FALSO TESTEMUNHO
Sumário

Não é obstáculo à condenação pelo crime do art. 360º do CP95 o facto de não se saber se o depoimento falso é o prestado no inquérito ou o prestado na audiência de julgamento.

Texto Integral

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª)

DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


I

1. No processo comum n.º ……/03.5TAVNF, do …..º juízo de competência criminal de Vila Nova de Famalicão, após julgamento, perante tribunal singular, por sentença de 3 de Março de 2006, foi decidido, no que ora releva, condenar o arguido B…………, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal(1), na pena de 10 meses de prisão.
2. O arguido, inconformado, interpôs recurso da sentença, rematando a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões:
«1
«O arguido foi acusado, pronunciado, julgado e condenado por no dia 09-06-2003, no Tribunal Judicial de V.N. de Famalicão, na audiência de julgamento do proc. ……/02, em que eram arguidos C………… e D……….., na qualidade de testemunha de acusação, ter prestado falsas declarações, (artº. 360º, nºs 1 e 3 do C. Penal).
«2
«ORA, na audiência de julgamento, do processo em causa, conforme resulta da sentença recorrida, (fls 3),
«NÃO SE PROVOU:
«d) Que o arguido tenha prestado depoimento falso em audiência de julgamento.
«e) Que quando prestou depoimento na Polícia Judiciária e em audiência de julgamento, o arguido tivesse inserido analgésicos, soníferos ou produtos estupefacientes, que condicionaram o seu depoimento.
f) E, conforme também consta da sentença recorrida, (a fls 5), “no entanto, cumpre referir que a prova produzida em audiência de julgamento foi insuficiente para que o Tribunal pudesse dar como provado que o depoimento falso foi o que foi prestado em audiência de julgamento (depois de o arguido ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expunha) já que os factos concretos relatados pelo arguido na PJ não foram considerados provados, como decorre da certidão junta a fls 720”.
«3
«ASSIM, violou-se o princípio constitucional de que todo o arguido se presume inocente (artº. 32º, 1, da Constituição), e, consequentemente, de que não é ónus do arguido ter que provar a sua inocência: mas sim que cabe à acusação provar os factos da acusação/pronúncia.
«4
«Bem como, se violaram na sentença recorrida, os princípios da legalidade (artº. 1 do C. Penal) e da autoria (artº. 26 do C. Penal). Certo que o arguido só pode ser punido criminalmente se se prova que cometeu o facto que é pressuposto do tipo de crime por que vem acusado/pronunciado.
«E, apesar de tal não se ter provado, o arguido foi condenado “pela prá[c]tica de um crime de falsidade de testemunho, p. e p., pelo artº. 360º nº 1, do C. Penal”.
«Assim, o artº. 360º, nº 1, do C. Penal, como norma (tal qual) assumida e aplicada na sentença recorrida, é inconstitucional, por violadora do referido artº. 32º, 1, certo que se considerou o arguido autor do crime de depoimento falso … apesar de não se ter provado a prá[c]tica real e concreta dum falso testemunho.

«5
«Também, pelo preceito do artº. 32º, nº 1, da Constituição o processo criminal deve assegurar todas as garantias de defesa.
«E, consequentemente, pelo artº. 358, nº 1, do C. Pr. Penal qualquer alteração não substancial dos factos, o presidente, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo necessário para a preparação da defesa.
«Sob pena de nulidade da sentença se assim não ocorrer (artº. 379, nº 1, b), do C. Proc. Penal).
«6
«ORA, o arguido não pode ser condenado pela prática de um crime de testemunho falso ocorrido na dita audiência de julgamento de 2003, - porque não se provou que tal depoimento não correspondeu à verdade!
«E, a sentença condenatória é intrinsecamente contraditória: pois que assume que não se provou, e condena.
«7
«Mas, o arguido também não pode ser condenado pela prática de um crime de testemunho falso ocorrido em 2001 na Polícia Judiciária, porque:
«- Da prá[c]tica desse depoimento, como não verdadeiro, não foi acusado/pronunciado o arguido;
«- Da alteração da acusação/pronúncia para a prática desse (concreto e real) facto imputado ao arguido, não foi feita comunicação ao arguido, na audiência de julgamento;
«- Nem lhe foi concedido tempo para preparar a defesa perante essa alteração.
