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DECISÃO ARBITRAL
RECURSO
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
Sumário
I - Quando for admissível recurso da sentença arbitral, a parte pode interpor recurso e ainda instaurar acção de anulação da sentença arbitral. II - O recurso da sentença arbitral pode ter por objecto a anulação da sentença arbitral pelos fundamentos do n.º 3 do artigo 46.º da LAV. III - Se estiverem pendentes em simultâneo o recurso da sentença arbitral com fundamento na nulidade da sentença e uma acção de anulação da sentença fundada no mesmo vício, existirá, nessa duplicação, uma situação de litispendência. IV - A indicação dos factos não provados pode ser feita através da sua descrição num item específico ou, de modo menos perfeito mas ainda assim aceitável, quando resulta da redacção da motivação da decisão que todos os factos não constantes do elenco dos julgados provados foram afinal julgados não provados. V - Para o tribunal estadual poder reapreciar a decisão sobre a matéria de facto do juiz-árbitro é imprescindível que o tribunal arbitral tenha procedido à gravação dos depoimentos prestados da audiência de julgamento e que estejam disponíveis todos os meios de prova atendidos na decisão arbitral.
Texto Integral
Recurso de Apelação ECLI:PT:TRP:2020:20.20.9YRPRT
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B… e C…, contribuintes fiscais n.º ……… e ………, respectivamente, residentes em Gondomar, apresentaram no Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS) reclamação contra a D… - Sucursal em Portugal, pessoa colectiva n.º ………, com sede em Lisboa, para resolução de litígio emergente de um acidente de viação.
Com fundamento na ocorrência de um acidente de viação, reclamaram da ré, enquanto seguradora do veículo causador do acidente, o pagamento da quantia de €6.047,90 para indemnização dos danos que sofreram em consequência do mesmo e cuja responsabilidade atribuem ao condutor do veículo segurado na reclamada.
No dia 19/06/2019, no Tribunal Arbitral daquele Centro, realizou-se audiência de julgamento arbitral, após o que foi proferida decisão arbitral julgando a reclamação totalmente improcedente e absolvendo a reclamada do pedido.
Do assim decidido, a reclamante B… interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
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O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se o recurso pode ter como fundamento as nulidades da sentença que constituem o objecto próprio da acção de anulação da sentença arbitral;
ii) Na afirmativa, se a sentença é nula por falta de fundamentação, por omissão de pronúncia e/ou por contradição entre a decisão e os fundamentos;
iii) Se a Relação pode modificar a decisão sobre a matéria de facto;
iv) Se o embate entre os veículos se deveu a culpa, total ou parcial, real ou presumida, do condutor do veículo segurado pela reclamada.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
A. No dia 3 de Agosto de 2018, cerca das 23h19, na Al, ao Km 281,760, sentido Lisboa/Porto, em …, Santa Maria da Feira, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-XF (XF), conduzido pela aqui reclamante C…, propriedade da também aqui reclamante, B…, e o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-EF-.. (EF), conduzido por E…, propriedade de F…, Lda., com responsabilidade civil automóvel transferida para a reclamada, mediante contrato de seguro, titulado pela apólice ……….
B. A condutora do veículo XF, devido a uma avaria, viu-se forçada a imobilizar a viatura na auto-estrada por onde seguia.
C. Todavia, por causas que o Tribunal desconhece, a referida condutora não logrou imobilizar a sua viatura na berma da referida via, pelo que a mesma ficou parcialmente imobilizada na hemi-faixa de rodagem da direita.
D. O veículo EF circulava no mesmo sentido de trânsito e também na mesma hemi-faixa da direita.
E. Ao aproximar-se da viatura XF e ao vê-la parcialmente imobilizada na hemi-faixa de rodagem da referida auto-estrada por onde seguia, o condutor do veículo EF, não conseguiu efectuar a manobra de mudança de direcção para a via central, a fim de evitar o embate, uma vez que seguiam outras viaturas nessa faixa central.
F. Assim, apesar da tentativa de travagem, não conseguiu evitar o embate na traseira do veículo XF.
G. Com o embate, o veículo XF sofreu danos na sua traseira,
H. … cuja reparação ascende a €4.700,00, valor que inclui IVA.
I. Do embate resultaram ainda danos em dois telemóveis, sendo que as reclamantes despenderam €179,00 na compra de um telemóvel novo e €180,00 na reparação de outro, nuns óculos (cujo valor orçamentado para substituição foi de €403,00), e num móvel que transportavam na altura na viatura (de valor não apurado), tudo propriedade das reclamantes.
IV. O mérito do recurso: A] da nulidade da sentença:
A recorrente começa as suas alegações de recurso arguindo a nulidade da sentença arbitral. Tal obriga, desde logo, a responder à questão de saber se o recurso de uma sentença arbitral, quando este seja possível, pode ter como fundamento a nulidade da sentença, quando esta constitui afinal o objecto específico de uma acção declarativa prevista no artigo 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro (doravante LAV).
Enunciando a questão prévia por outras palavras trata-se de saber como se conjugam os meios de oposição à decisão arbitral do recurso e da acção de anulação da sentença arbitral, isto é, se os fundamentos desta apenas podem ser arguidos através da acção declarativa para exercício do direito de anulação da decisão arbitral ou pode ainda servir de fundamento ao recurso da decisão, nos casos em que este é admissível.
O problema coloca-se porque enquanto a anterior LAV, aprovada pela Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, regulava expressamente a questão no n.º 3 do artigo 27.º, dispondo que «se da sentença arbitral couber recurso e ele for interposto, a anulabilidade só poderá ser apreciada no âmbito desse recurso», a actual Lei da Arbitragem Voluntária não contém qualquer norma que resolva a questão, deixando em aberto a solução para os casos de concursos de meios de impugnação da sentença arbitral.
