PRISÃO PREVENTIVA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
DESQUALIFICAÇÃO JURÍDICA
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
ALTERAÇÃO MEDIDA COATIVA
Sumário


I - Constata-se alguma uniformidade na análise jurisprudencial sobre a tipicidade do crime (“de perigo abstracto”) de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º/1 do DL n.º 15/93, de 22/01, no sentido de que, não obstante constituir a base ou a matriz dos demais tipos de crimes de tráfico – enunciando um largo espectro de actividades ilícitas relativas a estupefacientes e ao seu tráfico, de modo a abranger na incriminação todos os momentos relevantes do ciclo da droga –, encontra-se projectado para a punição dos casos de tráfico de média e grande dimensão, como resulta, desde logo, da amplitude da moldura penal abstracta, que parte dum mínimo bastante elevado.

II - No entendimento da ilicitude como ofensa material de certos bens jurídicos, é possível estabelecer-se uma sua graduação consoante o nível da ofensa, o modo da sua execução e outras circunstâncias, de forma a evitar a aplicação de penas desproporcionadas ao nível dessa ofensa, modo da sua execução e outras circunstâncias e daí que deva actuar o tipo (privilegiado) de tráfico de menor gravidade (art. 25º do diploma) quando a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações, numa avaliação que implica uma compreensão global e interligada dos factos, valorando complexamente todas as concretas circunstâncias do caso.

III - As medidas de coacção visam, sobretudo, a descoberta da verdade, através do normal desenvolvimento do processo, a par do restabelecimento da paz jurídica abalada pela prática do crime, sendo, pois, meros instrumentos processuais da eficácia do procedimento penal e da boa administração da justiça, mas não pode olvidar-se que estão em causa, a par da eficácia da investigação criminal, a protecção de direitos fundamentais – como são os direitos à liberdade e à segurança – sendo, por isso, necessário fazer uma ponderação casuística dos interesses em conflito para determinar a respectiva prevalência e grau ou medida da sua restrição.

IV - Daí que, por um lado, as medidas de coacção previstas, exceptuado o termo de identidade e residência, só possam ser aplicadas desde que, em concreto, se verifique qualquer dos requisitos indicados no art. 204º – perigo de fuga, perigo de perturbação da investigação (ou da aquisição da prova), ou perigo de continuação da actividade criminosa ou da perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas) – e que, por outro lado, essa aplicação esteja sempre sujeita ao respeito do princípio da proporcionalidade (com sede constitucional no artigo 18º/2, 2ª, parte da CRP), que se desdobra em quatro subprincípios, todos eles corolários do princípio da presunção de inocência: (i) a necessidade (indispensabilidade das medidas restritivas para obter os fins visados, com proibição do excesso – a medida só será legítima se a que se segue na escala decrescente da gravidade não assegurar o fim cautelar visado e for proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas); (ii) a adequação (idoneidade das medidas para a prossecução dos respectivos fins); (iii) a subsidiariedade; e (iv) a precariedade, todos eles corolários do princípio da presunção de inocência.

V - Contudo, a aplicação referida não pode ser encarada como uma pena (por antecipação), nem como uma medida de segurança, porquanto se trata de uma simples medida cautelar, e só pode ser fundamentada em factos concretos que possam preencher os respectivos pressupostos, incluindo os previstos nos artigos 193º e 204º do CPP (princípios e requisitos), não bastando, pois, o mero apelo, em abstracto, a tais pressupostos.

VI - No caso, em face do enquadramento jurídico oferecido aos factos indiciados – tráfico de menor gravidade (punido com pena de prisão de um a cinco anos) –, não é admitida a medida de coacção de prisão preventiva ou, até, a de obrigação de permanência na habitação: não ocorre a situação prevista na alínea a) do art. 202º/1 do CPP, não estamos perante qualquer das situações das suas alíneas b) e d) a f) e nem o caso se enquadra na situação prevista na alínea c), uma vez que aquele crime não integra o conceito de criminalidade altamente organizada, como resulta expressamente do teor do art. 51º/1 do DL 15/93.

VII - Porém, não pode desconsiderar-se a gravidade do crime indiciado e da sanção que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido e que continuam a subsistir o perigo de continuação de actividade criminosa e o risco de o arguido se subtrair ao exercício da acção penal.

VIII - Com efeito, o perigo de continuação da actividade criminosa decorre de um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, efectuado a partir de circunstâncias anteriores ou contemporâneas à conduta que se encontra indiciada e sempre relacionada com esta, uma vez que, como ressuma dos factos indiciados, não é conhecida qualquer actividade profissional ao arguido e o mesmo não tem qualquer fonte de rendimento lícita, o que permite concluir que procurou proceder ao seu sustento com o produto do cultivo de estupefaciente que vinha desenvolvendo com e sua posterior comercialização, disso fazendo modo de vida, certamente motivado pelo lucro e pela “rentabilidade” fácil.

IX - Paralelamente constata-se que o arguido é natural do Brasil, o que, aliado ao desconhecimento de qualquer actividade profissional da qual obtenha rendimentos para o seu sustento, inculca a ideia de ser natural a facilidade com que se pode deslocar para o seu país de origem, onde possui raízes, e aí permanecer o tempo que lhe aprouver sem necessitar de qualquer justificação. A ponderação deste contexto fáctico constituído pelas circunstâncias de vida do arguido, analisadas à luz da sua personalidade (revelada na indiciação de factos subsumíveis ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade) e das normais regras da experiência comum, torna muito verosímil a propensão para a sua fuga: não sendo, de modo algum, necessário que haja indícios materiais de que a fuga se perspectiva já num plano factual próximo, tais circunstâncias constituem razões suficientes para a afirmação da existência de perigo de fuga.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

Nos autos de inquérito n.º 16/19.3PECHV que correm termos nos serviços do Ministério Público junto do Juízo Local Criminal de Chaves do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, o arguido J. J., entre outros, foi submetido a primeiro interrogatório judicial, tendo sido proferido pelo Sr. Juiz que presidiu ao acto o seguinte despacho (sic):

