a rectificação de erro de escrita que consta nos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 249º do Código Civil, solicitando que ao invés de € 112.791,25 (cento e doze mil, setecentos e noventa e um euros e vinte cêntimos) passasse a contar a quantia de € 281.499,50 (duzentos e oitenta e um mil, quatrocentos e noventa e nove euros e cinquenta cêntimos).
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Devidamente notificado, o recorrente (…) opôs-se ao requerido.
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Em 20/02/2020, foi aberta conclusão com a seguinte informação: «à Mmª. Juíza de que examinando nesta data o mapa de partilha verifico agora que o mesmo não se encontra claro no que diz respeito ao valor do passivo a pagar por cada interessado. O valor do passivo é pago pelos interessados na proporção do quinhão que cada um recebe (1/2 para cada um = €: 55.117,56 / 2 = €: 27.558, 78), teria pois assim de ser abatido o passivo da responsabilidade de cada interessado ao quinhão que cada um recebeu, apurando-se o montante final correspondente ao valor do quinhão de cada um – nº 2 do artº 59º da Lei nº 23/2013, de 05/03. Não se encontrando assim o mapa informativo de fls. 474 e 474 v. corretamente elaborado relativamente ao cálculo do quinhão de cada um depois de descontado o passivo da sua responsabilidade e, por conseguinte, as tornas a receber. Pelo que a Mmª. Juíza ordenará o que tiver por conveniente.
(Termo eletrónico elaborado por Escrivão de Direito …).
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Por despacho da mesma data foi prolatado o despacho recorrido, que na parte que interessa, contém a seguinte decisão:
«Vi a informação que antecede. * Veio a interessada (…), alegando erro de cálculo, requerer que se proceda à retificação da partilha, nos termos que constam de fls. 500-501. Notificado o cabeça de casal veio o mesmo opor-se alegando em suma que não se trata de erro de cálculo, mas sim de emenda de partilha, a que não dá o seu acordo. E, sem embargo, alega que a partilha está feita em conformidade. Apreciando. O art.º 1126º do CPC permite a emenda da partilha mesmo depois de transitada em julgado a sentença desde que haja acordo de todos os interessados, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro suscetível de viciar a vontade das partes. Compulsado o requerimento constatamos que o que ali se alega não se integra em qualquer das circunstâncias previstas na mencionada disposição legal, pelo que não é caso de emenda de partilha. E, do requerimento da interessada (…), concluímos desde logo que não lhe assiste razão, nos termos em que alega. Isto porque o valor das tornas, não resulta da subtração do valor correspondente ao quinhão da interessada, ao valor correspondente ao quinhão do cabeça de casal, como aquela pretende, mas antes da subtração ao valor correspondente ao quinhão do cabeça de casal (onde se desconta o passivo que lhe corresponde), do valor que o mesmo teria direito a receber (€ 552.700,00 – 27.958,78 = 524.741,22 – 383.991,22 = €140.750,00). Destarte, existe efetivamente inexatidão do mapa de partilha, mas não nos termos alegados pela interessada, pois no mapa de partilha não se descontou no quinhão que cabe a cada interessado o valor do passivo de que são responsáveis, o que obviamente vicia os cálculos e a parcela referente a tornas não está corretamente calculada. Ora nos termos do art.º 613º do CPC o juiz pode retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença. Por sua vez o art.º 614º do mencionado diploma legal refere que o juiz, se a sentença contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode corrigir a mesma por simples despacho. Nestes termos e por se tratar de uma omissão decorrente de lapso manifesto, que vai determinar um erro de cálculo, determino que ao valor que cabe a cada um dos interessados seja abatido o passivo respetivo e, consequentemente, se corrija em conformidade o mapa de partilha. Notifique e d.n * Em face do que se deixa dito, a sentença que antecede (fls. 481), contém um erro de cálculo cuja correção se impõe, nos termos da supra mencionada disposição legal. Assim e, no que respeita ao valor das tornas a pagar, onde se lê: “(...) Mais se condena o interessado (…) a pagar a quantia de € 112.791,25 de tornas à interessada … (...)”, deve passar a ler-se: “Mais se condena o interessado (…) a pagar a quantia de € 140.750,00 de tornas à interessada (…)”. Oportunamente, corrija no local próprio, fazendo menção ao presente despacho que fará parte integrante da sentença. Notifique».
