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RAI
ASSISTENTE
RECLAMAÇÃO HIERÁRQUICA DO ARTº278º
DO CPP
INADMISSIBILIDADE INSTRUÇÃO
Sumário
I) Os dois modos possíveis de reação do assistente ou denunciante com a faculdade de se constituir assistente contra o arquivamento do inquérito são de exercício alternativo e não cumulativo ou sucessivo, cabendo-lhe optar por um deles, não podendo requerer, primeiro a intervenção hierárquica, e depois a abertura de instrução. Se dentro do prazo de abertura de instrução opta por suscitar a intervenção hierárquica, tal significa uma renúncia à fase da instrução.
II) Ao juiz de instrução não são reconhecidos poderes para controlar a decisão do Ministério Público qualificar, tramitar e apreciar um determinado requerimento como pedido de intervenção hierárquica, sob pena de estar ilegitimamente a interferir com a sua autonomia, consagrada no art. 219º, n.º 2, da Constituição.
III) O requerimento de reclamação hierárquica não está sujeito a formalidades especiais, embora deva obedecer a requisitos mínimos, para evitar os requerimentos destituídos de qualquer fundamento, devendo, designadamente, conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente ao arquivamento, bem como, se for o caso, a indicação dos atos de inquérito que o reclamante pretende que o Ministério Público realize e dos factos que espera provar com eles.
IV) Independentemente de o assistente ou denunciante não qualificar o seu requerimento como "reclamação hierárquica" nem referir que pretende reclamar hierarquicamente, se através dele critica e rebate os fundamentos do despacho de arquivamento, alega que se impõe o prosseguimento do inquérito e requer a intervenção do Estado Português para desenvolver as diligências necessárias no domínio da investigação criminal participada, a única forma de reconhecer algum sentido útil a tal requerimento é considerá-lo como um pedido de intervenção hierárquica.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. RELATÓRIO
1. No processo de instrução com o NUIPC 954/19.3T9BRG, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo de Instrução Criminal de Braga (Juiz 1), foi proferido despacho, em 22-10-2019, a indeferir o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente H. M., por inadmissibilidade legal da mesma, nos termos do art. 287º, n.º 3, do Código de Processo Penal, com o fundamento de, tendo o requerente optado, no prazo aludido na al. b) do n.º 1 desse artigo, por solicitar a intervenção hierárquica ao abrigo do art. 278º do mesmo código, renunciou a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito, prescindindo do pedido de abertura de instrução.
2. Inconformado com tal despacho, dele veio interpor recurso o assistente, concluindo a respetiva motivação nos termos que a seguir se transcrevem[1]:
«CONCLUSÕES
1. Não pretende o recorrente nas conclusões que se seguem, reduzir o objeto do presente recurso.
2. Nos presentes autos, foi decidido que não assiste ao recorrente o direito de requerer a abertura da instrução, por inadmissibilidade legal nos termos do artigo 287º, nº3 do CPP.
3. O ora recorrente não se conforma com a douta decisão proferida pelo que da mesma interpôs recurso.
4. Com o presente recurso pretende-se que sejam apreciadas as nulidades, que refletem as razões de discordância do recorrente com o despacho proferido.
5. Ao contrário do alegado no despacho recorrido o recorrentenão requereu a intervenção hierárquica no processo.
6. Nulidade já arguida pelo recorrente nos autos, da qual não foi ainda proferido despacho, o que justifica a apresentação do presente recurso.
7. O recorrente, face à notificação do despacho de arquivamento, solicitou por requerimento dirigido ao Exmo. Senhor Procurador Adjunto – a transmissão da queixa-crime às autoridades competentes do país onde o crime foi cometido - não sendo aplicável a lei penal Portuguesa ao caso concreto, nos termos da Convenção Europeia de Auxilio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, dado o recorrente ser cidadão europeu, os factos denunciados integrarem a prática de crime em Portugal e no país destinatário.