(…) «1- Desde finais de Agosto de 2019 que a PSP tem vindo a receber contactos telefónicos anónimos, de que no Edifício …, Bloco …, Chaves, existe um cheiro intenso identificado com o das plantas de Liamba/Cannabis, sendo mais intenso ainda, quando a porta do ..º andar … era aberta.
2- Uma das pessoas que telefonou, viu mesmo que no interior daquele apartamento se encontravam vários vasos com plantas de cannabis.
3- os dois arguidos deslocavam-se diariamente ao apartamento onde regavam as plantas, ligavam os exautores e utilizavam difusores de cheiros, com vista a dissimular o cheiro da cannabis.
4- Realizada a busca domiciliária ao referido apartamento, no dia -/9/2019, pelas 14:45 horas, constatou-se que no seu interior, as portas e janelas se encontravam minuciosa e hermeticamente calafetadas.
5- No interior do apartamento encontravam-se, além dos demais bens referidos no respectivo auto de busca, 109 vasos grandes e 96 vasos pequenos, tendo plantadas cannabis;
6- Lâmpadas de aquecimento, ventoinhas, máscaras, aquecedores a óleo, desumidificadores, termómetros, borrifadores, todos eles necessários para o cultivo, secagem e preparação da cannabis até ao seu consumo.
7- Foram encontrados ainda vários sacos de plástico contendo plantas já secas de cannabis, cujo peso total é de 14,65 kg.
8- Os arguidos utilizavam o referido apartamento apenas como local de cultivo e preparação do estupefaciente;
9- Residindo ambos na Rua …, Edifício …, em Chaves, local onde foi igualmente realizada uma busca domiciliária e foram apreendidos, além do mais, 9,45g de Liamba, 6,70 g de haxixe, dois trituradores/moinhos, várias notas e um telemóvel.
10- Os arguidos plantavam, secavam e preparavam as plantas, vendendo-as posteriormente, utilizando para o efeito o telemóvel apreendido e auferindo proveitos económicos (cfr. notas do Banco de Portugal que lhes foram apreendidas) assim custeando o seu modo de vida.
11- O produto estupefaciente apreendido conforme descrito excede as quantidades necessárias para o consumo médio individual, por referência às Tabelas anexas ao Mapa a que se refere o artigo 9.º da Portaria nº 94/96, de 26-03.
12- Os arguidos agiram de comum acordo e em conjugação de esforços, livre, voluntária e conscientemente, com a intenção, concretizada de obterem elevados e fáceis lucros que esta atividade ilícita de compra e venda produto estupefaciente lhe proporcionava.
13- O telemóvel apreendido era utilizado pelos arguidos em tal atividade de traficantes e consumidores, assim como as balanças e demais objectos descritos nos autos de buscas domiciliárias.
14- Os arguidos sabiam e sabem perfeitamente que a detenção, guarda, posse, consumo, compra, cedência, e venda daqueles produtos eram, como são, proibidos e punidos por Lei.
15- Não obstante, agiram da forma descrita.
4 – Elementos do processo que indiciam os factos imputados: - autos de notícia por detenção de fls. 20-25; - auto de busca e apreensão de fls. 26-30; - reportagem fotográfica de fls. 31-43; - testes rápidos de fls. 44-45; - auto de busca e apreensão de fls. 49-52; - testes rápidos de fls. 53-54; - reportagem fotográfica de fls. 55-57; - autos apreensão de fls. 58-63 e 67-68; - depoimento de fls.69-70; - CRC do arguido de fls. 37.
Resulta fortemente indiciada a prática dos factos comunicados aos arguidos, os quais se dão por integralmente reproduzidos.
Igualmente se dão por integralmente reproduzidos os elementos probatórios que foram comunicados aos arguidos, supra elencados.
(…) Dos elementos probatórios coligidos resulta fortemente indiciada a prática pelos arguidos de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, o qual é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.
Com efeito, os factos dados por indiciados e comunicados ao arguido têm sustentáculo claro nos autos de notícia por detenção de fls. 20-25, auto de busca e apreensão de fls. 26-30, reportagem fotográfica de fls. 31-43, testes rápidos de fls. 44-45, auto de busca e apreensão de fls. 49-52, testes rápidos de fls. 53-54, reportagem fotográfica de fls. 55-57, autos apreensão de fls. 58-63 e 67-68 e depoimento de fls.69-70, elementos probatórios que revelam toda uma actividade levada a efeito pelos arguidos com carácter duradouro e permanente de cultivo, preparação e venda, em larga escala, de produto estupefaciente.
Para além das apreensões desse produto estupefaciente, em quantidade assinalável, tendo em conta o número de doses admissível, sem se descurar que não se apurou ainda o grau de pureza, existem outros elementos como todos os demais objectos que lhe foram apreendidos, lâmpadas de aquecimento, ventoinhas, máscaras, aquecedores a óleo, desumidificadores, termómetros, borrifadores, todos eles necessários para o cultivo, secagem e preparação da cannabis até ao seu consumo, constituindo objetos estes que eram utilizados pelos arguidos, denotando uma actividade estruturada para venda e cedência de produto estupefaciente, pelo menos haxixe/cannabis/liamba para obtenção de proventos, sendo que existem fortes indícios de os arguidos não terem ocupação profissional certa.
Desde logo, a arguida disse ser doméstica e o arguido pintor da construção civil, mas resulta dos autos que os proventos económicos resultavam da actividade levada a efeito, em plena cidade de Chaves, em apartamentos de prédios centrais da cidade de Chaves, causando, como é bom de ver, grande alarme social, perturbando a segurança dos demais moradores e restantes cidadãos.
O grau de sofisticação de toda a actividade levada a efeito, reflectida em todos os instrumentos utilizados e na apresentação que se depura das reportagens fotográficas é, em si, demonstrativa da personalidade dos arguidos, claramente conhecedores dos meandros desta actividade, de forma dissimulada.
Não obstante o arguido ter um certificado de registo criminal sem qualquer averbamento de condenação, a verdade é que o mesmo, como confessou, aguarda a leitura da sentença a proferir no processo 591/15.1T9CHV, no qual foi acusado de um crime de tráfico de menor gravidade, o que certifica a sua pertinácia delitiva, pois que a pendência daquele processo (e da eventual condenação numa pena de prisão) não o demoveu de voltar a traficar, da forma organizada, cuidada (vejam-se as horas em que ia ao apartamento, onde se encontrava a plantação) que é demonstrada nos autos.
Pese embora a arguida tenha consentido numa busca domiciliária, a verdade é que mesma disse ser doméstica, não tendo actividade profissional, sendo claramente conivente com toda a situação e que no decurso do inquérito se apurará o grau maior ou menor de participação nesta actividade com a qual compactuou e teve intervenção directa em toda a dissimulação emprestada.
Resulta à evidência, até pela quantidade de notas apreendidas, de diversificado valor facial, que a actividade levada a efeito por estes dois cidadãos de nacionalidade brasileira se circunscrevia à obtenção de lucros e proventos fáceis que esta actividade gerava com que a arguida se conformou, tendo um papel activo e que o decurso do inquérito demonstrará em que grau.
Não se descura que se trata de liamba e haxixe, não sendo produto estupefaciente do mais nocivo para a saúde, como a cocaína e heroína, mas atenta a quantidade e objectos apreendido e sobretudo o grau de organização revelado, permite contextualizar a personalidade dos arguidos, avessa às regras do direito de convivência social, não estando bem integrados em termos sociais, nem profissionais, sendo cidadãos estrangeiros (de nacionalidade brasileira).

Nos termos do art.º 204.º do Código de Processo Penal, a aplicação de qualquer uma das medidas coactivas previstas naquele diploma depende – à excepção de prestação de termo de identidade e residência – da verificação de uma das seguintes ocorrências:

a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Depois de verificada alguma destas circunstâncias, o Juiz deverá escolher de entre todas as medidas coactivas previstas pelo Código de Processo Penal, para além da prestação de termo de identidade e residência, uma delas (ou várias, desde que compatíveis) para aplicar ao arguido, nos termos do art.º 193.º do referido Código que dispõe o seguinte:
(…)
Como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal", Ed. Verbo, 2.ª edição,1999, pág. 240, «no momento da aplicação de uma medida de coacção (...), que pode ocorrer ainda na fase de inquérito ou da instrução, fases em que o material probatório não é ainda completo, não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos nos autos, de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime.» E adianta que «nos casos em que a lei exige fortes indícios, a exigência é naturalmente maior; embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que, face aos elementos de prova disponíveis, seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição.»
Da mesma forma, a Prof. Teresa Beleza (Apontamentos de Direito Processual Penal, II, p. 125 e 126), refere que a prisão preventiva não deve funcionar como uma medida punitiva adiantada, mas deve funcionar como uma garantia de segurança no sentido de que o arguido não se eximirá a estar presente no processo e não irá perturbar o decurso das investigações, destruindo a actividade na suspeita da qual ele está a ser sujeito a um processo crime.
Na situação em análise, verificamos um claro perigo de fuga.
Com efeito, os arguidos têm nacionalidade brasileira, não tendo qualquer profissão certa da qual obtenham rendimentos para o seu sustento, sendo que quer a pendência do referido processo 591/15.1T9CHV (quanto ao arguido J. J.) quer do presente pode levar os arguidos, face à indiciação forte e grave e previsíveis sanções que lhes poderão ser aplicadas, a eximirem-se à acção da justiça, encetando a fuga para o Brasil, de onde são nacionais, com advenientes dificuldades muito acrescidas para o apuramento do seu paradeiro [1].
Para além disso o perigo de continuação da actividade criminosa é elevado, pois que, não tendo os arguidos qualquer actividade conhecida, neste momento, aliado ao facto de demonstrarem uma personalidade propensa à prática de factos ilícitos graves, como o tráfico de produtos estupefacientes, de forma dissimulada, revelando indiferença em relação às consequências da sua prática, praticando os factos no centro da cidade de Chaves, em prédios onde habitam muitos cidadãos, indiferentes a tudo, perspectiva-se como altamente provável que os arguidos, restituídos à liberdade, se não encetassem a fuga, pudessem continuar a mesma actividade [2].
Por outro lado, a colocação dos arguidos em liberdade poderia, de alguma forma, inibir ou perturbar o apuramento de novos elementos de prova a coligir, designadamente por forma a apurar-se a actividade anterior à reflectida pelos meios de prova que foram coligidos e que são parcos, pois resultam apenas, por ora, da ocorrência verificada no dia de ontem, pelo que se depura um claro perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo, designadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, atenta a conhecida solidariedade entre traficantes e consumidores, no desígnio de ocultação da prova, bem como, atenta a forma como vinha desenvolvendo a sua actividade, em plena cidade de Chaves, um claro perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, pois que este tipo de estupefaciente, “da moda” encontra-se actualmente disseminado por jovens que o procuram em grande escala, por ser mais acessível e seria, depois de descoberta a actividade levada a efeito pelos arguidos, um sinal de desconsideração pelo tráfico de tal produto estupefaciente, residindo, como residiam, em plena cidade de Chaves, a meia dúzia de metros deste Tribunal.
É verdade que os autos ainda se encontram numa fase inicial, mas a extrema gravidade do ilícito de que os mesmos se encontram indiciados, existindo, em concreto, os perigos referidos na al. a), b) e c) do art.º 204.º não deixam margem para dúvidas sobre a aplicação de medida mais gravosa que o TIR e que se entende ser uma medida privativa da liberdade, por se julgar ser a única suficiente para debelar os perigos em causa e se mostrar proporcional à referida gravidade dos factos e das previsíveis sanções que lhe serão aplicadas.
Diga-se que, na senda da Jurisprudência quase unânime neste sentido, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação não é adequada no caso de indiciação por tal ilícito de tráfico de estupefacientes [3].

A título de exemplo, os seguintes Acórdãos, disponíveis in www.dgsi.pt:

• Acórdão da Relação do Porto de 09.06.2010: «A vigilância electrónica associada à medida de permanência na habitação podendo, embora, obstar a um eventual perigo de fuga, não dá a mínima garantia de que, no sossego do lar, o arguido não continue a actividade de tráfico de estupefacientes, mostrando-nos a experiência comum como são, hoje, fáceis os contactos e as deslocações de compradores e intermediários e como é forte a solicitação dos elevados proventos económicos que tal tráfico proporciona.»
• Acórdão da Relação do Porto de 27.09.2006: «No caso de crime de tráfico de estupefacientes a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, mesmo com controlo electrónico, não atenua seriamente o perigo de continuação da actividade criminosa.»
• Acórdão da Relação de Coimbra de 7.10.2009: «A medida de coacção, obrigação de permanência na habitação, mesmo com meios técnicos de controlo à distância revela-se insuficiente e inadequada nos crimes de tráfico de estupefacientes, visto poder ser cometido sem contacto directo.»
• Acórdão da Relação de Guimarães de 8.09.2008, Relator: Desembargador Fernando Monterroso: «o perigo de continuação da actividade criminosa só ficará afastado com a prisão preventiva, visto que o tráfico de estupefacientes, pelas circunstâncias que o facilitam, não será impedido nem seriamente dificultado com a aplicação de outra medida de coacção, nomeadamente a obrigação de permanência na habitação do art. 201º do C. Penal, reclamada pelo recorrente.» [4]

No caso concreto, também se entende que tais perigos não ficariam satisfeitos com a colocação dos arguidos no seu meio residencial, pois como já se viu à saciedade, os arguidos praticam os factos em apartamentos que habitam, onde pagam rendas e são aparentemente moradores, sendo fácil a entrega por outras pessoas de todos os meios empregues nesta actividade, ou o mero auxílio de terceiros, para continuarem a sua actividade do comodismo da sua habitação, pelo que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação seria sério fautor de continuação da actividade do arguido.
De facto, colocar os arguidos na sua residência, sabendo que os mesmos são cultivadores, em apartamento, e vendedores de produto estupefaciente e que presumivelmente teriam contactos com outros consumidores, como se há-de naturalmente revelar no decurso do inquérito, atenta a quantidade apreendida, claramente exorbitando de um mero consumo, faria agravar o risco que queremos dissipar de continuação de actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e, bem assim, o natural carrear de prova, designadamente testemunhal, concluindo-se, como já se referiu, por um perigo de perturbação do inquérito para aquisição da prova (al. b) e c) do art.º 204 do Código de Processo Penal).
Em conjugação com uma situação pessoal periclitante, e sobretudo dos dados objectivos que resultaram da apreensão do produto estupefaciente em quantidade assinalável, e demais objectos conexos com essa actividade, julgamos necessária e adequada e a única capaz de satisfazer as exigências cautelares que neste momento se impõem nos autos, mostrando-se igualmente proporcional à gravidade do crime indicado e às presumíveis sanções que lhes serão aplicadas no futuro, a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.

Assim, ponderando os princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade e ao abrigo das disposições conjugadas dos art.s 191º, 192º, 193º, 194º, 196º, 202º, n.º1, alíneas a) e c) e 204º, a) al. b) e c) todos do Código do Processo Penal, determino que:

- Os arguidos J. J. e L. S. aguardem os ulteriores termos do processo sujeitos às medidas de coacção de TIR, já prestado, e à medida de coacção de prisão preventiva.».