«- E, se tal depoimento não correspondeu à verdade (e foi consciente e voluntário), também não é punível … Porque, então, dele se [retratou] retractou o arguido no julgamento de 2003 (artº. 362º do C. Penal) !
«- E, se foi verdadeiro … então não é crime de depoimento falso !
«8
«ASSIM, ao admitir a sentença recorrida a prática pelo arguido de um depoimento falso, e ter condenado o arguido pelo crime (abstracto) p. e p. pelo artº. 360, nº 1 – “que foi o prestado na Polícia Judiciária ou o prestado em audiência de julgamento”, violou, manifestamente, o artº. 32, nº 1, da Constituição e o artº. 358º, nº 1, do C. Pr. Penal, pelo que deve ser revogada por nulidade, ao abrigo do artº. 379, nº 1, b), do C. Pr. Penal.
«9
«Pelas razões óbvias já referidas, uma condenação, num Estado de Direito, não pode ser na base de que o arguido teve uma conduta, uma prá[c]tica factual … “ou … ou”.
«10
«E, muito menos, quando as alternativas não são, sequer, de prá[c]ticas homogéneas, isto é em que seja irrelevante, indiferente ou equiparável ter ocorrido a hipótese a) ou a hipótese b).
«11
«Mas, assim sendo, o arguido não pode ser condenado pela prá[c]tica de depoimento falso em 2003, - porque tal não se provou (como consta da própria sentença recorrida, fls 3 e 5).
«MAS TAMBÉM NÃO PODE SER CONDENADO PELO DEPOIMENTO PRESTADO na JUDICIÁRIA EM 2001.
«Não só por todas as razões antes expendidas e inultrapassáveis.
«Mas, porque se se assumir (mesmo por absurdo) que “esse depoimento” está provado que “foi falso” (e que por ele pode ser julgado o arguido), então esse facto deixou de ser punível, pela [retratação] retractação no julgamento de 2003 (artº. 362º do C. Penal).
«12
«Ou seja, o arguido NUNCA pode ser condenado pelo depoimento prestado na P.J. em 2001. Pois,
«- Ou, tal depoimento foi verdadeiro, e, então, não houve falso testemunho;
«- Ou tal depoimento falseou a verdade. Mas então, dele se [retratou] retractou o arguido, em 2003, no julgamento (artº. 362º citado).
«E, nunca pode ser condenado pelo depoimento prestado em julgamento, em 2003, porque diz a sentença que essa falsidade não se provou (págs. 3 e 5): e, então haverá insanável contradição intrínseca na sentença ou Acórdão condenatório!
«13
«Por sua vez, o arguido presume-se, constitucionalmente, inocente (artº 32º, nº 1, da Constituição).
«Então não é o arguido que tem que provar que o dito depoimento é verdadeiro.
«É a acusação que tem que provar que ele é falso.
«Assim, também não cabe ao arguido demonstrar a verdade da explicação que deu para o depoimento prestado na Polícia Judiciária. Pois que não lhe cabe, a ele, provar a sua inocência !
«14
«Se o Ministério Público teve dúvidas sobre a veracidade do depoimento prestado na dita audiência de julgamento, de 2003, teria que indagar de provas dessa falsidade.
«Nomeadamente, tomando depoimentos aos referidos E………, C………… e D………… .
«E, se estes sustentassem a falsidade do depoimento do arguido, então acusava.
«Se não sustentassem, e até porque a verdade do alegado pelo arguido na Polícia Judiciária não se confirmou (certidão de fls 720, sentença, pág. 5) – então não acusava, e ficariam os autos a aguardar melhor prova.
«15
«E, por sua vez, pelo depoimento prestado na Polícia Judiciária – aí, quanto a esse, de modo algum poderia o Mº. Público acusar.
«Pois que, ou era verdadeiro – e, então, não haveria crime.
«Ou, era falso – mas, então, deixara de ser [criminalisado] criminalizado, pela [retratação] retractação que o arguido (nesse caso) obviamente levara a cabo na dita sessão de julgamento, de 2003 (artº. 362º do C. Penal).
