REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
RAZÕES DE FACTO E DE DIREITO DE DISCORDÂNCIA
INDICAÇÃO DE ATOS DE INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
Sumário

Apesar de a instrução não ter a direta ou natural finalidade de complementar a recolha de prova indiciária que poderia/deveria ter sido feita pelo MP, tal não significa que, nessa fase processual, não se possa indagar a legalidade dos atos praticados em inquérito, como a suficiência ou insuficiência da investigação e respetivo suprimento.

Texto Integral

Recurso 15165/17.4T9PRT.P1
Origem: Comarca do Porto- Juízo de Instrução Criminal do Porto- Juiz 3

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
B…, invocando a sua qualidade de ofendido, apresentou queixa criminal contra C…, imputando-lhe factos alegadamente suscetíveis de integrar a prática dos crimes de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo artigo 7º da Lei nº 49/2004, de 24/8, e de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358º do Código Penal.
Sem que tivesse sido efetuada qualquer diligência de inquérito, o Magistrado do Ministério Público titular do mesmo julgou extinto o procedimento criminal instaurado contra o denunciado, pelo decurso do prazo de prescrição e ordenou o arquivamento do processo.
Discordando de tal despacho de arquivamento, o ofendido, pedindo simultaneamente a sua constituição como assistente, veio requerer a abertura da instrução, em que, considerando que o procedimento criminal não se encontra prescrito, expõe os factos que considera integrarem a prática, por parte do denunciado/arguido, C…, de ilícitos penais, solicitou a realização de diligências de prova e terminou requerendo que o denunciado fosse pronunciado, em concurso real, pela prática, de um crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358º, um crime de prevaricação de advogado, previsto e punido pelo artigo 370º, ambos do Código Penal, e um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo artigo 7º da Lei n.º 49/2004, de 24/8.
A Ex.ma J.I.C. proferiu, então, o seguinte despacho:
«Por estar em tempo (cfr. artigo 68º nº 3 b) do Código de Processo Penal), ter para o efeito legitimidade (cfr. artigo 68º nº 1 a) do Código de Processo Penal), mostrar-se representado por advogado (cfr. artigo 70º nº 1 do Código de Processo Penal) e ter sido dispensado do pagamento da taxa de justiça prevista nos artigos 519º nº 1 do Código de Processo Penal e 8º nº 1 do R.C.P., admito B…, a intervir nos presentes autos, na qualidade de parte assistente.
Notifique.

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Fls. 76: envie cópia do despacho de encerramento do inquérito.
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Requerimento instrutório de fls. 40 a 64 verso:
Inconformado com o despacho de encerramento do inquérito de fls. 27 e 28, no qual o Ministério Público entendeu que os factos relatados na queixa que o denunciante B… apresentou contra C…, suscetíveis de integrar a prática dos crimes de procuradoria ilícita previsto e punido pelo artigo 7º da Lei nº 49/2004 de 24/8 e de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358º do Cód. Penal, se encontram prescritos nos termos dos artigos 118º nº1, c), 120º e 121º do Cód. Penal, veio o assistente requerer a abertura da fase da instrução, nos termos ali melhor expostos e aqui dados por reproduzidos.
Termina concluindo pela Pronúncia do arguido como autor material, “... em concurso real e de forma consumada, um crime de usurpação de funções previsto e punido pelo artigo 358º do C. Penal, um crime de procuradoria ilícita previsto e punido pelos artigos 118° nº 1 c), 120°, 121°, artigo 7° da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto, e um crime de prevaricação de advogado previsto e punido pelo artigo 370° do Código Penal” (sic, cfr. fls. 62/63 e 63 verso).
Cumpre decidir.
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Estabelece o artigo 286º nº1 do Código de Processo Penal que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Segundo P. Pinto de Albuquerque, a instrução consiste na fase da discussão da decisão, de arquivamento ou de acusação, tomada pelo Ministério Público no final do inquérito.
Nela, pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança. Por isso, a instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do Ministério Público de inexistência de indícios suficientes e discutir a decisão de acusação apenas no que respeita ao juízo do Ministério Público de existência de indícios suficientes.
Tudo isto, para dizer que a instrução se destina a sindicar judicialmente a errada, na perspetiva do requerente, valoração dos indícios colhidos na investigação [1].
Consideramos aqui aplicável a jurisprudência do Ac. da R.G. de 30/11/2015 [2], onde se exarou que, “Findo o inquérito, se o Ministério Público não se pronuncia sobre os crimes de natureza pública e semipública denunciados pelo assistente, comete a nulidade insanável prevista no artigo 119º b) do Código de Processo Penal, por falta de promoção do processo. (... ). Além de que não é indiferente para o assistente conhecer a posição que o Ministério Público assumiu perante todos os factos que denunciou, tenham a natureza que tiverem. Só assim ficará em condições de ponderar e decidir a posição que há de tomar em relação a cada um dos ilícitos denunciados: deduzir ou não acusação particular sobre os crimes particulares; acompanhar ou não a acusação do Ministério Público (se a houver) nos termos do artigo 284º do Código de Processo Penal, requerer a abertura de instrução ou intervenção hierárquica (conforme os casos), ou outra que entender por mais adequada. (...)”.
Em suma, em situações em que o Ministério Público, no encerramento do inquérito, não emitiu qualquer juízo indiciário sobre os factos denunciados e, no caso vertido, nem sequer foram investigados, não é possível requerer a instrução.
Na verdade, aquilo que o assistente deveria ter feito era requerer a intervenção hierárquica do imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que arquivou o inquérito, nos termos do artigo 278° do Código de Processo Penal.
