I. A revisão do Código Penal de 2007 visou incluir novas circunstâncias na enumeração do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, nomeadamente a relação conjugal, presente ou passada, ou análoga [al. b)], sem modificação de alcance ou de sentido da justificação do tipo qualificado de homicídio previsto neste preceito, inserindo idêntica circunstância no tipo de crime de violência doméstica (artigo 152.º).
II. A criminalização insere-se na linha das obrigações impostas pela Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Istambul, 11.05.2011), ratificada por Portugal (RAR n.º 4/2013, e DPR n.º 13/2013, de 21 de Janeiro), a qual define a «violência doméstica» como abrangendo «todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima». Na acepção da Convenção, o conceito de violência doméstica abrange as situações que podem constituir os crimes de homicídio qualificado [artigo 132.º, n.º 2, al. b)] e de violência doméstica [artigo 152.º, n.º 1, al. b)].
III. Estando provado que o arguido e a vítima viveram em coabitação, numa situação de comunhão de vida, durante cerca de 4 anos, que a morte da vítima resulta dessa vivência pessoal, em quebra brutal da relação, por ciúme, deve concluir-se que se mostra preenchida a circunstância prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, com o efeito indiciador de especial censurabilidade ou perversidade do facto homicida, requerendo punição com fundamento na qualificação do crime de homicídio nos termos do n.º 1 deste preceito.
IV. Para que a relevante diminuição da culpa, para efeitos do preenchimento do tipo de crime de homicídio privilegiado (art. 133.º do CP), possa ocorrer por virtude de emoção violenta, torna-se necessário que o agente cometa o crime sob um estado emocional que dele se apoderou, provocado por uma situação pela qual não pode ser censurado, em reacção agressiva a essa situação.
V. Não se retira da matéria de facto provada que o recorrente, no momento em que decidiu praticar o facto, estivesse afectado por uma situação exterior que lhe tenha causado um estado emocional que o tenha levado a agir nestes termos. Se, como resulta dos factos provados, o arguido agiu «movido por ciúmes», importa notar que tal sentimento ou estado de afecto perdurava já, pelo menos, por seis meses, sendo causa de «disputas verbais» entre este e a vítima, e que, apesar disso, mantinham a relação de coabitação, não surgindo este como um elemento novo que tenha provocado uma alteração emocional que dele se apoderou na noite em que foi praticado o crime.
VI. Mostram os factos provados que a decisão de matar, livre e consciente, se seguiu a uma reflexão de «algumas horas», que terminou com a fria escolha do momento e do meio apto a produzir a morte nas circunstâncias determinadas pela vontade do arguido, devendo concluir-se que o homicídio foi cometido com «frieza de ânimo» e «reflexão sobre os meios empregados», nos termos da al. j) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal.
VII. Verificado que o crime de homicídio resulta qualificado por uma das circunstâncias deste preceito – desde logo a da al. b) –, deverão as outras duas ser consideradas com efeito de agravação para determinação da pena, de acordo com o critério estabelecido artigo 71.º, como tem sido decidido em jurisprudência constante deste tribunal.
8. Não se podendo fundar em considerações preventivas de ordem geral pressupostas na definição dos crimes e das molduras abstractas das penas, em vista da adequada protecção dos bens jurídicos em causa, sob pena de violação da proibição da dupla valoração, a determinação da pena dentro da moldura penal correspondente ao crime praticado, de 12 a 25 anos de prisão, há-de comportar-se no quadro e nos limites da gravidade dos factos concretos, nas suas próprias circunstâncias concorrentes por via da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal), isto é, em função da gravidade do ataque ao objecto da acção levada a efeito pelo arguido, tendo ainda em conta as finalidades de prevenção especial de ressocialização
IX. Para além das circunstâncias anteriormente reveladoras de especial perversidade e censurabilidade [frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregados – al. j) do n.º 2 do artigo 132.º], militam contra o arguido o modo de execução do facto – o deitar da vítima sobre o braço, o enrolamento da corda à volta do pescoço da vítima enquanto esta dormia, o apertar da corda com força e persistência depois de esta acordar e tentar resistir, tudo isto após, horas antes, terem tido relações de sexo na cama que partilhavam –, a forte intensidade do dolo directo, o sentido de posse manifestado no cometimento do crime, movido por ciúme, aproveitando-se do facto de a vítima se encontrar a dormir, sem capacidade de se aperceber do arguido e de lhe opor defesa, e o comportamento imediatamente posterior à consumação do crime (o vestir do corpo da arguida, que enrolou num lençol, e o aguardar até que amanhecesse) [circunstâncias das alíneas a), b), c) e e) do n.º 2 do artigo 71.º].
