FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
NULIDADE
Sumário


SUMÁRIO
(da responsabilidade da Relatora - art. 663.º, n.º 7 do CPC)

I. A sentença proferida após produção de prova em audiência final, e onde esteja absolutamente omissa qualquer fundamentação de facto - nomeadamente, a discriminação dos factos provados e dos factos não provados -, é nula (art. 615.º, n.º 1, al. b) do CPC); e essa nulidade deverá ser arguida pela parte nela interessada, não sendo de conhecimento oficioso pelo Tribunal da Relação (arts. 614.º, n.º 1 e n.º 2, 615.º, n.º 2 e n.º 4, 617.º, n.º 1 e n.º 6, todos do CPC).

II. É deficiente a decisão proferida pela 1.ª instância quando o que tenha dado como provado e como não provado não corresponda a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado pelas partes; e constituirá o grau máximo dessa deficiência a omissão total de fundamentação de facto, justificando a anulação oficiosa da sentença (art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC).

III. Face a uma total ausência de apreciação crítica da prova produzida, deve o Tribunal da Relação anular oficiosamente a decisão da 1.ª instância, por de outro modo ficar a parte que dela pretenda recorrer impossibilitada de cumprir o ónus de impugnação imposto para o efeito pelo art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC, e ficar o próprio Tribunal de Recurso impedido de exercer o seu poder de sindicância (art. 662.º, n.º 2, al. d), do CPC).

Texto Integral


Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.

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I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. J. G. e mulher, M. P. (aqui Recorrentes), residentes no Lugar …, em …, deduziram a presente oposição, por meio de embargos de executado, a prévia acção executiva (intentada por X Crédito - Instituição Financeira de Crédito, S.A, contra eles próprios, para pagamento coercivo da quantia de € 6.749,64, sendo título executivo uma livrança, avalizada por ambos), contra X Crédito - Instituição Financeira de Crédito, S.A. (aqui Recorrida), com sede na Rua …, no Porto, pedindo que

· se indeferisse o requerimento executivo, por falta de título executivo, já que a obrigação dos avalista da livrança apresentada para esse fim se encontraria prescrita.

Alegaram para o efeito, em síntese, que sendo eles próprios avalistas de uma livrança vencida em 21 de Dezembro de 2014, a mesma apenas teria sido executada nos autos principais em 27 de Novembro de 2018, isto é, depois de decorridos os três anos que o art. 70.º da LULL concede para o efeito.
Mais alegaram que, não se tendo obrigado para com a Embargada/Exequente (X Crédito - Instituição Financeira de Crédito, S.A.) por qualquer outro modo (nomeadamente, por meio de prestação de fiança), inexistiria título executivo.

1.1.2. Admitida liminarmente a oposição à execução, e regularmente notificada, a Embargada/Exequente (X Crédito - Instituição Financeira de Crédito, S.A.) contestou, pedindo que a oposição fosse julgada improcedente, prosseguindo a acção executiva contra os Embargantes/Executados (J. G. e mulher, M. P.).

Alegou para o efeito, em síntese, que tendo celebrado com J. C. - Peixes Congelados, Limitada um contrato de mútuo, por meio do qual a financiou no montante global de € 9.686,64, constituíram-se os Embargantes/Executados (J. G. e mulher, M. P.) fiadores no mesmo, e não apenas avalistas da livrança em branco então emitida para garantia do pontual cumprimento do dito acordo.
Mais alegou que, não obstante a livrança em causa já se encontrar prescrita à data da instauração da acção executiva dos autos principais, não deixaria de valer como título executivo, nos termos do art. 703.º, n.º 1, al. c), do CPC, por os factos constitutivos do contrato de mútuo e das fianças prestadas (sua relação subjacente) terem sido devidamente alegados no requerimento executivo.

1.1.3. Foi proferido despacho: saneador (certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância e fixando o valor da causa em € 6.749,64); apreciando os requerimentos probatórios das partes; e designando dia para realização da audiência de discussão e julgamento.