Nesta senda, decidiu o Ac. da R.P. de 23/1/2013 [3] dizendo que “I – O despacho do Ministério Público que, no inquérito, declare extinto o procedimento criminal, por prescrição, pode apenas ser sindicado no âmbito da intervenção hierárquica, ao nível seguinte da hierarquia do MP. II - A estrutura e a dinâmica da fase da instrução não são compatíveis com um exercício de verificação da legalidade de um despacho que declare extinto o procedimento criminal”. No mesmo sentido ainda, cfr. Ac. da R.P. de 4/3/2016 (?), no proc. nº 0817712, in www.dgsi.pt.
Pelo exposto, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 287° do Código de Processo Penal, este Tribunal decide rejeitar o requerimento instrutório, por ser legalmente inadmissível a instrução requerida.
Custas pelo assistente, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça - cfr. artigos 515º nº 1 f) do Código de Processo Penal e 8° nº 9 e Tabela III do R.C.P. - sem prejuízo do apoio judiciário concedido a fls. 32 e 33
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Novamente inconformado, veio o assistente interpor o presente recurso, cujos fundamentos sintetizou nas seguintes conclusões:
«I)- Vem o presente recurso interposto da decisão que rejeitou o Requerimento de Abertura de Instrução por entender que nos termos do artigo 287º, nº 3 do Código de Processo Penal, a mesma é legalmente inadmissível;
II)- Salvo melhor opinião, o Tribunal a quo, decidindo como decidiu não fez uma correta análise dos factos concretos em causa, que impunham uma solução de direito diversa e, consequentemente, uma decisão distinta daquela que foi proferida, conforme adiante se explicitará;
III)- Os crimes objeto de denúncia por parte do Recorrente são, antes do mais, denominados crimes permanentes cuja regra principal para a contagem do início do prazo de prescrição é a de, a partir do momento em que cessa a consumação, se verifica o início da contagem do prazo para efeitos de prescrição – como aliás é estabelecido no artigo 119º, nº 2 alínea c) do Código de Processo Penal;
IV)- Razão pela qual é forçoso concluir que a decisão proferida pelo Ministério Publico assenta numa errada interpretação e aplicação dos normativos jurídicos aplicáveis à situação concreta;
V)- Uma vez que, o Denunciado após a aplicação da suspensão de que foi alvo de 9 anos e 6 meses, não promoveu – como estava obrigado – a qualquer comunicação de tal situação, quer ao processo judicial em que patrocinava o ora Recorrente, quer a este (Recorrente), realidade que, aliás, não se verificou até à presente data, facto que colocaria termo à omissão e teria como consequência o início da contagem do prazo de prescrição – Mas Que não se Verificou.
VI)- Por outro lado, nos termos do artigo 277º do Código de Processo Penal estabelece as situações em que o Ministério Público promove o arquivamento do processo e, o artigo 278º do mesmo preceito legal, estabelece as formas de reação por parte do Assistente quanto a tal arquivamento, podendo requerer a abertura de instrução por forma a ser por si obtida uma comprovação judicial da decisão proferida pela entidade que detém o poder de investigação – artigo 286º do Código de Processo Penal, dentro dos prazos estabelecidos pelo artigo 287º do mesmo preceito legal.
VII)- Ora, na situação concreta objeto do presente recurso, claramente ocorreu uma errada interpretação da factualidade descrita nos autos que levou às erradas decisões proferidas e ora em crise, pois que;
VIII)- Antes do mais, o Tribunal a quo, na sua decisão, não teve em consideração que o Ministério Público emitiu um claro juízo indiciário dos factos objeto da queixa-crime apresentada pelo recorrente, pois que dá como adquirido, pelo menos de forma indiciária, a existência de indícios suficientes para imputar ao Denunciado a prática de um crime de procuradoria ilícita, um crime de usurpação de funções e, um crime de prevaricação de advogado – nem poderia ser de outra forma, uma vez que se encontra junta aos autos prova bastante para sustentar a prática dos referidos crimes;
IX)- Nomeadamente que o Denunciado se encontra suspenso do exercício da advocacia desde 17/01/2012 e pelo período de 9 anos e 3 meses, atas de audiência, peças processuais de atos praticados pelo Denunciado e na qualidade de "Mandatário" do Recorrente – a qual é abundante e que levou a que o Ministério Publico no despacho de arquivamento dê os factos como assentes, quando sustenta a prescrição do procedimento criminal, fazendo uma clara análise da factualidade vertida que leva a emitir um juízo, pelo menos indiciário da verificação da prática dos mesmos ao referir "Desde a data da prática dos factos (17.1.2012) não ocorreu nenhuma circunstância interruptiva ou suspensiva da prescrição, conforme estabelecidas pelos artigos 120º e 121º do Código Penal."
X)- Aliás, não faria qualquer sentido que o Ministério Publico abordasse a questão da alegada prescrição do Procedimento Criminal sem que para tal efetuasse um juízo, pelo menos indiciário, da prática ou não dos crimes em causa, imputados ao Denunciado - para os quais inexiste a necessidade de qualquer outro elemento de prova para além de toda a prova já junta aos autos.
XI)- Assim, para além de o Recorrente discordar da fundamentação da decisão ora objeto de recurso, a verdade é que, se verifica a existência de indícios suficientes para permitir que a decisão proferida pelo Ministério Publico fosse sindicada judicialmente quanto à valoração dos respetivos indícios – verificando-se os pressupostos legais para a apresentação do requerimento de abertura de Instrução.