X. Sendo muito elevados o grau de culpa e as exigências de prevenção geral, embora não se evidenciem especiais exigências decorrentes das necessidades de prevenção especial, numa consideração global das circunstâncias relativas ao facto e ao agente relevantes para determinação da pena, a que se refere o artigo 71.º do Código Penal, não se surpreendem elementos que, na definição do substrato de facto, permitam constituir justificada base de um juízo de discordância relativamente à pena aplicada, de 18 anos de prisão, por violação do critério de proporcionalidade que se impõe em vista da realização das finalidades que presidem à sua aplicação.
1. Por acórdão de 1 de Abril de 2019, proferido pelo tribunal colectivo do Juízo Central Criminal de … (Juiz …), foi o arguido AA, melhor identificado nos autos, condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e j), do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão.
2. Discordando da qualificação jurídica dos factos provados e da pena aplicada, recorre o arguido apresentando motivação em que conclui nos seguintes termos (transcrição):
«I. O presente recurso tem como objecto o reexame da matéria de direito, porquanto o recorrente discorda da qualificação jurídica aplicada aos factos dados como provados.
II. O aqui recorrente foi condenado pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, b) e j), do Código Penal, na pena de 18 anos de prisão.
III. Com efeito, o arguido, aqui recorrente, discorda da qualificação jurídica dos factos, porquanto no seu entender, não se verifica o preenchimento do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, nº. 1 e n.º 2, b) e j) do Código Penal.
IV. É entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, que as circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132.º do Código Penal, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente, e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa.
V. Dos autos, resultou provado que: "2- por motivos relacionados com ciúmes da parte do arguido, a relação, nos últimos 6 meses, pautava-se por disputas verbais. 3 - Há cerca de 3 semanas o arguido, após visualizar mensagens no telemóvel de BB, apercebeu-se que a sua companheira manteria uma relação com outra pessoa, após o que a confrontou e, não obstante aquela manifestar dúvidas quanto a manter a relação com o arguido, chegando a fazer juízos comparativos entre os dois, continuaram a partilhar cama, mesa e habitação. “(…)
VI. Como já acima foi referido, e no que diz respeito às relações agente/vítima previstas na al. b), elas constituem indícios de uma especial censurabilidade, mas que contudo, não se verifica automaticamente em função delas, como é próprio do método exemplificador ou técnica dos exemplos-padrão, ora, do douto acórdão, resulta provado, que o arguido, aqui recorrente e a vítima já coabitavam há cerca de 4 anos, sendo que nos últimos 6 meses já tinham frequentes disputas verbais e nas últimas 3 semanas, o arguido descobriu que ela teria uma relação com um outro companheiro, com o qual havia iniciado uma nova relação amorosa.
VII. Tais factos, foram também confirmados pelo próprio arguido, nas suas declarações e a circunstância do arguido, recorrente, à data dos factos estar a viver na mesma casa com a vítima, embora com conflitos há 6 meses, não pode por si só fazer operar a qualificação prevista na alínea b) do artigo 132.º do Código Penal, isto porque nessa mesma altura, a vítima até já possuía um novo relacionamento.
VIII - Além de que, a violação dos deveres conjugais previstos especialmente no artigo 1672.º do Código Civil não necessita de passar obrigatoriamente pela qualificação do crime de homicídio para relevar a nível da medida da pena, pois bastaria atentar no disposto no artigo 71.º, n.º, 2, a), do Código Penal, nomeadamente quando manda atender ao «grau de violação dos deveres impostos ao agente», pelo que neste caso permite o afastamento da alínea b) do artigo 132.º do Código Penal.
IX - Contudo, a violação dos deveres conjugais também é imputável à vítima, que ainda no estado de unida de facto com o recorrente, passou a ter relações com outra pessoa.
X - Face à prova existente nos autos, não se poderia dar como provado que o arguido tenha actuado com culpa grave, pois o infeliz episódio apenas se deu, após uma discussão entre o recorrente e a vítima na fatídica noite, conforme se comprova pelo depoimento do arguido.
XI - A discussão existente, antes do trágico final, deverá ser um elemento que deveria ter merecido especial ponderação, no momento da fixação da medida da pena, pois tal situação causou necessariamente uma perturbação na capacidade de decisão do arguido, e que afectou a sua vontade.