Inconformado com a referida decisão, o arguido interpôs recurso, formulando na sua motivação as seguintes conclusões:

«1. Considera-se verificada a inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 13° e 32° da CRP que se invoca para os devidos efeitos, na medida em que a fundamentação dos perigos invocados se consubstancia no facto dos arguidos serem naturais do Brasil, e bem assim no facto de desde a 24° versão do Código de Processo Penal se ter procedido à abolição da pergunta acerca dos antecedentes criminais de arguido detido e presente a 1º interrogatório judicial e ter sido feita e considerada ainda a pendência de processo crime contra o arguido que não se encontra transitado em julgado.
2. O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 193° n° 1, 2, e 3, 194° n° 6 alínea d) e 202° nº 1 do C.P.P. na medida em que considera inadequada e insuficiente uma medida não detentiva da liberdade.
3. Atendendo aos elementos constantes dos autos, ao crime indiciado, jurisprudência recente e à hipotética existência dos perigos de continuação da actividade criminosa (que se considera fortemente atenuada pelo reclusão a que o arguido já está sujeito e pelo conhecimento da existência da presente investigação) de perturbação do inquérito (sendo que não se apontam razões objectivas de que se verifique e dos autos resultam actos de colaboração e de apresentação voluntário em OPC) e de perigo de fuga (que não se intui nem se pode julgar verificado atento o comportamento de ambos os recorrentes e a sua ligação efectiva a Portugal) é suficiente a nosso ver, impor aos arguidos a obrigação de proibição de se ausentarem de território nacional com as necessárias comunicações às autoridades portuguesas e europeias e a entrega dos respectivos passaportes bem como a obrigação de apresentação periódicas no OPC.
4. O artigo 193, nº 1 do CPP consagra que as medidas de coação devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
5. A medida de coação aplicada viola os princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação.
6. Os perigos apontados pelo Mmo. JIC podem ser perfeitamente acautelados com as medidas não privativas da liberdade ou em última análise com a sujeição a obrigação de permanência na habitação.
7. A medida privativa da liberdade, sendo subsidiária não pode ser aplicada porquanto outras medidas de coação menos gravosas mostram-se suficientes e cumprem as necessidades cautelares sentidas no caso em apreço,
8. O douto despacho recorrido fez incorreta apreciação dos factos e violou o artigo 32, n° 2, 27 e 28 da CRP e 204, 213 do CPP, pelo que deve ser revogado.
9. A fundamentação da desadequação e da insuficiência de outras medidas de coacção não obedece a critérios lógico dedutivos nem de razoabilidade nem tem suporte nos elementos de prova coligidos.
10. Os factos concretos indiciados — que a nosso ver se subsumem a uma ilicitude consideravelmente diminuída conforme recentes acórdãos sobre o tema citados na motivação — não preenchem os pressupostos de aplicação da prisão preventiva por insuficiência e inadequação de medida anteriormente prevista.

Nestes termos, deverá ser revogado o douto despacho que ordenou que os arguidos aguardassem os ulteriores termos processuais sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva.»

O recurso foi regularmente admitido.

O Ministério Público, em 1ª Instância, apresentou resposta à motivação, sustentando que a decisão recorrida não padece de qualquer inconstitucionalidade e pugnando pela manutenção da medida de coacção aplicada, dizendo, em suma, que se verificam em concreto, os perigos assinalados no despacho recorrido, quer em face da gravidade da conduta, quer em face da muito provável futura condenação do arguido, por se mostrar fortemente indiciada a prática pelo mesmo de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei 15/93 de 22 de Janeiro.
Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, sufragando o entendimento de que o envolvimento do arguido nos factos não é de molde a justificar a aplicação da sanção menos grave da que lhe foi aplicada, a única que salvaguarda os perigos a que alude o art.º 204 do CPP, devendo o despacho criticado ser confirmado por não ser violador de qualquer norma ou princípio processual atendível.
Cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP, efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.

*
II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscitam-se neste recurso as questões de saber se: (i) os factos indiciados não permitem a qualificação jurídica adoptada no despacho recorrido; (ii) inexistem os perigos de fuga, perigo de perturbação do inquérito, perigo de continuação da actividade criminosa, perigo da ordem e tranquilidade públicas, (iii) não é necessária, adequada e proporcional a prisão preventiva, sendo suficiente a obrigação de proibição de o arguido se ausentar do território nacional com as necessárias comunicações às autoridades portuguesas e europeias e a entrega do respectivo passaporte bem como a obrigação de apresentação periódicas no OPC; (iv) a interpretação perfilhada no despacho recorrido padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade e da presunção de inocência a que aludem os arts. 13º e 32º, n.º 2 da CRP.

Importa apreciar tais questões e decidir. Para o conhecimento do objecto do recurso deve considerar-se como pertinentes os factos tidos por indiciados no despacho recorrido e a respectiva motivação acima transcritas e os demais elementos documentais juntos aos autos, a que se fez expressa referência no despacho em apreciação.
*
1. A qualificação jurídica dos factos indiciados.

O arguido sustenta que os elementos do processo apenas indiciam a sua mera detenção, na modalidade de produção ou cultivo, de cannabis folhas e sumidades – não existindo quaisquer indícios de vendas e ou cedências desse produto –, o que remete o enquadramento da inerente factualidade para o crime de tráfico de menor gravidade, p. e. p. pelo art. 25.º, do DL n.º 15/93, de 22/01, e não para o crime de tráfico de estupefacientes, p. e. p. pelo artigo 21º, n.º 1, do mesmo diploma, em que se fundamentou a decisão recorrida.
O Ministério Público, em ambas as instâncias, apartou-se dessa pretensão.

Vejamos.

Sendo um crime “de perigo”, o legislador, através do tipo base do artigo 21º, enuncia um largo espectro de actividades ilícitas relativas a estupefacientes e ao seu tráfico, descrevendo a factualidade típica de modo a abranger na incriminação todos «os momentos relevantes do ciclo da droga» (5).