A doutrina está dividida na resposta a esta questão, conforme se pode ver em António Sampaio Caramelo, A Impugnação da Sentença Arbitral, Almedina, 2014, 2.ª edição revista e aumentada, pág. 13 e seguintes, em António Menezes Cordeiro, in Tratado da Arbitragem em Comentário à Lei 63/2011, de 14 de Dezembro, Almedina, 2016, pág. 437, em Armindo Ribeiro Mendes, in A nova lei de arbitragem voluntária e as formas de impugnação das decisões arbitrais, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. II, Coimbra Editora, 2013, págs. 720-721, e Manuel Pereira Barrocas, in Manual de Arbitragem, Almedina, 2013, pág. 514.
A norma da LAV precedente encerrava uma prescrição clara: se da sentença arbitral coubesse recurso e ele fosse interposto, a anulabilidade só podia ser apreciada no âmbito desse recurso. Trata-se, portanto, de uma norma que vedava a possibilidade de a parte instaurar uma acção de anulação da sentença arbitral no caso de, cabendo recurso da sentença, a parte ter decidido recorrer dela. Em simultâneo, resultava da norma que o recurso, sendo admissível, podia afinal ter como fundamento as causas de nulidade da sentença arbitral. E, por fim, resultava da norma que a apresentação de um recurso fazia precludir o direito de exercer de forma autónoma o direito de pedir a anulação da sentença, isto é, que se o recurso não estivesse fundamentado na nulidade da sentença arbitral, a sua apresentação precludia a faculdade de a parte arguir esse vício através de uma acção declarativa própria com esse objecto[1].
Naturalmente se o actual regime jurídico da LAV não contém uma norma legal com este conteúdo, face ao efeito cominatório e preclusivo que a mesma encerrava, devemos entender que essas consequências estão excluídas do regime legal vigente. Por conseguinte, podemos defender que estamos perante uma lacuna do legislador a resolver nos termos do artigo 10.º do Código Civil – e, não se vislumbrando caso análogo, equacionar a norma que o próprio interprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema – ou então, como nos parece mais viável, entender que não existe propriamente uma lacuna (rectius, que se trata de uma lacuna intencional) porque as regras processuais vigentes já permitem resolver o conflito de meios processuais sem grave entorse para a justiça.
Se não existe norma a condicionar o exercício de um meio processual a uma determinada circunstância (positiva ou negativa), devemos considerar, por decorrência do princípio do acesso ao direito e aos tribunais, que a parte pode exercer livremente os meios processuais previstos na lei sem estar dependente dessa circunstância. Se a lei processual permite mais que um meio processual a parte escolhe aquele que de acordo com a sua estratégia lhe parece mais adequado à defesa dos seus interesses. Apenas necessita de exercer cada um deles nas condições, para os objectivos e com os fundamentos que a lei lhe assinala, sendo certo que entre nós vigora o princípio da legalidade processual, nos termos do qual havendo uma forma específica para exercer um direito processual e iniciativa processual deverá obedecer a essa forma específica.
Quando a lei cria uma determinada forma de processo para um concreto objecto processual a parte terá de exercer o seu direito de acção segundo essa forma de processo. Prevendo o artigo 46.º da LAV uma forma de processo especial para a acção de anulação da sentença arbitral, isso significa que o direito de pedir judicialmente a anulação da sentença arbitral com os fundamentos definidos no artigo 46.º, n.º 3, da LAV, terá de ser exercido através da acção declarativa autónoma ali prevista.
Esta conclusão não resolve de imediato a questão porque uma coisa é saber qual a forma do processo que determinada pretensão deverá seguir quando for exercida por via de acção e outra coisa é saber se a mesma pretensão, para além de poder ser exercida por via de acção, também pode ser exercida por via de excepção, designadamente através de recurso constituindo um dos fundamentos deste. Dito de outro modo, a questão não é se a parte pode interpor recurso e em simultâneo (nos respectivos prazos) instaurar a acção de anulação da sentença arbitral, o que merece resposta positiva face à inexistência de norma legal que o impeça, mas sim se o recurso também pode ter como fundamento a anulação da sentença arbitral pelos fundamentos do n.º 3 do artigo 46.º da LAV e, se a resposta for positiva, como se resolve o concurso (real) de meios processuais.
Quanto à primeira questão, entendemos que a resposta deve ser positiva: o recurso da sentença arbitral, quando seja admissível, pode ter como fundamento também as nulidades da sentença. Desde logo porque no âmbito do processo judicial é exactamente assim que sucede: a parte pode suscitar no recurso as nulidades da sentença recorrida, só o devendo fazer em requerimento autónomo dirigido ao juiz que proferiu a sentença nos casos em que a sentença não admita recurso (artigo 617.º do Código de Processo Civil). Se isso é assim no recurso de uma sentença judicial, deve ser por identidade de razões (talvez mesmo, por maioria de razão) no recurso de uma sentença arbitral já que a LAV prevê a possibilidade de o tribunal judicial conhecer das nulidades da sentença arbitral (independentemente do modo) anulando a sentença se para tal houver razões, e o recurso da sentença arbitral é igualmente um recurso jurisdicional, não se vislumbrando razões para que o seu objecto seja menos amplos precisamente numa situação em que é necessário que ele seja pelo menos tão amplo quanto no comum das situações.
Depois porque a própria LAV prevê uma situação em que as nulidades da sentença arbitral são afinal arguidas e conhecidas não por via de acção mas por via de excepção. Referimo-nos à possibilidade de o condenado na sentença arbitral se opor à execução desta sentença «com qualquer dos fundamentos de anulação da sentença previstos no n.º 3 do artigo 46.º» (artigo 48.º da LAV). Ainda que essa possibilidade esteja dependente da circunstância de ainda não ter decorrido o prazo para a apresentação do pedido de anulação da sentença (n.º 2) ou, tendo decorrido já esse prazo, de ter sido instaurada a acção de anulação e o pedido não ter ainda sido rejeitado por sentença transitada em julgado (n.º 1), certo é que é a própria LAV a permitir que os fundamentos de nulidade da sentença arbitral possam ser invocados pela parte não por via de acção (através da instauração de uma acção judicial cuja pedido seja a anulação) por via de excepção (como meio de defesa a uma pretensão que se funda na sentença inválida e, portanto, como forma de neutralização do caso julgado formado pela sentença e da sua exequibilidade).