«16
«Também, não se vê que a pena de multa do artº. 360, nº 1, não realize de forma adequada e suficiente quer a finalidade de protecção da verdade, ao depor como testemunha, quer a reintegração do agente.
«Aliás, como hoje é reconhecido, inclusive pela Comissão de apresentação do Novo Código Penal – a prisão efectiva, em crimes de gravidade e punição de escalões inferiores a 5 anos, em vez de contribuir para a reintegração e reinserção, o que fomenta é a criminalidade futura do agente !!
«Por sua vez, se para proteger o bem jurídico da verdade, o legislador entende que o falso testemunho pode ser punido com pena de multa não inferior a 60 dias … é porque também entende que a pena de multa pode realizar de forma suficiente e adequada as finalidades da punição !
«17
«Aliás, na fundamentação da pena de prisão a sentença recorrida, a fls 6, apela à “natureza dos factos em causa nos referidos autos de processo comum colectivo…”.
«Ora, salvo o devido respeito, nos “autos de processo comum colectivo”… não se provou que o arguido faltasse à verdade !
«Não se pode pois argumentar … com tal facto.
«E se está a apelar ao depoimento prestado na Polícia Judiciária (independentemente da perfeita consciência e voluntariedade da sua prestação), dele se [retratou] retractou, em 2003, o arguido !
«Por sua vez, na sentença recorrida também se faz apelo “ao passado criminal do arguido”.
«Todavia, tal passado, diz respeito a tráfico de droga e nada tem a ver com “o bem jurídico protegido” no crime de depoimento falso, que estamos a avaliar para efeitos da sua punição, e sem conceder que exista crime (artºs. 40º, 70º e 360º, nº 1, do C. Penal) …
«18
«Por sua vez também não parece razoável que a pena fixada de 10 meses de prisão – e sem conceder que o crime exista – seja prisão efectiva, e não pena suspensa, ao abrigo dos artºs. 50 e sgts. do C. Penal.
«19
«Como é, hoje, consabido as penas de prisão efectivas de duração curta e relativas a crimes de gravidade menor ou média – não realizam qualquer dos fins da punição (artºs. 40 e 70º). E, bem, pelo contrário, contribuem sim, mas é para o fomento da perigosidade e criminalidade do agente.
«20
«Salvo o devido respeito, também a sentença recorrida se serviu de factos, para validar a prisão preventiva (sic), que não assumiu como provados (corpo destas alegações, nº 37).
«21
«Em suma, o arguido foi condenado por um crime virtual.
«E, numa nova tipologia criminal, de “ou”/”ou”.
«Que, se se materializou no julgamento, de 2003, então, foi punido por um crime que não se provou !
«E, se se materializou na Polícia Judiciária, em 2001 … além de não se ter provado, nem ter sido objecto da acusação/pronúncia, nem de julgamento … a ter-se materializado, deixara de ser crime, pela [retratação] retractação de 2003 !»
3. Admitido o recurso, e na sequência da notificação dessa admissão, foi apresentada resposta pelo Ministério Público, no sentido de não merecer provimento.
4. Nesta instância, na oportunidade conferida pelo artigo 416.º do Código de Processo Penal(2), o Exm.º Procurador-Geral Adjunto foi de parecer de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido apresentou resposta para sustentar que a proceder a tese da sentença recorrida e do parecer do Ministério Público teremos, no caso, «o tipo de vícios que basearam os (negativamente) célebres julgamentos de Galileu e de Dreyfus».
6. Efectuado exame preliminar, e não havendo questões a decidir em conferência, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões objecto de recurso.

II

Cumpre decidir.
1. Sendo as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que definem e delimitam as questões objecto de recurso (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), temos que as questões colocadas pelo recorrente B…………. são as seguintes:
- se, considerados os factos por que tinha sido acusado e aqueles que, na sentença recorrida, foram dados por provados, a sua condenação viola o princípio constitucional da presunção de inocência e os princípios da legalidade e da autoria;
- se a sua condenação por factos diversos daqueles por que tinha sido acusado importa uma alteração não substancial dos factos, a impor a comunicação a que alude o artigo 358.º, n.º 1, do CPP, sob pena de nulidade da sentença;
- se, em relação ao, eventual, depoimento falso de 2001, ocorreu retractação válida no julgamento de 2003;
- a da não opção pela pena de multa;
- a da suspensão da execução da pena.