XII)- Por outro lado, para efeitos de arquivamento do Procedimento Criminal, sustentando o Ministério Público uma alegada verificação da prescrição, como é entendimento da Doutrina e Jurisprudência, tal é uma exceção, que não se enquadra no conceito de questão prévia ou incidental, sendo por isso, a prescrição do procedimento criminal de natureza substantiva, que se traduz na renúncia do Estado a um direito, "ao jus puniendi" – ou seja, a lei pretende dizer que o crime acaba com ela – tal como foi entendido pelo Tribunal da Relação de Lisboa – Acórdão de 14-06-2006 (Proc. 4293/2006-3);
XIII)- Sendo que, na situação de arquivamento do Procedimento Criminal por se entender verificada uma situação de prescrição do mesmo, estamos perante uma decisão que obsta ao conhecimento da acusação, sendo que a decisão que conheça de tal exceção é sempre sindicável por entidade diversa da que proferiu a decisão e, consequentemente, é admissível o requerimento de Abertura de Instrução.
XIV)- Pelo que, em presença da declaração de prescrição do Procedimento Criminal por parte do Ministério Público, temos que ao Recorrente era sempre legítimo requerer a Abertura de Instrução – como o fez.
XV)- Importa salientar que, da análise do disposto no artigo 278º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, o legislador efetuou uma opção clara no sentido de dar prevalência à sindicância via judicial do controlo das decisões finais do Ministério Público no inquérito, ao fazer constar que a intervenção hierárquica só ocorrerá quando a instrução já não possa ser requerida, seja pelo decurso do prazo, seja porque as partes de tal prescindem;
XVI)- Nesta senda, defende o próprio Ministério Público, nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/01/2015 - cfr. Proc. nº 336/11.5PDCSC.L1-A.S1, acessível in www.dgsi.pt - que: “1. Face à evolução que a redação dos artigos 278º e 287º do Código de Processo Penal sofreram, foi claramente intenção do legislador evitar que o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente pudessem cumulativamente requerer a intervenção hierárquica e a abertura da instrução, pelo que estamos, assim, perante dois meios de reação alternativos (...) 3. Decorre, assim, deste normativo que o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente pode requerer a intervenção hierárquica quando já não puder ser requerida a abertura de instrução ou quando optar por não requerer a instrução” (…);
XVII)- Tendo decidido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/01/2015 -cfr. Proc. nº 336/11.5PDCSC.L1-A.S1, acessível in www.dgsi.pt- que: “(...) ao ponderar a escolha a fazer, o assistente deverá ter presente que, se optar por suscitar a intervenção hierárquica, lhe fica vedada a via judicial, que, implicando embora, ou podendo implicar, maiores custos económicos, comporta importantes vantagens que estão ausentes da via hierárquica. Desde logo, é, como se disse, na via da instrução que verdadeiramente lhe são disponibilizados instrumentos para defender eficazmente os seus interesses nesta fase do processo. Além disso, sendo fundada a sua pretensão de ver substituído o arquivamento por decisão de acusação/pronúncia, a via da instrução poderá permitir um mais rápido avanço do processo para julgamento, uma vez que a via da intervenção hierárquica levará a um regresso do processo à fase da acusação, podendo seguir-se a instrução, a requerimento do arguido.” (…).
XVIII)- Visando o Requerimento de Abertura de Instrução a sindicância judicial do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Publico – tal foi a opção formulada pelo Recorrente, pois que, na intervenção hierárquica a decisão final cabe sempre ao magistrado titular do inquérito – artigo 278º, nº 1, do Código de Processo Penal, bem como, quando requerida a intervenção hierárquica, ocorre a preclusão do direito de requerer a Abertura de Instrução, esteja ou não dentro do prazo legal para usar de tal faculdade.
XIX)- De salientar ainda que a notificação do despacho de arquivamento pelo Ministério Público ao Recorrente é feita com a menção expressa e a sublinhado, do direito que é conferido ao Ofendido de reagir contra a referida decisão de arquivamento, mediante reclamação hierárquica ou Requerimento de Abertura da Instrução.
XX- Importa, em tal ponto, referir que, nos termos das normas legais aplicáveis, nomeadamente o artigo 85º (Manutenção da ordem nos atos processuais), 92º (Língua dos atos e nomeação de intérprete), 94º (Forma escrita dos atos), 97º (Atos decisórios), 111º (Comunicação dos atos processuais), 113º (Regras gerais sobre notificações), 277º (Arquivamento do inquérito), nº 3 e 4, alínea a) c), todos do Código Penal, toda e qualquer comunicação por parte de uma Entidade Judicial como é o caso do Ministério Publico ao Assistente, não pode fazer verter na notificação informação errónea quanto aos direitos que podem ser exercidos pelo assistente e muito menos induzir em erro o direito que assiste ao assistente de reagir contra a decisão de arquivamento;
XXI)- Dito de outra forma, reconhecendo o Ministério Publico que ao Assistente assiste o direito de requerer a abertura da instrução e, sendo-lhe comunicada pessoalmente a faculdade de poder exercer tal direito, não pode, posteriormente, ser o Assistente coartado no exercício de tal direito;
XXII)- O Recorrente limitou-se a exercer, apenas, a faculdade de requerer a abertura da instrução em conformidade com o direito que lhe tinha sido concedido e transmitido, expressamente, na notificação da decisão de arquivamento do processo por parte do Ministério publico, apenas tendo dado cumprimento quer ao teor da notificação por si recebida quer, ao princípio da legalidade – direito esse que lhe é transmitido por um órgão jurisdicional, que não pode vir a ser, posteriormente, coartado, como é o caso de requerer a Abertura de Instrução – motivo pelo qual, também por aqui, o mesmo deve ser naturalmente admitido;
XXIII)- No caso de assim se não entender, no que à não admissibilidade do requerimento de Abertura de Instrução diz respeito, o que não se concede, então sempre a interpretação das disposições legais dos artigos 277º, nº 1, 278º, nº 2, e 287º, nº 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal (CPP), no sentido, como entendeu o Tribunal a quo, de que está vedado ao assistente o direito de Requerer a Abertura de Instrução face ao despacho de arquivamento do inquérito, nos termos em que foi efetuado em relação à participação crime que apresentou (como tendo entendido que estava prescrito o procedimento criminal), considerando apenas admissível a reclamação hierárquica – terá de ser entendido como clamorosamente inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais ínsitos nos artigo 3º, nº 2 (soberania e legalidade), 13º (princípio da igualdade), 18º (força jurídica), 20º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva), 32º (garantias do Processo Criminal), 202º (função jurisdicional), 266º (princípios fundamentais), todos da Constituição da República Portuguesa.