Ainda, porque a consagração de uma acção especial de anulação da sentença arbitral pelo artigo 46.º da LAV tem uma razão de ser que nada tem a ver com a necessidade de a anulação ser deduzida numa acção autónoma. O que justifica a previsão do artigo 46.º da LAV é o facto de a sentença arbitral não admitir, em regra, recurso e por isso não haver, em regra, uma forma de as partes suscitarem a questão da nulidade da sentença. A acção de anulação surge assim como a forma normal, regular, sempre disponível e irrenunciável, de suscitar os vícios da sentença arbitral. Uma vez que o artigo 45.º da LAV apenas permite às partes suscitar perante o tribunal arbitral a rectificação de erro de cálculo, erro material, erro tipográfico ou outro erro de natureza idêntico ou o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade da sentença ou dos seus fundamentos, na maioria das situações, não havendo recurso, não haveria forma de arguir as nulidades da sentença, apesar da relevância que esse vício possa ter sobre o conteúdo da sentença e a sua força vinculativa. É por isso que o legislador se ocupou de criar uma outra possibilidade e uma forma específica para arguir os vícios da sentença arbitral. O que significa que esta forma específica para a suscitação dos vícios visa aumentar a protecção de que gozam as partes, não reduzi-la, logo é perfeitamente compatível com outros meios processuais de arguição das nulidades.
Por fim, porque a própria redacção do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 46.º da LAV apontam nesse sentido. Ao estabelecer que «salvo se as partes tiverem acordado em sentido diferente, ao abrigo do n.º 4 do artigo 39.º, a impugnação de uma sentença arbitral perante um tribunal estadual só pode revestir a forma de pedido de anulação, nos termos do disposto no presente artigo», a norma pretende dizer que podendo ser interposto recurso a impugnação da sentença arbitral não tem de ser feita através da acção autónoma de anulação. Por sua vez o que o n.º 3 afirma é que «a sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual se …», não é que «o tribunal estadual só pode julgar procedente a acção de anulação se…».
Concluindo-se, como se nos afigura correcto, que a parte pode suscitar o vício da nulidade da sentença arbitral como fundamento do recurso ou como causa de pedir da acção de anulação, a questão que se segue é a da consequência do uso de ambos os meios processuais em simultâneo (rectius, nos respectivos prazos mas de modo a que questão fiquem pendente em simultâneo em ambos os fóruns).
Já afirmámos que sem norma legal é impossível atribuir à apresentação de um recurso fundado na nulidade da sentença arbitral o efeito preclusivo da instauração de uma acção de anulação. O que a nosso ver sucede é que em caso de concurso de meios de impugnação da sentença nos iremos deparar com uma de duas situações.
Se no recurso o recorrente não invoca o vício da nulidade da sentença e só o faz na acção de anulação, limitando-se naquele a atacar o mérito da sentença, o concurso de meios processuais é meramente aparente e não gera qualquer problema.
A situação criada remeterá então para a problemática na pendência de causa prejudicial a resolver nos termos do artigo 272.º do Código de Processo Civil. Com efeito, questionando-se no recurso apenas o mérito da sentença, a apreciação do recurso assume como pressuposto que a sentença não enferma de vícios que motivem a sua anulação, pelo que a acção de anulação, na medida em que a proceder irá destruir esse pressuposto, assoma como causa prejudicial em relação à apreciação do recurso (v.g. tal qual acontece por exemplo com o recurso de uma sentença de divórcio estando pendente acção de anulação do casamento). Nesse caso, a instância recursiva deverá ser suspensa até à decisão definitiva da acção de anulação: se a acção proceder a instância do recurso será julgada extinta por impossibilidade superveniente da lide (o objecto do recurso deixou de existir), se a acção improceder, o recurso será reatado para se apreciar o mérito da sentença arbitral.
Se no recurso o recorrente argui a nulidade da sentença (exclusivamente, ou antes de questionar, subsidiariamente, o mérito da sentença) e mesmo assim instaura a acção de anulação, arguindo o mesmo vício, o concurso é real, gerando o problema da necessidade de compatibilizar ambas as decisões e evitar casos julgados contraditórios.
Tanto quanto julgamos, nesta hipótese estaremos efectivamente perante uma situação de litispendência (é a opinião de António Menezes Cordeiro, in Tratado da Arbitragem em Comentário à Lei 63/2011, de 14 de Dezembro, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 437), ou de litispendência imprópria (no sentido de que não se trata de estarem pendentes em simultâneo duas acções idênticas, mas sim de estarem pendentes em simultâneo dois meios processuais que obrigam os tribunais a decidirem, em ambos ao casos, a mesma pretensão pelo mesmo fundamento ou causa de pedir).
Com efeito, a identidade de pedidos e de causa de pedir não tem de ser absoluta, ela pode verificar-se apenas em relação a parte do objecto de uma ou de ambas as causas. A litispendência ocorre na parte em que há repetição, não corre na parte em que as causas apresentam pedidos diferentes e/ou causas de pedir distintas. O facto de no recurso o recorrente pretender sindicar também o mérito da sentença arbitral (o que pode não suceder, o fundamento do recurso pode ser apenas a nulidade da sentença) não obsta a que sendo ele fundamentado também na nulidade da sentença haja, nessa parte, duplicação em relação à acção de anulação cuja causa de pedir seja o mesmo vício da sentença.
Por outro lado, a litispendência é uma figura essencial e transversal do processo civil. O problema que a mesma procura resolver é a possibilidade de sobre a mesma questão recaírem decisões contraditórias, nas palavras do n.º 2 do artigo 580.º do Código de Processo Civil, evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma sentença anterior. Logo a figura deve ser admitida mesmo que não estejamos propriamente perante a pendência de duas acções, mas sim perante dois meios processuais que têm por objecto e permitem decidir em ambas as situações com a mesma amplitude, a mesma pretensão, com o mesmo fundamento. É o caso que colocamos em hipótese.
