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COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRANSPORTE AÉREO
CONVENÇÃO DE MONTREAL
Sumário
1. Existindo fonte normativa internacional ou supranacional reguladora da competência internacional, será de afastar a aplicação das regras ínsitas na lei processual civil interna. 2. Tendo a causa de pedir e o pedido por base o Regulamento (CE) n.º 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Fevereiro de 2004, torna-se necessário apurar qual o regime normativo adjectivo aplicável para se apurar da competência internacional, dado que aquele não consagra regras sobre tal excepção. 3. É inaplicável o Regulamento (CE) n.º 1215/2012 nas situações em que a demandada tem sede social, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal, domiciliados em Estado extra-comunitário, não se enquadrando em qualquer das previsões do art.º 7.º de tal Regulamento. 4. Por via da aplicação do art.º 6.º, n.º 1 de tal Regulamento (CE) n.º 1215/2012, a competência internacional será então regida pela lei desse Estado-Membro. 5. No caso, estando em causa uma situação de atraso excessivo de um voo e tendo em consideração que parte dos serviços correspondentes ao contrato de transporte aéreo terão sido prestados em Lisboa e outra parte em Marrocos, por via do estabelecido no art.º 62.º, al. b) do CPC podiam os AA. escolher o país onde intentar a acção.
Texto Integral
I - RELATÓRIO
MA… e DA…, intentaram acção declarativa sob a forma de processo comum contra Compagnie Nationale Royal Air Maroc - Sucursal em Portugal, com domicílio na Edifício Goya - Avenida 5 de Outubro, 73-C, 1º, Sala 6, 1050-049 Lisboa, tendo formulado o seguinte pedido:
“a) ser a Ré condenada a pagar uma indemnização a cada um dos Autores, no valor de € 250,00 cada, num total de € 500,00, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação da Ré até efetivo e integral pagamento; (…).”
Como fundamento/causa de pedir do mesmo, sustentaram que os voos que realizaram com a Companhia aérea marroquina, com partida de Lisboa e destino final Marraquexe (com escala em Casablanca) apresentaram um atraso global superior a três horas dando direito a uma indemnização, pelo valor que peticionaram enquadrável no âmbito do art.º 7.º do Regulamento 261/2004 (CE).
A Ré apresentou contestação, tendo invocado a excepção da incompetência internacional, defendendo não serem os tribunais portugueses competentes para apreciar o presente litígio.
Os Autores responderam a tal excepção pugnando para que se decidisse no sentido da competência dos tribunais portugueses para conhecer da acção.
No despacho de condensação a Exma. Juíza pronunciou-se sobre a invocada excepção, sendo que a tal propósito proferiu a seguinte decisão:
«Da competência internacional A competência internacional designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídica estrangeiras. É em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição, que cabe determinar a competência do tribunal para conhecer da causa. Como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.04.2019, in www.dgsi.pt “A competência internacional dos tribunais portugueses traduz-se na competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspectiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresentam também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa. (sublinhado e bold nosso) Ora, no presente caso era no aeroporto de Lisboa que os serviços contratados deveriam ser prestados, e foi aqui que no entender do Autor se deu o incumprimento face ao cancelamento do voo. Pelo exposto, afigura-se que este Tribunal é internacionalmente competente para conhecer da presente acção, indeferindo-se a excepção invocada. Notifique.»