1.1.4. Realizada a mesma, foi proferida sentença, julgando a oposição totalmente improcedente, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Em face de tudo o exposto e das disposições legais citadas, julgam-se improcedentes os presentes embargos de executado, por não provados, determinando-se o prosseguimento dos autos principais de execução.
Custas a cargo dos Executados/Embargantes (art.527.º do CPC).
Registe e Notifique.
Comunique ao Sr. Agente de Execução.
(…)»
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1.2. Recurso

1.2.1. Fundamentos

Inconformados com esta decisão, os Embargantes/Executados (J. G. e mulher, M. P.) interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo que fosse julgado procedente e se revogasse a sentença recorrida.

Concluíram as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões):

1.º - Sendo a data de vencimento da livrança dada à execução de 21/12/2014, e tendo a execução sido instaurada em 27/11/2018, é manifesto que ocorreu o prazo de prescrição a qual se completou em 21/12/2017.

2.º - Os Recorrentes, não foram os emitentes ou subscritores do título executivo e apenas apuseram as suas assinaturas na livrança na qualidade de avalistas.

3.º - Essa qualidade dos Recorrentes a título individual, resulta não só do título dado à execução, como do próprio contrato de mútuo no primeiro rectângulo, junto ao requerimento executivo sob a designação de doc. 1, pela Recorrida.

4.º - Os Embargantes quando subscreveram e consequentemente apuseram as suas assinaturas nos documentos, (quer no título dado à execução, quer no contrato que foi causa da emissão e subscrição da livrança) fizeram-no tão só e apenas na qualidade precisa de avalistas.

5.º - As suas declarações de vontade, surgiram e foram prestadas de modo esclarecido no quadro legal da livrança e da respectiva garantia “aval” e não em qualquer outro quadro legal, nomeadamente no da fiança civil ou das obrigações solidárias civis.

6.º - A decisão inserta na douta sentença recorrida, ao admitir que o título dado à execução, seja havido como documento quirógrafo de dívida contra os Recorrentes, afasta o regime legal que resulta da livrança e do aval enquanto garantia cambiária específica daquela e das letras de câmbio e aplica-lhes um regime legal, em total desacordo com aquele a que ficaram sujeitos pela relação jurídica que subscreveram.

7.º - A douta decisão recorrida opera uma transformação/conversão, do aval em fiança, sem que ocorra uma causa justificativa.

8.º - Os Recorrentes, não prestaram fiança no negócio subjacente à emissão da livrança, como resulta do verso da livrança dada à execução a palavra “bom para aval”, bem como do texto do contrato mútuo último rectângulo (ver contrato de mútuo junto pela recorrida sob a designação de doc.1, ao requerimento de execução), que infra se transcreve:
“Declarações dos Avalistas/Fiadores – Declaro (amos) ser Avalista (s)/Fiador (s) do (s) Mutuário (s) deste empréstimo e ter (mos) sido informado (s) por este (s) do montante da dívida a contrair, bem como das Condições Gerais constantes do verso deste Contrato de Mútuo que declaro (amos) conhecer e aceitar, avalizando para o efeito, a Livrança de Caução em branco anexa ao Contrato.” (sublinhado nosso).

9.º - Por outro lado, verifica-se, que os Embargantes, agora recorrentes subscreveram tal contrato na qualidade de sócios gerentes da sociedade J. C.-PEIXES CONGELADOS, Lda, pessoa jurídica distinta dos embargantes, única outorgante no contrato de mútuo.

10.º - Não resulta nem dos termos do contrato, nem dos factos alegados no Requerimento Executivo, a vontade dos Executados-Embargantes se obrigarem como fiadores, o que significa, em suma, que não está demonstrado, por falta de alegação, que a relação causal do aval radica na existência de uma fiança dada à obrigação assumida pela sociedade mutuária, alegação e prova essa que se impunha, atenta a extinção da obrigação meramente cartular como a que resulta do aval.

11.º - Enquanto avalistas não são devedores no aludido contrato.