No Acórdão da Relação de Lisboa de 11-01-2018, proc. n.º 927/17.0YRLSB-8, in www.dgsi.pt, afirma-se que não se verifica a situação de litispendência entre o recurso de uma sentença e a acção de anulação da sentença arbitral (o que é apoiado por António Sampaio Caramelo, in A Impugnação da Sentença Arbitral, Almedina, Coimbra, 2014, 2.ª edição revista e aumentada, pág. 15, nota 16). A solução parece absolutamente correcta para o caso que então aí foi decidido, mas de forma alguma consente a extrapolação de não poder haver nunca nesse concurso uma situação de litispendência.
Afirma-se o seguinte no Acórdão referido: «[…] não há identidade de pedido. A própria natureza e os efeitos de cada uma das acções (a acção arbitral e a acção de anulação) impediria que o pedido fosse o mesmo. Na acção arbitral [nota: o relator refere-se ao recurso da sentença arbitral] pretende-se que a sentença seja substituída, cessando os seus efeitos e produzindo-se novos efeitos jurídicos com a procedência do pedido da requerente. Na acção de anulação o pedido da requerente consiste apenas na anulação da sentença arbitral. No caso concreto, enquanto o pedido na presente acção de anulação consiste apenas na anulação do acórdão impugnado, no recurso importa que o juiz avalie o mérito da causa, pronunciando-se sobre ele e substitua a sentença arbitral recorrida por decisão que julgue improcedente a excepção de caducidade e ordene a continuação do processo para ser proferida decisão de mérito sobre o fundo da causa, o que, segundo a perspectiva da requerente, “não aconteceu em virtude da errada verificação dessa caducidade”. […] Na presente acção pretende a requerente a anulação da sentença arbitral por ter fundamentado a decisão com base em factos que nenhuma das partes invocou, violando o princípio do contraditório e, por outro lado, em excesso de pronúncia. Quanto ao recurso arbitral, ali se alega a ilegal aplicação do disposto no artigo 3º da Lei 62/2011, assim como a interpretação inconstitucional do mesmo preceito. Na acção de anulação a causa de pedir é um vício processual, no recurso arbitral a causa de pedir assenta na alegada má aplicação da lei do acórdão arbitral.»
Parece pois claro que na situação julgada no Acórdão, e com cuja solução se concorda, não havia litispendência, mas ainda que nada no Acórdão contraria a possibilidade de estando pendente em simultâneo o recurso da sentença arbitral no qual se argua uma concreta nulidade da sentença e uma acção de anulação da sentença fundada no mesmo vício existirá uma situação de litispendência. Nessa hipótese o meio processual instaurado em juízo em segundo lugar padecerá dessa excepção dilatória que determinará que o tribunal se abstenha de conhecer do mérito e absolva da instância o requerido/recorrido (artigos 580.º, 582.º e 576.º do Código de Processo Civil).
Dito isto e sendo isso suficiente para os fins que importam para o nosso caso concreto, somos a concluir que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte em que o mesmo tem como fundamento a nulidade da sentença arbitral recorrida.
Passemos então a apreciar se a sentença arbitral enferma de nulidade/anulabilidade.
A recorrente sustenta que a sentença deve ser anulada por (i) enfermar de falta de fundamentação e omissão de pronúncia sobre questões que devia apreciar [não declarou os factos que julgou não provados] e por (ii) contradição entre a fundamentação da sentença e o facto do ponto B.
A recorrente alicerça estes vícios no disposto nos artigos 42º, n.º 3, e 46.º, n.º 3, alínea vi), da LAV, e artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 32º, n.º 2, do Regulamento do CIMPAS.
Estabelece o n.º 3 do artigo 46.º da LAV que: «A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se: a) A parte que faz o pedido demonstrar que: i) Uma das partes da convenção de arbitragem estava afectada por uma incapacidade; ou que essa convenção não é válida nos termos da lei a que as partes a sujeitaram ou, na falta de qualquer indicação a este respeito, nos termos da presente lei; ou ii) Houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio; ou iii) A sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta; ou iv) A composição do tribunal arbitral ou o processo arbitral não foram conformes com a convenção das partes, a menos que esta convenção contrarie uma disposição da presente lei que as partes não possam derrogar ou, na falta de uma tal convenção, que não foram conformes com a presente lei e, em qualquer dos casos, que essa desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio; ou v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar; ou vi) A sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.os 1 e 3 do artigo 42.º; ou vii) A sentença foi notificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com ao artigo 43.º ; ou b) O tribunal verificar que: i) O objecto do litígio não é susceptível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português; ii) O conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português.»
A redacção da norma, através da utilização da expressão só pode ser anulada se, logo inculca a ideia de que nos encontramos perante um elenco taxativo de causa de anulação da sentença arbitral. Segundo Manuel Pereira Barrocas, loc. cit., pág. 520, «encontram-se tipificados no artigo 462º número 3., LAV, os únicos e taxativos fundamentos que autorizam a anulação de uma sentença arbitral pelos ‘tribunais estaduais. Este regime restritivo, que provém do artigo 342 da Lei-Modelo da UNCITRAL, constitui uma das afirmações mais claras da independência da jurisdição arbitral relativamente à jurisdição estadual, que é completado pelo disposto no número 9. do citado artigo 46º LAV…». António Pedro Pinto Monteiro, Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante, in Manual de Arbitragem, Almedina, 2019, pág. 398, que em nota referem a concordância de outros autores que citam, afirmam identicamente que «os fundamentos para a anulação da sentença arbitral encontram-se consagrados no artigo 46º, nº 3 da LAV, tendo o elenco aí apresentado uma natureza taxativa, o que impede, portanto, que as partes procurem anular a sentença com outros fundamentos que não aqueles legalmente previstos». Também António Sampaio Caramelo, loc. cit., pág. 11, refere que os fundamentos de impugnação das sentenças são os «taxativamente previstos» na LAV.
Temos assim que as normas do Código de Processo Civil que estabelecem os casos em que as sentenças dos tribunais estaduais são nulas (o artigo 615.º do Código de Processo Civil) não podem ser convocadas para o caso. A isso não se opõe a disposição do n.º 2 do artigo 32.º do Regulamento do CIMPAS, nos termos do qual «em caso de omissão caberá ao tribunal arbitral conduzir a arbitragem, suprindo do modo que considerar apropriado, as regras em falta, designadamente aplicando subsidiariamente, as regras e princípios do Código de Processo Civil, adaptados à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral», na medida em que o Regulamento não pode dispor sobre matéria que a LAV regula de forma imperativa, como é o caso.