8. Orequerimento apresentado pelo recorrente no processo não podia ter sido convolado em requerimento de intervenção hierárquica, à revelia do pretendido pelo recorrente, que não o suscitou.
9. O Ministério Público deveria, apenas, pronunciar-se quanto ao solicitado pelo recorrente.
10. Se o Exmo. Sr. Procurador Adjunto não podia dar sequência ao requerido “ … por implicar revogar o seu próprio despacho de arquivamento… “ deveria ter indeferido o requerido e nunca convolar o requerimento em algo que não foi solicitado sem conhecimento e sem consentimento do visado.
11. Ao entender ser mais importante manter o seu despacho, decidindo não dar sequência às diligências solicitadas pelo recorrente e necessárias no domínio da investigação criminal, apenas poderia ter indeferido a pretensão do recorrente.
12. Não podia convolar o requerimento apresentado, em algo que não foi pedido, sem a prévia pronúncia do visado.
13. Omitindo, assim, o direito de pronúncia do recorrente.
14. Da concreta causa de pedir invocada pelo recorrente não se pode intuir – outra pretensão – diversa da formulada.
15. Foi feita uma interpretação errada e precipitada quanto ao requerimento apresentado pelo recorrente nos autos, que não solicita qualquer intervenção hierárquica, nem teve qualquer oportunidade de se pronunciar quanto à mesma.
16. Estranhe-se, o requerimento apresentado pelo recorrente é convolado em algo que não foi solicitado, exatamente, no mesmo dia em que foi apresentado pelo recorrente o requerimento para a abertura de instrução - dia 7 de Outubro de 2019.
17. O facto indevidamente praticado pelo Ministério Público impediu o recorrente de exercer os seus direitos, e coartou-lhe a possibilidade da apreciação judicial - que requereu oportuna e expressamente nos autos com a apresentação do pedido da abertura de instrução face ao despacho de arquivamento - o que efetivamente veio a acontecer com a decisão proferida pelo Tribunal a quo quando refere que não assiste o direito de requerer a abertura de instrução por inadmissibilidade legal nos termos do artigo 283, nº 3 do CPP .
18. Acresce que, tendo em conta o conteúdo do despacho proferido pelo Exmo. Senhor Procurador da República verificamos que existe erro quanto ao objeto dos presentes autos. O despacho pronuncia-se sobre factos que não fazem parte e não constam do requerimento apresentado nos autos pelo recorrente. Sobre os factos do requerimento em causa não se pronuncia. Omissão de pronúncia por não tratar das questões de que deveria conhecer.
19. Nulidades que se invocam, devendo a decisão proferida ser revogada e substituída por outra.
(…)
TERMOS EM QUE, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e, por essa razão, ser revogada a douta decisão recorrida com as legais consequências, (…).»
3. O Exmo. Procurador da República junto da primeira instância, em resposta à motivação do recorrente, pronunciou-se no sentido de o recurso ser considerado improcedente, pelas razões sintetizadas nas conclusões que a seguir se transcrevem:
«Concluindo diremos que:
A) O requerimento apresentado pelo então denunciante, e ora recorrente, a fls. 54 a 56, configura, do ponto de vista material, um requerimento para intervenção hierárquica;
B) Com efeito, tendo o Ministério Público o monopólio da ação penal, em Portugal,
C) Pedir a um Procurador, num dado processo de inquérito, a intervenção do Estado Português para desenvolver as diligências necessárias no domínio da investigação criminal, equivale a pedir que o Ministério Público prossiga com as investigações;
D) No domínio do CPP, determinar o prosseguimento de um processo arquivado é prerrogativa que compete ao imediato superior hierárquico do magistrado que proferiu o despacho de arquivamento;
E) Assim, o requerimento apresentado pelo arguido apenas poderia surtir efeito útil sendo encarado como um verdadeiro requerimento de intervenção hierárquica e foi como tal que foi objeto de despacho pelo superior hierárquico do magistrado que proferira o despacho de arquivamento;
F) A M.ª Juiz a quo não pôs em causa esse entendimento;
G) Antes, na mesma linha, indeferiu o RAI apresentado, por considerar que as faculdades de requerer a intervenção hierárquica ou a abertura da instrução são alternativas, e não cumulativas;
H) Sendo exercidas ambas, de forma sucessiva, a instrução é legalmente inadmissível, sob pena de violação do disposto no n.° 1 do art. 279.° do CPP.