12.º - Conforme resulta do Contrato Mútuo, e das assinaturas dos Recorrentes (Avalistas), apostas no rectângulo destinado aos avalistas e nessa qualidade, as suas declarações de vontade que deixaram expressas no referido documento, parte sublinhada, dúvidas não subsistem de que os recorrentes assinaram e aceitaram AVALIZAR a Livrança.

13.º - Daqui se conclui que, em face do exposto, prescreveu o direito de acção do Exequente contra os Avalistas-Embargantes e que o título de crédito prescrito não mantém a natureza de título executivo, porque o documento em causa não se mostra suficiente para demonstrar a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias assumidas pelos executados-embargantes e por isso, falta o título executivo.

14.º - O título executivo constitui um dos pressupostos específicos da execução e o reconhecimento da sua falta, através do processo de embargos à execução, determina a extinção da execução, nos termos do art.ºs 731º, 729º/ a) e 732º/4 CPC.

15.º - A decisão recorrida ao aceitar que a livrança vale como documento quirógrafo de dívida contra os Recorrentes, transforma os recorrentes em devedores principais ou fiadores, transformação que não lhe é legalmente permitida e como tal, violou a sentença recorrida por erro de interpretação e aplicação o preceituado nos artigos 236º, 238º do C.C. e 77º e 70º da L.U.L.L.

16.º - Os Embargantes não figuram como subscritores da livrança, mas como avalistas, e a interpretação defendida na sentença procede à conversão do aval em fiança, sem que ocorra causa justificativa.

17.º - Termos em que se deve revogar a douta sentença recorrida, proferindo-se acórdão que julgue procedente a excepção de prescrição invocada nos embargos e, consequentemente extinga a execução contra os ora recorrentes, por falta de título.
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1.2.2. Contra-alegações

A Embargada/Exequente (X Crédito - Instituição Financeira de Crédito, S.A.) contra-alegou, pedindo que o recurso fosse considerado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):

I - Conforme prevê o artigo 703.º, alínea c), do Código de Processo Civil, a livrança pode ainda ser título executivo depois de prescrita, enquanto quirógrafo, desde que “os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.

II - No requerimento executivo está bem explícita a relação subjacente à livrança que é título executivo, assim como foram juntos os respectivos documentos de suporte.

III - De modo que a livrança é, efectivamente, título executivo, ainda que enquanto documento quirógrafo.

IV - Os Recorrentes assinaram o contrato na qualidade de avalistas da livrança que serve de garantia ao cumprimento do contrato, porquanto o pacto de preenchimento da mesma consta das cláusulas contratuais, mas também na qualidade de fiadores, conforme resulta do contrato – cfr. cláusula 12 – com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia.

V - O direito de acção da exequente não se encontra prescrito.

VI - Os ora recorrentes são efectivamente responsáveis pelo pagamento da quantia exequenda.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nºs. 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

2.2.1. Questão concreta posta pelos Recorrentes

Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto pelos Embargantes/Executados (J. G. e mulher, M. P.), uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal:

· Questão única - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação da lei, ao considerar que uma livrança prescrita quanto aos respectivos avalistas poderia ainda assim valer como título executivo, enquanto documento quirógrafo (face à fiança por eles, alegada e simultaneamente, prestada no contrato de mútuo que aquele título de crédito garantia) ?
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2.2.2. Questão adicional resultante da sentença recorrida