Na medida em que os fundamentos de nulidade sejam decalcados da previsão do artigo 615.º do Código de Processo Civil esta conclusão não parece impedir que o tribunal possa usar o contributo desta norma para interpretar e aplicar o disposto no n.º 3 do artigo 46.º da LAV, não descurando nunca as especificidades dos tribunais arbitrais e das sentenças arbitrais, mas essencialmente a razão de ser na previsão legal.
A jurisprudência publicada varia no tocante ao conteúdo do dever de fundamentação das sentenças arbitrais e mais especificamente sobre as falhas que são susceptíveis de constituir uma falta de fundamentação relevante para efeitos de determinar a anulação da sentença, todas reconhecendo, como é mister, que as sentenças arbitrais se encontram abrangidas pelo dever de fundamentação previsto na Constituição da República Portuguesa.
No caso concreto, a falha apontada consiste na falta de arrolamento dos factos não provados. Na sentença arbitral recorrida consta a indicação especificada dos factos provados, consta a motivação da decisão da matéria de facto, mas não são indicados de forma especificada os factos que o tribunal arbitral julgou não provados. Independentemente da densificação do dever de fundamentação que pudesse ser feito, cremos que no caso a falha apontada não consubstancia uma nulidade.
O artigo 42.º da LAV rege sobre a «forma, conteúdo e eficácia da sentença», dispondo o seguinte na parte que aqui interessa:
«1 - A sentença deve ser reduzida a escrito e assinada pelo árbitro ou árbitros. (…). […] 3 - A sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41.º.»
O artigo 26º do Regulamento do CIMPAS, relativo à «sentença arbitral», estabelece o seguinte:
«1. Finda a produção de prova e feitas alegações, quando tiverem lugar, o tribunal decide de imediato e profere a respectiva decisão, excepto se a complexidade do litígio não o permitir, devendo, nesse caso, proferir a decisão no prazo máximo de 10 dias. 2. Da audiência de julgamento arbitral será lavrada ata, a assinar pelo árbitro, devendo a mesma conter a identificação das partes e dos restantes intervenientes, bem como a caracterização sumária do litígio e respectiva decisão, devidamente fundamentada em termos concretos e concisos.»
Como se vê, nenhuma destas normas fornece pistas sobre o que se deve entender por fundamentação. No entanto, segundo as regras processuais estaduais, a fundamentação da decisão é de facto ou de direito. A fundamentação de facto consiste na especificação dos factos que o tribunal julgou provados e aos quais vai de seguida aplicar o direito para concluir pelo dispositivo. A fundamentação de direito consiste na indicação, interpretação e aplicação das normas e princípios de direito aos factos provados e na formulação ao silogismo judiciário que há-de conduzir ao dispositivo.
Ao contrário do que por vezes é entendido, os factos não provados não se incluem na fundamentação de facto da decisão na medida em que a estatuição das normas jurídicas aplicáveis é composta por hipóteses de facto e como tal a aplicação daquelas pressupõe que a hipótese subjacente tenha sido demonstrada. Coisa diferente consiste em saber se ao julgar os factos o juiz se deve pronunciar sobre a totalidade dos mesmos, arrolando quer os que julga provados quer os que julga não provados, tarefa que devendo ter lugar na sentença (é o regime do actual Código de Processo Civil mas é sabido que no antigo Código de Processo Civil isso não era assim e que havia uma separação entre afixação – o julgamento – da matéria de facto – e a exposição da respectiva motivação – e a sentença, da qual já só constavam os factos julgados provados) acaba por se traduzir em conteúdo desta. Porém, aqui a questão já não é de fundamentação – de facto – da sentença, é sim de julgamento da matéria de facto, rectius, de enunciado desse julgamento.
Como quer que seja, não existe norma legal que imponha uma fórmula através da qual o tribunal anuncia que julgou não provada determinada matéria de facto. Esse anúncio pode ter lugar de forma mais perfeita – v.g. através de um capítulo próprio no qual se arrola um a um cada um dos factos não provados – ou de uma forma menos perfeita – v.g. através de fórmulas do género «nenhum dos demais factos» ou «nenhum outro facto» «se provado». Mas também pode ser feito de uma forma mais cristalina ou menos clarividente, designadamente pode resultar da motivação da decisão sobre a matéria de facto que o tribunal julgou não provados os restantes factos alegados que não foram levados aos factos julgados provados.
É precisamente o caso dos autos. Lendo a motivação da decisão sobre a matéria de facto, constata-se com facilidade que o Juiz Árbitro julgou não provados os restantes factos alegados pelas reclamantes. Isso mesmo resulta da afirmação segundo a qual o teor dos documentos indicados como estando na génese da decisão «foi conjugado com as declarações das Reclamantes B… e C…, daí resultando que a versão dos factos por si apresentadas e densificadas em audiência, colide com a demais prova produzida, nomeadamente documental». E da afirmação segundo a qual «o Tribunal considerou, em geral, pouco credíveis estes depoimentos, contraditórios entre si, e, sobretudo, divergentes de outros elementos probatórios juntos aos autos, em particular o auto elaborado pela GNR, de onde resulta claro que o embate se deu na faixa de rodagem».
Resultando claro da motivação da decisão arbitral que o tribunal só considerou ter sido produzida prova dos factos que julgou provados e que as declarações das reclamantes que constituem o único meio de prova produzido por iniciativa destas não foram consideradas suficientemente credíveis, devemos concluir, com o mínimo de esforço interpretativo e enunciativo que o tribunal arbitral julgou não provados os factos alegados que não constam do elenco dos que julgou provados.