XXIV)- Não pode o tribunal a quo fazer uma interpretação que não tenha, desde logo, o mínimo de correspondência com uma disposição legal, sob pena de violar o princípio da legalidade previsto, entre outros, nos artigos 3º, nº 2, 111º e 266º, nº 2, da CRP, no qual proíbe que qualquer órgão da administração pública, de soberania e respetivos agentes pratiquem atos que lesem os direitos e interesses do cidadão que pretende o acesso efetivo à justiça e, muito menos, pode fazer uma interpretação contra legem.
XXV)- Das disposições conjugadas dos artigos 277º e 278º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, o legislador é claro ao permitir ao assistente reagir contra um despacho de arquivamento, mediante o Requerimento de Abertura de Instrução – não fazendo qualquer distinção entre o despacho de arquivamento sustentado na existência da prescrição do procedimento criminal de qualquer outra situação!
XXVI)- Por força das supra referidas disposições Constitucionais, o tribunal de Instrução Criminal, como entidade pública que é, encontra-se subordinada ao cumprimento dos princípios Constitucionais supra referidos, sendo que, não obstante esta subordinação às normas constitucionais, acaba por não cumprir quando não permite ao assistente e ora recorrente lançar mão do Requerimento de Abertura de Instrução para reagir contra um despacho de arquivamento de que discorda.
XXVII)- Pelo que, face à inconstitucionalidade da interpretação aos artigos 277º, 278º, nº 2 e 287º, nº 1, al. b) e nº 3 do Código de Processo Penal, sempre seria, nesta hipótese que se formula, admissível o Requerimento de Abertura de instrução apresentado pelo Recorrente.
XXVIII)- Mas se assim não se entendesse – o que não se concebe – temos então de concluir que a notificação do despacho de arquivamento efetuada ao Recorrente se encontra ferido de nulidade insanável – pois que tal notificação, efetuada pelo Ministério Publico ao Assistente/Recorrente a conceder-lhe a faculdade de requerer a abertura da instrução, é promovida em termos que são contrários à lei, verificando-se o incumprimento expresso das normas que regulam os atos pelos quais o Assistente deve ser notificado, nomeadamente, pela violação expressa dos artigos 113º e 277º, nºs 3 e 4, do Código Penal, cuja omissão tem como consequência a nulidade de todo o processado subsequente,
XXIX)- nulidade esta que, para a hipótese que ora se formula, expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos – nos termos do artigo 119º, al. b) e d) do C.P. Penal, pois que dispõe o artigo 122º do C.P. Penal que a declaração de nulidade da notificação efetuada pelo Ministério Publico ao ora Recorrente tem como consequência direta a nulidade de todos os atos subsequentes, devendo, neste caso, ser ordenada nova notificação de arquivamento pelo Ministério Público ao Assistente/Recorrente, a qual cumpra escrupulosamente as normas legais aplicáveis – a qual, naturalmente, não pode conter a faculdade de serem exercidos direitos que, posteriormente, se entende não poderem, naquele momento, ser atribuídos ao Assistente/Recorrente.
XXX)- Mas, se ainda assim não se entendesse, ou seja caso se considere que as disposições legais aplicáveis, nomeadamente os artigos 85º, 92º, 94º, 97º, 113º, 277º, 314º, 278, nº 2 e 287º, nº 1, alínea b), permitem que o Ministério Público, na notificação ao assistente do despacho de arquivamento, informe da possibilidade de reagir a esse despacho através de um Requerimento de Abertura de Instrução, que afinal não é legalmente admissível,
XXXI)- Tal interpretação revelar-se-ia clamorosamente inconstitucional, por violar diversos preceitos da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o princípio da legalidade previsto nos artigos 3º, nº 2, 111º e 266º, nº 2; o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (art.º 209º), o princípio que responsabiliza os funcionários e agentes do Estado pelas ações e omissões praticadas, nos termos do qual resulta a violação do direito a o assistente ter o direito à veracidade da informação que lhe é prestada pelo Ministério Público e que, no caso concreto, permite o acesso ao direito de reagir ao despacho de arquivamento mediante o Requerimento de Abertura de instrução; o direito de o cidadão ser protegido nos seus direitos e interesses pela ação da Administração Pública e respetivos órgãos e agentes; bem como o direito a que estes respeitem o princípio da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, previsto no artigo 266º, nºs 1 e 2, o que não sucede quando o assistente e ora recorrente é confrontado com a informação escrita da possibilidade de reagir ao despacho de arquivamento através do RAI.
XXXII)- Tal interpretação, por outro lado, violaria o princípio constitucional que impõe a aplicabilidade às entidades públicas dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias (18º), ao acesso ao direito e tutela efetiva por parte do cidadão na defesa dos seus direitos e interesses, lançando mão dos procedimentos judiciais adequados, previsto no artigo 20º e das garantias atribuídas no âmbito do processo criminal, ao direito do ofendido intervir no processo (32º), bem como a função jurisdicional dos Tribunais no sentido de permitir a defesa dos interesses e direitos dos cidadãos, nos termos do artigo 202º, todos da CRP.