Contudo, verifica-se que, discutindo as partes a efectiva prestação, por parte dos Embargantes/Executados (J. G. e mulher, M. P.) de uma fiança (já que é no incumprimento da mesma que a Embargada/Exequente afirma radicar a instauração da acção executiva dos autos principais), e realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo omitiu por completo, na sentença depois proferida, a enumeração/discriminação de quaisquer factos provados e não provados (nomeadamente, os pertinentes à dita qualidade de fiadores dos Embargantes/Executados); mas pressupôs, na decisão de mérito proferida, a efectiva prestação da fiança invocada no requerimento executivo.
Mais se verifica que, no recurso de apelação interposto, e nas contra-alegações apresentadas ao mesmo, voltam as partes a reiterar a posição antes assumida nos seus articulados, isto é, defendendo os Embargantes/Executados (J. G. e mulher, M. P.) que nunca afiançaram o contrato de financiamento invocado (tento apenas avalizado a livrança que o garantia), e defendendo a Embargada/Exequente (X Crédito - Instituição Financeira de Crédito, S.A.) o contrário.
Fazem-no, porém, à margem de qualquer impugnação da matéria de facto (a realizar necessariamente nos termos do art. 640.º do CPC), por nenhuma ter sido devidamente discriminada (em sede própria) como provada e não provada; e, desse modo, impedindo - necessária e logicamente - a subsequente sindicância por este Tribunal ad quem.
Face ao exposto, importará que se aprecie a dita omissão de qualquer fundamentação de facto registada na sentença recorrida; e de forma prévia à apreciação da concreta questão suscitada pelo recurso interposto.
Com efeito, lê-se no art. 663.º, n.º 2 do CPC que o «acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º»; e lê-se no art. 608.º, n.º 2 do CPC, que o «juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
Ora, o vício que atinge a sentença recorrida obsta à sua validade, tendo-se o mesmo de conhecimento oficioso (tudo conforme melhor se explicitará de seguida); e, por isso, deverá ser conhecido de imediato, já que, certificado, impedirá o conhecimento da concreta questão enunciada pelos Embargantes/Executados (J. G. e mulher, M. P.).
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III - Vício da sentença - Anulação da sentença

3.1.1. Vícios da sentença - Nulidades versus Erro de julgamento

As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do CPC (neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo n.º 00858/14).
Precisando, entende-se em geral que «os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença», já que «a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de dar lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662º, nº 2, c) e d) do nCPC)» (Ac. da RC, de 20.01.2015, Henrique Antunes, Processo n.º 2996/12.0TBFIG.C1, com bold apócrifo) (1).
Outros há, porém, que, concordando em princípio com esta posição, não deixam de admitir que poderão existir vícios da decisão de facto idóneos a justificar, de per se, a nulidade da própria sentença, enfatizando o facto desta, desde o CPC de 2013 (e ao contrário do que sucedia com o anterior, de 1961) conter agora simultaneamente a decisão de facto e a decisão de direito (2).
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3.1.2. Dever de fundamentação de facto

Enunciando as regras próprias de elaboração da sentença, lê-se no art. 607.º, n.º 2 e n.º 3 do CPC que a «sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, e enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer», seguindo-se «os fundamentos de facto», onde o juiz deve «discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final».
Mais se lê, no nº 4 do mesmo art. 608º citado, que, na «fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção»; e «tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados a presunções impostas pela lei ou por regras da experiência».
Por fim, lê-se no nº 5 do mesmo art. 607º que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», não abrangendo porém aquela livre apreciação «os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão da partes».
Reafirma-se, assim, em sede de sentença, a obrigação imposta pelo arts 154.º do CPC, e pelo art. 205.º, n.º 1 da CRP, do juiz fundamentar as suas decisões (não o podendo fazer por «simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade», conforme n.º 2 do art. 154.º citado).
Com efeito, visando-se com a decisão judicial resolver um conflito de interesses (art. 3.º, n.º 1 do CPC), a paz social só será efectivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex Edições Jurídicas, 1997, pág. 348).
Reconhece-se, deste modo, que é a fundamentação da decisão que assegurará ao cidadão o respectivo controlo; e, simultaneamente, permitirá ao Tribunal de recurso a sindicância do bem ou mal julgado. «A motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível (…) de garantia do direito ao recurso» (Ac. da RC, de 29.04.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 772/11.7TBBVNO-A.C1).