*
Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«1 – A decisão recorrida ordenou a correcção do mapa da partilha e alterou a sentença homologatória da partilha:
2 – Fê-lo ao abrigo do disposto nos artigos 613º e 614º do CPC, por considerar estarmos perante “uma omissão decorrente de lapso manifesto, que vai determinar um erro de cálculo”.
3 – A decisão em apreço foi provocada por requerimento da recorrida datado de 08/01/2020, em que esta peticionou: “Requer-se assim esta retificado o valor 112.791,25 € para 281.499.50 €, sendo este último o que deve ficar a constar no item pagamentos do mapa informativo”.
4 – O recorrente pugnou pelo indeferimento da pretensão da recorrida.
5 – E desde logo manifestou a sua discordância a qualquer retificação da partilha.
6 – No dia 26 de janeiro de 2018, em sede de conferência de interessados e após licitações, foram os interessados notificados para se pronunciarem quanto à partilha, nos termos do disposto no artigo 1373º do Código do Processo Civil.
7 – Em 23 de fevereiro de 2018, o despacho seguinte:
“Nos presentes autos de inventário a que se procede por divórcio de (…) e (…), proceder-se-á à partilha da seguinte forma:
Somam-se os valores dos bens descritos, com os valores decorrentes do acordo celebrado em conferência de interessados;
A esse valor abate-se o passivo;
O remanescente será dividido em duas partes iguais, correspondendo cada uma à meação de cada um dos interessados;
Na composição dos quinhões ter-se-á em conta as licitações efectuadas em conferencia de interessados, repondo quem dever.
Proceda-se à elaboração do mapa informativo”.
8 – O mapa informativo em apreço foi elaborado nos precisos termos do antedito despacho.
9 – Na sequência do mesmo foi proferido, em 25 de março de 2018, o despacho seguinte:
“Vi o mapa de partilha que antecede, o qual não contém rasuras nem entrelinhas, nem nada que me mereça dúvidas, pelo que o rubriquei.
Ponha em reclamação”.
10 – Notificada do teor de tal despacho, em 26 de março de 2018, a ora requerente não reclamou do mapa de partilha.
11 – Em 15 de junho de 2018, foi proferida a seguinte sentença homologatória da partilha:
“(…)
Vistos os autos e o disposto nos artigos 1382º e 1404º do Código P. Civil, homologo, pela presente sentença a partilha constante do sobredito mapa, adjudicando os bens, pela forma constante do mesmo, a cada um dos interessados.
Mais se condena o interessado (…) a pagar a quantia de € 112.791,25 de tornas à interessada (…).
(…)”.
12 – A recorrida foi notificada da antedita sentença em 18 de junho de 2018.
13 – Dela não interpôs recurso, pelo que a mesma transitou em julgado.
14 – A recorrida, em 27 de setembro de 2018, executou a sobredita sentença com vista à cobrança das tornas que lhe eram devidas.
15 – “In casu” é patente que inexiste qualquer erro na partilha.
16 – Pelo que o recorrente não dá o seu acordo à pretendida “retificação”.
De facto:
17 – O mapa da partilha foi organizado em harmonia com o despacho sobre a forma da partilha e em cumprimento do disposto do artigo 1375º, nº 2, do CPC, na redacção aplicável.
18 – A recorrida está de acordo que o acervo a partilhar tem o valor de 767.982,50.
19 – Resultando assim que o seu quinhão, tal como o do interessado (…), tem o valor de 383.991,25 € (767.982,50 € : 2 = 383.991,25 €).
20 – Ora, se a mesma recebeu, por via da partilha, bens no valor de 271.200,00 € (verbas 2 e 6), teria de receber de tornas, como de facto recebeu, 112.791,25 € (271.200 € + 112.791,25 € = 383.991,25 €).
21 – No caso vertente não se está perante um erro de cálculo ou de escrita, conforme prevê o artigo 614º do NCPC, normativo ao abrigo do qual o tribunal recorrido decidiu.
22 – O mapa de partilha, cuja retificação se ordenou, não foi objecto de reclamação e foi elaborado nos precisos termos da sentença que deu forma à partilha e que transitou em julgado.
23 – Em 15 de junho de 2018, foi proferida sentença homologatória da partilha, que transitou em julgado.
24 – Ao contrário do que se diz na decisão recorrida não se verifica qualquer inexatidão no mapa de partilha (de que a recorrida não reclamou).