2. Para o conhecimento das questões objecto de recurso, importa começar por analisar a sentença recorrida nos aspectos que, para tal, relevam.
2.1. Foram dados por provados os seguintes factos:
«1. No dia 9 de Junho de 2003, pelas 14 horas e 30 minutos, nas instalações do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, em sede de audiência de julgamento no âmbito do processo comum colectivo n° ……./02.7 TAVNF, no qual se encontravam a ser julgados C………….. e D…………., e aos quais era imputada, entre o mais, a prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, o arguido, na qualidade de testemunha de acusação, prestou declarações, depois de previamente ter prestado juramento e ter sido advertido pela Ma Juiz que presidiu aquela audiência de julgamento das consequências penais em que incorreria se faltasse à verdade.
«2. No decurso da aludida audiência foi perguntado por diversas vezes ao arguido pela Ma Juiz e pelo Sr. Procurador da República se conhecia algum dos arguidos que ali se encontravam a ser julgados, tendo o arguido referido não conhecer .
«3. Na mesma ocasião foi perguntado ao arguido se conhecia o indivíduo que tinha acabado de depor como testemunha naquela audiência – E……….. - designadamente pela alcunha de "E1………….", tendo o arguido referido que não o conhecia por aquela alcunha, mas pelo nome de "E2……………..".
«4. Na mesma audiência foi ainda perguntado ao arguido se alguma vez aquele tinha falado com o "E1……….." sobre quem era o fornecedor de estupefacientes daquele, tendo o ora arguido referido que não.
«5. Foi ainda perguntado ao arguido naquela audiência se nunca lhe tinham falado de um indivíduo conhecido por "F.……….", tendo o ora arguido, na mesma ocasião, referido que não.
«6. Foi igualmente perguntado ao arguido se aquele não havia reconhecido o aludido "F.………" em fotografias que lhe foram exibidas na Polícia Judiciária, tendo o mesmo referido que não.
«7. Porém, no dia 26 de Outubro de 2001, nas instalações da Directoria do Porto da Polícia Judiciária, e no decurso da sua inquirição enquanto testemunha efectuada no âmbito do inquérito que deu origem aos supra referidos autos, o arguido declarou, entre o mais, que conhecia o E………….. pela alcunha de "E3……….", sendo também conhecido pela alcunha de "E1……….".
«8. Na mesma altura declarou que em meados de 2000, aproximadamente Julho ou Agosto, retomou os contactos com o "E3…………" a quem se abastecia de produto estupefaciente para o seu consumo e que sempre que se deslocava à casa do "E3……….", o mesmo abastecia-o de droga no quarto de dormir sito no rés do chão da sua casa, esclarecendo que a maior parte das vezes que ali se deslocou o mesmo já possuía o produto no interior do referido quarto tendo porém, algumas vezes, vindo ao quintal buscar droga.
«9. O mesmo arguido declarou ainda que durante as várias vezes que se deslocou a casa do "E3……….." chegou a ver na residência daquele um indivíduo de estatura média, compleição física forte, com barba e aspecto de cigano que se fazia transportar em viaturas de média/ grande cilindrada, indivíduo este que o "E3……….." chegou a dizer-lhe ser o seu fornecedor de produto estupefaciente e que se chamava "F………..".
«10. Na mesma altura o arguido declarou reconhecer entre as várias fotografias que lhe foram exibidas a fotografia correspondente ao C………… como sendo o indivíduo cigano de nome "F………." que encontrou na casa do "E3…………" e que o mesmo lhe disse ser o seu fornecedor/ abastecedor de produto estupefaciente.
«11. Prestando na Polícia Judiciária e em tribunal depoimentos absolutamente contraditórios, o arguido prestou depoimento que sabia não corresponder à verdade.
«12. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com intuito de prejudicar a boa administração da justiça, faltando à verdade por declarar factos que não retra[c]tavam o ocorrido, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
«13. O arguido foi julgado e condenado no processo comum colectivo n° ……./92, do Tribunal Judicial de Paredes, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, em cúmulo jurídico, na pena de onze anos de prisão e em 2 000 000$00 de multa;
no processo comum colectivo n° ……/94, do …3° juízo criminal do Tribunal judicial de Matosinhos, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 10 anos e seis meses de prisão.