XII - O arguido, estava possuído por uma imputabilidade diminuída, o que é incompatível com um homicídio qualificado, que pressupõe um tipo especial agravado de culpa e constituindo a imputabilidade a capacidade de, no momento da prática do facto, o agente avaliar a sua ilicitude e se determinar de acordo com essa avaliação, desse modo, as circunstâncias em que ocorreu a morte de BB são de molde a excluir o efeito indiciante resultante da verificação do exemplo-padrão, assim, por estes motivos devia o tribunal a quo ter afastado a aplicação da alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.
XIII - Lê-se no douto acórdão proferido, que ficou demonstrado que "o arguido persistiu na intenção de matar por algumas horas", (itálico nosso), contudo, também consta do douto acórdão que não resultou provado que o arguido alguma vez tenha pensado ou planeado matar a vítima previamente à fatídica noite, ora, a afirmação do Colectivo que o arguido persistiu na intenção de matar, por algumas horas, não se coaduna com os factos provados e não provados.
XIV - Além de que, embora no douto acórdão, para apurar a especial censurabilidade da conduta do arguido, entende o recorrente que é incompatível com as declarações deste e os factos dados como provados, pois estando o arguido na posse de uma faca, que foi buscar à cozinha para cortar a corda, e, estando a vitima deitada na cama, não parece razoável dar como provado que o mesmo tinha a intenção de a matar, nem que tenha actuado no referido plano que arquitectou, já que o poderia ter feito logo que pegou na faca de cozinha.
XV - Mostra-se assim, errónea a interpretação do Tribunal Coletivo, quando defendeu a existência de uma especial censurabilidade na conduta do arguido, agindo de caso pensado e em obediência a um minucioso plano, e que assim preencheu a agravação do artigo 132.º, n.º 2, j) do Código Penal.
XVI - Outrossim, a situação em concreto, indicia uma atitude fortemente emotiva, até porque conforme resulta da confissão do arguido e ainda da testemunha sua sogra e seu irmão, era a mulher da sua vida, além disso, o arguido não previa o final trágico, nem nunca foi sua intenção.
XVII - O que é certo é que, sabendo o recorrente da nova relação amorosa, provocou-lhe a diminuição da culpa, culpa que tem como substrato material o reconhecimento da liberdade do agente e a sua consciência ética e, por outro lado, que só age culposamente quem, podendo fazê-lo, não faz aquilo que devia fazer (evitar a prática do crime), desta forma mostra-se insustentável manter a especial censurabilidade ou perversidade da conduta homicida do recorrente, a partir dos factos apurados, e consequentemente manter a qualificação pela alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.
XVIII - Ora, perante a referida circunstância e o papel da culpa como o limite inultrapassável de fundamento da pena, esta não poderá ser senão a correspondente ao homicídio privilegiado, cometido com imputabilidade diminuída.
XIX - E neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, escreve que, "verificando-se uma situação de concurso de circunstâncias do tipo de homicídio qualificado e de homicídio privilegiado; encontram-se numa relação de exclusão entre si, pelo que o tribunal deve ponderar quais são as circunstâncias que prevalecem. Verificando que a culpa é especialmente diminuída, aplica a moldura do artigo 133º".
XX - A conduta do arguido teve lugar em circunstâncias especialmente emocionais, no caso sub judice, o comportamento violento do arguido foi certamente desencadeado por uma emoção muito forte, uma «emoção violenta» compreensível.
XXI - A forte emoção verificada, nomeadamente o ciúme exacerbado, o querer conquistar a vítima, e saber da existência de uma nova relação amorosa, aliado à discussão prévia aos factos, impediram o recorrente de valorar a ilicitude da sua conduta e de evitar a prática do crime nas circunstâncias em que o fez, aliás, como se observa da prova produzida, nomeadamente pelas declarações do recorrente, e perante as circunstâncias descritas nos autos, este praticou o crime de forma repentina, abrupta, sob forte e compreensível emoção, torturado, desorientado e traumatizado "cego" pela ideia da sua esposa viver com outro companheiro, ainda no estado de unida de facto com o mesmo.
XXII - Conforme se escreveu supra, referiu o seu irmão e sua sogra, o arguido tinha a BB como “a mulher da sua vida", e que queria conquistá-la, pelo que a verificação do crime apenas se poderá conceber num estado de espírito que tenha influído decisivamente o seu comportamento, num estado de alta depressão e instabilidade, não se vislumbrando qualquer aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida, não prevendo que, com o seu acto pudesse provocar a morte da infeliz da companheira.