25 – No caso vertente é evidente não estarmos perante qualquer erro material na sentença homologatória da partilha (“erro de escrita ou cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto” – cfr. artigos 613º e 614º do NCPC).
E é esta sentença homologatória da partilha, transitada em julgado, que foi alterada pela decisão em crise.
26 – Ora, “proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa” (cfr. artigo 613º, nº 1, do NCPC).
27 – A rectificação possível de erro de escrita de que enferme uma decisão (seja um despacho, uma sentença ou um acórdão), autorizada pelos artigos 613º e 614º do CPC, depende da circunstância de esse erro resultar de lapso manifesto, que se evidencie com absoluta clareza do contexto da declaração ou das circunstâncias em que a declaração é feita.
28 – O que não se verifica no caso vertente.
29 – O Tribunal “a quo” fez incorrecta interpretação do disposto nos artigos 613º e 614º do CPC.
30 – E violou o disposto no artigo 613º, nº 1, do CPC.
31 – Tudo razões para ser revogada a decisão recorrida, mantendo-se inalterado o mapa de partilha e a sentença homologatória da partilha.
Assim se fazendo Justiça».
*
A parte contrária não contra-alegou. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. * II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da possibilidade de alteração do anteriormente decidido com base em erro de cálculo.
* III – Dos factos apurados:
Os factos com interesse para a justa resolução do litígio são os que constam do relatório inicial.
* IV – Fundamentação:
Atenta a data da respectiva instauração (2013), ao presente processo de inventário é aplicável o regime emergente do Código de Processo Civil na redacção introduzida pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto.
A questão crucial está relacionada com a forma como foi organizado o mapa de partilha e a possível influência negativa que essa operação poderá ter tido nos termos subsequentes do processo e na atribuição de tornas aos interessados na partilha. E isso implica olhar para a regra contida no nº 2 do artigo 1375º do Código Processo Civil, na redacção aplicável.
Dispunha a norma em causa que «para a formação do mapa acha-se, em primeiro lugar, a importância total do activo, somando-se os valores de cada espécie de bens conforme as avaliações e licitações efectuadas e deduzindo-se as dívidas, legados e encargos que devam ser abatidos; em seguida determina-se o montante da quantia de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens; por fim, faz-se o preenchimento de cada quota com referência aos números das verbas da descrição».
Depois da partilha e da sentença que a homologou a única via para se obter a emenda da partilha é a sua impugnação, conjuntamente com a impugnação da sentença, pelo recurso. Todavia, ainda assim, o regime do caso julgado é aqui atenuado com um conjunto de hipóteses que passam quer pela valorização geral de excepção às limitações da extinção do poder judicial[1], quer por mecanismos de alteração típicos do inventário.
Confrontada com o requerimento da interessada (…), a Meritíssima Juíza «a quo» entendeu que «existe efetivamente inexatidão do mapa de partilha, mas não nos termos alegados pela interessada, pois no mapa de partilha não se descontou no quinhão que cabe a cada interessado o valor do passivo de que são responsáveis, o que obviamente vicia os cálculos e a parcela referente a tornas não está corretamente calculada».
E, nesta sequência, ao abrigo do disposto no artigo 613º do Código de Processo Civil, rectificou o alegado erro material, condenando o interessado (…) a pagar a quantia de 140.750,00 € de tornas à interessada (…).
Aquilo que é submetido à apreciação do Tribunal da Relação de Évora visa apurar se estamos perante uma emenda à partilha ou simplesmente com a correcção de um erro de cálculo aritmético.
A emenda da partilha obedece a um regime próprio e não se regula unicamente pelo regime geral de rectificação de erros materiais previstos nos artigos 613º e 614º do Código de Processo Civil.
Na acção de emenda da partilha não está em causa qualquer reapreciação crítica dos actos praticados no decurso do inventário já findo, mas apenas apurar se um acto, específico e determinado, do processo – a partilha – padece ou não de alguma das deficiências ou irregularidades tipificadas nos artigos 1386º e 1387º do Código de Processo Civil[2].
Dispõe o nº 1 do artigo 1386º Código de Processo Civil na redacção aplicável que a partilha, ainda depois de passar em julgado a sentença, pode ser emendada no mesmo inventário por acordo de todos os interessados ou dos seus representantes, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes.