XXXIII)- O Recorrente, não pode por isso, aceitar a interpretação de que a notificação do despacho de arquivamento ao assistente, nos termo em que foi feita, é legalmente permitida, pois sempre se revelaria manifestamente inconstitucional e, nessa medida, sempre teria o direito a ser reconhecida a ilegalidade de tal ato, devendo, em consequência, ser permitida a sua repetição, através de nova notificação do despacho de arquivamento, com a eliminação da informação que não é correta.
XXXIV)- Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo, não admitindo o Requerimento de Abertura de instrução apresentado pelo recorrente, a decisão recorrida não interpretou nem aplicou corretamente as normas legais atinentes, nomeadamente os artigos 85º, 92º, 94º, 97º, 111º, 113º, 119º, alínea b) e d), 277º, nºs 1, 3 e 4, 278º, nº 2, 287º, nº 1, alínea b), e nº 3, todos do Código de Processo Penal; os artigos 118º, nºs 1, alínea c), 119º, nº 2, alínea a), 120º e 121º, estes do Código Penal e artigos 3º, nº 2, 13º,18º, 20º, 32º, 202º e 266º da Constituição da República Portuguesa.
XXXV)- Impõe-se, por isso, que a decisão recorrida seja revogada e, em consequência, deve ser substituída por outra que admita o Requerimento de Abertura de Instrução e, se assim não se entender, deve, então, ser declarada a nulidade da notificação do despacho de arquivamento e, consequentemente, serem declarados nulos também todos os atos subsequentes, devendo ser ordenada nova notificação do despacho de arquivamento, com todas as demais consequências legais.»
Entendendo que foram violados os artigos 85º, 92º, 94º, 97º, 111º, 113º, 119º, alínea b) e d), 277º, nºs 1, 3 e 4, 278º, nº 1, 287º, nº 1, alínea b), e nº 3, todos do Código de Processo Penal; e os artigos 118º, nº 1, al. c), 119º, nº 2, al. a), 120º e 121º, estes do Código Penal, e os artigos 3º, nº 2, 13º, 18º, 20º, 32º, 202º e 266º da Constituição da República Portuguesa, finalizou o assistente o seu recurso pedindo a revogação do despacho recorrido e, em consequência:
a) a sua substituição por outra decisão que admita o requerimento de abertura de instrução;
b) caso assim se não entenda, que seja declarada a nulidade da notificação do despacho de arquivamento e, consequentemente, que sejam declarados nulos também todos os atos subsequentes, ordenando-se nova notificação do despacho de arquivamento.
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O Ministério Público respondeu a tal recurso, condensando a sua posição (aliás, algo incoerente e hesitante) nos seguintes termos:
«1º Com efeito, a instrução visa apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação a um arguido de uma pena ou medida de segurança, ou seja, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público, a instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo que o Ministério Público fez sobre a inexistência de indícios suficientes para deduzir acusação.
2º Por isso, e nas situações em que o Ministério Público procede ao encerramento do inquérito, mas não emite qualquer juízo indiciário sobre os factos denunciados, como se verifica no caso em apreciação, onde nem sequer procedeu a quaisquer diligências de investigação sobre a verificação dos factos denunciados, por se considerar que o procedimento criminal se encontrava prescrito, entendemos que não é possível requerer a instrução.
3º Na situação em apreço, e tal como se refere no despacho ora em recurso, o assistente deveria ter reagido ao despacho de arquivamento suscitando a intervenção hierárquica do imediato superior hierárquico da Magistrada do Ministério Público que arquivou o inquérito, em virtude de ter sido declarada verificada a prescrição do procedimento criminal, apenas podendo sindicar tal despacho ao abrigo do disposto no artigo 278° do Código de Processo Penal.
4º Isto porque a estrutura e a dinâmica da fase da instrução, com a realização de diligências de prova, seguidas de um debate instrutório e de uma decisão de pronúncia ou de não pronúncia [cf. artigos, 292.º, 297.º e 307º, do Cód. Proc. Penal] não são compatíveis com um exercício de verificação da legalidade de um despacho que declare extinto o procedimento criminal quando nenhuma investigação chegou a ser efetuada.
5º De facto, e tal como se refere no acórdão do Relação do Porto de 23/1/2013, Proc.º n.º 1007/08.5TAMAI.P1, publicado no sítio www.dgsi.pt:
“I – O despacho do Ministério Público que, no inquérito, declare extinto o procedimento criminal, por prescrição, pode apenas ser sindicado no âmbito da intervenção hierárquica, ao nível seguinte da hierarquia do Ministério Público.
II - A estrutura e a dinâmica da fase da instrução não são compatíveis com um exercício de verificação da legalidade de um despacho que declare extinto o procedimento criminal".
6º Assim, parece-nos que outra alternativa não restava à Mm.ª JIC, a não ser a de rejeitar o requerimento instrutório do assistente, nos termos do disposto no artigo 287º, n.º 3, do Código de Processo Penal, por ser legalmente inadmissível a instrução requerida no presente processo, em virtude de a questão jurídica suscitada pelo assistente, e cuja apreciação se requeria, não se enquadrar na estrutura e dinâmica de uma fase de instrução, conforme está estruturada no Código de Processo Penal.
7º O recorrente invoca que nada na lei impede que seja admitida a instrução, já que o que resulta do disposto no artigo 287º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal é que o assistente pode reagir a um despacho de arquivamento do Ministério Público mediante o requerimento de abertura de instrução, não se distinguindo entre o despacho de arquivamento sustentado na verificação da prescrição e o despacho de arquivamento sustentado em qualquer outro fundamento.