Logo, e em termos de matéria de facto, impõe-se ao juiz que, na sentença, em parte própria, discrimine os factos tidos por si como provados e como não provados (por reporte aos factos oportunamente alegados pelas partes, ou por reporte a factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respectiva natureza).
Impõe-se-lhe ainda que deixe bem claras, quer a indicação do elenco dos meios de prova que utilizou para formar a sua convicção (sobre a prova, ou não prova, dos factos objecto do processo), quer a relevância atribuída a cada um desses meios de prova (para o mesmo efeito), desse modo explicitando não só a respectiva decisão («o que» decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram («o porquê» de ter decidido assim).

A explicitação da formação da convicção do juiz consubstancia precisamente a «análise crítica da prova» que lhe cabe fazer (art. 607.º, n.º 4 do CPC): obedecendo aos princípios de prova resultantes da lei, será em função deles e das regras da experiência que irá formar a sua convicção, sobre a matéria de facto trazida ao respectivo julgamento.
Com efeito, «livre apreciação da prova» (art. 607.º, n.º 5 do CPC) não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 655).
«É assim que o juiz [de 1.ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 325).
«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2.ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 591, com bold apócrifo).
Compreende-se, por isso, que se afirme que este esforço, exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida, «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, pág. 281).
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3.1.3. Omissão de fundamentação de facto - Nulidade

Lê-se no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, que «é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».
Precisa-se, porém, que vem sendo pacificamente defendido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade em causa - nomeadamente, a falta de discriminação dos factos provados -, e não apenas a mera deficiência da dita fundamentação (3).
A concreta «medida da fundamentação é, portanto, aquela que for necessária para permitir o controlo da racionalidade da decisão pelas partes e, em caso de recurso, pelo tribunal ad quem a que seja lícito conhecer da questão de facto» (Ac. do STJ, de 11.12.2008, citado pelo Ac. da RC, de 29.04.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 772/11.7TBVNO-A.C1).
Reitera-se, porém, que saber se a «análise crítica da prova» foi, ou não, correctamente realizada, ou se a norma seleccionada é a aplicável, e foi correctamente interpretada, não constitui omissão de fundamentação, mas sim «erro de julgamento»: saber se a decisão (de facto ou de direito) está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma (conforme Ac. do STJ, de 08.03.2001, Ferreira Ramos, Processo n.º 00A3277).
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3.1.4. Anulação (oficiosa) da sentença - Art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC

Lê-se no art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC que a «Relação deve (…), mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que (…) permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (…)».

Com efeito, a «decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento», resultando nomeadamente de se revelar, total ou parcialmente, deficiente, obscura ou contraditória
(António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Julho de 2013, pág. 239).

A decisão será: deficiente quando aquilo que se deu como provado e não provado não corresponde a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado (isto é, não foram considerados todos os pontos de facto controvertidos, ou a totalidade de um facto controvertido); será obscura quando o seu significado não possa ser apreendido com clareza e segurança (isto é, os pontos de facto considerados na sentença são ambíguos ou poucos claros, permitindo várias interpretações); e será contraditória quando pontos concretos que a integram tenham um conteúdo logicamente incompatível, não podendo subsistir ambos utilmente (isto é, diversos pontos de facto colidam entre si, de forma inconciliável) (4).
Logo, quando se verifique que a decisão sobre a matéria de facto omitiu a «pronúncia sobre factos essenciais ou complementares», possui uma «natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa», ou revela «incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso», deve o Tribunal da Relação, oficiosamente, anulá-la, quando não lhe seja possível» suprir tais vícios (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Julho de 2013, págs. 239 e 240).

Contudo, importa ter presente que «os Recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram ainda submetidas ao contraditório e decididas pelo Tribunal Recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso» (António Santos Abrantes Geraldes, op, cit., págs. 98 e 99).

Por outras palavras, «o regime consagrado entre nós para os recursos ordinários é de (…) reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último» (Ac. da RC, de 27.05.2015, Isabel Silva, Processo n.º 416/13.2TBCBR.C1).
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3.1.5. Reenvio (oficioso) da sentença - Art. 662.º, n.º 2, al. d), do CPC

Mais se lê, o art. 662.º, n.º 2, al. d), do CPC que a «Relação deve (…), mesmo oficiosamente, determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados».