De acordo com a jurisprudência mais autorizada a emenda da partilha pode ter lugar por um de dois meios: por acordo dos interessados, portanto como incidente do próprio processo de inventário (artigo 1386º do Código de Processo Civil); ou, na falta de acordo, em acção própria, de emenda da partilha, acção que será dependência do processo de inventário (artigo 1387º do Código de Processo Civil)[3]. Existe ainda uma terceira que é a da anulação da partilha, com fundamento em erro-vicio da vontade[4].
A emenda da partilha, na falta de acordo dos interessados, tem, assim, de radicar num erro de facto na descrição ou qualificação dos bens, ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes. E, relativamente a este último tipo de vício, tal como defende a jurisprudência constante dos Tribunais Superiores, haverá que exigir, que o erro que fundamenta o pedido apresente as «[…] características que o tomariam relevante como erro-vício da vontade: essencialidade ou causalidade, propriedade e escusabilidade ou desculpabilidade […]», para o que cumpre ao Autor a alegação da respectiva matéria de facto[5].
Em face do disposto nos artigos 1386º e 1387º, Capelo de Sousa opina que não se trata de anular acto nenhum, mas de emendar uma partilha com fundamento em erro, sendo que o princípio dominante em sede de emenda da partilha é o da manutenção ou conservação, na medida do possível, do acto a emendar[6][7].
João António Lopes Cardoso considera que o erro de facto na descrição corresponde a «toda a descrição que não corresponda a verdade»[8][9]. Tratando-se de erro de facto ou de erro de direito é «indispensável o acordo de todos os interessados ou dos seus representantes» para que se possa proceder à emenda da partilha no próprio processo, sem necessidade de instauração de acção autónoma[10].
Na acção para emenda de partilha incumbe ao autor, por ser facto constitutivo do seu direito, a prova de que o conhecimento do erro é posterior à sentença homologatória da partilha; diversamente, a demonstração do decurso do prazo de um ano sobre esse conhecimento fica a cargo do réu por se tratar de matéria de exceção peremptória[11].
Lido o requerimento apresentado, a interessada (…) não alega a existência de erro de facto na descrição ou qualificação dos bens nem qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes e isso afasta, desde logo, a possibilidade de aplicação da disciplina da emenda da partilha. E, ainda que assim fosse, estaria inviabilizada a procedência do incidente através deste instrumento processual, dado que a alteração do previamente decidido implicava a concordância do co-interessado no sentido de ser corrigido o sentido decisório contido na sentença de inventário e esse assentimento não acontece no presente caso. Também não está pedida a anulação de nada[12].
Posto isto, resta decidir se a modificação determinada pelo Tribunal assenta num erro de escrita ou de cálculo, que está sob a protecção da disciplina do artigo 614º do Código de Processo Civil. Esta alteração depende da circunstância de esse erro resultar de lapso manifesto, que se evidencie com absoluta clareza do contexto da declaração ou das circunstâncias em que a declaração é feita[13].
De outro modo, caso se trate de uma alteração que não se enquadre nestes pressupostos, o Tribunal está vinculado ao sentido decisório anterior e não poderá assim introduzir qualquer variação que constitua uma alteração de substância ao veredicto transitado em julgado.
Ou, noutra formulação, se não se tratar de um erro de cálculo evidente, ocorre a impossibilidade de qualquer Tribunal, incluindo o que proferiu a decisão, voltar a emitir pronúncia sobre a questão decidida – efeito negativo – e a vinculação do mesmo Tribunal e eventualmente de outros, estando em causa o caso julgado material, à decisão proferida – efeito positivo do caso julgado[14].
A forma à partilha foi correctamente elaborada e existe apenas um problema matemático necessário a promover a equalização de quinhões. O montante bruto do activo a partilhar ascende a 823.900,00 € (oitocentos e vinte e três mil e novecentos euros), a este valor tem de ser deduzido o montante do passivo que se cifra em 55.917,56 € (cinquenta e cinco mil, novecentos e dezassete euros e cinquenta e seis cêntimos). O activo líquido a partilhar é assim de 767.982,50 € (setecentos e sessenta e sete mil, novecentos e oitenta e dois euros e cinquenta cêntimos),
Daqui resultava que cada um dos dois interessados teria direito a um quinhão no valor de 383.991,25 € (trezentos e oitenta e três mil, novecentos e noventa e um euros e vinte e cinco cêntimos). Numa leitura simplista a requerida recebeu bens no valor de 271.200,00 € (duzentos e setenta e um mil e duzentos euros) e com o acréscimo de 112.791,25 € (cento e doze mil, setecentos e noventa e um euros e vinte e cinco cêntimos) preencheria a sua quota-parte na divisão dos bens comuns.