Com efeito, o citado artigo «contém, no nº 1, a descrição fundamental – o tipo essencial – relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo e cuja tipicidade, de largo espectro, abrange qualquer contacto com produto estupefaciente de modo a compreender todos os momentos relevantes do ciclo da droga. Nos artigos seguintes estão legalmente previstas situações de privilegiamento e de agravamento». «Como resulta da amplitude da moldura penal abstracta, que parte dum mínimo bastante elevado, o crime-base do art. 21º encontra-se já por si projectado para a punição dos casos de tráfico de média e grande dimensão (6).
Não exige, nos seus elementos típicos, que a detenção da droga se destine à venda, bastando a simples detenção ilícita da mesma ou proporcioná-la a outrem ainda que a título gratuito. Desde que o estupefaciente não se destine na totalidade ao consumo do próprio agente (7), o crime de tráfico de estupefacientes está perfectibilizado, e por isso é irrelevante que a droga pertença ou não ao agente e irrelevante é também que o mesmo procure lucro ou outras vantagens, bem como saber a quem foi a droga vendida, por quantas vezes, as quantidades exactas, ou o preço (8).
É o que doutrina Faria Costa (9), explicando que este ilícito foi configurado como um crime de perigo abstracto, na medida em que a sua tipicidade se apresenta como uma “(...) clara ‘antecipação’ na defesa do bem jurídico”, tendo em conta as graves consequências que o uso das substâncias em causa acarreta para a sociedade, sendo que as circunstâncias que as possam ter rodeado têm relevância, tão só, como forma de aferir de uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída.
Realmente, constata-se alguma uniformidade na análise jurisprudencial da questão, afirmando que os artigos «21º e 22º se destinam aos grandes e médios traficantes e o artigo 25º se destina aos pequenos traficantes» (10).
Nessa senda, partindo do crime base ou matriz e porque o nosso ordenamento respeita o princípio da proporcionalidade, o legislador procurou «responder a diversos padrões de ilicitude em consonância com o grau da intensidade do perigo para os bens jurídicos tutelados» (11). No entendimento da ilicitude como ofensa material de certos bens jurídicos, é possível estabelecer-se uma sua graduação consoante o nível da ofensa, o modo da sua execução e outras circunstâncias, de forma a evitar a aplicação de penas desproporcionadas ao nível dessa ofensa, modo da sua execução e outras circunstâncias.
Assim, o art. 25º do diploma criou novo tipo (privilegiado), o tráfico de menor gravidade, que prevê a hipótese de «a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações» (12).
A avaliação sobre se estamos perante uma situação de tráfico de menor gravidade implica uma compreensão global do facto, devendo o julgador valorar complexamente todas as concretas circunstâncias do caso concreto.
A situação atenuada terá de resultar dessa valoração global, não sendo suficiente que uma das circunstâncias interdependentes que a lei enumera de forma não taxativa (meios, modalidades, modo de acção, qualidade e quantidade da substância) ou, ainda, qualquer outra que aponte no mesmo sentido, seja idónea em abstracto para qualificar a ilicitude dos factos como consideravelmente diminuída.
O que verdadeiramente conta é que seja aferida a ilicitude do facto na situação concreta, individualizada, com todas as suas particularidades, sendo impraticável um critério jurídico fundado em pesos, preços ou outras medidas.
A intenção do legislador com a redacção deste artigo foi a de deixar uma válvula de segurança para que situações de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas.
A Jurisprudência tem avançado que para a verificação de uma menor ilicitude assumem relevo, entre outros factores, a organização que está por trás do comportamento, o tipo de actuação, a quantidade e a qualidade dos estupefacientes comercializados, os lucros obtidos, o grau de adesão a essa actividade como modo de vida, a afectação ou não de parte dos lucros ao financiamento do consumo pessoal de drogas, a duração e a intensidade da actividade desenvolvida, o número de consumidores contactados e a posição do agente na rede de distribuição clandestina dos estupefacientes.
É a partir da ponderação conjunta desta panóplia de factores que se deverá elaborar um juízo sobre a verificação da menor ilicitude do facto (13).
Neste conspecto, importa chamar à colação o que asseverou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2011 (14), quando nele se escreveu «(…) a avaliação de uma atividade, seja ela qual for, obriga a uma definição prévia de critérios (ou de exemplos-padrão) e, portanto, dir-se-á que o agente do crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, deverá estar nas circunstâncias seguidamente enunciadas, tendencialmente cumulativas:
a) A atividade de tráfico é exercida por contacto direto do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet);
b) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto;
c) O período de duração da atividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado;
d) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas.
e) Os meios de transporte empregues na dita atividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos;
f) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes;
g) A atividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita;
h) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93.»

Particularmente significativo é o que também se retira do acórdão do mesmo Tribunal de 2-3-2011 em que se apreciou a conduta de um arguido que se dedicava ao tráfico de estupefacientes na modalidade de cultivo e em cujo sumário se disse: «(…) III - Tem o STJ entendido que para se aquilatar do preenchimento do tipo legal do art.º 25.º, do DL 15/93, de 22-01, haverá de se proceder a uma "valorização global do facto", não devendo o intérprete deixar de sopesar todas e cada uma das circunstâncias a que alude aquele artigo, podendo juntar-lhe outras.
IV - “A tipificação do art. 25.º, do DL 15/93, parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21.º e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar” (entre muitos, o Ac. STJ de 15/12/99, proc. 912/99).
V - Ora, fazendo uma avaliação crítica dos factos provados, verificamos que o tráfico aparentava ser muito rudimentar. O recorrente, trabalhador agrícola, plantou numa propriedade da família algumas dezenas de pés da planta cannabis e, depois, tratou da pequena plantação, nomeadamente com rega de gota a gota e, na altura da floração, iria colher as flores, os frutos e as folhas, iria secá-los, triturá-los (como ainda chegou a fazer a algumas) e iria, com toda a probabilidade, vendê-los (mas não se chegou a provar que alguma venda tenha sido efectuada e, portanto, que os depósitos bancários fossem produto do crime, como também não se provou que a detenção fosse para consumo próprio, de resto, como o próprio recorrente afirma).
VI - É certo que a quantidade detida pelo recorrente não se pode considerar propriamente como pequena, pois o mesmo tinha em seu poder, para futura comercialização, em proveito próprio, cerca de 31,300 kg líquidos de cannabis (as já referidas quantidades mais cerca de 1,1 kg que estava escondido no galinheiro). E note-se que a pesagem da cannabis arrancada da terra pela entidade policial se fez apenas com as sumidades, frutos, semente e folhas, isto é, após terem sido retirados os caules e as raízes.
VII - Contudo, estamos perante o produto que estava ainda, na sua maioria, no seu estado natural, não preparado para consumir, pois nem sequer estava seco e triturado, o que quando acontecesse se traduziria em muito menor peso. Em qualquer caso, o produto seria o que os consumidores designam por “erva”, ou marijuana e não o compacto com resina designado por haxixe.
VIII - Assim, não há que valorizar demasiado a quantidade e devemo-nos concentrar no facto de que se tratava da posse, para venda futura, de uma das substâncias estupefacientes menos prejudicial para a saúde dos consumidores.
IX - Deste modo, fazendo uma avaliação global dos factos, entendemos mais adequado qualificar os factos no tráfico de menor gravidade, p. e p. no art.º 25.º, al. a), com referência à tabela I-C, do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.»
Suscita-se, então, a questão da qualificação jurídica dos factos indiciados e a sustentabilidade da incriminação movida ao ora arguido.
O Tribunal recorrido entendeu que os factos objectivos até agora indiciados apontam para uma comparticipação do arguido no tipo matricial de tráfico de estupefacientes do art. 21º, n.º 1, por considerar que a conduta do mesmo não apresenta um grau de ilicitude reduzido e, muito menos, considerável, em face da quantidade de produto estupefaciente apreendido e de todos os demais objectos utilizados nessa mesma actividade, a qual, segundo se afirmou é reveladora de um grau de sofisticação, reflectida em todos os instrumentos utilizados, apesar de também se ter considerado que não se determinou o grau de pureza do mesmo produto, considerações que foram acompanhadas pelo Ministério Público, mormente pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação.
Efectivamente, do cotejo dos factos provados resulta que o arguido detinha na sua posse vários sacos de plástico contendo plantas de cannabis já secas, mas ainda não trituradas, com o peso total bruto de 14,65 kg, desconhecendo-se o respectivo grau de pureza (percentagem de THC).
A par disso, no interior do apartamento que o mesmo utilizava para proceder ao cultivo daquela substância, encontravam-se 109 vasos grandes e 96 vasos pequenos, em plena fase de desenvolvimento, sem, contudo, constar da descrição da factualidade indiciada qual o tamanho de cada vaso grande ou pequeno, bem como, sobremaneira, a cannabis que todos poderiam produzir designadamente, o número das plantas que os mesmos comportariam. Ademais, nesta parte, estamos perante o produto no seu estado natural, em fase de desenvolvimento, que não estava triturado nem, sequer, seco e, por isso, também não preparado para consumir, o que se e quando acontecesse redundaria numa muito muito significativa diminuição do respectivo peso. Em qualquer caso, o produto dessa eventual preparação seria o que habitualmente se designa por “erva”, ou “marijuana” e não o compacto com resina designado por haxixe.
Em suma, os factos indiciados não permitem que se formule um juízo seguro acerca da real quantidade de produto estupefaciente em causa.
É certo que está indiciado que o arguido, para o desenvolvimento dessa sua actividade, utilizava um apartamento arrendado (cujo contrato de arrendamento estava em nome de um terceiro), com “as portas e janelas minuciosa e hermeticamente calafetadas”, “ligava os exautores e utilizava difusores de cheiros, com vista a dissimular o cheiro” e tinha-se munido de “lâmpadas de aquecimento, ventoinhas, máscaras, aquecedores a óleo, desumidificadores, termómetros, borrifadores”. Ou seja, retira-se dos factos indiciados que o arguido possuía toda uma panóplia de instrumentos necessários à prossecução daquela finalidade, assim como que, segundo tudo indica, na altura da floração, iria colher as flores, os frutos e as folhas, iria secá-los, triturá-los e iria vender o respectivo produto.
Contudo, esses factores, sendo os limiarmente necessários ao cultivo deste tipo de plantas, não são suficientes, por si sós, para se poder considerar que estamos perante uma estrutura perfeitamente organizada e estruturada ou um esquema sofisticado na execução do indiciado crime.
Por outro lado, os factos indiciados também apontam para que o dinheiro apreendido seria resultante das vendas do produto estupefaciente e que se destinava a custear o modo de vida do arguido. Todavia, não podemos olvidar que se trata de um produto estupefaciente que, de entre os demais, é o de menor nocividade, que apenas existiu a notícia da prática indiciada desde apenas finais de Agosto de 2019, que nesta o arguido apenas contou com o apoio da co-arguida e que o mesmo não tem antecedentes criminais.
Além disso, não são expressivas as quantidades de produto detidas pelo arguido na sua residência e que lhe foram apreendidos: 9,45g (bruto) de Liamba e 6,70 g (bruto) de haxixe.
Assim, não obstante a aludida panóplia de recursos, entendemos que, neste caso, os restantes elementos indiciados, não impede que se considere a ilicitude consideravelmente diminuída.
Realmente, avaliadas de uma forma global e interligada, as circunstâncias relativas ao menor grau de nocividade, à qualidade das substâncias detidas pelo arguido em fase de cultivo, à escassez do período temporal de exercício da actividade, à falta de sofisticação ou organização de relevo, à primodelinquência do arguido, a quem não vem imputado desafogo económico, apresentam um significado unitário de ilicitude que não se enquadra na razão de ser do tipo matricial do art. 21º, destinado que é a actividades de tráfico de estupefacientes prolongadas no tempo, em elevada escala, de quantidades consideráveis de estupefacientes, com recurso a operações com alguma sistematização, organização e refinamento, próprios do chamado tráfico de média ou grande dimensão.
Todos os dados, não obstante a sua, por ora, reduzida definição ou concretização fáctica, constituem factores que legitimam a avaliação de que a conduta do arguido se situa no patamar mínimo da comum situação dos pequenos traficantes, por não estarem excluídos os pressupostos do tráfico de menor gravidade, ou seja, que a ilicitude da sua actividade de detenção e cultivo de produtos estupefacientes e sua cedência a terceiros consumidores se mostra consideravelmente diminuída.
Em conclusão, não acompanhamos, a argumentação expendida no despacho recorrido por entendermos que a fortemente indiciada conduta do recorrente está fora do perímetro do preenchimento do tipo matricial de tráfico de estupefacientes e aponta para uma reduzida comparticipação nesse crime, tudo indicando para que a ilicitude da actuação deste arguido é consideravelmente diminuída, ou seja, a mesma integra (apenas) todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de tráfico de menor gravidade p. e p. no art. 25º, al. a), não pelo qual vinha indiciado, p. e p. pelo art. 21º, n.º 1 do citado Diploma.