Refira-se outrossim que a falta de indicação nominada dos factos não provados não consubstancia uma omissão de pronúncia sobre questões de que o tribunal deve conhecer. São coisas diferentes a decisão da matéria de facto e a apreciação das questões de que o tribunal deve conhecer por terem sido suscitadas pelas partes ou serem de conhecimento oficioso. Por isso o vício da decisão sobre a matéria de facto – que passa pela impugnação da decisão e/ou pelo requerimento da ampliação da matéria de facto aos pontos de facto que são necessários para o tribunal poder conhecer as questões sobre que se deve pronunciar – e o vício da sentença – que passa pela invocação do vício e do modo como o mesmo deve ser sanado pelo tribunal ad quem em substituição do tribunal a quo – são distintos e possuem regimes de arguição e julgamento próprios.
No que concerne à alegada contradição entre o facto do ponto B e a decisão, para além de ser questionável se isso pode ser fundamento de anulação de uma sentença arbitral – esse fundamento de nulidade das sentenças dos tribunais estaduais previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, não encontra expressão no artigo 46.º da LAV[2] –, temos como certo que tal contradição não existe.
Com efeito, o que se encontra julgado provado no aludido ponto é que a condutora do veículo da reclamante teve uma avaria e foi forçada a imobilizar a viatura na auto-estrada. Em momento algum é referido em que ponto da largura da auto-estrada o veículo foi imobilizado e/ou que por força da avaria a condutora não tinha condições para deixar o veículo deslocar-se para a berma e só aí o imobilizar, sendo certo, por ser um facto notório, que mesmo que sofra uma avaria que desligue o motor, um veículo em circulação – para mais à velocidade de circulação numa auto-estrada – continua a movimentar-se até que o condutor accione os respectivos travões ou a inércia ponha termo à respectiva velocidade.
Ora havendo uma proibição legal de parar nas auto-estradas quem pretenda justificar a paragem nesse local necessita de provar que a paragem – repete-se, no preciso local onde ocorreu – se deveu a um caso de força maior – e não, por exemplo, aos riscos próprios do veículo, como é uma avaria mecânica – ou que no caso, dadas as circunstâncias, não lhe era exigível proceder de modo diferente. Por isso, independentemente do acerto do juízo formulado, não é contraditório julgar provado que a paragem se deveu a avaria e decidir não obstante que a paragem na faixa de rodagem da auto-estrada não está justificado de modo que permita excluir a violação da regra de circulação – a negligência – que proíbe essa paragem.
Improcede assim a arguição de nulidade da sentença arbitral recorrida.
B] impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
A recorrente insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto do tribunal arbitral, pretendendo que a prova seja reapreciada pela Relação e a matéria de facto seja alterada.
Trata-se contudo de uma pretensão condenada ao insucesso.
O artigo 34.º da LAV estabelece o seguinte regime para a realização das audiências no tribunal arbitral: «1 - Salvo convenção das partes em contrário, o tribunal decide se serão realizadas audiências para a produção de prova ou se o processo é apenas conduzido com base em documentos e outros elementos de prova. O tribunal deve, porém, realizar uma ou mais audiências para a produção de prova sempre que uma das partes o requeira, a menos que as partes hajam previamente prescindido delas. 2 - As partes devem ser notificadas, com antecedência suficiente, de quaisquer audiências e de outras reuniões convocadas pelo tribunal arbitral para fins de produção de prova. 3 - Todas as peças escritas, documentos ou informações que uma das partes forneça ao tribunal arbitral devem ser comunicadas à outra parte. Deve igualmente ser comunicado às partes qualquer relatório pericial ou elemento de prova documental que possa servir de base à decisão do tribunal».
Quanto à recorribilidade da sentença arbitral dispõe o artigo 39.º, n.º 4, que «a sentença que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral, só é susceptível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável.»
Por sua vez, o artigo 29.º, n.º 2, do Regulamento do CIMPAS estabelece que da decisão arbitral cabem para o Tribunal da Relação os mesmos recursos que caberiam da sentença proferida pelo tribunal de comarca, ou seja, no tocante aos recursos ordinários, o recurso de apelação tal qual o define e regula o Código de Processo Civil.
Quanto à produção dos meios de prova em audiência, o artigo 23º do Regulamento estabelece no seu n.º 1 podem produzir-se perante o tribunal arbitral quaisquer provas admitidas em direito, sem prejuízo de o tribunal arbitral determinar a admissibilidade, pertinência e valor de qualquer prova produzida ou a produzir. No n.º 2 estabelece que o tribunal arbitral pode, por iniciativa própria ou a requerimento de uma ou ambas as partes, recolher declarações das partes, ouvir testemunhas ou terceiros, obter a entrega de documentos necessários, nomear um ou mais peritos, mandar proceder a análise ou proceder a exames directos.
O n.º 8 deste preceito prescreve que «a gravação da prova só será admitida nos processos de reclamação cujo valor do pedido seja superior à alçada dos tribunais de primeira instância e desde que tal seja requerido pela parte ou partes interessadas com a apresentação da reclamação e da contestação». Não tendo as reclamantes ou a reclamada requerido a gravação da prova, os depoimentos das testemunhas ouvidas foram produzidos de forma oral, sem registo do respectivo teor ou conteúdo.
Resulta do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil que no recurso de apelação, para a Relação poder modificar a decisão sobre a matéria de facto é necessário que se verifique uma circunstância inultrapassável: poder reapreciar a totalidade dos meios de prova produzidos e que foram atendidos na decisão recorrida.
Só tendo ao seu dispor a totalidade dos meios de prova que o tribunal a quo ponderou e na qual assentou a sua decisão, a Relação poderá verificar se a prova produzida justifica a decisão recorrida ou esta deve ser modificada. Basta que algum dos meios de prova produzidos não esteja à disposição da Relação para esta já não poder exercer os poderes de controlo da decisão sobre a matéria de facto do tribunal a quo.
Por conseguinte, não tendo sido requerida e efectuada no tribunal arbitral a gravação da prova, ficou prejudicada em definitivo a possibilidade de o recorrente, no recurso para o tribunal estadual, impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
Acresce que não existe nos autos documento autêntico como valor de prova plena dos factos relativos ao evento danoso que possa impor por si mesmo e independentemente da prova por declarações produzida em audiência que se julgue provado qualquer dos factos referidos pela recorrente.