Inconformada com tal decisão veio a Ré recorrer da mesma, tendo apresentado as suas alegações, nas quais verteu as seguintes conclusões: «a. Nos presentes autos a ora Recorrente alegou, em sede de contestação, a verificação da exceção dilatória de incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses. b. Não obstante a exaustiva exposição da Recorrente, o Tribunal a quo apresentou uma decisão que se julga, salvo o devido respeito, de considerável incompletude, padecendo do vício de falta de fundamentação. c. Com efeito, na fundamentação do Tribunal não se encontra uma única referência à norma jurídica que justifica a sua decisão, sendo esta totalmente fundada em factos. d. Ademais, verifica-se um lapso do Tribunal, porquanto o fundamento do pedido dos Autores é o atraso do voo, e não o seu cancelamento. e. Acresce que não é a existência de um atraso “per se” que faz emergir na esfera jurídica do passageiro o direito a uma compensação, pois que, nos termos do Regulamento (CE) n.º 261/2004, só quando o passageiro chega ao destino final é que se poderá atestar, face ao tempo do atraso existente (se superior a 3 horas desde a hora contratada), se esse direito a uma compensação existe ou não na esfera jurídica do mesmo. f. Termos em que, sem fundamentação de direito, e com base no único fundamento de facto referido no Despacho ora apreço, apenas se pode concluir que a decisão é nula por falta de fundamentação, nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1, al. b do CPC, ex vi artigo 613.º, n.º3. g. Subsidiariamente, entende a Recorrente que errou o Tribunal “a quo” quando decidiu pela competência internacional dos Tribunais Portugueses para conhecer a presente causa. h. Nos presentes autos, os Autores, tendo adquirido bilhete para os voos n.º AT… e AR… operado pela Ré, com partida de Lisboa (LIS) e chegada a Marraquexe (RAK), pretendem que o Tribunal aprecie e decida do seu direito a serem indemnizados pelo atraso desses voos, nos termos do artigo 7.º do Regulamento (CE) n.º 261/2004. i. Deverá ser em relação a esse contrato de transporte, entre LIS e RAK, causa de pedir dos autos em apreço no Tribunal a quo, que se deve determinar a competência do Tribunal. j. O contrato de transporte sub judice foi celebrado através da Agência de Viagens eDreams (com sede em Madrid, Espanha – facto público e notório), para um voo operado por uma companhia aérea de origem e com sede em Marrocos (facto público e notório), voo esse com destino também a Marrocos, em particular, a Marraquexe. k. Sendo o contrato de transporte aéreo internacional a base contratual que sustenta o direito que o Recorrido alega deter contra a Recorrente, impõe-se que se atendam às regras que regem este tipo de contrato para se aferir qual o Tribunal competente para apreciação do mesmo e da eventualidade da existência de um direito a uma compensação pelo seu cumprimento defeituoso. l. Dispõe o artigo 59.º do Código de Processo Civil que “os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”. m. Assim é “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais”. n. Nestes termos, enquadrando-se a matéria objeto do litígio no âmbito de uma relação contratual de natureza obrigacional estabelecida entre o Recorrido e a Recorrente e não tendo sido convencionado qualquer pacto privativo de atribuição de jurisdição (artigo 94.º do CPC), então, por força do princípio do primado do direito internacional sobre o direito interno (cfr. artigo 8.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), a competência internacional para a apreciação do litígio das partes decorre, em primeira linha, das normas de fonte internacional. o. Considera a Recorrente que a competência dos tribunais portugueses para julgar a situação em apreço será determinada, em exclusivo, pela Convenção de Montreal – Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, transposta para a ordem jurídica portuguesa através do Decreto-Lei n.º 39/2002 de 27 de novembro e que se aplica a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronave efetuadas a título oneroso. p. Estas regras são regras de carácter e aplicação exclusiva, como resulta do texto da própria Convenção e da sua antecessora, ainda em vigor, a Convenção de Varsóvia, até porque só assim serviria o seu propósito máximo de uniformização de certas regras no domínio do transporte aéreo internacional! q. Neste sentido veja-se a mais recente decisão do Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 9, no âmbito do processo n.