2. A medida de coacção aplicada ao arguido e os concretos perigos considerados.

As medidas de coacção são meros instrumentos processuais da eficácia do procedimento penal e da boa administração da justiça.
Todavia, não pode olvidar-se que com tais meios processuais estão em causa, não apenas a eficácia da investigação criminal, mas também a protecção de direitos fundamentais – como são os direitos à liberdade e à segurança – sendo, por isso, «necessário, em cada caso concreto, fazer uma ponderação dos interesses em conflito para determinar a respectiva prevalência e grau ou medida da sua restrição» (15).
Daí que, por um lado, as medidas de coacção previstas, exceptuado o termo de identidade e residência, só possam ser aplicadas desde que, em concreto, se verifique qualquer dos requisitos indicados no art. 204º do CPP (16) e que, por outro lado, essa aplicação esteja sempre sujeita ao respeito do princípio da proporcionalidade (17), que se desdobra em quatro subprincípios: a necessidade (indispensabilidade das medidas restritivas para obter os fins visados, com proibição do excesso (18)); a adequação (idoneidade das medidas para a prossecução dos respectivos fins); a subsidiariedade e a precariedade, todos eles corolários do princípio da presunção de inocência (19).
Tais princípios são impostos pelo preceito contido no art. 193º (20), decorrendo o da necessidade, ainda, da regra de «a liberdade das pessoas só [poder] ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar» (cfr. art. 191º, n.º 1), devendo optar-se, em cada caso concreto, pela medida de coacção adequada e proporcionada, tendo em atenção as exigências por aqueles colocadas (21).
Contudo, nos termos do n.º 4 do art. 194º, a aplicação referida só pode ser fundamentada em factos concretos que possam preencher os respectivos pressupostos, incluindo os previstos nos aludidos artigos 193º e 204º (princípios e requisitos). Não bastará, pois, o mero apelo, em abstracto, a tais pressupostos.

Tudo isto significa que a prisão preventiva não pode, obviamente, ser encarada como uma pena (por antecipação), nem tão pouco como uma medida de segurança, porquanto se trata de uma simples medida cautelar, «uma medida de defesa e protecção da funcionalidade do processo» (22) e que, sendo a mais grave das medidas de coacção, como é sabido, só excepcionalmente pode ser aplicada e nas situações previstas no n.º 1 do 202º, nos termos de cuja disposição tal medida de coacção pode ser imposta, verificados que sejam os restantes requisitos, quando:

a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos;
b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta;
c) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
d) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, receptação, falsificação ou contrafacção de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
e) Houver fortes indícios da prática de crime doloso de detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
f) Se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão.