I) Assim, a decisão recorrida não merece qualquer reparo.
Termos em que deverá o recurso em apreço ser considerado improcedente.» 4. O recorrente apresentou um requerimento, junto a fls. 144, em que toma posição sobre a resposta do Ministério Público.
Todavia, considerando que o exercício de tal faculdade não está legalmente previsto nem, consequentemente, é admissível, não será esse articulado tomado em consideração. 5. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjuntaemitiu parecer, no sentido de, em seu entender, não se poder concluir que o requerimento em apreço possa ser tido como reclamação hierárquica apresentada pelo queixoso, não só porque todo o processado da iniciativa deste é irregular, não respeitando a sequência lógica nem as fases processuais legalmente previstas, como também desde a apresentação da queixa que se dirige ao mesmo Senhor Procurador, sem distinção entre procurador-Adjunto e Procurador da República, para além de ele próprio negar tal intenção, não sendo ainda de descurar o facto de a suposta reclamação hierárquica ser um dos requerimentos que o mesmo apresentou desacompanhado de advogado.
Não obstante, conclui a Exma. Procuradora-Geral Adjunta que o requerimento para abertura de instrução foi apresentado já depois de decorrido o prazo de 20 dias previsto no art. 287º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, pelo que não havia lugar à instrução, independentemente do fundamento constante do despacho recorrido, por ter sido requerida para além do prazo legal para o efeito, termos em que o despacho de arquivamento se consolidou na ordem jurídica. 6. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente respondeu a esse parecer, reafirmando que não renunciou à apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito e alegando, quanto à tempestividade da apresentação do requerimento de abertura de instrução, que requereu nos autos apoio jurídico na modalidade de nomeação de patrono e pagamento de custas, nomeação essa realizada no dia 16 de setembro de 2019 e posteriormente notificada ao recorrente, constando inclusivamente dos autos um despacho de admissão da instrução, já transitado em julgado. 7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do citado código.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Como é jurisprudência pacífica[2], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.
Assim, a única questão suscitada pelo recorrente consiste em saber se havia fundamento para a Mm.ª Juíza a quo indeferir o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, por inadmissibilidade da instrução, o que passa por averiguar se o mesmo previamente solicitou a intervenção hierárquica ao abrigo do art. 278º do Código de Processo Penal.
2. DA DECISÃO RECORRIDA
É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição):
«Por estar(em) em tempo, ter(em) para o efeito legitimidade, estar(em) representado(a)s por advogado(a) e estar(em), por ora, dispensado(a)s do pagamento da taxa de justiça devida, admite-se a intervir nos autos como assistente(s): H. M..
***
Notificado do despacho de arquivamento em 11/9/2019 (fls. 51), o queixoso H. M. veio, no dia 23/9/2019, portanto, dentro do prazo para requerer a abertura da instrução, apresentar um requerimento que veio a ser tramitado como intervenção hierárquica nos termos do artigo 278º do CPP.
Tal pedido de intervenção hierárquica veio a ser indeferido a fls. 61, com a consequente manutenção do despacho de arquivamento.
Vem agora, na qualidade de ofendido, apresentar requerimento de abertura da instrução. E, em concomitância, requerer a constituição como assistente.
O MP, conforme se alcança de fls. 179 propugna pela inadmissibilidade de abertura de instrução com fundamento no disposto no art. 278° n° 1 e 2, do CPP.
Apreciando.