XXIII - No entender do recorrente, aquela circunstância configura, na avaliação conjunta e global dos factos, a pré-existência de um conflito interior inalterável, e que durava há bastante tempo, o que originou um transbordamento, da descarga afectiva.
XXIV - O arguido no momento que puxou a corda no pescoço da vítima, tirando-lhe a vida, agiu dominado por um estado de afecto emocional, sendo que, de tal forma, não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente fiel ao direito não deixaria de ser sensível, sempre afirmando que não teve intenção de matar a BB.
XXV - Mostra-se assim preenchida a previsão normativa do art. 133.º, do CP, ou seja, o crime de homicídio privilegiado, por ter agido sob forte e compreensível emoção, torturado e desorientado pela ideia da sua ainda companheira, viver/estar com outra pessoa.
XXVI - O doutro acórdão objecto de recurso não deve ser mantido na parte em que qualificou o arguido como autor de um homicídio cometido com especial censurabilidade ou perversidade, devendo ser qualificado como homicídio privilegiado.
XXVII - O tribunal colectivo, ao condenar o arguido por crime de homicídio qualificado fez uma incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal, e por outro lado, ao não aplicar o artigo 133.º todos do Código Penal, mas aplicando aqueles preceitos legais fez uma incorrecta interpretação e aplicação dos arts. 72.º, 73.º e 74.º todos do Código Penal.
XXVIII - Caso assim não se entenda, o que apenas por mera hipótese se concebe, mas contudo, sem prescindir, a pena aplicada ao arguido é manifestamente excessiva e incompatível com o crime que cometeu, já que não deve ser qualificado por não se verificar o elemento agravante previsto nas alíneas b) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do C. P: devendo o recorrente ser condenado apenas por crime de homicídio simples, tal como se prevê no artigo 131.º do C. P. aplicando-se-lhe uma pena inferior a 14 anos,
XXIX - ainda sem prescindir, caso se mantenha a qualificação - o que só por mera hipótese de raciocínio se admite -, sempre a pena deve ser reduzida para o limite de 16 anos de prisão, assegurando-se assim também os fins de prevenção geral e especial, tendo em conta que o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais, mostrou arrependimento de culpa e de desespero, entregou-se voluntariamente às autoridades, confessou integralmente e sem reservas a prática do crime, o que demonstra que se tratou de um acto irreflectido e imponderado.
XXX - Conforme consta do douto Acórdão o arguido tem tido um comportamento em contexto prisional adaptado às normas internas, à data estava socialmente bem integrado, facto que deveria ter sido levado em conta no acórdão recorrido para determinar a medida da pena e não o foi, pelo que a pena não superior a 14 anos de prisão é compatível com os fins de prevenção geral e especial, sendo certo que esta serve essencialmente o escopo da reintegração, tentando evitar a quebra de reinserção do recorrente na sociedade.
XXXI - Tomando em consideração todo este circunstancialismo e atendendo a que compete ao Supremo Tribunal de Justiça funções de uniformização de critérios da medida da pena com vista a um tratamento dos diversos casos tão igualitário quanto possível, uma pena no limite de 14 anos de prisão revela-se mais proporcional do que a fixada pelo tribunal Colectivo no que respeita às necessidades de prevenção, quer geral quer especial e está contida na culpa do agente.
XXXII - Assim, a medida da pena deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente, só desta maneira se alcançará uma eficácia óptima dos bens jurídicos.
XXXIII - O Tribunal “a quo" ao aplicar 18 anos de prisão efectiva ao arguido, quando até a Digníssima Procuradora do Ministério Público em alegações requereu a aplicação de 16 anos de prisão, pelo crime de homicídio qualificado, assim violou os artigos 131.º, 132.º e 133.º da Código Penal e o princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade, descurando o fim das penas, o que levou a que o Tribunal “a quo" não atendesse à previsão dos artigos 40.º e 71.º todos do CP e violasse os artigos 10.º e 18.º n.º 2 da CRP.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exa doutamente suprirá deverá o presente recurso ter provimento por provado e, consequentemente deverá o Recorrente ver ser alterada a qualificação do crime de que foi condenado e/ou reduzida a medida da pena de prisão e prazo não superior a 14 anos, pois somente tal pena cumprir as exigências gerais e especiais tuteladas pela lei.»
3. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413.º, n.º 1, do CPP, a Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido defende a confirmação do acórdão condenatório, nos seus precisos termos, dizendo em conclusões (transcrição):
«1ª – O arguido AA inconformado com o douto proferido a fls. 453 e seguintes, que o condenou pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e j) do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão, veio dele interpor recurso.
2ª – O objecto do recurso reconduz-se, no essencial, a duas questões, a saber: da qualificação jurídica e da medida da pena.
3ª – Defende o Recorrente que os factos considerados provados, narrados no ponto II.1 do douto acórdão, nomeadamente os factos 1 a 15, que não impugna, não preenchem o tipo de crime de homicídio qualificado, não sendo, desde logo, subsumíveis nas alíneas b) e j) do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal.
4ª – Mais defende que tais factos são subsumíveis no tipo de crime de homicídio privilegiado, p. p. pelo art.º 133.º do Código Penal, uma vez que agiu “sob forte e compreensível emoção, torturado e desorientado pela ideia da sua ainda companheira, viver/estar com outra pessoa.”
5ª – Salvo o devido respeito, sem razão.
6ª – Os factos provados – que não foram impugnados e, por isso, mostram-se assentes, sendo inatacáveis –, ao invés do que pretende o Recorrente, permitem e sustentam, sem sombra de dúvidas, a integração jurídica efectuada, conforme se alcança do teor de fls. 461 a 464 do douto acórdão recorrido.
7ª – Quanto à verificação da qualificativa da al. b) do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal basta, salvo melhor opinião, uma leitura atenta do preceito legal, para se concluir que sendo a sua redacção muito abrangente, no que se refere ao tipo de relações aí elencadas, os concretos factos provados de 1 a 6, são idóneos ao seu preenchimento.
8ª – Acresce que, as concretas circunstâncias em que o arguido praticou os factos narrados de 1 a 6 reflectem a sua elevada culpa e são reveladores de especial censurabilidade e perversidade, sendo manifesto que os factos provados são subsumíveis na previsão da mencionada al. b) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal.
9ª – No que concerne à verificação da qualificativa prevista na al. j) do nº 2 do citado preceito legal, é nosso entendimento, que se encontra igualmente preenchida.
10ª – Parece-nos evidente que se retira da factualidade assente nos pontos 4 a 6 que o arguido depois de ter mantido relações sexuais com a vítima, levantou-se, foi para o terraço fumar e reflectir sobre a traição, formulando a resolução de a matar com uma corda do estendal da roupa, persistindo várias horas nessa pretensão até à sua concretização, aproveitando-se da circunstância da mesma se encontrar a dormir.
11ª – Tal comportamento é susceptível de preencher a sobredita qualificativa e não, como pretende o Recorrente, de preencher a previsão do art.º 133.º do Código Penal, pois que a reflexão e persistência na decisão criminosa, por um período de várias horas, é absolutamente incompatível com uma emoção violenta, que se caracteriza por ser impulsiva, imediata e incontrolável perante um acontecimento inesperado e chocante (neste sentido, vidé Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/02/2017).
12ª – Donde, não merece qualquer censura a qualificação jurídica operada e, em consequência, a condenação do arguido nos termos fixados no douto acórdão recorrido.
13ª – O Recorrente veio, à cautela, discordar da concreta pena de prisão efectiva em que foi condenado, por, em síntese, a considerar manifestamente excessiva e incompatível com o crime de cometeu, pugnado pela sua condenação pelo crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, numa pena inferir a 14 anos.
14ª – Vem, ainda, e caso se mantenha a qualificação jurídica, defender que a pena deve ser reduzida para 16 anos de prisão, por entender que deste modo ficam assegurados os fins de prevenção geral e especial,
15ª – Também aqui, salvo melhor opinião, sem razão.
16ª – O crime de homicídio, na forma agravada, conforme resulta do respectivo texto legal, supra indicado, é punido com uma pena de prisão de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos.
17ª – A encimar o acervo de finalidades das penas coloca o art.º 40.º do Código Penal, a protecção de bens jurídicos, encontrando-se a ele subjacente a intenção de limitar o poder punitivo do Estado, na linha, do art.º 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual as restrições a direitos, liberdades e garantias se limitarão “ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
18ª – Depois de escolhida a pena e para a sua determinação o tribunal deve eleger os factores relevantes para o efeito, valorando-os à luz dos vectores de culpa e prevenção, nos termos do disposto no art.º 71.º do Código Penal que enumera, no seu n.º 2, de forma exemplificativa, alguns dos mais importantes factores de medida da pena de carácter a aferir segundo critérios objectivos.