No caso, sendo óbvio que não estamos perante qualquer das situações das alíneas b) e d) a f), verifica-se que também não há fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos: em face do enquadramento jurídico anteriormente oferecido aos factos indiciados – tráfico de menor gravidade (punido com pena de prisão de um a cinco anos) – igualmente não ocorre a situação prevista naquela alínea a).
Resta saber se o caso se enquadra na situação prevista na alínea c), tendo em conta a definição de “criminalidade altamente organizada” constante do art. 1º, al. m), do C. Processo Penal: “condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência, participação económica em negócio ou branqueamento”.
A resposta não pode deixar de ser negativa, não integrando o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade o conceito de criminalidade altamente organizada como resulta expressamente do teor do n.º 1 do art. 51º do DL 15/93, ao estabelecer que, para efeitos do disposto no C. Processo Penal, e em conformidade com o n.º 2 do artigo 1.º do mesmo Código, apenas se considera equiparadas a casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que integrem os crimes previstos nos artigos 21.º a 24.º e 28.º deste diploma e como se tem pronunciado a nossa jurisprudência (23).
Por conseguinte, procedendo o recurso no segmento respeitante ao enquadramento jurídico dos factos, não pode, evidentemente, manter-se a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido ou, até, a de obrigação de permanência na habitação, uma vez que o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade as nãos admite.
E daí também flui que se mostra prejudicada a aferição de cada um dos concretos perigos assacados ao arguido e que este punha em crise em sede recursiva, bem como que os objectivos e as exigências cautelares que o caso requer são bem menos exacerbados do que os que estiveram na base da decisão recorrida de decretar a prisão preventiva.
Porém, não pode desconsiderar-se a gravidade do crime indiciado e da sanção que previsivelmente lhe virá a ser aplicada e que continuam a subsistir o perigo de continuação de actividade criminosa e o risco de o arguido se subtrair ao exercício da acção penal.
Com efeito, relativamente ao perigo de continuação da actividade criminosa, o Professor Germano Marques da Silva salienta que «A aplicação de uma medida de coacção não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão só a continuidade criminosa pela qual o arguido está indiciado. (…). Assim, se atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido for de presumir a continuação da actividade criminosa pelo qual o arguido está indiciado no processo pode justificar-se a aplicação de uma medida de coacção» (24).
Ou, como se escreveu no acórdão da RL de 12-07-2016 (proc. 838/15.4T9STC), «perigo de reiteração da actividade criminosa é quase conatural do crime de tráfico de estupefacientes na modalidade típica da venda a terceiros, “por conta própria”, dada a sua natureza de actividade lucrativa».
Este perigo decorrerá de um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, a efectuar a partir de circunstâncias anteriores ou contemporâneas à conduta que se encontra indiciada e sempre relacionada com esta.
Ora, no caso vertente, como ressuma dos factos indiciados, verifica-se a existência deste perigo, mormente pela circunstância de não ser conhecida qualquer actividade profissional ao arguido e de o mesmo não ter qualquer fonte de rendimento lícita, considerando inevitável a conclusão de que procurou, necessariamente, proceder o seu sustento com o produto do cultivo de estupefaciente que vinha desenvolvendo com e sua posterior comercialização, disso fazendo modo de vida, certamente motivado pelo lucro e pela “rentabilidade” fácil.
Assim, para obstar que o arguido venha a persistir na prática de crime de natureza análoga àquele que se encontra em investigação e como forma de o dissuadir dessa eventual prática, entendemos que tais finalidades poderão ser prosseguidos aguardando o arguido os ulteriores termos do processo com a obrigação de se apresentar uma vez por semana, durante o horário de expediente, no posto policial da área da sua residência [cf. art. 198, n.º 1 e 2º do CPP].
Paralelamente consta do auto de interrogatório do arguido que o mesmo é natural do Brasil, o que, aliado ao desconhecimento de qualquer actividade profissional da qual obtenha rendimentos para o seu sustento, inculca a ideia de ser natural a facilidade com que se pode deslocar para o seu país de origem, onde possui raízes, e aí permanecer o tempo que lhe aprouver sem necessitar de qualquer justificação.
A ponderação deste contexto fáctico constituído pelas circunstâncias de vida do recorrente, analisadas à luz da sua personalidade (revelada na indiciação de factos subsumíveis ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade) e das normais regras da experiência comum, torna muito verosímil a propensão para a sua fuga: não sendo, de modo algum, necessário que haja indícios materiais de que a fuga se perspectiva já num plano factual próximo, tais circunstâncias constituem razões suficientes para a afirmação da existência de perigo de fuga.
Com efeito, como sustentou Maia Costa (25), o perigo de fuga deve fundar-se numa análise rigorosa e precisa da situação concreta, sendo elementos a ponderar a gravidade da pena cominada para o crime imputado, a personalidade revelada pelo arguido, a sua situação financeira, a sua situação familiar, profissional e social, as suas ligações a países estrangeiros, enfim, todas as circunstâncias que possam revelar a sua vontade e a sua capacidade ou facilidade para se por em fuga. Sendo com base num juízo global de todas as circunstâncias do caso que se pode fundamentar um juízo deste tipo.
Identicamente, escreveu-se no acórdão da RE de 15/02/2011 (proc. 1/09.3JAPTM.E1) que «o perigo de fuga tem de ser real, traduzido ou concretizado em factos». E o Ac. da RP de 9/10/2013 (proc. 1250/13.5JAPRT-A.P1) afirmou que «o perigo de fuga tem por base o risco do arguido se subtrair ao exercício da acção penal, mediante a existência de certas circunstâncias, que, de modo consistente, possam favorecer a fuga ou potenciar a mesma» e que «existirá esse perigo, sempre que subsistam elementos objectivos, donde se possa aferir que o arguido em liberdade se ausentará para parte incerta, no país ou no estrangeiro, com o propósito de se eximir à acção penal».
Consequentemente, entendemos que se também verifica o mencionado perigo sendo que, conforme decorre do corpo do art. 204º, para a aplicação de qualquer medida de coacção, à excepção do TIR, é necessária a existência de um dos requisitos ínsitos nas diversas alíneas deste preceito.
Por conseguinte, o recurso merece provimento, afigurando-se-nos que os objectivos e as exigências cautelares que o caso requer poderão ser prosseguidos através da imposição da obrigação de apresentação periódica, cumulada com a proibição de se ausentar para o estrangeiro sem autorização, com as necessárias comunicações às autoridades e a entrega do respectivo passaporte, nos termos, aliás, propostos pelo recorrente e previstos no art. 200º, n.º 1, al. b) e n.º 3 do CPP.
*
Em face do que foi decidido fica prejudicado o conhecimento das demais questões enunciadas.

Decisão:

Pelo exposto, julgando procedente o recurso interposto, decide-se revogar o despacho recorrido e, na sequência, determinar que o arguido J. J. aguarde os ulteriores termos do processo em liberdade, sujeito às obrigações decorrentes do TIR já prestado e, ainda, à obrigação de se apresentar uma vez por semana, durante o horário de expediente, no posto policial da área da sua residência, cumulada com a proibição de se ausentar para o estrangeiro sem autorização, devendo, caso seja portador de passaporte, entregá-lo no Tribunal no prazo de 10 (dez) dias, com vista à ulterior comunicação às autoridades competentes para a não concessão ou renovação de passaporte e o controlo de fronteiras.
Mais se determina a imediata restituição do arguido à liberdade, para o que devem ser emitidos os pertinentes mandados de soltura.

Sem custas.