O art.° 278.°, n.° 1, do CPP preceitua que a reclamação hierárquica é requerida no prazo de 20 dias após o termo do prazo (igualmente de 20 dias) para requerer a abertura de instrução - refere tal preceito, expressamente, que tal requerimento pode ser requerido no prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não poder ser requerida.
De acordo com o n.° 2 do mesmo artigo, “o assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica ao abrigo do número anterior no prazo previsto para aquele requerimento”.
Assim, perante a decisão de arquivamento determinado pelo Ministério Público titular do inquérito, em casos de investigação de crimes públicos ou semipúblicos, o assistente pode provocar a intervenção hierárquica (art. 278º do CPP) ou pode requerer a abertura da instrução (art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP).
Decorre do art. 278º do CPP que a opção do legislador foi a de a intervenção hierárquica (ocorra oficiosamente ou de forma provocada, neste último caso a requerimento do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, portanto, pela via da reclamação) ter lugar quando já não seja possível a fase de instrução.
As opções facultativas da apresentação de requerimento de abertura de instrução (apreciado pelo Juiz de Instrução) ou da apresentação de requerimento a suscitar a intervenção hierárquica (apreciado pelo superior hierárquico do titular do inquérito) são modos de reação alternativos (e não cumulativos, nem sucessivos) ao despacho de arquivamento do titular do inquérito, que protegem os direitos do assistente e asseguram o direito a um processo justo e equitativo.
Tendo o assistente optado por, no prazo aludido no art. 287º, nº 1, al. b), do CPP, em vez de requerer a abertura de instrução, requerer a intervenção do superior hierárquico ao abrigo do art. 278º do CPP, isso significa que renunciou a uma apreciação judicial daquele despacho de arquivamento do titular do inquérito.
Caso o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente não opte por requerer a abertura de instrução, pode suscitar a intervenção hierárquica no prazo previsto para o pedido de abertura de instrução.
Ora, tendo o requerente optado pela reclamação hierárquica, prescindiu do pedido de abertura de instrução, sob pena de se fazer tábua rasa do citado preceito legal.
Ver, neste sentido, o Ac. R. Porto de 6/272013 (REL. DES. Maria do Carmo Silva Dias, proc. 1759/11.5TAMAI.P1, www.dgsi.pt.
Assim, não assistindo ao requerente o direito de requerer a abertura da instrução, por inadmissibilidade legal nos termos do artigo 287º nº 3 do CPP, indefere-se o requerimento de fls. 73 e ss.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 1,5 UC, nos termos do artigo 8º nº 9 do RCP, sem prejuízo da dispensa de que beneficia.
Notifique.».
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
No despacho recorrido, a Mm.ª Juíza a quo indeferiu o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo ofendido, entretanto admitido a intervir nos autos como assistente, por este, previamente, em face do despacho de arquivamento do inquérito por parte do magistrado titular do mesmo, ter apresentado pedido de intervenção hierárquica.
Tal decisão assentou no entendimento, seguido pela jurisprudência[3], de que as opções facultativas de requerer a abertura da instrução (a apreciar pelo juiz de instrução) ou de solicitar a intervenção hierárquica (a apreciar pelo imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público titular do inquérito), são modos de reação alternativos - e não cumulativos ou sucessivos - de o assistente reagir ao despacho de arquivamento do inquérito em casos de investigação de crimes públicos ou semipúblicos.
Com efeito, a possibilidade de intervenção hierárquica encontra-se prevista no art. 278º do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer referência, o qual dispõe que:
“1 - No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento.
2 - O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento.”
Em face do texto legal, é patente a intenção do legislador em a intervenção hierárquica (oficiosa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente), apenas ter lugar quando já não seja possível requerer a instrução.
Com efeito, não só o n.º 1 do art. 278º estabelece que o prazo (de 20 dias) para ser suscitada, oficiosamente ou a requerimento, a intervenção hierárquica, se conta da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, como o n.º 2 do mesmo preceito permite que o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, caso optem por não requerer a abertura de instrução, possam suscitar a intervenção hierárquica no prazo previsto para a apresentação daquele requerimento.