Por fim, cabe sublinhar que a circunstância de o veículo ser propriedade de uma sociedade comercial e ser conduzido por uma pessoa singular (as pessoas colectivas não praticam actos por si mesmas, mas apenas através dos seus representantes, mandantes ou comissários) não é suficiente para que se possa julgar provado que a pessoa conduzia o veículo «por conta e no interesse da proprietária do mesmo».
Com efeito, o conceito de relação de comissão é um conceito de direito que carece de ser consubstanciado em factos materiais que permitam caracterizar em que termos se está a fazer a condução, isto é, a conexão entre o condutor e o proprietário e entre o exercício da condução e o interesse social. Seriam esses factos, não alegados na reclamação (a qual também não foi mandada aperfeiçoar pelo tribunal arbitral, situação que também não vem invocada no recurso), que teriam de ser julgar provados para que em sede de aplicação do direito aos factos se pudesse concluir pela existência de uma relação de comissão.
Pelo exposto, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
C] da matéria de direito:
Em sede de determinação da culpa dos condutores pela colisão ocorrida entre os dois veículos automóveis em resultado da qual a reclamante sofreu os danos cujo ressarcimento pretende, a reclamante começa por defender que o condutor do veículo segurado pela reclamada se encontra onerado com a presunção de culpa do n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil.
Dispõe este preceito que aquele que conduzir veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se porém o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1.
Este preceito estabelece uma presunção de culpa na produção dos danos sobre a pessoa que estiver a conduzir por conta de outrem. A condução por conta de outrem é a que é exercida no âmbito de uma relação de comissão. A comissão é uma relação entre duas pessoas que se traduz no exercício de determinadas tarefas por uma delas por conta e sob a direcção da outra, dispondo o comitente, no âmbito dessa relação, do poder de orientação, de direcção, de supervisão ou de determinação quanto ao modo e às circunstâncias em que o comissário exerce as tarefas. O comitente não apenas beneficia da actividade do comissário, como sobretudo encontra-se em condições de poder influenciar e controlar essa actividade.
Nas palavras de Antunes Varela, in Das Obrigações Em Geral, Vol. I, página 599, a propósito da responsabilidade objectiva do comitente consagrada no artigo 500º do Código Civil, «a comissão pressupõe uma relação de dependência (droit de direction, de surveillance et de contrôle, na expressão da jurisprudência francesa) entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo.»
Nessa medida, a comissão pode traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, o que importa não é a extensão da relação, é o poder de dar instruções ou ordens, pois é este poder que justifica a responsabilização do comitente, independentemente de culpa própria, pelo risco da actividade do outro. Traduzindo-se a relação de comissão num vínculo de autoridade e de subordinação correspectivas, tanto pode o comissário ser um mandatário como um simples serviçal ou assalariado, ou qualquer encarregado, gratuita ou onerosamente, da prestação dum serviço ou comissão – necessário é que exista uma relação de subordinação ou dependência do comissário perante o comitente (quem dá ordens, instruções e fiscaliza o desempenho).
A presunção legal de culpa do condutor por conta de outrem pressupõe portanto que se prove a relação comitente - comissário entre o proprietário e o condutor do veículo, competindo ao lesado ou ao titular do direito à indemnização a prova de tal relação. Do mero facto de se conduzir um veículo pertencente a outrem não decorre que isso tenha lugar por conta do proprietário, nem tal se presume. Logo, face aos factos que foram julgados provados na sentença arbitral não é possível onerar o condutor do veículo segurado na reclamada com a presunção de culpa do n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil.
Sustenta a recorrente que a ser assim caímos na previsão do artigo 506.º do Código Civil devendo a culpa ser repartida entre ambos os condutores.
O Código da Estrada dispunha no artigo 24.º que o condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo as características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Já o artigo 72.º, relativo ao trânsito nas auto-estradas, dizia que nas auto-estradas e respectivos acessos, quando devidamente sinalizados, é proibido parar ou estacionar, ainda que fora das faixas de rodagem, salvo nos locais especialmente destinados a esse fim.
A matéria de facto revela que ambos os veículos circulavam na A1, de noite, e que a dada altura a recorrente se viu forçada a imobilizar a viatura devido a uma avaria. Todavia, por causas não apuradas, o veículo não foi imobilizado na berma, tendo ficado sim a ocupar parcialmente a faixa de rodagem da direita. O outro veículo circulava no mesmo sentido e pela mesma faixa de rodagem da direita e ao aproximar-se do veículo imobilizado na faixa de rodagem o seu condutor não conseguiu mudar para a faixa central para evitar o embate porque nessa faixa central seguiam outros veículos. Apesar da tentativa de travagem, não conseguiu evitar colidir com a traseira do veículo imobilizado.
O acidente dos autos inclui-se assim no grupo daqueles acidentes que ocorrem quando um veículo se imobiliza na auto-estrada, gerando um factor que leva a que outros veículos acabem por ir embater naquele que se encontra parado e com cuja presença os outros condutores não contavam e/ou de que não se aperceberam a tempo.
A matéria de facto provada não revela vários pormenores que seriam importantes para a avaliação da culpa. Desconhecemos, por exemplo, a que velocidade instantânea circulava o veículo que embateu no veículo imobilizado à sua frente. Desconhecemos a que distância podia e devia o condutor do veículo de trás avistar o veículo da frente e a que distância se podia aperceber que o mesmo (já) estava imobilizado (estando o veículo do observador em movimento não é de imediato que ele se pode aperceber que o veículo que vê à sua frente está parado). Ignoramos se o veículo imobilizado tinha as luzes de emergência acesas para avisar os demais veículos da sua imobilização.
A propósito da não visibilidade do obstáculo e da imprevisibilidade do seu aparecimento, a doutrina e a jurisprudência italianas, como nos dá conta Sinde Monteiro, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 131, pág. 49, nota 6, usa a expressão insidia stradale (à letra, “cilada”; igualmente vulgar é a utilização da expressão traboccheto, “armadilha”).