º 25148/18.1T8LSB, onde decidiu expressamente que “…[o] artigo 35º da Convenção de Montreal não é incompatível com as disposições do Regulamento [(CE) n.º 261/2004], podendo e devendo ser conjugadas na aplicação ao caso concreto, porquanto não se excluem. Antes pelo contrário, o mencionado artigo 29º da Convenção prevê expressamente a aplicação de normas como a do artigo 35º, em ações intentadas com fundamentos não expressamente previstos na Convenção” – cfr. documento n.º 1 já junto. r. Sendo certo que a decisão supramencionada se referia ao prazo de prescrição previsto na Convenção de Montreal, a mesma fundamentação é forçosamente aplicável às normas de competência previstas nessa Convenção – pois, reforce-se, só assim estas convenções servem o seu propósito máximo, da uniformização de certas regras sobre o contrato de transporte aéreo internacional. s. Com efeito, sendo as indemnizações por força de cancelamentos, atrasos de voos ou recusa de embarque devidas ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 261/2004, um complemento das indemnizações devidas ao abrigo da Convenção de Montreal, não se compreende de que forma se poderia defender que uma e outra compensação fossem conhecidas e apreciadas por jurisdições diferentes – o que inviabilizaria todo o sistema e propósito desse objetivo máximo da uniformização internacional das regras! t. Resulta do artigo 33.º da Convenção de Montreal que foi intenção do legislador subordinar a competência para as ações aí previstas ao (i) local da sede da transportadora, (ii) ao local do estabelecimento da transportadora onde tenha sido celebrado o contrato, ou (iii) ao local de destino. u. Aplicando este artigo 33.º da Convenção de Montreal ao presente caso, verifica-se que tanto a “sede da transportadora” como o “local de destino” se situam em Marrocos, sendo assim inequívoco que, nos termos das regras adotadas, são os tribunais desse local os competentes para apreciar o presente litígio. v. A este propósito, não se diga que Lisboa / Portugal corresponde ao “estabelecimento [da transportadora] em que tenha sido celebrado o contrato”, uma vez que em momento algum se prova a intervenção da sucursal portuguesa da Recorrente na celebração do contrato. w. Aliás, e pelo contrário, os documentos juntos à Petição Inicial demonstram que os Autores terão adquirido os seus bilhetes à Agência de Viagens eDreams que, ademais, tem sede em Madrid, Espanha (facto público e notório). x. Reitere-se que, muito embora o fundamento do pedido dos Autores seja a indemnização prevista no Regulamento (CE) n.º 261/2004, a Convenção de Montreal “…aplica-se a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronave efectuadas a título oneroso” (cfr. artigo 1.º, n.º 1), em especial as matérias relativas ao contrato de transporte aéreo internacional que não se encontram previstas no referido regulamento, como a competência judiciária. y. Neste sentido, também da regra constante no artigo 29.º da Convenção de Montreal resulta que “No transporte de passageiros, bagagens e mercadorias, as ações por danos, qualquer que seja o seu fundamento, quer este resida na presente Convenção, em contrato, em acto ilícito ou em qualquer outra causa, só podem ser intentadas sob reserva das condições e limites de responsabilidade previstos na presente Convenção…”. z. Vejam-se, a propósito da prevalência das normas da Convenção de Montreal sobre as demais normas nacionais, as sentenças proferidas no âmbito dos processos n.º 21348/17.0T8LSB, 14486/18.3T8LSB e 5884/17.0T8LSB, cfr. documentos n.º 2 a 4 já juntos. aa. Pelo que, inexistindo regra específica no Regulamento (CE) n.º 261/2004 sobre a competência judiciaria, isto é, sobre a jurisdição onde devem ser intentadas as ações por danos, não se vislumbra razão para que essa lacuna não seja preenchida com a norma constante no artigo 33.º da Convenção de Montreal, que, para além de ser o quadro normativo adotado por Portugal (e neste caso, também por Marrocos), como direito interno, para reger o contrato de transporte aéreo internacional de pessoas e bens, também consagra no seu normativo o princípio da exclusividade da aplicação dessas mesmas normas. bb. No caso em apreço, o local da sede da transportadora é Marrocos, o contrato não foi celebrado com a transportadora, mas sim com uma Agência de Viagens com sede em Madrid, e o voo tinha destino a Marraquexe, Marrocos. cc. Pelo que, até através da aplicação do princípio de Direito Internacional Privado da conexão mais estreita, seria forçoso concluir que são os Tribunais