O que significa que só pode haver intervenção do superior hierárquico do titular do inquérito, oficiosamente ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, com vista a apreciar internamente a decisão de arquivamento, quando já não puder ser requerida a abertura de instrução ou quando aqueles optem por não a requerer.
Assim, só quando não haja lugar à fase da instrução é que o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem reclamar para o superior hierárquico do titular do inquérito que proferiu o despacho de arquivamento.
Daí o entendimento, seguido na decisão recorrida, de que os dois modos possíveis de reação do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente contra o despacho de arquivamento do inquérito pelo respetivo titular são de exercício alternativo e não cumulativo ou sucessivo, cabendo-lhes optar por uma delas, não podendo requerer, primeiro a intervenção hierárquica, e depois a abertura de instrução, esquecendo inclusivamente que esta tem de ser requerida no prazo de 20 dias contado do despacho de arquivamento do titular do inquérito, conforme previsto no art. 287º, n.º 1, al. b).
Por conseguinte, se dentro desse prazo o assistente, em vez de requerer a abertura de instrução, opta por suscitar a intervenção hierárquica, tal significa uma renúncia àquela fase facultativa.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a constitucionalidade desta interpretação normativa, tendo decidido[4] «[n]ão julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, optando por suscitar a intervenção hierárquica, o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, vê, sempre e irremediavelmente, precludido o direito de requerer a abertura de instrução ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito;».
Como se pode ler nesse acórdão «(…) estando garantida ao assistente ou ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente, nos termos expostos, a possibilidade de requerer a abertura da instrução face a uma decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito criminal, a proibição de o fazer quando opta pela reclamação hierárquica daquela decisão, revelando-se justificada por um fundamento razoável, é uma limitação que não se revela desproporcionada face aos diferentes interesses em jogo, encontrando-se a adoção dessa solução normativa dentro dos poderes do legislador ordinário que lhe são cometidos pelo n.º 7, do artigo 32.º, da Constituição. Por estas razões não se mostra que a interpretação normativa fiscalizada viole qualquer parâmetro constitucional, designadamente o disposto nos artigos 20.º e 32.º, n.º 7, da Constituição, (…)».
No caso dos autos, o recorrente não põe em causa este entendimento, seguido na decisão recorrida. Antes se limita a sustentar que o requerimento por si apresentado e subscrito, na qualidade de denunciante, não se traduz num pedido de intervenção hierárquica, tendo sido indevidamente que o Ministério Público o considerou como tal.
Para tanto, alega que não requereu a intervenção hierárquica no processo, mas que, face à notificação do despacho de arquivamento, apenas solicitou, por requerimento dirigido ao Exmo. Senhor Procurador-Adjunto, a transmissão da queixa-crime às autoridades competentes do país onde o crime foi cometido, não sendo aplicável a lei penal portuguesa ao caso concreto, nos termos da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, dado o recorrente ser cidadão europeu, os factos denunciados integrarem a prática de crime em Portugal e no país destinatário.
Defende, assim, que o Ministério Público deveria apenas pronunciar-se sobre o solicitado, eventualmente indeferindo a sua pretensão, não podendo convolar o requerimento apresentado num pedido de intervenção hierárquica, que não foi suscitada, sem a sua prévia pronúncia.
Importa começar por referir que a questão da alegada indevida qualificação, pelo Ministério Público, do requerimento do denunciante como uma reclamação hierárquica, com a consequente convolação do mesmo, não foi objeto de apreciação no despacho recorrido.
O que se compreende, porquanto ao juiz de instrução não são reconhecidos poderes, direta ou indiretamente previstos em qualquer norma da lei de organização judiciária ou processual penal, para controlar a decisão do Ministério Público qualificar, tramitar e apreciar um determinado requerimento como pedido de intervenção hierárquica, sob pena de estar ilegitimamente a interferir com a sua autonomia, consagrada no art. 219º, n.º 2, da Constituição.