19ª – In casu, o Tribunal a quo tomou em consideração, nos termos dos citados preceitos legais, todas as circunstâncias a favor e contra o arguido, tendo escolhido a pena de prisão – por ser aquela que está prevista no tipo legal – e graduado, de acordo com a conduta adoptada que reflecte o elevado grau de culpa, o elevado grau de ilicitude manifestado na circunstância de ter agido com dolo directo, a idade da vítima, a violação do bem supremo do nosso ordenamento jurídico: a vida, ponderando as elevadas necessidades de prevenção geral e medianas de prevenção especial e, ainda, sopesando a confissão integral e sem reservas, a inexistência de antecedentes criminais, a circunstância de se ter entregue voluntariamente às autoridades e as suas condições pessoais (cfr. fls. 464 a 465 vº do acórdão).
20ª – De facto, o Tribunal a quo aplicou a pena que, em concreto, se mostra adequada, ponderando as elevadas exigências de prevenção geral e as medianas de prevenção especial e as circunstâncias acima referidas, tendo por limite a culpa, fixando a pena, sensivelmente, a meio da moldura abstracta aplicável.
21ª – Da análise ponderada das circunstâncias pessoais do arguido, das medianas exigências de prevenção especial, da gravidade dos factos – espelhada na morte da vítima, de 23 anos, com a qual o arguido vivia em união de facto e nas concretas circunstâncias em que ocorreu o evento – e das elevadíssimas exigências de prevenção geral, o Tribunal a quo concluiu pela aplicação de uma pena de 18 (dezoito) anos de prisão que, em concreto, se afigura adequada, justa e proporcional.
22ª – Aliás, o Ministério Público, em sede de alegações finais, concluiu que a pena concreta a aplicar jamais poderia ser inferior a 16 anos de prisão.
23ª – Destarte, impõe-se concluir que a pena aplicada pelo Tribunal a quo se mostra adequada e justa, não merecendo qualquer censura.»
4. Responde também a assistente CC, defendendo igualmente a confirmação do acórdão recorrido, dizendo (transcrição):
«No crime de homicídio dispõe o artigo 131.º:
“Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”
É importante atender às qualificativas do tipo de homicídio praticado pelo arguido. Analisados os factos o tribunal “a quo” não teve dúvidas em considerar que a conduta do arguido integra a previsão legal qualificativa. Aliás foi o próprio arguido que o verbalizou quando reporta que actuou movido pelo objectivo de tirar a vida à ofendida, sua companheira, embora posteriormente se tenha arrependido.
Dispõe o artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal que “se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos”.
Trata-se de um crime específico, um crime que vitimou uma jovem de 23 anos de idade, na pujança da vida. Encontrava-se a dormir nos braços do arguido, completamente exposta e sem ter tido qualquer possibilidade de reacção, perdendo assim o seu bem mais importante o direito à vida. A vida para ela acabou.
Andou bem o Tribunal “a quo” ao aplicar a pena de 18 anos de prisão efectiva ao arguido. Pena sem dúvida adequada aos fins que se visam acautelar e cuja medida concreta se revela justa e proporcional à gravidade dos factos praticados, daí não ter a Assistente qualquer reparo a fazer quanto à pena aplicada. Da leitura e análise da fundamentação percebe-se, com facilidade, o caminho que o Tribunal percorreu e que o levou à condenação deste arguido, as provas em que se baseou, inexistindo qualquer reparo a fazer.
Face ao exposto, entende-se ser de manter, na íntegra, o acórdão recorrido por nenhum reparo nos merecer.»
5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos (transcrição na parte relevante):
«9. As questões a decidir no recurso são as enunciadas em 2. supra [erro na qualificação jurídica dos factos, que entende caberem na previsão e punição do crime de homicídio privilegiado do art.º 133.º do CP e não na do tipo qualificado por que foi condenado, e consequente redução da pena; erro na qualificação jurídica dos factos que, quando muito, cabem na previsão e punição do crime de homicídio simples do art.º 131.º do CP, e consequente redução da pena a não mais do que 14 anos de prisão; excesso da medida da pena mesmo no contexto da previsão e punição do crime de homicídio qualificado, a fixar em não mais de que 16 anos de prisão; violação das normas dos art.ºs 131.º, 132.º e 133.º do CP, dos «princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade», dos art.ºs 40.º e 71.º do CP e dos art.ºs 10.º e 18.º n.º 2 da CRP], que são as que o recorrente extracta nas conclusões da sua motivação e que nenhumas outras se vê de que cumpra oficiosamente conhecer.