Recorda-se que no prévio art. 607.º, n.º 4 e n.º 5 do CPC, se impõe que, na «fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados, e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas», as quais são apreciadas livremente por si, «segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto».
Dir-se-á ainda que este dever - constitucional e processual civil - que impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, leva a que se imponha igualmente ao recorrente, que pretenda impugná-la, que apresente a sua própria.
Com efeito, lê-se no art. 640.º, n.º 1 do CPC que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (art. 640.º, n.º 2, al. a) citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada
Esta deverá consubstanciar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo n.º 3785/11.5TBVFR.P1).
Por outras palavras, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 595, com bold apócrifo).
Assim, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1.ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recuso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 228, com bold apócrifo).
As exigências do art. 640.º, n.º 1 do CPC vêm «na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciadas à luz de um critério de rigor enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Compreende-se agora melhor o dever cometido ao Tribunal da Relação de, perante «decisão proferida sobre algum facto essencial» que não esteja «devidamente fundamentada», «determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, a fim de preencher essa falta com base nas gravações efectuadas ou através de repetição da produção de prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto» (António Santos Abantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 244).
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3.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

3.2.1. Nulidade da sentença - Falta absoluta de motivação de facto

Concretizando, compulsada a sentença de mérito proferida nos autos, após a realização da audiência final (com produção de prova pessoal), verifica-se que a mesma omitiu completamente qualquer discriminação dos factos provados e não provados, para alicerçar o seu posterior juízo, de que: «a livrança dada à execução perdeu a sua natureza cambiária», por a «obrigação cartular» estar «prescrita, atenta a data do vencimento da livrança – reportada a 21/12/2014 – e a data da interposição da ação executiva – 21 de dezembro de 2017»; e «os Executados/Embargantes tiveram intervenção no contrato subjacente à emissão da livrança pois, para além de avalistas, eles subscreveram o contrato na qualidade de fiadores».

Com efeito, logo após o relatório respectivo, encontra-se o alegado «DESPACHO SANEADOR» (proferido, porém, já antes, findos os articulados das partes), onde se aprecia «a exceção de prescrição invocada nos autos pelos Executados/Embargantes» (tendo-se, porém, no inicial e efectivo despacho saneador expressamente referido que «as questões - prescrição - suscitadas pelas partes nos seus articulados serão apreciadas em sede de decisão final»); e, a propósito da mesma (sobre a qual ambas as partes estão de acordo, quanto à sua verificação), analisa-se o regime jurídico da livrança (e do respectivo aval, enquanto obrigação cartular), a validade de livrança prescrita como documento quirógrafo (nomeadamente, quando no requerimento executivo se invoque a prestação de uma fiança, garantindo o contrato que constitui o negócio subjacente àquela), e as diferenças entre aval e fiança. Segue-se depois a subsunção do caso dos autos ao Direito previamente analisado, concluindo-se pela improcedência dos embargos de executado deduzidos; e sem que em parte alguma - nomeadamente, prévia - se identifiquem os factos (provados e não provados) que resultaram da audiência final, relevantes para aquela subsunção.
Verifica-se ainda que da mesma sentença (e necessariamente, dir-se-á, face à posição assumida antes pelo Tribunal a quo) não consta igualmente, ainda que de forma perfunctória, qualquer apreciação crítica da prova produzida, nomeadamente a que permitisse justificar a aplicação do direito ao caso dos autos, atentos os contornos apurados (incluindo - de forma relevantíssima - a efectiva prestação de fiança, por parte dos Embargantes/Executados, no contrato de financiamento dito como celebrado entre a Embargada/Exequente e Sociedade de que aqueles seriam sócios gerentes).
Logo, tem-se como verificada a nulidade dessa decisão, consistentes na falta de especificação dos respectivos fundamentos de facto (isto é, a discriminação dos factos provados e não provados, a que se juntou ainda a completa omissão de qualquer apreciação crítica da prova produzida que houvesse permitido o seu apuramento, assegurando depois a subsequente sindicância pelas partes), prevista na al. b), do n.º 1, do art. 615.º do CPC.

