MAIOR ACOMPANHADO
NÃO AUDIÇÃO DO REQUERIDO
NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário


No novo regime jurídico do maior acompanhado, introduzido pela Lei n.º 49/2018 de 14 de Agosto, a audição pelo juiz do beneficiário da medida de acompanhamento, determinada pelo n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, tendo por objectivo “averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”, é uma diligência de importância estrutural, que não comporta excepções nem possibilidade de dispensa.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

R. L. e M. L. vieram requerer a interdição, por anomalia psíquica, do respectivo pai, C. V., alegando, em suma, que este se encontra totalmente incapacitado para reger a sua pessoa e bens.
Por não ter sido possível concretizar a citação do requerido, com fundamento em incapacidade para a entender, foi nomeado e citado curador provisório ao mesmo, o qual não apresentou contestação. Foi subsequentemente citado o Ministério Público, que também não apresentou contestação.
Foi realizado exame pericial que, junto aos autos e notificado aos interessados não foi objecto de qualquer reparo.

O Mmº juiz “a quo” dispensou a audição do requerido, com fundamento na impossibilidade da mesma se realizar e proferiu sentença em que decidiu:

«a) Declaro que C. V. beneficiará de medida de acompanhamento. b) Nomeio como acompanhante do beneficiário M. L. a quem incumbe no exercício da sua função, privilegiar o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada.
c) A acompanhante deterá o poder de representação geral do requerido, com administração total de bens, fixando-se ainda o impedimento do beneficiário de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de celebrar atos de disposição, onerosos ou gratuitos, em vida ou por morte, outorgar procuração ou celebrar contrato de mandato e de testar.
d) Fixa-se em 1-1-2018, o momento a partir do qual tal medida se tornou conveniente.
e) Nomeio o Conselho de Família, sendo protutora I. M. e sendo o outro vogal do Conselho de Família R. L.. Determino a revisão da medida acima decretada no prazo de 5 anos, a contar da presente data.
Fixo o valor da presente causa em € 30.000,01 – cfr. arts. 303.º, n.º 1 e 306.º, n.º 1 do CPC.
Sem custas por o beneficiário delas estar isento - cfr. artigo 4.º alínea l) do Regulamento das Custas Processuais.».

*
Inconformado, o requerido constituiu mandatário judicial e interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