«14. Encontra-se actualmente preso, em cumprimento de pena à ordem do processo [processo] comum colectivo n° ……/00.2 GAPRT do ….. ° juízo criminal do Tribunal Judicial de Paredes.»
2.2. E foi dado por não provado:
«1 - Que o arguido tenha prestado depoimento falso em audiência de julgamento.
«2 - Que quando prestou depoimento na Polícia Judiciária e em audiência de julgamento, o arguido tivesse ingerido analgésicos, soníferos ou produtos estupefacientes, que condicionaram o seu depoimento.»
2.3. Na motivação da decisão de facto, consta o seguinte:
«A convicção do tribunal fundou-se na análise crítica da prova produzida em audiência, conjugada com as regras da experiência comum.
«Foi fundamental, na formação da convicção do tribunal a prova documental, nomeadamente a certidão de fls. 2 e segs., nomeadamente fls. 8 a 10 (correspondentes às declarações do arguido na Polícia Judiciária, 15 a 31 (acta da audiência de julgamento realizada no processo comum colectivo n.º ……/02.7TAVNF), 71 a 85 (transcrição do depoimento do arguido), 608 a 630 (despacho de encerramento do inquérito que deu origem ao processo comum colectivo referido), informação do estabelecimento prisional de fls. 683 e certidão de fls. 720 e segs. (acórdãos proferidos pelo tribunal colectivo, pelo Tribunal da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo comum colectivo n.º ……./02.7TAVNF).
«O arguido prestou declarações, declarando que falou com verdade na audiência de julgamento, reafirmando as respostas que deu na altura.
«Sobre o seu depoimento em sede de inquérito, prestado nas instalações da Polícia Judiciária, começou por declarar que os agentes daquela polícia “puseram as palavras na sua boca”, afirmando logo depois, a propósito de ali ter reconhecido em fotografias o “F…….”, que tinha tomado serenais e consumido estupefacientes, pelo que “não sabia o que dizia” e “não reconheceu ninguém”.
«Segundo referiu foi ameaçado e pressionado a declarar o que declarou.
«Questionado, respondeu que não lhe bateram, mas disseram que, se não colaborasse, iria ser prejudicado no seu próprio julgamento.
«No entanto, alguns minutos depois, referiu não se lembrar do que tinha dito na PJ.
«Ora, a versão do arguido não convence.
«Desde logo, porque é, em si mesma, contraditória e incoerente: ora o arguido foi pressionado a dizer o que disse, ora as suas declarações se deveram ao efeito de serenais e heroína, que tinha ingerido, ora não se lembrava do que tinha dito na PJ.
«Por outro lado, não é minimamente credível que o arguido, com vasto passado criminal, se sentisse intimidado com a “ameaça de ser prejudicado no seu próprio julgamento” de forma não concretizada.
«Acresce que, de acordo com a informação clínica do estabelecimento prisional, os medicamentos tomados à data pelo arguido, não causam perturbação da consciência e vontade, sendo certo que, ainda que os tomasse em conjunto com outros não prescritos, não é credível que lhe provocasse “efeitos alucinatórios” que o levassem a declarar o que declarou na Polícia Judiciária.
«Por último dir-se-á que da análise do auto de inquirição de fls. 8 e segs. verifica-se que o arguido depôs detalhada e pormenorizadamente, elaborando croquis e exibindo documentos, conduta que não é compatível com a versão apresentada, rectius, qualquer das versões apresentadas em audiência de julgamento.
«Assim, formou-se no tribunal a convicção serena e segura, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido, de forma livre, voluntária e consciente, prestou um depoimento falso, já que os dois depoimentos em causa são absolutamente contraditórios, não existindo qualquer explicação justificativa para tanto.
«No entanto, cumpre referir que a prova produzida em audiência de julgamento foi insuficiente para que o tribunal pudesse dar como provado que o depoimento falso foi o que foi prestado em audiência de julgamento (depois de o arguido ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expunha) já que os factos concretos relatados pelo arguido na PJ não foram considerados provados, como decorre da certidão junta a fls. 720.