Todavia, se assim fosse, o fiel da balança não ficaria ajustado, pois o interessado (…) sairia claramente beneficiado, dado que ficaria com um património decorrente da partilha avaliado em 439.908,75 € (quatrocentos e trinta e nove mil, novecentos e oito euros e setenta e cinco cêntimos) (552.700,00 € - 112.791,25 €).
A única forma de estabelecer o equilíbrio absoluto entre os membros do extinto casal é fazer o cálculo de forma a que ao valor resultante das licitações do interessado … (correspondendo a valores ilíquidos) se tem de descontar a sua parte do passivo que lhe coube (27.958,78 €), pois esse resultado é o valor que ele efectivamente recebeu (neste caso em excesso) e depois obter a diferença para o quinhão (líquido) da outra interessada (383.991,25 €).
De outro modo, a interessada que recebeu tornas ficaria duplamente onerada com o encargo do passivo e a assim a fórmula de cálculo sugerida na informação e depois adoptada no despacho recorrido fomenta a situação de igualdade[15].
Por isso, não merece qualquer censura o raciocínio expresso na fórmula contida na sentença recorrida, porquanto, tal como ali se diz, «o valor das tornas, não resulta da subtração do valor correspondente ao quinhão da interessada, ao valor correspondente ao quinhão do cabeça de casal, como aquela pretende, mas antes da subtração ao valor correspondente ao quinhão do cabeça de casal (onde se desconta o passivo que lhe corresponde), do valor que o mesmo teria direito a receber».
Trata-se de matemática pura, estamos assim confrontados com um mero erro de cálculo, que se traduz num lapso manifesto e que é perfeitamente escrutinável por qualquer cidadão médio.
No constitui assim o despacho recorrido uma alteração substancial àquilo que foi anteriormente decidido e a decisão recorrida limita-se assim a reconstituir histórica e matematicamente a igualdade real entre os interessados, atribuindo a cada um deles o que de direito lhe cabia.
Aliás, numa partilha de meação de bens comuns, não merece a mínima contestação que o objectivo da forma à partilha, do mapa de partilha e da sentença de inventário é fomentar a igualdade entre os interessados, quando os mesmos estão de acordo na realização de divisão igualitária do património. Assim sendo, com base nesse pressuposto, é a matemática que é instrumental ao direito e à realização das operações tendentes à cessação da comunhão e não é aritmética e as suas possíveis falhas que podem prevalecer sobre o interesse das partes em criar um equilíbrio real na repartição de bens e de dinheiro a atribuir a cada um dos sujeitos processuais.
Desta forma, de forma acertada e superior, o Tribunal «a quo» corrigiu o erro de cálculo de imputar a dívida na contabilidade daquele que havia recebido em quantidade inferior ao do seu quinhão, prejudicando-o assim, de forma involuntária, na partilha de bens.
Nesta equação, sem qualquer reparo e não contrariando o anteriormente decidido, a Meritíssima Juíza de Direito promoveu o equilíbrio prestacional comutativo entre as partes, conquistando assim o aplauso pela forma como fez Justiça e aplicou o direito.
* V – Sumário: (…) * V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, atento o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique. *
(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
*
Évora, 10/09/2020
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário
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[1] Artigo 613.º (a que correspondia o artigo 666º do Código de 1961):
Extinção do poder jurisdicional e suas limitações
1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.
3 - O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos.
[2] Como sublinha a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o objecto e típica funcionalidade da acção de emenda da partilha não se traduz numa reapreciação crítica dos actos praticados no decurso do inventário já findo, mas apenas em apurar se um acto, específico e determinado do processo – a partilha – padece ou não de alguma das deficiências ou irregularidades tipificadas nos art. 1386º e 1387º do CPC: erro na descrição ou qualificação dos bens partilhados ou outro erro susceptível de viciar a vontade das partes – que deverão ser sanadas, tanto quanto possível, sem pôr em causa a validade e eficácia da partilha globalmente realizada, cujos efeitos se deverão, em princípio manter, já que o acto não é objecto de anulação – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/02/2010, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/2004, publicado em www.dgsi.pt.