« I - O acompanhado tem legitimidade para apresentar recurso da decisão de acompanhamento.
II - Nos termos do artigo 615.º do Código de Processo Civil é nula a sentença por omissão de pronúncia e falta de fundamentação quando não se pronuncie sobre todas as questões que lhe sejam colocadas ao conhecimento e que estejam na sua alçada de pronúncia.
III- O Tribunal a quo tem um dever de fundamentação das decisões designadamente na medida em que decreta uma medida de acompanhamento, designa órgãos para os cargos mas não fundamenta a razão.
IV- A audição pessoal e direta do beneficiário do acompanhamento é condição obrigatória prevista no Código de Processo Civil.
V- O beneficiário da medida de acompanhamento apenas teve conhecimento da demanda com a sentença, não tendo sido ouvido pelo julgador, preterindo-se a obrigatoriedade legal.
VI - A letra da lei não deixa lugar a dúvidas quando diz que o juiz em pessoa procede à audição «pessoal e direta» e fá-lo «sempre», «em qualquer caso», obrigatoriedade esta que também resulta dos dois mencionados pareceres, emitidos por entidades relevantes na formação da vontade do legislador.
VII - A audição direita do beneficiário pelo juiz, no âmbito do processo especial de acompanhamento de maiores, determinada no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, na redação da Lei n.º 49/2018 de 14 de agosto, deve ocorrer em todos os processos, sem exceção
VIII-Nessa medida, sendo a inquirição e audição do beneficiário obrigatória, não tendo o Tribunal a quo logrado realizar a mesma, enferma toda a sentença de nulidade.
IX - Não pode o Tribunal a quo limitar-se a designar um acompanhante sem fundamentar e colher prova de que este é, de facto, quem melhor assegura os interesses do beneficiário.
X - Ao não indagar da razão de determinada pessoa ser a mais indicada a satisfazer os interesses do beneficiário incorre a sentença em omissão de pronúncia e falta de fundamentação.
X I- Na letra da lei nos termos do artigo 143.º do Código Civil distingue-se, com plenitude, a legitimidade do requerimento da legitimidade de quem tem o poder de acompanhar.
XII - Ao existir cônjuge sobreviva nos termos do artigo 143.º do Código Civil, sendo com esta que o Beneficiário reside, deveria ser esta a que gozava da função de acompanhante.
XIII - Quem assegura os interesses imperiosos do beneficiário coaduna-se, de facto, com quem dele cuida, quem o estima, quem o governa, e essas funções, são e sempre foram, exercidas pela cônjuge do mesmo.
XIV - Ao não fundamentar a razão de excluir da função de acompanhante a cônjuge e ao nomear uma filha que com ele não convivia há pelo menos 4 anos incorre o Tribunal a quo numa gravíssima omissão de pronúncia e falta de fundamentação.
XV - O n.º2 do artigo 143.º tutela as situações de falta de escolha, onde se indica que, no respetivo processo, o acompanhamento será atribuído à pessoa cuja designação “melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário”, sendo que, por uma questão natural e lógica, o acompanhante, na alínea a), primeira alínea, seria atribuído ao cônjuge não separado judicialmente ou de facto.
XVI - Se o beneficiário reside com a cônjuge e esta tem, de facto, todas as capacidades e plenitudes para dele cuidar é, nos termos do artigo 143.º n.º2, quem deverá ver ser atribuído o cargo de acompanhante.
XVII - Com a sentença proferida foram violadas as normas jurídicas designadamente 139.º, 141.º, 143.º do Código Civil e 897.º do Código de Processo Civil.

V I- DO PEDIDO

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, Se requer muito respeitosamente a V/ Exas. que admitam o recurso e que, conhecendo do mesmo, sanem as nulidades e a indevida interpretação do direito, revogando a sentença recorrida e
a) Ordenem a repetição da audição pessoal e direta do beneficiário
Ou, caso assim não entendam,
b) Substituindo-a por outra que nomeie como acompanhante a sua cônjuge, I. M., Fazendo assim, Vossas Excelências, a inteira e habitual JUSTIÇA! »
*
As requerentes, R. L. e M. L., bem como o Ministério Público, contra-alegaram.
*
O recurso foi admitido, exarando-se, quanto *as arguidas nulidades, o seguinte:

– «Nos termos do art. 617º, n.º 1 do CPC consigna-se que não se afigura existir qualquer nulidade da sentença proferida por falta de fundamentação, tendo-se na sentença recorrida remetido para os fundamentos de direito que determinaram a nomeação da acompanhante indicada, tendo por base tudo o que vinha exposto anteriormente no expediente junto aos autos. Realça-se que no presente processo não se levantou qualquer questão ou oposição anterior referente à adequação da nomeação da acompanhante M. L. na sequência das diversas notificações legalmente exigíveis dirigidas às diversas partes processuais, sendo apenas levantado tal dissenso em momento póstumo à sentença isto é, unicamente com o recurso apresentado.
Por esta divergência quanto ao acompanhante a nomear apenas ser suscitada após a sentença, manifesto se torna que o Tribunal não poderia, pela natureza das coisas, conhecê-la e apreciá-la anteriormente.
Assim, e sendo certo que existe um dever de fundamentação das decisões, tal fundamentação terá de partir da existência prévia de questões controvertidas nos autos cuja solução deva ser justificada, sendo que a referente à acompanhante a nomear, face à inexistência de oposição até à sentença quanto à acompanhante sugerida pelas partes processuais, não era uma de tais soluções controvertidas – era ao invés uma questão pacífica – pelo que mais não seria exigível, salvo melhor opinião, que não seguir a posição sugerida, por respeitar os termos legais, como resulta da sentença.
No tocante à requerida declaração de nulidade referente à falta de audição do beneficiário cumpre apenas referir que a razão da dispensa de tal audição foi já fundamentada anteriormente, pelos motivos vertidos no despacho de 20-11-2019, para o qual remetemos, e que de resto já transitou em julgado.»
*
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi recebido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A) Factos julgados provados na sentença recorrida:

«1) C. V. nasceu a ..-8-1946.
2) Padece de doença de Alzheimer há cerca de 5 anos.
3) Desde 2018 que tal doença o afeta gravemente nos seus conhecimentos e vontade.
4) Não conhecendo as pessoas.
5) Não se orientando no tempo e espaço.
6) Carecendo do apoio para a sua higiene.
7) Não sabendo ler nem escrever.
8) Não conhecendo o dinheiro e seu valor.
9) Nem o valor dos bens de consumo essenciais.»

B) Factos julgados não provados na sentença recorrida:

Consignou-se: “Inexistem factos não provados com relevância para a decisão a proferir.”

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) Nulidades da sentença

Nos presentes autos o Mmº juiz “a quo” não procedeu à audição do requerido, tendo-a dispensado por despacho de 20.11.2019, em que disserta do seguinte modo: “… sendo certo que o disposto no art.º 897º, n.º 2 do CPC impõe atualmente a audição do beneficiário como regra nesta espécie processual, seguimos o entendimento que tal apenas se aplica quando tal audição é efetivamente possível, o que é afastado quando o beneficiário não detém capacidades para falar logicamente, como é aqui o caso, atestado já pela perícia apresentada”.
Citando em abono de tal entendimento o processualista Miguel Teixeira de Sousa em “O Novo Regime do maior Acompanhado, E-book Cej – Fevereiro 2019, pg 51, disponível in http:/www.cej.mj.pt”, que a propósito da audição do beneficiário prevista no art.º 897º, n.º 2 do CPC refere: “não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e direta não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1) e de adequação formal (art.º 547.º), não deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição”.
É contra este entendimento que se insurge o apelante, assacando a sentença de nulidade, porque, não se tendo ouvido o requerido, como a lei impõe, omitiu-se uma formalidade impreterível, pelo que, ao proferir sentença conheceu-se de questão que ainda se podia conhecer (art.º 615º nº 1 al. d) do CPC).
Apoia-se no Ac. do TRC datado de 04.06.2019 (ALBERTO RUÇO) onde se afirma: “A audição directa do beneficiário pelo juiz, no âmbito do processo especial de acompanhamento de maiores, determinada no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, na redação da Lei n.º 49/2018 de 14 de agosto, deve ocorrer em todos os processos, sem exceção”.

Apreciando.

Embora os presentes autos tenham sido instaurados ainda na vigência do regime do Instituto da interdição previsto no CPC (Lei 41/2013), a partir de 10 de Fevereiro de 2019 passou a aplicar-se o “Regime do Maior Acompanhado”, instituído pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, pois o nº 1 do seu art.º 26º estabelece que “a lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor”, o que sucedeu 180 dias após a sua publicação.
Neste novo regime do maior acompanhado, que segue, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes, estabelece o nº 2 do art.º 897.º do CPC, sob a epígrafe “Poderes instrutórios”:
2 - Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e directa do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre. (realce nosso)
Decorre assim expressamente da letra da Lei que a audição pessoal e directa do beneficiário não é dispensável. E quando este não se possa deslocar ao Tribunal, é o Juiz que se desloca ao local onde o mesmo se encontre, para efectuar tal “audição pessoal e directa”.
No regime do processo especial de interdição do antigo CPC, que vigorou até 2013, previa-se nos artºs 949º e 950º que, houvesse ou não contestação, proceder-se-ia, findos os articulados, ao interrogatório do requerido e à realização do exame pericial. Interrogatório que era sempre feito pelo juiz.
Com o novo CPC o art.º 896º veio estabelecer que só haveria lugar a interrogatório do requerido caso houvesse contestação.
Esta inovação foi objecto de críticas, nomeadamente por Margarida Paz e Fernando Vieira em «A supressão do interrogatório no processo de interdição: Novos e diferentes incapazes? A complexidade da simplificação», in R.M.P., n.º 139, Julho-Setembro 2014, pp. 61-109, também publicado em Interdição e Inabilitação, pp. 209 a 252. Lisboa, NLR | 11 / 53 CEJ, 2015 (1).