Marroquinos os tribunais competentes para apreciar o presente caso. dd. Ademais, sendo que o direito a uma compensação por atraso de um voo apenas emerge na esfera jurídica do passageiro no momento em que este aterra no destino final (e apenas se tal aterragem ocorrer com um atraso superior a 3 horas face a hora contratada), ainda mais notório e óbvio se afirma que a conexão com o aeroporto de partida do voo não é de todo relevante para efeitos de uma ação por danos num contrato de transporte aéreo internacional, e muito menos, para aferição da jurisdição competente, como o Tribunal “a quo” quer fazer valer. ee. Esclareça-se ainda que não existem fundamentos para argumentar que os tribunais portugueses são competentes nos termos da alínea c) do artigo 62.º do CPC. ff. Dispõe a alínea c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real. gg. Atentos os factos sub judice e o tribunal efetivamente competente (tribunais Marroquinos), não se pode concluir que o direito apenas se possa efetivar por meio de ação proposta em Portugal, nem que constitua para os Autores uma dificuldade apreciável na sua propositura, tanto que tal nem foi invocado. hh. Resulta assim do supra exposto, que não há qualquer razão para que a ação não possa ser proposta no tribunal efetivamente competente, não se podendo alegar que tal constitui uma restrição ao alegado direito de indemnização dos Autores, porquanto tal não constitui qualquer ónus excessivamente oneroso e que impeça o seu acesso ao direito e aos tribunais. Nestes termos, e nos demais de Direito aplicáveis, deverá ser declarada a nulidade da sentença por falta de fundamentação, com todas as consequências legais; Caso assim não se entenda, deverá ser concedido provimento ao Recurso interposto pela Recorrente, revogando-se, em consequência, o Despacho de Ref.ª 387140277 na parte em que considerou não verificada a exceção de incompetência absoluta do Tribunal e, em consequência, ser a Ré absolvida da instância, assim se fazendo o que é de Lei e de Justiça!»
Os Autores não apresentaram contra-alegações.
Por ocasião da prolação do despacho que recebeu o recurso, face à invocada nulidade por falta de fundamentação arguida pela apelante nas suas alegações, veio a Exma. Juíza de Direito proferir o seguinte despacho:
«(…). Vem a recorrente invocar a nulidade da decisão quanto à competência internacional por falta de fundamentação. Nos termos do artº 617º nº 1 e 2 do CPC, e porque a nossa fundamentação foi efectivamente sucinta e pode ser desenvolvida para que a recorrente dela se possa melhor aperceber, passa-se a suprir a nulidade, da seguinte forma: - Determina o artº 62.º alínea b) do CPC que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando tenha sido praticado no território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram. A causa de pedir na presente acção é o atraso no voo AT… que, partindo do Aeroporto de Lisboa, chegou ao destino com um atraso que, por sua vez, impediu os AA. de embarcarem no voo AT…. Tem assim a causa de pedir, que serve de fundamento à acção, conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa visto que é o atraso do voo que parte de Lisboa que origina o atraso dos AA na chegada ao destino e que consequentemente justifica a obrigação de indemnizar (para os AA). Termos que os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da presente acção. Notifique. (…).»
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é limitado e definido pelas conclusões das alegações da recorrente.
São duas as questões suscitadas:
a- Nulidade do despacho por falta de fundamentação
b- Erro de direito, na medida em que a competência internacional para conhecer da acção estará cometida aos tribunais de Marrocos e não aos Portugueses
III – FUNDAMENTOS
1. De facto
Os factos relevantes para a apreciação do recurso (não contraditados pelas partes) são os seguintes:
1- Os Autores adquiriram, através da Agência de Viagens online eDreams, bilhetes para dois voos da Ré, programados para dia 30 de Abril de 2018: (i) AT… Lisboa (LIS) / Casablanca (CMN); ii) AT… Casablanca (CMN) / Marraquexe (RAK)
2- O voo AT… tinha partida programada de LIS às 17:10h e chegada programada a CMN às 18:30h. (vide histórico de reserva: 000/007 CS/AT … R 30APR 1 LISCMN HK2 1710 1830/NN *1A/E*).
3- E o segundo voo, de Casablanca para Marraquexe, o voo AT…, tinha partida programada de CMN às 19:20h e chegada programada a RAK às 20:10h (vide histórico de reserva: 000/007 CS/AT … R 30APR 1 CMNRAK HK2 1920 2010/NN *1A/E*).