8º E tal argumento parece-nos válido, porque se fundamenta na letra da lei (o que o legislador não distingue, em princípio, o intérprete não o deverá fazer), tanto mais que no acórdão citado no despacho em recurso, cujo sumário supra transcrevemos, consta um voto de vencido, no sentido de que é admissível a instrução no caso de o despacho do Ministério Público se fundamentar na prescrição do procedimento criminal.
9º De facto, refere-se no voto de vencido (Desembargador José Joaquim Aniceto Piedade) que “…não se colocando em causa a alternatividade, no atual enquadramento legal, entre o pedido de intervenção hierárquica e de abertura de Instrução, entendemos, em primeiro lugar, que a decisão de arquivar o Inquérito pode ser submetida a comprovação judicial, em qualquer caso, não comportando a Lei estabelecida a distinção entre errada avaliação dos indícios e insuficiência investigatória;
- Reconhecendo-se que se trata de uma decisão nova que, apesar de dar provimento à reclamação hierárquica — considerando justificar-se a reabertura do inquérito e a consequente realização das diligências sugeridas —, declara a prescrição do procedimento criminal, tem de se facultar, de novo, ao assistente a opção de suscitar nova intervenção hierárquica (na cadeia hierárquica existente), ou requerer a abertura de Instrução, que foi aquela pela qual o recorrente, no caso, optou.
Caso contrário, estar-se-á a cercear, de forma inaceitável, o direito do assistente a requerer a abertura de Instrução, face a um despacho de arquivamento do Ministério Público com o qual não concorda.
Por via desta dimensão interpretativa das normas processuais em causa — artigos 277°, 278°, 286° e 287° do Código de Processo Penal — estar-se-á a violar o direito fundamental reconhecido ao lesado, vítima ou ofendido, pelo artigo 32°, n° 7, da CRP, de intervir no processo penal, nos termos da Lei.
A acrescer, refira-se que a legislação comunitária recente, especificamente a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25/10/2012, aponta para um reforço — e não para a sua diminuição — do estatuto da vítima e do ofendido, no seu “acesso à Justiça, na sua participação na efetivação da responsabilidade penal e no assegurar do seu direito à reparação dos danos provocados.
Na Diretiva citada, é expressamente consagrada a obrigação de as legislações nacionais assegurarem um efetivo reexame de uma decisão de não deduzir acusação, por uma autoridade diferente da que tomou a decisão inicial, referindo-se que esse direito abrange as decisões tomadas por procuradores públicos, juízes de instrução ou autoridades de aplicação da lei, como agentes de polícia.
Embora ainda não transposta para a legislação nacional (e, obviamente, terá de ser considerada essa transposição, na revisão processual-penal que se anuncia), os princípios do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, e da interpretação conforme ou compatível com o Direito da União Europeia, impõem que as normas processuais-penais aqui aplicáveis (e acima referenciadas) sejam interpretadas à luz do texto e finalidade desta Diretiva, com vista a atingir o resultado por ela pretendido”.
10º Contudo, e apesar dos argumentos invocados pelo senhor Juiz Desembargador, entendemos que, com a formulação atual dos artigos, 286º, n.º 1, 287º, n.º 1, al. b), 289º, n.º 1, 290º, n.º 1, 292º, 297º, n.º 1, 302º, 307, n.º 1 e 308º, n. 1, todos do Código de Processo Penal, a instrução, no presente caso, não é legalmente admissível, porque no despacho do Ministério Público este se limitou a declarar verificada a prescrição do procedimento criminal, não tendo efetuado qualquer juízo de valor sobre a existência ou inexistência de indícios suficientes, até porque nenhuma diligência de inquérito foi efetuada (nem o poderia ser, porque se trataria da prática de atos inúteis, o que a lei não consente).
11º Assim, entendemos que a interpretação que a Mm.ª JIC fez do disposto no artigo 287º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ao rejeitar o Requerimento Instrutório do assistente, por inadmissibilidade legal da instrução, está correta, de acordo com a lei e com os fins que presidem à instrução e se encontram plasmados no Código de Processo Penal.
12º Para além disso, entendemos que tal interpretação legal não cerceia quaisquer direitos do assistente, nem viola as normas constitucionais invocadas, porque o assistente tinha, no presente caso, a possibilidade de sindicar o despacho de arquivamento do Ministério Público por recurso ao disposto no artigo 278º do Código de Processo Penal, fazendo intervir o superior hierárquico da magistrada que proferiu aquele despacho.
13º Por outro lado, a notificação efetuada pelo Ministério Público ao assistente não está ferida de qualquer nulidade pelo facto de ali se fazer constar, de forma genérica, que o arguido pode reagir ao arquivamento através de um pedido de abertura da instrução ou suscitando a intervenção hierárquica, já que tal notificação foi efetuada de acordo com as normas legais aplicáveis – artigos, 277º, n.ºs 3 e 4 e 113º do Código de Processo Penal -, que não prescrevem a obrigatoriedade de indicar na notificação as possibilidades de reação ao despacho de arquivamento e respetivos prazos (tais possibilidades de reação constam da lei, assim como os seus prazos).
14º Aliás, aquela notificação teve por base um formulário, genérico, existente no sistema informático Citius, que normalmente é enviado aos denunciantes aquando da prolação de um despacho de arquivamento por parte do Ministério Público, não significando que, pelo facto de a notificação ter sido enviada com todos os itens do formulário, daí advenha que o assistente tem sempre a faculdade, alternativa, de requerer a instrução ou a intervenção hierárquica.
15º Por isso, entendemos que a aludida notificação não padece de qualquer nulidade, nomeadamente, a invocada nulidade insanável, prevista no artigo 119º, alíneas, b) e c) do Código de Processo Penal, que se reportam à falta de promoção do processo por parte do Ministério Público nos termos do artigo 48º do Código de Processo Penal, bem como à sua ausência a atos relativamente aos quais a lei exige a respetiva comparência – alínea b) do artigo 119º - e à ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exige a respetiva comparência – alínea c) do artigo 119º -, o que não acontece na situação em apreço.