Tal questão tem de ser resolvida dentro da hierarquia própria do Ministério Público, não tendo o juiz de instrução competência jurisdicional para a mesma, por não constar do elenco das suas atribuições.
Ora, no caso dos autos, o Mm.º Juiz, ao apreciar o requerimento de abertura de instrução, deparou-se com a existência formal de um requerimento do denunciante com a faculdade de se constituir assistente a, previamente, suscitar a intervenção hierárquica, situação que, como vimos, é suscetível de consubstanciar uma causa de inadmissibilidade legal da instrução.
Com efeito, tal requerimento foi apresentado na sequência do despacho de arquivamento do inquérito pelo respetivo titular, foi por este considerado como um pedido de intervenção hierárquica do seu imediato superior, a quem ordenou a remessa dos autos, o qual, por sua vez, também assim o considerou, tendo-o apreciado como tal, indeferindo-o.
Perante o que não cabia ao Mm.º Juiz de instrução sindicar tal decisão, por não lhe serem reconhecidos poderes para tal.
De todo o modo, não deixaremos de referir que também do ponto de vista material o requerimento em causa não podia deixar de ser entendido como um pedido de intervenção hierárquica, como efetivamente foi.
Recorde-se que tal requerimento foi apresentado e subscrito pelo próprio denunciante, na sequência da notificação do despacho de arquivamento do inquérito nos termos do art. 277º, n.º 1, do Código de Processo Penal, com fundamento, por um lado, em parte dos factos denunciados já terem sido objeto de uma queixa que deu origem a outro inquérito, que veio a ser arquivado, não podendo agora ser novamente investigados, sob pena de violação do principio ne bis in idem, e, por outro lado, em relação aos restantes factos, a constituírem crime, o mesmo haver sido praticado por pessoa desconhecida, na Alemanha, funcionário da “Deutsche Post”, conluiado ou não com o destinatário das cartas enviadas pelo denunciante, pelo que não é aplicável a lei penal portuguesa, devendo este, querendo, apresentar denúncia perante as autoridades alemãs competentes, face à incompetência dos tribunais portuguesas, tanto para o julgamento como para a realização do inquérito.
Da análise do requerimento apresentado pelo denunciante, expressamente dirigido ao “Exmo. Senhor Procurador”, constata-se que o mesmo, após tecer considerações teóricas sobre o lugar da prática do facto, a aplicabilidade da lei penal portuguesa a factos ocorridos no estrangeiro e a competência dos tribunais portugueses para deles conhecerem, sustenta o seguinte (transcrição, com negritos nossos):
«Assim, entende-se que o crime se consumou em território nacional.
Por isso, o caso dos autos, e tendo em conta a factualidade indiciada, ao contrário do decidido, traduz uma situação que reclama a aplicação da lei penal portuguesa e, consequentemente, impõe o prosseguimento do inquérito.
Não pode ser declara inaplicável, ao caso, a lei penal portuguesa e julgar prejudicada a possibilidade de realizar o inquérito perante as instâncias judiciais nacionais. (…) O despacho proferido que determinou diretamente a decisão de declaração de incompetência da jurisdição portuguesa para conhecer dos crimes violou os normativos legais supra referidos.
Pelo que, requer a intervenção do Estado Português para desenvolver as diligências necessárias no domínio da investigação criminal participada (...)
Caso assim não se entenda (…) não sendo aplicável a lei penal Portuguesa, (…) requer [que] o Ministério Público ordene a transmissão da queixa-crime apresentada como rege a Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, (…)».
Como é patente em face destes excertos, o denunciante dedica-se a criticar e a rebater os fundamentos do despacho de arquivamento, por deles discordar quanto à decidida inaplicabilidade da lei penal portuguesa e à incompetência dos tribunais portugueses para conhecer dos factos denunciados, pretendendo que o Ministério Público prossiga com a investigação ou, subsidiariamente, proceda à transmissão da denúncia às autoridades estrangeiras competentes.