4- No dia 30 de abril de 2018, o voo AT… sofreu um atraso.
5- Este atraso causou a chegada a CMN num horário que não permitiu aos passageiros embarcar no contratado voo AT…, o qual tinha partida de Casablanca programada às 20:35h e hora programada de chegada a Marraquexe às 21:25h.
6- A Ré procedeu ao reencaminhamento dos passageiros, ora AA., para o voo de conexão imediatamente seguinte, o voo AT…, com partida programada de CMN 22:50h e chegada programada às 23:40h.
2. De direito
a- Nulidade do despacho por falta de fundamentação
No tocante a esta questão, em que a Apelante refere que a decisão será nula por falta de fundamentação (art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC), dado ser muito sintética, não conter sequer os normativos legais em que se alicerça e indicar, por lapso, um facto que não terá sido invocado – cancelamento do voo – e não retardamento do voo, há que ter presente que a Exma. Juíza no despacho de recebimento do recurso veio suprir tal nulidade, em conformidade com o disposto no art.º 617.º, n.º 2 do CPC, de acordo com o despacho acima indicado.
Notificadas as partes desse despacho os mesmos nada vieram dizer.
Entendemos que o despacho em causa, pelas menções normativas que fez, pela explicitação que realizou e pelo lapso que corrigiu, supriu efectivamente a nulidade inicialmente arguida, pelo que nada mais teremos a acrescentar sobre tal questão.
b- Erro de direito, na medida em que a competência internacional para conhecer da acção estará cometida aos tribunais de Marrocos e não aos Portugueses
Entende a Recorrente que ao caso em apreço será aplicável a Convenção de Montreal (celebrada nessa cidade em 28/05/1999), dado que Portugal a subscreveu e introduziu no seu ordenamento jurídico interno através do Dec.-Lei n.º 39/2002 de 27/11). É a partir desse pressuposto que elabora a sua tese no sentido de que os tribunais portugueses serão internacionalmente incompetentes para conhecer e decidir a acção deduzida pelos AA..
Vejamos se assim é.
Concordamos com a Recorrente quando sustenta que existindo fonte normativa internacional ou supranacional reguladora da competência internacional, será de afastar a aplicação das regras ínsitas na lei processual civil interna (como expressamente decorre do art.º 59.º do CPC).
Tal princípio é emanação do art.º 8.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, onde se refere que “as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna portuguesa após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português”.
A ser assim, como se entende que é, importará apurar qual, ou quais, os instrumentos normativos internacionais ou supranacionais aplicáveis ao caso passíveis de regular a questão da competência internacional e se será neles que encontraremos a solução para aferir da mesma.
Verificamos que os AA. deduziram a presente acção com base em causa de pedir que assenta os seus alicerces no Regulamento (CE) n.º 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Fevereiro de 2004, o qual estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque, de cancelamento ou atraso considerável dos voos (que revogou o anterior Regulamento (CEE) nº 295/91).
Ora, este Regulamento, no que concerne ao seu âmbito de aplicação, estipula no seu art.º 3.º, n.º 1 que o mesmo se aplica “Aos passageiros que partem de um aeroporto localizado no território de um Estado-Membro a que o tratado se aplica [alínea a)]; […]. 2. O disposto no n.º 1 aplica-se aos passageiros que: a) disponham de uma reserva confirmada para esse voo em questão…[…]. […] 5. O presente Regulamento aplica-se a qualquer transportadora aérea operadora que forneça transporte de passageiros abrangidos pelos n.ºs 1 e 2. Sempre que uma transportadora aérea operadora, que não tem contrato com o passageiro, cumprir obrigações impostas pelo presente regulamento, será considerado como estando a fazê-lo em nome da pessoa que tem contrato com o passageiro. [… ].”
Este Regulamento não nos apresenta a solução para a questão da determinação da competência internacional, sendo que teremos de nos socorrer de outros instrumentos para a alcançar.
No seio da União Europeia, atenta a data a que se reportam os factos (2018), rege o Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro [aplicável desde 10 de Janeiro de 2015], que se refere à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
Sucede que a demandada Ré, pelos elementos constantes dos autos, terá a sua sede social, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal, domiciliados no Reino de Marrocos.