Guimarães, 13/01/2020

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado

1 Acórdão da Relação do Porto de 9.10.2013, Relator: desembargador Ernesto Nascimento, in www.dgsi.pt:
“O perigo de fuga tem por base o risco do arguido se subtrair ao exercício da acção penal, mediante a existência de certas circunstâncias, que, de modo consistente, possam favorecer a fuga ou potenciar a mesma.
Existirá esse perigo, sempre que subsistam elementos objectivos, donde se possa aferir que o arguido em liberdade se ausentará para parte incerta, no país ou no estrangeiro, com o propósito de se eximir à acção penal.
Para o efeito não é necessário que esse temor seja particularmente intenso, bastando apenas que subsista uma razoável probabilidade de que essa fuga venha a ocorrer.”
Acórdão da Relação do Porto de 11.05.2011, Relator: Desembargador Ricardo Costa e Silva, in www.dgsi.pt:
“I – A avaliação do perigo de fuga não exige que o risco se adense até à iminência ou início da execução da fuga, i.é., não é necessário que haja indícios materiais de que a fuga está num horizonte factual próximo.
II – O juízo sobre a existência de perigo de fuga tem de basear-se na pessoa concreta, na sua personalidade, nas circunstâncias conhecidas da sua vida para, a partir daí, cotejando essa imagem com a experiência comum, averiguar da probabilidade de se verificar uma fuga.”
2 Acórdão da Relação de Guimarães de 3.03.2014, Relatora: Desembargadora Ana Teixeira, in www.dgsi.pt:
“I – O perigo de continuação da atividade criminosa não se confunde com a consumação de novos atos criminosos, devendo antes ser aferido em função de um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, a efetuar a partir dos factos indiciados e da personalidade por eles revelada.
II – A vigilância eletrónica, associada à obrigação de permanência na habitação, não dá a garantia de que um traficante de drogas não continuará as suas atividades no sossego do lar.”
3 Acórdão da Relação de Lisboa de 11.06.2019, Relator: Desembargador José Adriano, in www.dgsi.pt:
“Se é certo que a medida de obrigação de permanência na habitação prossegue um fim concorrente com o da prisão preventiva, coincidindo até em alguns dos seus pressupostos e tratamento adjectivo, tal circunstância não tem a virtualidade de apagar as diferenças significativas que existem entre ambas, em especial ao nível da sua eficácia, porquanto, “a barreira física decorrente do confinamento de alguém a um domicílio não assenta exclusivamente na valia dos meios técnicos postos na detecção de eventuais ausências” que têm essencialmente por função dar a conhecer as “violações” da obrigação de permanência na habitação.
Por outro lado, a mencionada obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância electrónica, não é, só por si, impeditiva de o referido arguido manter o mesmo negócio ilícito, contactando com os seus clientes a partir da sua residência - seja ela qual for – e ser por eles contactado, fazendo com que estes – sejam os mesmos de antigamente, ou outros diferentes - se desloquem à aludida residência.”
4 Igualmente, entre outros, o Acórdão da Relação de Guimarães de 30.05.2005, Relator: Desembargador Tomé Branco e o Acórdão da Relação de Guimarães de 26.01.2015, Relator: Desembargador António Condesso, todos in www.dgsi.pt, sendo este último sumariado da seguinte forma:
“«I) Mostrando-se indiciariamente provado que o recorrente praticou o crime do artº 21º do DL nº 15/93, de 22.01, não é de aplicar a medida coactiva de obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica, prevista no artº 201, nº 1, do CPP, por a mesma se revelar inadequada para obviar aos perigos a que se refere a alínea c) do artº 204º do CPP.
II) É que o crime de tráfico de estupefacientes pode ser levado a cabo na residência do arguido, sem conhecimento da entidade vigilante, já que não é possível efectuar qualquer fiscalização desse género através do meio técnico de controlo.
III) Acresce o facto de que, mesmo que não sejam praticados na residência do recorrente os actos materiais, sempre o negócio do tráfico poder ser dirigido a partir dali, mediante utilização de telefone ou mensagens electrónicas.”
5 Cf. Lourenço Martins, A Droga e o Direito, Aequitas, Editorial Notícias, 1994, p.122, citado pelo Ac. do STJ de 12/9/2007 (Soreto de Barros, Proc. 06P2165, in www.dgsi.pt).
6 Ac do STJ de 15/4/2010 (p. 631/03.7GDLLE.S1 - Arménio Sottomayor – in www.dgsi.pt), que acrescenta: “A construção e a estrutura dos crimes ditos de tráfico de estupefacientes como crimes de perigo, de protecção (total) recuada a momentos anteriores a qualquer manifestação de consequências danosas, e com a descrição típica alargada, pressupõe a graduação em escalas diversas dos diferentes padrões de ilicitude em que se manifeste a intensidade (a potencialidade) do perigo (um perigo que é abstracto-concreto) para os bens jurídicos protegidos”.
7 A detenção só pode ser qualificada como destinada a consumo próprio, quando tal finalidade, que tem de ser exclusiva, resulta da prova produzida.
8 A este propósito cfr. Jescheck - Tratado de Derecho Penal, Parte General, Cuarta Edición, Editorial Comares - Granada, 1993, pag. 238.
9 In Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 868.
10 Posição já assumida, por exemplo, pelo acórdão do STJ de 1/3/2001 in CJ/STJ, Tomo I, pág. 236.
11 Cf. o Ac. do STJ de 4/5/2005, proc. nº 1263/05, da 3.ª secção. É o que também se diz no Ac. do STJ de 25/1/2006 (p. 05P3460-Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt).
12 A que é aplicável, em abstracto, pena de prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI.
13 Cfr. acórdão do STJ de 15-4-2010, processo n.º 17/09.0PJAMD.L1.S1.
14 Proferido no processo n.º 127/09.3PEFUN.S1.
15 Ac. da RP de 20/11/2013 (p. 832/10.1JAPRT-A.P1 - Maria do Carmo Silva Dias).
16 Os aludidos pressupostos consistem no perigo de fuga, perigo de perturbação da investigação (ou da aquisição da prova), ou perigo de continuação da actividade criminosa ou da perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
17 Que tem sede constitucional no artigo 18º, nº 2, 2ª, parte da CRP.
18 A medida só será legítima se a que se segue (na escala decrescente da gravidade) não assegurar o fim cautelar visado e for proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
19 Como disse Figueiredo Dias (cit. no referido Ac. da RP de 20/11/2013), exige-se que só sejam aplicadas ao arguido «as medidas que ainda se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente».
20 Cujo nº 1 dispõe: «As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas».
21 Na verdade, como refere o Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, II, 4º ed., p., «Não basta (…) a admissibilidade em abstracto da aplicação ao arguido de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial; importa que ela se mostre necessária no caso concreto, objectiva e subjectivamente. Em cada caso é preciso que a medida se mostre objectivamente idónea para assegurar a finalidade para que a lei a permite, mas é preciso também que ela se mostre necessária para realizar esse mesmo fim, o que significa que não pode prosseguir-se uma finalidade distinta da prevista da lei, pois isso seria utilizar uma norma de cobertura para defraudar o direito fundamental cuja limitação está legalmente preordenada à satisfação de fins legítimos previstos pela lei.».
22 Maia Costa, “Prisão preventiva: medida cautelar ou pena antecipada?”, RMP nº 96, Out/Dez 2003, p. 98, citado no Ac. da RP já referenciado. Acrescenta o mesmo Autor que «se se extravasar esse sentido cautelar, a medida adquire inevitavelmente um carácter punitivo, ilegítimo porque o arguido goza ainda da presunção de inocência».
23 Neste sentido decidiram os Acs. do S.T.J. de 10/10/2007, com o nº de proc. 07P3780, e de 04/12/2008, com o nº de proc. 08P3934, da R.C. de 16/04/2008, com o nº de proc. 224/05.4JACBR.C1, e da R.E. de 26/06/2012, com o nº de proc. 506/11.6GFLLE-A-E1, todos publicados na Internet, em www.dgsi.pt. O mesmo entendimento é perfilhado por Maia Costa, no comentário nº 5 ao art. 202º, in Código de Processo Penal Comentado, Conselheiros Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, Ed. Almedina, 2014.
24 In ob. cit., p. 301.
25 Maia Costa, “Prisão preventiva: medida cautelar ou pena antecipada?”, RMP nº 96, Out/Dez 2003, p. 98, citado no Ac. da RP já referenciado. Acrescenta o mesmo Autor que «se se extravasar esse sentido cautelar, a medida adquire inevitavelmente um carácter punitivo, ilegítimo porque o arguido goza ainda da presunção de inocência».