Como se refere no citado Estudo (págs. 226 e segs):

– «No âmbito do CPC revogado, o interrogatório do interditando ou do inabilitando constituía uma diligência obrigatória, independentemente de ter havido, ou não, contestação. A sua finalidade consistia em “fornecer ao juiz, através de um contacto directo e pessoal, elementos sobre a capacidade do requerido”( Emídio Santos, Das Interdições…, p. 67).
Importa salientar que não era apenas o CPC revogado que previa esta solução. Com efeito, no longínquo CPC de 1876 também se encontrava consagrava a obrigatoriedade do interrogatório, no seu artigo 419.º, § 3.º.

Refere Manuel Dias da Silva, a propósito da importância e requisitos do interrogatório e exame: “(…) o interrogatório tem de ser feito pelo juiz, embora os peritos possam e devam fazer também perguntas para melhor formarem sua convicção acerca do estado mental do arguido. Como do interrogatório deriva sem dúvida um dos principaes elementos de prova para a procedência ou improcedência da acção e um bom subsidio para os peritos iniciarem as suas investigações e observações, devem os juízes proceder com cuidado no desempenho desta missão e fazer inserir no auto respectivo com precisão e clareza as perguntas e as respostas, e mencionar até a attitude, gestos, olhares, risos do interrogado, etc., pois tudo são elementos importantes para a verdadeira apreciação do seu estado mental. E tanto mais indispensável é isto que, tendo de subir as sentenças à segunda instancia, necessário é habilitá-la a poder apreciar este elemento de prova
Mais recentemente, e já no âmbito do CPC de 1961, Alberto dos Reis realçava a importância da realização de interrogatório e exame pericial: “Estas três diligências [Parecer do conselho de família; Interrogatório do arguido pelo juiz; exame do arguido por dois peritos médicos] têm o mesmo fim: apurar se há ou não fundamento para decretar a interdição, isto é, se o arguido está realmente afectado de insanidade psíquica e, em consequência disso, se mostra incapaz de reger a sua pessoa e administrar os seus bens. (…) Designamos esta fase por fase inquisitória, porque durante ela o arguido ou quem o defende não está na plenitude do direito de contradição. (…) O que domina nesta fase é a actividade oficiosa do tribunal”.
Por outro lado, em diversos ordenamentos jurídicos europeus é atualmente obrigatório o interrogatório do requerido no âmbito dos correspondentes processos relativos à incapacidade das pessoas adultas.
Assim, o artigo 759.º, n.º 1, do CPC espanhol, relativo à prova e à audiência no âmbito dos procesos de incapacitación, estabelece que o tribunal deve examinar o requerido. No direito espanhol, o exame do interdicendo constitui uma diligência que se situa entre o reconhecimento judicial e o interrogatório. Para além deste ‘exame’, é obrigatório um relatório médico, de natureza pericial.
De igual forma, o CPC francês, no capítulo relativo ao regime de proteção de maiores, fixa a regra da audição obrigatória por parte do juiz, no âmbito dos processos de tutela e de curatela (artigo 1262.º).
Por sua vez, o CPC italiano, no artigo 714.º, inserido no capítulo das interdições e inabilitações, dispõe que o juiz, com a intervenção do Ministério Público, procede ao exame do interditando ou inabilitando, interrogando-o sobre as circunstâncias relevantes para a decisão.
(…)
Em face de todo o exposto, facilmente se vislumbra que a alteração legislativa no regime jurídico-processual da ação de interdição e de inabilitação gera, no mínimo, perturbação, não só ao nível da tramitação processual, como em vários intervenientes desta ação especial.
Mas poderá igualmente colidir com preceitos de natureza constitucional, considerando o especial melindre dos interesses em causa e dos direitos dos requeridos no âmbito do processo de interdição e de inabilitação.
(…)
Com o novo regime processual, o juiz não estabelece, em momento algum, o contacto com a pessoa relativamente à qual vai decretar a interdição ou a inabilitação.
Ora, como vimos, não estamos na presença de um mero litígio privado, pois o que está em causa é retirar a capacidade de exercício a um determinado indivíduo, no caso da interdição, ou limitá-la, no caso da inabilitação.
Os efeitos da interdição e da inabilitação são, pois, demasiado gravosos para se entender que o juiz pode simplesmente decretar esta medida, que é drástica na vida de uma pessoa, sem a inquirir ou sem a ver, no caso de não ser possível manter um diálogo. Neste último caso, a impossibilidade de estabelecer um diálogo não pode constituir um argumento no sentido da “inutilidade” desta importante diligência. Na verdade, é precisamente essa situação que o juiz precisa de verificar (observando o requerido), pois, não o fazendo, dará como demonstrado o que precisamente se pretende provar. (sublinhado nosso)