Desta forma, tendo presente que ao caso será inaplicável o disposto no art.º 7.º do indicado Regulamento 1215/2012, uma vez que Marrocos é um Estado terceiro (o preceito em causa só é aplicável a pessoas domiciliadas em Estados-Membro, sendo que tal domiciliação, no que concerne a pessoas colectivas, obedece ao que é estabelecido no art.º 63.º do diploma[1]), será de aplicar o que dispõe o n.º 1 do art.º 6.º daquele normativo, que refere:
“1. Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro.”
Encontramo-nos assim perante uma situação em que o “Regulamento não regula”, antes “remete”, o que se traduz na “falta de inserção no respectivo âmbito espacial de aplicação”[2], sendo, pois, de concluir pelo afastamento do regime do Regulamento n.º 1215/2012.
Em idêntico sentido se pronunciou também o acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 07 de Março de 2018, no âmbito do Reenvio prejudicial, referente aos processos C-274/16, C-447/16 e C-448/16[3].
Não sendo assim aplicável ao caso o Regulamento(UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, que como vimos regula a questão da competência judiciária em matéria civil e comercial para os Estados-Membros, teremos de questionar se será aplicável ao caso a Convenção de Montreal, como refere a Apelante.
Esta “Convenção para a Unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional” foi celebrada em Montreal a 28 de Maio de 1999, no âmbito da Organização Internacional de Aviação Civil (ICAO).
Foi assinada por Portugal, em 28/05/1999, aprovada e publicada pelo Decreto-Lei nº 39/2002, de 27 de Novembro, tendo o instrumento de ratificação sido depositado em 03/03/2003[4].
O Reino de Marrocos encontra-se igualmente vinculado a tal convenção, como se pode comprovar pelo site do ICAO (International Civil Aviation Organization) United Nations Specialized Agency – depositária da convenção[5].
A ser assim, tendo os dois países aderido à aludida Convenção de Montreal e uma vez que o pedido formulado na presente acção é feito com fundamento no Regulamento n.º 261/2004, importará saber se nos deveremos socorrer das normas nela insertas, designadamente das que se referem à questão da competência, ou, na negativa, e decorrentemente da já mencionada inaplicabilidade do Regulamento n.º 1215/12, e do que o art.º 6.º, n.º 1 deste estabelece, se deveremos aplicar a legislação nacional sobre a presente questão da competência internacional.
Ora, tem sido entendido, designadamente na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que as indemnizações previstas no Regulamento n.º 261/2004 e na aludida Convenção, pese embora se reportem ambas a factos derivados de danos decorrentes de transporte aéreo, assumem natureza diversa, têm um âmbito material de aplicação diverso.
Veja-se o que a tal propósito é referido no acórdão de 9 de Julho de 2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation)[6], em termos que aqui se transcrevem:
«(…). 26. Antes de proceder ao exame das questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, deve assinalar‑se, a título preliminar, que certas observações apresentadas no Tribunal de Justiça suscitaram a questão da aplicabilidade, numa situação como a do processo principal, do artigo 33.° da Convenção de Montreal para determinar o órgão jurisdicional competente. 27. Note-se, a este respeito, que o direito alegado no caso em apreço pelo requerente no processo principal, que se baseia no artigo 7.° do Regulamento n.° 261/2004, constitui um direito a indemnização fixa e uniformizada do passageiro, na sequência do cancelamento de um voo, direito que é independente da reparação de danos no quadro do artigo 19.° da Convenção de Montreal (v. acórdão de 10 de Janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C-344/04, Colect., p. I-403, n.ºs 43 a 46). Assim, os direitos baseados, respectivamente, nas referidas disposições do Regulamento n.° 261/2004 e da Convenção de Montreal são regulados por quadros normativos diferentes.
(…).»[7]
Sendo este o entendimento de tal Tribunal de Justiça da União Europeia a que devemos respeito, dúvidas não subsistem de que na sequência do que dissemos supra, teremos de nos socorrer do nosso quadro normativo processual interno para aferirmos da invocada questão da competência territorial para a acção, posto que nesta o pedido é formulado exclusivamente ao abrigo do Regulamento 261/2004 (seu art.º 7.º).