Contudo, a mesma não foi arguida pelos Embargantes/Executados (J. G. e mulher, M. P.), no recurso de apelação que interpuseram da dita sentença, considerando este Tribunal da Relação que tal vício não é de conhecimento oficioso (atento o disposto nos arts. 614.º, n.º 1, 615.º, n.º 2 e n.º 4, e 617.º, n.º 1 e n.º 6, todos do CPC) (5).
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3.2.2. Anulação da sentença - Falta absoluta de fundamentação de facto e de apreciação crítica da prova

Dir-se-á, porém, que não obstante essa falta de oportuna arguição da nulidade incorrida pela sentença em apreciação (por vício pertinente à sua elaboração e estruturação), consubstanciando a dita omissão simultaneamente um outro e distinto vício (desta feita, próprio do conteúdo da própria decisão de facto), pode o mesmo - nesta segunda vertente - ser apreciado oficiosamente por este Tribunal da Relação, ao abrigo do distinto regime previsto no art. 662.º, n.º 2, als. c) e d) do CPC (6).

Com efeito, se a lei, no art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, permite a anulação oficiosa da decisão proferida na 1.ª Instância quando a decisão de facto respectiva seja deficiente, por maioria de razão tê-lo-á que permitir quando a mesma seja absolutamente omissa, por esta omissão total ser o grau máximo daquela deficiência.
Assim, na expressão «deficiência» caberá necessariamente, não só a falta de decisão sobre um facto essencial, como a falta absoluta de decisão sobre todos os factos essenciais (conforme Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV Volume, Coimbra Editora, Limitada, pág. 553) (7).
Compreende-se que assim seja (como cabalmente o justifica o caso dos autos, onde ainda em sede de recurso as partes discordam sobre a prestação da fiança que alegadamente funda o requerimento executivo), já que «se houver uma total ausência de decisão sobre a matéria de facto, não pode este Tribunal exercer o poder censório, não só quanto à matéria de facto provada, como também sobre o direito aplicado e aplicável».
Dir-se-á mesmo que não será só o Tribunal de Recurso que ficará impedido de exercer a sua função de sindicância, outro tanto sucedendo relativamente a pretendido recorrente, já que «tal procedimento também impede as partes» de cumprirem o ónus de impugnação que lhes está cometido pelo art. 640.º, n.º 1, als. a) e b) do CPC, incluindo «de cabalmente argumentarem na defesa das suas posições (…) porquanto desconhecem a convicção do Mmº Juiz a quo, restando-lhes supor que factos terá considerado como provados para concluir como o fez» (Ac. da RL, de 27.10.2009, Maria José Simões, Processo n.º 3084/08.0YXLSB-A.L1-1, com bold apócrifo).

Concluindo, impõe-se anular oficiosamente a sentença (e não despacho saneador) proferida pelo Tribunal a quo, para que ele, face nomeadamente à prova produzida em audiência de julgamento, a fundamente de facto (conforme imposto pelo art. 607.º, n.º 3, n.º 4 e n.º 5 do CPC), já que cabe a este Tribunal da Relação sindicar esse juízo de facto que realize, e não substituir-se-lhe no mesmo (produzindo-o de forma inédita e integral).

Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela anulação da sentença proferida pela 1.ª instância, por forma a que seja colmatada a sua actual e absoluta falta de fundamentação de facto (que, em sentido amplo, inclui quer a falta de discriminação dos factos provados e não provados, quer a falta de qualquer apreciação crítica da prova).
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Fica, do mesmo passo, prejudicado o conhecimento do objecto do recurso interposto da dita sentença, o que aqui se declara, nos termos do art. 608.º, n.º 2 do CPC, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, do mesmo diploma.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:

· Anular a sentença recorrida, por forma a que seja fundamentada de facto, conforme imposto pelo art. 607.º, n.º 3, n.º 4 e n.º 5 do CPC;

· Declarar prejudicado o conhecimento do objecto do recurso de apelação interposto da sentença final pelos Embargantes/Executados (J. G. e mulher, M. P.).
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Custas desta apelação a final, conforme decisão definitiva que se venha a proferir sobre os embargos de executado (art. 527.º do CPC).
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Guimarães, 04 de Junho de 2020.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.