É o que inequivocamente resulta das expressões utilizadas, ao alegar que se “impõe o prosseguimento do inquérito” e ao requerer “a intervenção do Estado Português para desenvolver as diligências necessárias no domínio da investigação criminal participada”, o que tem necessariamente de ser entendido como pretensão de o Ministério Público, enquanto titular da ação penal (art. 219º, n.º 1, da Constituição) e entidade com legitimidade para promover o processo (art. 48º do Código de Processo Penal), prosseguir com as diligências de investigação.
Com efeito, de acordo com o disposto no art. 262º, n.º 1, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à sua decisão sobre a acusação, cabendo a direção do inquérito ao Ministério Público (art. 263º, n.º 1), que, nos termos do art. 267º, pratica os atos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no n.º 1 do art. 262º.
Ora, a satisfação da referida pretensão do denunciante traduzir-se-ia inequivocamente numa inversão do sentido do despacho de arquivamento proferido pelo magistrado do Ministério Público titular do inquérito, com a consequente determinação do prosseguimento das diligências de investigação.
O que constitui uma prerrogativa do seu imediato superior hierárquico, que apenas pode ser exercida no âmbito da intervenção hierárquica prevista no art. 278º, cujo n.º 1 dispõe especificamente que aquele pode “determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam”.
Assim, a única forma de reconhecer algum sentido útil ao requerimento apresentado pelo denunciante, desde logo no que concerne ao segmento relativo à pretensão deduzida a título principal (o prosseguimento do inquérito, com realização de diligências de investigação), é considerá-lo como um requerimento de reclamação hierárquica, apresentado ao abrigo do art. 278º, como efetivamente entendeu o Exmo. Procurador Adjunto titular do inquérito, ao ordenar a remessa dos autos ao Exmo. Procurador da República, bem como este último, que o apreciou como tal, indeferindo-o.
O mesmo sucede com o segmento do requerimento deduzido a título subsidiário, tendo por objeto a decisão do Exmo. Procurador Adjunto, ao referir no despacho de arquivamento, que, não sendo aplicável a lei penal portuguesa, deveria o denunciante, querendo, apresentar denúncia perante as autoridades alemãs competentes, face à incompetência dos tribunais portugueses, tanto para o julgamento como para a realização do inquérito.
Perante essa decisão, pretende o denunciante, ao abrigo do art. 6º, n.º 1, 2ª §, da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros da União Europeia (de 29-05-2000, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 63/2001, de 16 de outubro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 53/2001, de 16 de outubro), obter a comunicação direta, entre as autoridades judiciárias competentes, da denúncia por parte do Estado português para efeitos de instauração de um processo penal perante os tribunais de outro Estado membro (Alemanha), na aceção do artigo 21.º da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo (de 20/04/1959).
O que se traduziria, mais uma vez, numa inversão do sentido da decisão proferida pelo magistrado do Ministério Público titular do inquérito no despacho de arquivamento, apenas possível por via da intervenção do seu superior hierárquico, no âmbito da competência para emitir ordens ou instruções, prevista nos arts. 61º e 63º, n.º 1, al. c), do Estatuto do Ministério Público.
É certo que o denunciante não qualifica formalmente o seu requerimento em apreço como "reclamação hierárquica" nem em parte algum do mesmo refere que pretende reclamar hierarquicamente, assim como também não o dirige ao magistrado do Ministério Público com a categoria de Procurador da República, que é o imediato superior hierárquico do Procurador Adjunto titular do inquérito.
A este respeito esclareça-se que, ao invés do alegado pelo recorrente (conclusão 7ª), não é verdade que o mesmo tenha dirigido o requerimento em apreço ao Exmo. Procurador Adjunto, uma vez que o fez ao "Exmo. Senhor Procurador", o que comporta aquelas duas categorias profissionais.
Todavia, as referidas circunstâncias não são suscetíveis de infirmar a conclusão de se estar, materialmente, perante um verdadeiro requerimento de reclamação hierárquica.