Refere-se na decisão recorrida:
«(…). Determina o art.º 62.º alínea b) do CPC que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando tenha sido praticado no território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram. A causa de pedir na presente acção é o atraso no voo AT… que, partindo do Aeroporto de Lisboa, chegou ao destino com um atraso que, por sua vez, impediu os AA. de embarcarem no voo AT….»
Afigura-se-nos, no contexto apresentado e face a tudo o que se deixou dito, ser correcta tal decisão, pois que também nós consideramos que parte dos serviços correspondentes ao contrato de transporte aéreo terão sido prestados em Lisboa.
Acompanhamos aqui o decidido no acórdão do TJUE de 09/07/2009[8], onde se pode ler:
«(…). Os serviços cuja prestação corresponde ao cumprimento das obrigações decorrentes de um contrato de transporte aéreo de pessoas são o registo assim como o embarque dos passageiros e o acolhimento destes últimos a bordo do avião no lugar de descolagem estipulado no contrato de transporte, a partida da aeronave à hora prevista, o transporte dos passageiros e das suas bagagens do lugar de partida para o lugar de chegada, o acompanhamento dos passageiros durante o voo e, finalmente, o desembarque destes, em condições de segurança, no lugar de aterragem e à hora que esse contrato fixa. Ora, os únicos lugares que apresentam uma conexão directa com os referidos serviços são os de partida e de chegada do avião, entendidos como os que estão estipulados no contrato de transporte. Os transportes aéreos constituem, devido à sua própria natureza, serviços prestados de maneira indivisível e unitária desde o lugar de partida ao lugar de chegada do avião, de modo que não se pode distinguir, neste caso, uma parte distinta da prestação que constituiria a prestação principal, realizada num lugar preciso. Cada um desses dois lugares apresenta um nexo suficiente de proximidade com os elementos materiais do litígio que permite assegurar a conexão estreita entre o contrato e o órgão jurisdicional competente, de acordo com os objectivos de proximidade e de certeza jurídica, que são prosseguidos pela concentração da competência judiciária no lugar de prestação dos serviços, e pela determinação de uma competência judiciária única para todas as pretensões baseadas num contrato. (…).»
No caso em apreço, atenta a factualidade apurada, poderiam os autores optar por interpor a acção em Portugal, ou em Marrocos, pois que os serviços correspondentes ao contrato de transporte aéreo celebrado foi concretizado parcialmente nos dois países.
Os Autores escolheram Portugal e essa escolha é legalmente admissível, como se referiu, inserindo-se no que dispõe a alínea b) do art.º 62.º do CPC.
Temos assim que concluir que será de confirmar a decisão recorrida, muito embora com base em argumentação distinta da que resulta daquela.
IV – DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam os juízes desembargadores que integram o presente colectivo em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, embora com base em argumentação diversa.
Custas pela Apelante.
Lisboa, 11/12/2019
José Maria Sousa Pinto
Jorge Vilaça Nunes
João Vaz Gomes
_______________________________________________________ [1] “Artigo 63.º 1. Para efeitos do presente regulamento, uma sociedade ou outra pessoa coletiva ou associação de pessoas singulares ou coletivas tem domicílio no lugar em que tiver: a) A sua sede social; b) A sua administração central; ou c) O seu estabelecimento principal. (…).” [2] Nas palavras da Exma Senhora Juiza Conselheira Maria da Graça Trigo (eminente especialista nestas matérias) no âmbito do acordão de 03/10/2019, no Recurso 262/18.7T8LSB-A.L1 S1, em que foi Relatora. [3]In curia.europa.eu [4] cfr. Aviso nº 142/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 07/05/2003 [5]https://www.icao.int/Secretariat/Legal/Pages/TreatyCollection.aspx [6]In curia.europa.eu [7] Sublinhado nosso. [8] Processo C-204/08, in in curia europa.eu, citado pelos AA na sua resposta à contestação.