10. O signatário - diz-se já - concorda, nos seus traços gerais, com a douta contramotivação de recurso da Exma. Procuradora da República de Loures no tocante à confirmação da qualificação dos factos provados na previsão do crime de homicídio qualificado dos art.ºs 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2 al.ªs b) e j) do CP, não vendo necessidade de algo acrescentar ao seu bem estruturado e bem fundamentado argumentário.
11. e, acima de tudo, à esclarecida fundamentação do próprio Acórdão Recorrido, para que (também) remete.
12. E não considerando absolutamente intolerável a medida concreta da pena fixada de 18 anos de prisão, ainda assim admite que a relativa mitigação das exigências de prevenção de socialização que a primariedade criminal, a confissão, o arrependimento, a (boa) inserção social, laboral e familiar e o (bom) comportamento em meio prisional denotam, possa justificar, na moldura abstracta de 12 a 25 anos de prisão, pena ligeiramente aquém da que vem fixada e, concretamente, entre os 16 e os 17 anos de prisão.
13. Medida em que o Ministério Público neste STJ é pela procedência (parcial) do recurso.»
6. Notificado nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido apresentou resposta a este parecer, reiterando o afirmado na motivação.
7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Dos factos
8. O tribunal recorrido julgou provados os seguintes factos:
«1 - O arguido e BB mantiveram entre si uma relação marital, partilhando casa, cama e mesa como se marido e mulher fossem, por último na residência sita na Rua …, …, porta …, …, desde há quatro anos.
2 - Por motivos relacionados com ciúmes da parte do arguido, a relação, nos últimos 6 meses, pautava-se por disputas verbais.
3 - Há cerca de 3 semanas o arguido, após visualizar mensagens no telemóvel de BB, apercebeu-se que a sua companheira manteria uma relação com outra pessoa, após o que a confrontou e, não obstante aquela manifestar dúvidas quanto a manter a relação com o arguido, chegando a fazer juízos comparativos entre os dois, continuaram a partilhar cama, mesa e habitação.
4 - Na noite de 9 para 10, depois de terem tido relações sexuais, levantou-se e foi para a cozinha e depois para o terraço fumar cigarros, onde permaneceu algumas horas a pensar sobre a traição daquela, tendo então formulado a intenção de retirar a vida à sua companheira.
5 - Cerca das 4 horas, retirou uma corda do estendal e dirigiu-se ao quarto, deitando a companheira, que se encontrava a dormir, sobre o seu braço, após o que enrolou a corda à volta do seu pescoço e apertou, com força.
6 - Enquanto apertava o pescoço de BB esta acordou e tentou resistir, tendo o arguido prosseguido com a sua conduta até vir a causar-lhe a morte por estrangulamento (constrição extrínseca do pescoço).
7 - Após vestiu BB e enrolou o seu corpo num lençol e mais tarde numa manta e aguardou no outro quarto que amanhecesse.
8 - De manhã, o arguido contactou o seu amigo DD dando-lhe conta do sucedido.
9 - Pelas 18h55m, do dia 10 de Março de 2018, na companhia do amigo, decidiu deslocar-se à esquadra de …, onde relatou o acima descrito e, após, facultou o acesso à residência, acompanhando os agentes à residência onde se encontrava o cadáver de BB.
10 - Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, BB veio a falecer, tendo sofrido as lesões descritas no relatório de autópsia médico-legal de fls. 206 a 208, cujo teor se dá por reproduzido, designadamente:
- lesões traumáticas de natureza contundente no pescoço - sulco de estrangulamento
- infiltrações hemorrágicas dispersas no tecido celular subcutâneo a nível da cartilagem tiroideia e no músculo digástrico esquerdo - hemorragias petequiais na mucosa da epiglote e na laringe subepicárdicas e subpleurais
- úlceras agudas na mucosa gástrica - congestão generalizada.
11 - Tais lesões causadas pelo arguido da forma descrita foram a causa direta e necessária da morte de BB (tudo conforme consta do relatório de autópsia que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais).