Em primeiro lugar porque, como pertinentemente é salientado na resposta à motivação do recorrente, a ausência de atribuição do nomem juris adequado, em qualquer peça processual, não deve impedir o magistrado titular do processo, seja qual for a magistratura, de o enquadrar na forma processualmente adequada, desde que da peça em causa resulte, de forma mais ou menos inequívoca, qual é o objetivo processual pretendido.
Aliás, o art. 547º do Código de Processo Civil consagra o princípio da adequação processual, dispondo que o juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir.
Em segundo lugar porque o requerimento de reclamação hierárquica não está sujeito a formalidades especiais, embora deva obedecer a requisitos mínimos, para evitar os requerimentos destituídos de qualquer fundamento, devendo, designadamente, conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente ao arquivamento, bem como, se for o caso, a indicação dos atos de inquérito que o reclamante pretende que o Ministério Público realize e dos factos que espera provar com eles[5].
Ora, o requerimento em apreço é pródigo quanto à alegação dos motivos de facto e de direito pelos quais o denunciante discorda do despacho de arquivamento do inquérito. E se não contém expressamente a indicação de qualquer ato de investigação que o denunciante pretende que seja levado a cabo, este não deixa de aludir à necessidade de apurar a identidade do paradeiro do funcionário dos correios alemães a que atribui a prática do ilícito denunciado (falsificação de documento e burla).
Por fim, não devemos olvidar que o requerimento é subscrito pelo próprio denunciante em nome próprio e não por advogado, sendo compreensível aquele não domine os conceitos legais em questão.
Por tudo quanto fica exposto, não merece reparo a decisão recorrida, ao concluir pela inadmissibilidade legal da instrução ao abrigo do art. 287º, n.º 3, com fundamento em, previamente, o recorrente ter suscitado a intervenção hierárquica do superior hierárquico do magistrado que proferiu o despacho de arquivamento do inquérito, tendo visto tal requerimento ser indeferido.
Refira-se ainda que, nas conclusões 18ª e 19ª, o recorrente invoca nulidades, que apelida de "omissão de pronúncia", por o Exmo. Procurador da República, no despacho que indeferiu o seu requerimento em questão, se ter pronunciado sobre factos que não fazem parte deste e não se ter pronunciado sobre os factos do mesmo, pretendendo que tal despacho seja revogado e substituído por outro que se pronuncie sobre o seu pedido de transmissão da queixa às autoridades competentes do país onde o crime foi cometido.
Todavia, para além da nulidade de omissão de pronúncia estar prevista para a sentença [art. 379º, n.º 1, al. c)], e não para despachos proferidos pelo Ministério Público e de a alegação do recorrente ser insuscetível de que enquadrar em qualquer das nulidades processuais taxativamente previstas na lei (cf. arts. 118º a 120º do Código de Processo Penal), sempre nos estaria vedado apreciar tal despacho, uma vez que, como já salientámos, o recurso incide e tem como objeto o despacho judicial que rejeitou o requerimento de abertura de instrução e não, obviamente, o despacho proferido pelo Exmo. Procurador da República em apreciação do requerimento de intervenção hierárquica.
Improcede, pois, o recurso.
III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negar provimento ao recurso interposto pelo assistente, H. M., confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro unidades de conta (arts. 515º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este diploma).
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Guimarães, 26 de fevereiro de 2020
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(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
(assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página)
[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a formatação do texto e a ortografia utilizada, que são da responsabilidade do relator. [2] - Cf. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995. [3] - Nomeadamente no acórdão da Relação do Porto de 06-02-2013 (processo n.º 1759/11.5TAMAI.P1), disponível em http://www.dgsi.pt, citado na decisão recorrida. [4] - No acórdão n.º 713/2014, de 28-09-2014 (processo n.º 555/14), disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140713.html [5] - Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 723, nota 2 ao art. 278.