«Assim, apurou-se apenas que o arguido prestou um depoimento falso, que foi o prestado na Polícia Judiciária ou o prestado em audiência de julgamento.»
3. Passando-se a conhecer do objecto do recurso.
3.1. Pode ter-se por assente que o recorrente foi submetido a julgamento pela prática de um crime de falsidade de depoimento, do artigo 360.º, n.ºs 1 e 3, do CP, com base na falsidade do depoimento prestado na audiência do dia 9 de Junho de 2003.
Pode, ainda, ter-se por assente que não se provou que o recorrente tivesse prestado um depoimento falso nessa audiência do dia 9 de Junho de 2003.
Mas também não subsistem dúvidas, em face dos factos dados por provados (e que o recorrente não impugna) de que, em dois momentos processuais distintos - no depoimento prestado no dia 26 de Outubro de 2001 e no depoimento prestado em audiência de julgamento do dia 9 de Junho de 2003 -, o recorrente, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, prestou depoimentos divergentes sobre a mesma realidade.
A condenação do recorrente, pela prática de um crime de falsidade de depoimento, do n.º 1 do artigo 360.º do CP, resulta, como se extrai da sentença (especialmente, parte final da motivação), da prova da prestação de depoimentos antagónicos sobre a mesma realidade. E não da prova de que o depoimento prestado no dia 26 de Outubro de 2001 foi falso (nem, obviamente, da prova de que o depoimento prestado na audiência de julgamento do dia 9 de Junho de 2003 foi falso, já que este facto foi dado por não provado).
3.2. A questão que, antes de mais, tem de ser colocada consiste em saber qual a consequência jurídica que deve decorrer do facto de não ter sido possível ao tribunal apurar em que momento o recorrente cometeu uma falsidade de testemunho.
Com efeito, e como já dissemos, não subsistem dúvidas em face dos factos dados por provados de que em dois momentos processuais distintos, o recorrente, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, prestou depoimentos divergentes e até antagónicos sobre a mesma realidade.
A realidade sobre que recaíram os dois depoimentos é só uma, mas os depoimentos prestados, nos dois momentos processuais, são discrepantes, entre si, e relatam realidades distintas. Por isso, em algum desses momentos processuais ocorreu uma contradição entre o depoimento prestado e a verdade histórica objectiva.
A narração do recorrente, em algum desses momentos, afastou-se da verdade objectiva, dele conhecida, violando, desse modo, o bem jurídico protegido: a realização da justiça como função do Estado, a qual requer a contribuição de todos os intervenientes processuais para o esclarecimento da factualidade relevante em ordem à correcta decisão.
O tribunal não conseguiu apurar em que momento processual o recorrente prestou o depoimento falso, mas tal falta de determinação, apenas releva para a determinação do momento de consumação do crime.
A consumação existe sempre que a declaração diverge da realidade objectiva(3).
Apurado que num dos momentos processuais o recorrente com a sua conduta preencheu os elementos objectivo (falsidade do depoimento) e subjectivo do tipo (sabendo que o conteúdo do seu depoimento era objectivamente falso – dolo), o tipo de ilícito está perfeitamente preenchido.
O facto de não se ter apurado se o crime foi cometido ou no dia 9 de Junho de 2003 ou no dia 26 de Outubro de 2001 não acarreta, como consequência, que não se possa ter por assente que o crime foi cometido. O crime foi, efectivamente, cometido, só não se sabe em que data o foi.
A não fixação da data de consumação do crime não impõe nem a absolvição da recorrente, por apelo ao princípio in dubio pro reo, nem traduz uma qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, no sentido de tornar impossível um juízo seguro de condenação.
O juízo seguro de condenação decorre da prova de que o recorrente, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, prestou, em dois momentos processuais, depoimentos divergentes sobre a mesma realidade. O facto de o tribunal não ter logrado apurar a verdade objectiva, conhecida do recorrente (e, daí, não ter conseguido determinar em que momento foi cometida a falsidade) não prejudica uma convicção de certeza sobre a acção típica(4).
A certeza sobre a data de consumação do crime não é um requisito indispensável ao preenchimento do tipo-de-ilícito.