16º Como também entendemos que não integra qualquer outra nulidade das previstas no artigo 120º do Código de Processo Penal, constituindo, quando muito, uma mera irregularidade processual, a ser eventualmente arguida nos termos do disposto no artigo 123º do Código de Processo Penal, ou seja, no próprio ato ou nos 3 dias posteriores a contar daquele em que houve o conhecimento da mesma, sob pena de, não se arguindo no prazo referido, ficar sanada.
17º Ora, no presente caso, já não é possível suprir a aludida irregularidade, que se encontra sanada, já que o assistente tomou conhecimento e consciência da mesma na altura em que foi notificado do despacho que rejeitou o seu RAI e não a veio arguir no prazo de 3 dias.
18º Por isso, entende o Ministério Público que a notificação ao assistente, do despacho de arquivamento motivado na declaração da prescrição do procedimento criminal, foi efetuada de acordo com as normas relativas às notificações em processo penal – artigos 277º, n.ºs 3 e 4, e 113º, ambos do Código de Processo Penal –, não viola qualquer norma legal ou constitucional, nem permite a sua repetição, ao contrário do que pretende o recorrente. 19º Assim, e em conclusão, deve ser negado provimento ao recurso do assistente e, em consequência, deve manter-se, na íntegra, a decisão de rejeição do RAI, ora em recurso, por ser legalmente inadmissível a instrução no presente caso.
20º De igual modo, deve improceder a arguição de nulidade da notificação que foi efetuada ao assistente do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, por apenas ter existido, eventualmente, mera irregularidade, já sanada pelo decurso do prazo para a sua arguição, não havendo qualquer razão para se ordenar a sua repetição.»
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Já nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da manutenção do despacho recorrido e da improcedência do recurso.
Cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [4], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
As principais questões a decidir são as de saber:
- se, não havendo produção de prova pessoal no inquérito e sendo fundamento do despacho de arquivamento a prescrição do procedimento criminal, a tal despacho se pode reagir eficazmente através de requerimento de abertura de instrução;
- subsidiariamente, se a circunstância de a notificação do despacho de arquivamento apontar, em alternativa, a intervenção hierárquica ou a abertura de instrução implica a nulidade de tal notificação e de todos os atos subsequentes.
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A) A admissibilidade da instrução
O assistente assume como principal base do seu recurso o argumento de que a lei – designadamente o disposto nos artigos 277º e 287º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal – não faz qualquer restrição às formas pelas quais o assistente pode reagir a um despacho de arquivamento do Ministério Público consoante este seja sustentado na existência da prescrição do procedimento criminal ou em qualquer outro fundamento.
Acrescenta ainda que a interpretação feita no despacho recorrido, considerando ser inadmissível a instrução, é inconstitucional, por violação dos princípios ínsitos nos artigos, 3º, n.º 2, 13º, 18º, 20º, 32º, 202º e 266º, todos da CRP.
Pois bem.
A instrução é uma fase facultativa do processo criminal e visa, nos termos do artigo 286º do C.P.P., “a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Não tendo, no caso, havido acusação, questiona-se a decisão de arquivamento a solicitação do assistente/recorrente.
Nesta fase, a atividade de averiguação processual desenvolvida há de ser complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito, destinando-se a uma indagação mais aprofundada dos factos, da sua imputação ao agente e do respetivo enquadramento jurídico-penal. Termina com um despacho final, legalmente denominado de pronúncia ou não pronúncia (artigo 308º do C.P.P.).
Para a não pronúncia, para além da insuficiência de indícios da prática dos factos participados ou da atipicidade destes, poderão ainda alinhar-se motivos de ordem processual, como a inadmissibilidade legal do procedimento, a ilegitimidade do requerente ou qualquer outro obstáculo processual.
No caso, estamos ainda na fase preliminar de admissão ou não desta fase processual, e a Mª Juíza de instrução decidiu não a admitir, por entender, grosso modo, que o requerente pretendia proceder à investigação que o Ministério Público não havia feito, por entender que a tal obstava a verificação da exceção da prescrição do procedimento criminal.
Não há, pois, dúvida sobre que o Ministério Público arquivou o inquérito sem ter procedido a quaisquer diligências de prova.
Como reagir a tal despacho se dele se discorda?
A questão essencial que se coloca, na perspetiva do despacho recorrido, é a de saber se o assistente pode requerer a instrução.
Diz-nos o artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal que a instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Como expressa Germano M. da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 3ª edição, 2009, página 151, “A decisão de arquivar o inquérito é um pressuposto do requerimento do assistente para abertura da instrução”.
Uma vez que, no caso, ocorreu o arquivamento do inquérito – ainda que por invocação da exceção de prescrição do procedimento criminal – e que, através da instrução, o assistente visa reagir contra tal arquivamento, não parecem existir obstáculos legais à sua admissibilidade.
A decisão recorrida trilhou, todavia, um caminho diverso.
Para tanto, além de invocar jurisprudência vária [5], filiou-se na posição – aparentemente restritiva e dicotómica – veiculada por Paulo Pinto de Albuquerque, quando, no seu “Comentário do Código de Processo Penal (…)”, U.C.E., 4ª edição (2011), na 1ª anotação ao artigo 278º, página 749, refere que, “tratando-se de crime público ou semipúblico, o assistente deve reclamar hierarquicamente do despacho de arquivamento do inquérito quando os elementos de prova existentes (…) são insuficientes para ele requerer a abertura da instrução quanto a estes crimes (…), devendo, ao invés, “(…) requerer a abertura de instrução quando se indicia a prática de um crime público ou semipúblico com os elementos de prova existentes no inquérito, mas o Ministério Público não tenha deduzido a correspondente acusação”.