Na verdade, devemos considerar que perante perigos que são tão habituais ou expectáveis que qualquer condutor, usando do normal cuidado e diligência, os pode detectar e adequar a sua condução à presença dos mesmos, caem na esfera de responsabilidade do próprio agente os danos decorrentes da falta ou falha no comportamento que lhe era exigível. Pelo contrário, o agente não pode ser responsabilizado por um perigo com que não podiaou devia contar, cujo surgimento era em condições normais imprevisível, decorrente de um factor ou obstáculo cujo aparecimento aqui e agora constitui uma surpresa.
Parece pacífico o entendimento de que os condutores da auto-estrada devem cumprir as determinações estradais legalmente estabelecidas, mas não são obrigados a prever o aparecimento súbito de obstáculos na estrada. Conforme se diz no Acórdão da Relação do Porto de 22.01.2009, in www.dgsi.pt, «numa auto-estrada não é suposto, normal (e é com base na normalidade que as pessoas contam para se determinarem) ou previsível que apareça, pelas 05h40m, uma autogrua (máquina industrial e com iluminação demasiado modesta) a circular a 30 kms/h (um verdadeiro embaraço para o trânsito e um perigo para os demais utentes dessas vias), violando a norma do artigo 27º/2 do CE, apesar de autorizada a circular em auto-estradas e circular na via mais à direita», por maioria de razão não é suposto, nem normal, que numa auto-estrada sejamos confrontados com o aparecimento de um veículo imobilizado na faixa de rodagem, havendo como há uma berma destinada a essa finalidade.
O conceito de auto-estrada é o de uma estrada que representa um corredor de circulação mais protegido – separador central, dimensão das bermas, vedação do exterior – e mais capaz de proporcionar deslocações mais rápidas – pavimento, rectas e curvas largas – e no qual o condutor paga inclusivamente uma taxa para poder circular. Essa noção cria nos condutores que nela circulam uma expectativa de uma condução mais segura, mais protegida, mais rápida, com menos obstáculos. O aparecimento súbito de um obstáculo em plena faixa de rodagem é assim algo com que não se conta em condições normais (é algo diferente se, por exemplo, há nevoeiro ou outras condições atmosféricas adversas) e, por isso, constitui uma cilada em que pode cair qualquer condutor diligente. Ora este quadro não pode estar arredado da avaliação ético-jurídica para efeitos de formulação do juízo de culpa da actuação do condutor que vindo por trás do veículo imobilizado acaba por ir embater nele.
Numa perspectiva simplista e redutora pode parecer que o condutor do veículo que foi embater contra o veículo imobilizado conduzia com excesso de velocidade, ou seja, excedia a velocidade que lhe permitiria, em condições de segurança, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente. Mas a norma relativa à velocidade compreende também um elemento de previsibilidade. O que o condutor deve ter em atenção, de molde a adequar a sua velocidade, é a necessidade de executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente. Por outras palavras, não se trata de fazer parar o veículo sempre e em qualquer circunstância no espaço livre e visível, mas de o fazer parar no espaço livre e visível com que previsivelmente o condutor podia e devia contar. O espaço livre e visível não é o espaço objectivamente disponível, mas o espaço concretamente expectável, previsível, com que era suposto contar, que o condutor devia prever.
Certo é que o veículo que se encontrava parado na faixa de rodagem da auto-estrada não podia encontrar-se ali, independentemente da causa porque estava. Aliás, a decisão de imobilizar o veículo em plena via da direita da auto-estrada parece dever-se a uma opção da respectiva condutora, porventura resultante de inexperiência ou improvidência.
Se o veículo está a deslocar-se numa auto-estrada é porque vem animado de alguma velocidade e, por isso, se o seu motor deixar de funcionar, em virtude de uma qualquer avaria, ele continua a deslocar-se durante mais alguns metros permitindo ao respectivo condutor levá-lo para a berma da estrada. Para um veículo a circular a cerca de 100 km/hora se imobilizar prontamente sem sequer permitir ao condutor deixar o veículo, pela inércia, deslizar para a berma da estrada, seria necessária uma invulgar e fulminante avaria dos respectivos órgãos de travagem do veículo que determinasse um total bloqueio das rodas do veículo, o que é particularmente improvável.
Por isso, em regra, do ponto de vista na normalidade das coisas, uma avaria mecânica não impede o condutor de conduzir o veículo para fora da faixa de rodagem e de o imobilizar já na berma, espaço que serve precisamente para parar os veículos que se avariem e necessitem de assistência e onde já não perturbaria o demais trânsito. Não há pois que fazer qualquer comparação com as situações em que a imobilização se dá em virtude de despiste (v.g. pela presença de elementos no pavimento como a água ou óleo), embate com outros elementos estranhos ao ambiente de circulação (v.g. cães que invadem a auto-estrada) ou mesmo acidente, em que a imobilização decorre de um evento súbito, imprevisto, violento, perturbador, capaz de afectar o discernimento e a capacidade de actuação do condutor.
Temos, portanto, que à condutora do veículo embatido é possível imputar claramente a infracção rodoviária de imobilizar o veículo na faixa de rodagem da auto-estrada e que ao condutor do outro veículo não é possível imputar a infracção do excesso de velocidade (por se tratar de uma auto-estrada e não se ter provado qualquer excesso objectivo ou instantâneo de velocidade). Acresce que estando a faixa de rodagem mais à sua esquerda ocupada com outros veículos, não lhe foi possível realizar a manobra de segurança de mudança para outra faixa de rodagem de modo a evitar o veículo imobilizado. O que significa que sendo aquela infracção manifestamente causal do acidente, a culpa pela ocorrência deste deve ser imputada, do ponto de vista ético-jurídico, exclusivamente à aqui reclamante, por negligência.
Nessa medida, não existem elementos que permitam alterar o decidido pelo tribunal arbitral, sentença que por isso mesmo deve ser confirmada.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a sentença arbitral recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.
*
Porto, 6 de Fevereiro de 2020.
* Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 538)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]
_________ [1] Não cuidamos, sublinhe-se, aqui da relação entre o recurso e/ou a acção de impugnação e a oposição à execução que é regida por outras normas cuja análise não é necessária para o caso. [2] Parece dominante na doutrina – vide autores já citados – o entendimento segundo o qual esse vício deve ser integrado no vício da falta de fundamentação, pelo menos nas situações mais gravosas, com o que concordamos.