A incerteza sobre a data de consumação do crime só poderá relevar para certos efeitos jurídicos, v.g., de consideração de uma eventual prescrição do procedimento criminal ou de aplicação de uma hipotética lei de amnistia, devendo, para esses efeitos, a incerteza sobre a data de consumação sempre ser valorada a favor do recorrente, pela aceitação daquela que lhe seja mais favorável.
3.3. A falta de apuramento do momento em que o crime foi cometido, por o tribunal não ter logrado apurar qual a verdade objectiva e, daí, em que momento o depoimento do recorrente dela divergiu, prejudica, irremediavelmente, a consideração do depoimento prestado, cronologicamente em segundo lugar, como constitutivo de uma retractação, para efeitos do disposto no artigo 362.º do Código Penal.
Só existe retractação quando o agente do depoimento substitui o conteúdo falso deste por um conteúdo verídico, ou seja, torna-se necessário que o depoente não só desdiga o seu anterior depoimento falso mas o modifique manifestando a verdade. Para haver arrependimento activo (retractação eficaz) exige-se que a testemunha reponha a verdade em relação a todos os aspectos dos factos que conhece que estavam abrangidos pelo dever de verdade e de completude(5).
3.3. O objecto do processo, tal como foi definido na acusação, contemplava uma falsidade de depoimento cometido no julgamento do dia 9 de Junho de 2003.
Foi, em relação a essa imputação, que o recorrente teve oportunidade de se defender.
Ao ser condenado pelo crime de falsidade de depoimento com base, não na prova de que na audiência do dia 9 de Junho de 2003 prestara um depoimento falso, mas na prova de que, em dois momentos processuais distintos, estando sujeito ao dever de verdade, prestara depoimentos divergentes, o recorrente foi, efectivamente, confrontado com uma surpresa incriminatória.
A conduta que vem a ter sentido jurídico-criminal na sentença não é a mesma que tinha sido objecto da acusação e nem sequer se pode afirmar que esteja contida na conduta que tinha sido imputada ao recorrente na acusação, por forma a sustentar-se que, na possibilidade que lhe foi conferida de se defender da prática do crime de falsidade de depoimento qualificado, já está incluída a possibilidade de se defender do crime simples.
Com efeito, não se trata tão só de uma questão de qualificação jurídica de factos. Do que verdadeiramente se trata é da dimensão normativa de uma conduta que, nessa dimensão normativa, não tinha sido objecto de acusação.
Verificou-se, assim, em nosso entender, uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação.
A qual reclamava a comunicação ao recorrente, nos termos do artigo 358.º, n.º 1, do CPP, para que não se anulasse a garantia implicada no princípio do acusatório e que a definição do objecto do processo, pela acusação, propõe, justamente, realizar.
A falta dessa comunicação implica a nulidade da sentença, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, a qual foi tempestivamente arguida pelo recorrente, no recurso.
Deve, portanto, declarar-se a nulidade da sentença, impondo-se a reabertura do julgamento, a fim de ser efectuada a comunicação omitida e concedido prazo para a defesa, se requerido, quanto aos factos a que se atribui sentido jurídico-criminal, sendo, depois, proferida nova sentença, se possível pelo mesmo juiz.

III

Termos em que, na procedência do recurso quanto à invocada nulidade da sentença, se declara a nulidade da sentença, da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, e se determina que a nova sentença a proferir seja precedida da reabertura da audiência, a fim de ser, nos termos do artigo 358.º, n.º 1, do CPP, comunicada ao recorrente a alteração dos factos a que se atribui sentido jurídico-criminal e, se requerido, concedido prazo para a defesa, em relação a tais factos.
Honorários ao Exm.º defensor, pelo recurso, de acordo com o ponto 3.4.1. da tabela anexa à Portaria n.º 1386/2004, de 10 de Novembro, a suportar pelo CGT.

Porto, 22 de Novembro de 2006
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
José João Teixeira Coelho Vieira
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(1) Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CP.
(2) Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP.
(3) A. Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, p. 478.
(4) Neste mesmo sentido, pode ver-se o acórdão desta relação, de 17 de Novembro de 2004, no processo n.º 3494/04-4.ª, relatado pela, ora, relatora.
(5) Ibidem, p. 499.