É certo que não está em causa a liberdade do requerido, mas a supressão e a limitação da capacidade de exercício de uma pessoa não são suficientemente graves e sérias que exijam do juiz o contacto direto com a pessoa que vai ser interditada ou inabilitada? Parece-nos que sim.
O direito à capacidade civil constitui, aliás, um direito fundamental previsto no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, o qual não pode sequer ser afetado pela declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (artigo 19.º, n.º 6, da CRP).
Esta é a principal razão pela qual a interdição e a inabilitação constituem um processo especial, que exige o contacto direto com o requerido, como aliás sucede nos países europeus acima referidos (Espanha, França, Alemanha e Itália).
Este contacto direto com o requerido é, pois, fundamental e deve ocorrer preferencialmente no mesmo momento em que é realizado o exame pericial, exceto se o juiz determinar outro momento processual para o fazer, o que nos parece pouco provável em face do novo figurino legal.
(…)
Considerando a proteção devida aos maiores incapazes, que justifica a consagração legal do regime da interdição e da inabilitação, e atenta a estreita ligação existente entre as normas de direito substantivo e direito adjetivo nesta matéria, é imperioso que as normas do CPC que regulam este processo especial sejam analisadas com o necessário enfoque constitucional.
(…)
Esta proteção especial dos maiores incapazes encontra o seu reflexo na CRP, que no n.º 2 do artigo 71.º, com a epígrafe cidadãos portadores de deficiência, consagra a obrigatoriedade de o Estado “realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efectiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais ou tutores”.
Ora, a efetiva realização dos direitos dos cidadãos portadores de deficiência condiciona o legislador processual na adoção de regras que protejam eficazmente tais cidadãos. Aliás, a consagração de regras adjetivas no CC é a clara demonstração de como tais normas desempenham um papel decisivo no decretamento das medidas de supressão ou limitação da capacidade de exercício.
No âmbito do processo especial de interdição e de inabilitação, esta função de protecção de que o Estado está incumbido reflete-se essencialmente no importante papel desempenhado pelo juiz, que apenas estará habilitado a decidir se previamente tiver estabelecido o contacto direto com o requerido.
O distanciamento e a passividade do juiz, propugnados pelo novo CPC nesta matéria, dificilmente encontram compatibilização constitucional, não apenas pelo especial dever de proteção das pessoas com deficiência a que o Estado está obrigado, mas também pelo princípio da dignidade da pessoa humana, que tem especial relevância nesta ação especial.
Pela mesma razão, afigura-se-nos não estar devidamente acautelada, nesta nova tramitação do processo de interdição e de inabilitação, a tutela efetiva dos direitos dos cidadãos com incapacidade, como exige o n.º 5 do artigo 20.º da CRP.
Por fim, o artigo 896.º do CPC, na parte em que apenas obriga o interrogatório do requerido quando haja contestação, contraria frontalmente o Princípio 13, da Recomendação n.º R (99) 4, do Conselho da Europa relativa aos Princípios em Matéria de Proteção Legal dos Incapazes Adultos. Tal Princípio, com a epígrafe direito de ser pessoalmente ouvido, estabelece o direito de a pessoa visada ser pessoalmente ouvida em qualquer procedimento que possa afetar a sua capacidade jurídica.
Resulta deste Princípio o direito da pessoa com incapacidade se pronunciar sobre o procedimento, designadamente através da contestação. Mas o referido Princípio vai mais longe, pois exige que a pessoa seja pessoalmente ouvida, o que pressupõe, naturalmente, o fundamental contacto direto entre a pessoa visada e a entidade que vai decidir sobre a sua (in)capacidade. (sublinhado nosso)
Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido, no que concerne aos adultos incapazes (persons of unsound mind) e no que respeita à aplicação do artigo 5.º, n.º 4, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, ainda que não sejam exigidas as mesmas garantias fixadas no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção para os respetivos processos civis ou criminais, é, todavia, essencial que tais pessoas tenham a possibilidade de ser ouvidas pelo tribunal, seja pessoalmente, seja, quando necessário, através de qualquer forma de representação.»