1. No mesmo sentido, de distinção das nulidades da sentença dos vícios que afectam a própria elaboração da decisão de facto (estes últimos entendidos como passíveis de serem qualificados como nulidades processuais, nos termos do art. 195.º, n.º 1 do CPC), Ac. da RL, de 29.10.2015, Olindo Geraldes, Processo n.º 161/09.3TCSNT.L1-2.
2. Neste sentido, de eventual não distinção dos vícios que afectam a elaboração da decisão de facto das nulidades da sentença, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, págs. 733 e 734, onde se lê que «atualmente a sentença contém tanto a decisão sobre a matéria de direito como a decisão sobre a matéria de facto (cf. o art. 607-4), pelo que os vícios da sentença não se autonomizam hoje dos vícios da decisão sobre a matéria de facto, diversamente do que antes sucedia (cf. os arts. 608 e 653-4 do CPC de 1961). Esta circunstância, se não justifica a aplicação, sem mais, do regime do art. 615 à parte da sentença relativa à decisão sobre a matéria de facto - desde logo porque a invocação de vários dos vícios que a esta dizem respeito é feita nos termos do art. 640 e porque a consequência desses vícios não é necessariamente a anulação do ato (cf. os n.ºs 2 e 3 do art. 662) -, obriga, pelo menos, a ponderar, caso a caso, a possibilidade dessa aplicação».
3. Por todos, José Lebre de Freitas, Código de Processos Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 703 e 704, e A Acção declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, pág. 332. Contudo, e para este autor e para Isabel Alexandre, face à solução consagrada no CPC de 2013 (de integrar na sentença tanto a decisão sobre a matéria de facto, como a fundamentação respectiva), só a falta da primeira integra a nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, e não também a falta da segunda (v.g. genérica referência a toda a prova produzida na fundamentação da decisão de facto, ou conclusivos juízos de direito), a que será aplicável o regime previsto no art. 662.º, n.º 2, al. d) e n.º 3, als. b) e d), do CPC (conforme Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, pág. 736, com indicação de jurisprudência conforme).
4. Em sentido conforme, Alberto dos Réus, Código de Processo Civil Anotado, IV Volume, Coimbra Editora, Limitada, pág. 553; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 656; ou José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 664.
5. Aparentemente em sentido contrário, isto é admitindo o conhecimento oficioso de uma tal nulidade, quando «quando haja controversão de factos julgados ou a julgar, para que se apreciar a aplicabilidade dos critérios substantivos constantes da norma ou normas jurídicas elegíveis», Ac. da RC, de 19.02.2013, Virgílio Mateus, Processo n.º 618/12.9TBTNV.C1.
6. Aparentemente no mesmo sentido - uma vez que então se pronunciava sobre o art. 712.º do anterior CPC -, Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2.ª edição aumentada e reformulada, Almedina, Outubro de 2009, pág. 227.
7. No mesmo sentido, Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, Almedina, pág. 611. Na jurisprudência, Ac. da RL, de 27.10.2009, Maria José Simões, Processo n.º 3084/08.0YXLSB-A.L1-1; ou Ac. da RC, de 19.02.2013, Virgílio Mateus, Processo n.º 618/12.9TBTNV.C1, onde se lê que, «se a lei concede tal poder nos casos em que a decisão sobre a matéria de facto é meramente deficiente ou escassa para decisão de todos os pontos controvertidos da questão de direito, por maioria de razão também o concede quando se verifique uma total ausência da fixação da matéria de facto na sentença».