Com efeito, admitimos que, neste passo, esteja o anotador a traçar uma orientação meramente indicativa, mais consonante com a constatação de que a investigação criminal é preliminar à acusação, tendo a sua sede própria na fase de inquérito, sob a direção exclusiva do Ministério Público (cfr. artigos 262º e 263º do Código de Processo Penal).
No entanto, para além desta verificação genérica, a esboçada dicotomia não só não colhe apoio legal nos artigos 278º, 286º ou 287º do Código de Processo Penal, como não se compatibiliza com uma adequada ponderação dos interesses em presença.
Na verdade, se ao assistente fosse vedado requerer a abertura de instrução nos casos em que indicasse provas a produzir nesta fase, não faria sentido que o nº 2 do citado artigo 287º previsse e possibilitasse a indicação dos atos de instrução e dos meios de prova não considerados no inquérito, sem fazer qualquer restrição para os casos de instrução requerida pelo assistente.
Por outro lado, a tese restritiva do acesso do assistente à instrução em casos de alegada insuficiência da prova produzida no inquérito – se não negar a possibilidade de fiscalização jurisdicional da decisão do Ministério Público no termo do inquérito, como o fez, a nosso ver, o acórdão da Relação do Porto de 23/1/2013, proferido no recurso nº 1007/08.5TAMAI.P1, citado no despacho recorrido (mas com voto de vencido, citado algo paradoxalmente, aliás, pelo Ministério Público na sua resposta) – acabaria, em última análise, por (passe o jargão) “deixar entrar pela janela o que não tivesse querido deixar entrar pela porta”, pois, em caso de indeferimento da reclamação hierárquica, sempre teria que permitir que sobre esta última decisão pudesse incidir requerimento de abertura de instrução.
Na verdade, apesar de a instrução não ter a direta ou “natural” finalidade de complementar a recolha de prova indiciária que poderia/deveria ter sido feita pelo Ministério Público, tal não significa que, nesta fase processual, não se possa indagar não só sobre a legalidade dos atos praticados em inquérito, como sobre a suficiência ou insuficiência da investigação [6] e respetivo suprimento.
Aliás, se se acompanhar a tese de rígida dicotomia perfilhada no despacho recorrido, não se compreenderia por que razão o nº 1 do artigo 278º do C.P.P. coloca a hipótese de a intervenção hierárquica poder ter como objeto apenas a decisão de não acusar face às provas já produzidas, bem como por que razão o nº 2 do mesmo artigo prevê sempre a opção de não ser requerida a instrução pelo assistente e pelo denunciante com a faculdade de se constituir assistente, sem distinguir os casos em que é requerida a produção de provas novas ou complementares daqueloutros em que as razões de discordância residem tão só sobre questões de direito (sejam elas de forma ou de fundo).
Acresce, no presente caso, que o primordial objetivo da instrução não é a produção de prova – pois esta será essencialmente documental, já se encontrando junta aos autos – mas antes o escrutínio da legalidade da decisão de arquivamento pelo Ministério Público, por alegada prescrição do procedimento criminal.
Ora, como bem refere Germano Marques da Silva [7], “admitida a fiscalização jurisdicional da decisão do Ministério Público no termo do inquérito, o legislador estrutura a fase processual a ela destinada em termos de evitar desperdícios processuais e, em lugar de aguardar que o Ministério Público formule acusação em conformidade com a decisão do tribunal, admite como legítima a promoção do assistente em substituição do Ministério Público, admitindo-o a exercer uma função pública”.
Caso contrário, estar-se-á a coartar, de forma intolerável, o direito do assistente a requerer a abertura de instrução, face a um despacho de arquivamento do Ministério Público com o qual não concorda [8].
Impõe-se, assim, a revogação do despacho recorrido, na medida em que rejeitou liminarmente o requerimento de abertura da instrução.
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Dada a procedência do pedido principal, prejudicado fica o conhecimento da segunda questão acima enunciada, porque inteiramente conexionada com o pedido subsidiário também formulado.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em – concedendo provimento ao recurso interposto pelo assistente B… – revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro em que seja liminarmente admitido o requerimento de abertura de instrução, com as legais consequências.
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Sem custas.
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Porto, 27 de novembro de 2019
Vítor Morgado
Maria Joana Grácio
______________
[1] cfr. “Comentário do Código de Processo Penal, págs. 750 e 752.
[2] cfr. proc. nº 471/13.5TAGMR.G1, disponível in www.dgsi.pt
[3] cfr, proc, nº 1007/08.5TAMAI.P1, acessível in www.dgsi.pt
[4] Tal decorre, desde logo, de uma atenta interpretação do disposto no nº 1 do artigo 412º e nos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[5] Alguma da qual sem atinência para a discussão da questão controvertida, como sucede, a nosso ver, com o acórdão da Relação de Guimarães de 30/11/2015 – visto que aí se trata de um recurso que incidiu sobre um despacho de rejeição de acusação, não estando em causa qualquer requerimento de abertura de instrução – e com um suposto acórdão da Relação do Porto de 4/3/2016 (uma sexta feira), inexistente, pelo menos com essa data.
[6] Cremos que terá este sentido a referência feita por Germano Marques da Silva, no já citado Curso de Processo Penal III, Verbo, 3ª edição, 2009, página 153.
[7] Obra e local citados na nota anterior.
[8] Cfr. voto de vencido do Desembargador José Joaquim Aniceto Piedade, no acórdão da Relação do Porto de 23/1/2013, proferido no recurso nº 1007/08.5TAMAI.P1, voto esse acima parcialmente vertido sob o nº 9 da resposta do Ministério Público.