Neste sentido e citando estes autores, o Conselho Superior da Magistratura, quando auscultado sobre a proposta de Lei n.º 110/XIII/3.ª (GOV), relativa ao regime do maior acompanhado, em substituição dos institutos da interdição e da inabilitação, no Parecer emitido em 4 de Março de 2018 e remetido à Assembleia da República, ao Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, refere:

A obrigatoriedade de audição do visado vem consagrar a revogação do criticado regime actual, no sentido da dependência do contacto pelo juiz (interrogatório judicial) da circunstância de ter havido contestação.
Aplaude-se a nova inversão do paradigma, consagrando-se a necessidade de contacto directo entre o juiz e o putativo beneficiário de acompanhamento. (realce nosso)
Tratando-se de norma processual, será explicitada no respectivo regime.
De qualquer forma e para que dúvidas não restem e como forma de sublinhar a importância estrutural desse contacto directo, o Executivo aceitou a sugestão do CSM de aditamento da expressão “pessoal e directa” após “audição”, afastando a possibilidade de redução dessa mesma audição ao chamamento (ou convocação) aos autos e subsequente resposta do requerido – pois também com esta formalidade ele é ouvido» (2)
No mesmo sentido se pronunciou a Ordem dos Advogados.
Também nós entendemos que a audição do requerido, como momento em que o juiz verifica presencialmente o estado em que se encontra o requerido, actualmente denominado “beneficiário” da medida de acompanhamento, visa a constatação presencial por parte do juiz da sua real situação.
Recorde-se que a prova pericial não é uma prova plena, estando sujeita à livre apreciação do juiz, que pode por sua iniciativa, quando perante a audição do requerido tal prova se lhe oferecer duvidas, determinar a realização de um novo exame. Como refere o Ministério Público nas alegações do recurso julgado pelo acórdão citado pelo apelante (3): “a efectiva presença do juiz dissipa, perante a comunidade, quaisquer dúvidas que pudessem cogitar-se acerca da real situação da pessoa visada com a aplicação de medida de acompanhamento (princípio do processo equitativo).”
E a actual letra dos artºs 897º nº 2 e 898º do CPC, introduzida pela Lei 49/2018, não deixa lugar a dúvidas quando diz que o juiz em pessoa procede à audição «pessoal e directa» e fá-lo «sempre», «em qualquer caso».
Para além do elemento literal, temos também o elemento histórico (occasio legis), traduzido quer nas críticas doutrinárias ao regime processual introduzido pela Lei 41/2013, quer nos trabalhos preparatórios da Lei 49/2018 e nos instrumentos internacionais que a circunscrevem, nomeadamente a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como os Pareceres acima citados, entre outros, emitidos por entidades relevantes na formação da vontade do legislador e que efectivamente foram plasmados nos citados preceitos.
Mesmo nos casos limite, que refere a obra citada pelo Mmº Juiz “a quo” em sustentação da decisão que proferiu (beneficiário em coma), ao juiz compete verificar, por contacto directo e imediato, tal situação. Sendo certo que no presente caso o recorrente não está em coma como no exemplo paradigmático de tal processualista. Aliás, consegue falar, como decorre do teor do exame médico.
Concluímos assim que a audição pessoal e directa do requerido/beneficiário, com o objectivo de averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas, é uma diligência de importância estrutural no regime jurídico do maior acompanhado, que não comporta excepções nem possibilidade de dispensa (4).