[4] Mais recentemente, o Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão datado de 04/06/2015, emitiu posição idêntica nos seguintes termos: «Sem embargo, mesmo depois de transitada em julgado a sentença, pode ainda a partilha ser corrigida no mesmo inventário por acordo unânime dos interessados (art.º 1386º do C.P.C.V.); em acção a intentar no prazo de um ano a contar do conhecimento do erro desde que este conhecimento seja posterior à sentença (art.º 1387º do C.P.C.V.); se se configurar alguma das situações que admitam o recurso de revisão, enumeradas no art.º 696º do C.P.C.N. (art.º 1388º do C.P.C.)».
[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03/10/2013, também disponível em www.dgsi.pt.
[6] Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra, 1980-82, pág. 372.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/02/2018, que pode ser visualizado em www.dgsi.pt.
[8] João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. II, Coimbra, 1980, págs. 524-525
[9] Segundo Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, 3ª Ed., Vol. II, págs. 523 e segs, a lei processual reporta-se a dois aspectos distintos do erro de facto causal da emenda da partilha: por um lado, o erro de facto na descrição ou qualificação dos bens; por outro lado, qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes. No primeiro caso, os erros operam por si mesmos, não se tornando necessário alegar e provar quaisquer outros requisitos para, com base neles, peticionar a emenda, porquanto viciam gravemente o objectivo que a partilha se propõe alcançar; no segundo caso, torna-se mister alegar e provar os requisitos gerais e especiais desse erro, nos precisos termos dos arts. 247º e segs. do CC, sendo certo que “erro susceptível de viciar a vontade das partes” é uma fórmula muito ampla que abrange uma generalidade de erros.
[10] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/2011, publicitado em www.dgsi. Este interessante aresto tomou posição no seguinte sentido: “I - A emenda da partilha obedece a um regime próprio e não se regula unicamente pelo regime geral de rectificação de erros materiais previsto nos arts. 666.º e 667.º do CPC, embora também faça referência a este último dispositivo legal.
II - Este regime próprio tem a sua sede nos arts. 1386.º, n.º 1 e 1387.º do CPC que se reporta a dois aspectos distintos do facto causal da emenda da partilha: - erro de facto na descrição ou qualificação dos bens; - qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes.
III - Tratando-se de erro de facto ou de erro de direito é «indispensável o acordo de todos os interessados ou dos seus representantes» para que se possa proceder à emenda da partilha no próprio processo, sem necessidade de instauração de acção autónoma.
IV - Quando os interessados não estejam de acordo com a emenda pode/deve esta ser pedida em acção proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à sentença.
V - Esta disciplina peculiar do regime jurídico da emenda da partilha não pode ser afastada pelos tribunais, pelo que não estando os demais interessados de acordo com a emenda requerida pelo cabeça-de-casal, não podia a Relação ter determinado a emenda da mesma, sem instauração prévia da acção exigida pelo art. 1387.º do CPC.
VI - A circunstância do n.º 2 do art. 1386.º do CPC estatuir que «o disposto neste artigo não obsta à aplicação do art. 667.º do CPC», não significa que se prescinda do acordo de todos os interessados.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/02/2019, cuja pesquisa pode ser concretizada em www.dgsi.pt.
[12] No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/06/2018, divulgado em www.dgsi.pt, que adianta que os casos de anulação da partilha, por sua vez, estão taxativamente enunciados no artigo 1388º. São eles: o recurso extraordinário (revisão) e a preterição ou falta de intervenção de algum dos co-herdeiros mostrando-se que os outros interessados procederam com dolo ou má-fé, seja quanto à preterição, seja quanto ao modo como a partilha foi preparada.
No caso da emenda, a partilha mantém-se na sua essência, apenas se corrigindo a parte que padece de alguma das deficiências ou irregularidades tipificadas no artigo 1386º. No caso de anulação, a partilha é completamente invalidada, ficando destruídos os respectivos efeitos.
[13] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/03/2017, disponibilizado na plataforma www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/10/2015 e de 07/03/2017, cuja leitura é facultada em www.dgsi.pt.
[15] O valor que a recorrida tem direito a receber (€ 552.700,00 – 27.958,78 = 524.741,22 – 383.991,22 = € 140.750,00).