A omissão de diligência essencial e impreterível, influi no exame e decisão da causa, inquinando a própria sentença, uma vez que esta, ao dar cobertura a este desvio ilegal ao formalismo processual previsto no artigo 897.º nº2 e 898º nº 1 do CPC, acaba por assumi-lo.
Tal omissão, à semelhança do que se vem entendendo para a falta de audição das partes (violação do princípio do contraditório) (5), ou para a omissão da audição da criança no processo de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo (6), conduz à nulidade da sentença proferida com postergação desse dever do juiz (e direito do requerido), por falta de pronúncia sobre questões que deveria apreciar e porque conheceu de questões, no caso decidiu sobre a necessidade e tipo de medida de acompanhamento, quando ainda não estava habilitado a fazê-lo (excesso de pronúncia) – art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
Consequentemente a omissão da audição pessoal e directa do requerido/beneficiário pelo Mmº juiz “a quo”, influindo no exame e decisão da causa, configura não só uma nulidade processual (art.º 195º nº 1 do CPC), que inquina a própria decisão proferida (sentença) e que pode ser arguida em sede de recurso a interpor da mesma, como também configura a nulidade da sentença prevista na al. d) do nº 1 do art.º 615º do CPC (7).
Pelo exposto a sentença é nula, por ter sido proferida sem prévia audição pessoal e directa do aqui recorrente.
As demais questões colocadas pelo apelante nas suas doutas conclusões ficam assim prejudicadas, contudo não deixaremos de alertar, porque foi arguido tal vício e para evitar nova impugnação da sentença, que a mesma não contém os fundamentos necessários às decisões nela proferidas, quer relativamente às medidas de acompanhamento, quer sobre escolha da acompanhante (os únicos factos vertidos na sentença respeitam à doença e incapacidade do ora recorrente), sendo que relativamente a esta última questão (escolha do acompanhante) optou-se pela filha do ora recorrente, em detrimento da respectiva esposa, sem que dos factos ou da fundamentação de direito resulte a razão de se ter decidido contra a ordem prevista no art.º 143º nº 2 do CC, seguindo-se acriticamente o que foi requerido e como foi requerido, pela pessoa que se nomeou acompanhante. A decisão de tais questões impõe a recolha oficiosa dos elementos a ela necessários, atenta a aplicação a este processo das regras da jurisdição voluntária (art.º 891º do CPC) e como igualmente resulta do disposto no art.º 900º do CC (reunidos os elementos necessários, o juiz designa o acompanhante e define as medidas de acompanhamento).

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente procedente a apelação, anulando a sentença recorrida, devendo proceder-se, previamente à sua prolação, nomeadamente, à audição pessoal e directa do recorrente.
*
Isento de custas nos termos do art.º 4º, nº 2, al. h) do RCP
Guimarães, 28-05-2020

Eva Almeida
Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas


1. http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Interdicao_inabilitacao.pdf?
2. https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?ID=42175
3. Acórdão do TRC de 4-6-2019, processo 647/18.9T8ACB.C1 in dgsi.pt
4. Ver também o acórdão do TRP de 4.6.2019 (647/18.9T8ACB.C1) in dgsi.pt
5. Ac. do STJ de 22.02.2017 (5384/15.3T8GMR.G1.S1 :”Esta nulidade processual coberta pelo acórdão, ainda que não se configure como uma das nulidades previstas no art.º 615.º n.º 1 do CPC, acaba por inquinar o mesmo, ferindo-o de nulidade” in dgsi.pt
6. Acórdão do TRE de 18-10-2018 (937/15.2T8TMR.E1) in dgsi.pt
7. A este propósito veja-se o comentário de Miguel Teixeira de Sousa in https://blogippc.blogspot.com/2019/04/jurisprudencia-2018-208.html.