12 - O arguido agiu ciente de que BB era sua companheira, movido por ciúmes pelo facto de a mesma alegadamente estar a manter relação amorosa com terceiro, atuando com frieza de ânimo e ponderando no modo de executar os factos.
13 - Bem sabia que quando lhe apertou o pescoço, BB se encontrava numa posição inferior sem capacidade de defesa pois que se encontrava a dormir não tendo capacidade de se aperceber da atuação do arguido e opor defesa.
14 - O arguido, ao agir do modo descrito apertando o pescoço de BB com força, agiu com o propósito de lhe tirar a vida uma vez que visou aquelas parte específica do corpo desta, propondo-se a aí atingi-la do modo referido e a matá-la pois que bem sabia que actuava de modo adequado a provocar-lhe a morte, sufocando-a, o que previu, quis e logrou.
15 - O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
16 - BB nasceu em …-12-1994, tinha 23 anos de idade à data da sua morte e era uma pessoa saudável.
17 – Nasceu em … onde viveu com os seus pais e irmãos até vir estudar para Portugal há oito anos atrás.
[seguem-se outros factos relativos ao pedido cível, pontos 18 a 22].
23 - São as seguintes as condições pessoais do arguido que resultam do Relatório Social junto aos autos:
“I - Dados relevantes do processo de socialização
O quarto de cinco filhos de um casal oriundo do …, AA viveu no país de origem até aos dezassete anos de idade, data em viajou para Portugal onde viria a ser acolhido pelo progenitor, com residência no nosso país há aproximadamente três décadas, sendo que os restantes elementos do agregado constituído mantiveram residência fixa no … . Posteriormente à sua chegada a Portugal, a mãe, irmão e irmã também se deslocaram a Portugal onde permaneceram cerca de dois anos, tendo a progenitora regressado ao país de origem juntamente com a irmã, ficando o irmão acolhido igualmente na habitação paterna.
Com um processo de desenvolvimento decorrido no agregado materno, as fases de infância e adolescência são descritas como períodos gratificantes, em enquadramento coeso marcado por fortes laços de cumplicidade entre os seus elementos, surgindo a figura materna como afectivamente muito presente no quotidiano dos filhos.
Nesse contexto familiar, AA deu início à escolaridade que refere ter prosseguido até à conclusão do equivalente ao nosso 9º ano de escolaridade, percurso académico que viria a interromper com a sua deslocação para Portugal ocorrida em finais de Março de 2007.
A sua estadia em Portugal terá sido numa primeira fase, de curta duração, tendo viajado para a …, estadia de cerca de dois meses, que refere como tendo sido de férias, a convite de familiares, residentes nesse país. Regressado a Portugal AA reintegrou o agregado do progenitor e irmão, adaptação sociofamiliar que terá decorrido sem problemática de relevo, vindo a desenvolver uma relação afectivamente gratificante com o progenitor, o que nos foi confirmado pelo irmão.
A primeira experiência laboral do arguido terá ocorrido logo após o regresso de férias na …, tendo desempenhado funções diversas no sector da … com benefício de contrato laboral e sempre no distrito de … . Posteriormente diz ter trabalhado como … em cargas e descargas no mercado da … em …, nesta situação, sem contrato laboral, ainda que com uma remuneração salarial mais vantajosa, de cerca de 900 euros mensais.
A última actividade laboral exercida terá tido início em Janeiro de 2018, como … num mini mercado, e que manteve até à data da actual prisão. Os tempos livres seriam preferencialmente vivenciados no seio familiar embora descreva períodos ocasionais de convívio com amigos, retratando-se como pessoa sociável e de fácil relacionamento.
No plano afectivo, e já em território nacional, AA refere um primeiro relacionamento afectivo com jovem …, razão que o levou a abandonar o agregado do pai em 2009, para passar a viver com a namorada num apartamento arrendado na zona de … . Essa relação viria a terminar ano e meio após vivência em comum, tendo esta regressado ao país de origem.
Posteriormente viria a encetar novo relacionamento afectivo com a mãe do seu filho, cidadã …, sendo que após aproximadamente dois anos de namoro, optaram por viver juntos, numa primeira fase na habitação em …, para mais tarde partilharem a habitação do irmão do arguido. Desse relacionamento, o arguido tem um filho, hoje com seis anos de idade. A relação viria a terminar em 2013, tendo o menor ficado entregue aos cuidados da mãe, apesar do arguido referir ter sempre apoiado o filho.
AA viria a estabelecer uma relação afectiva com BB, no decurso do ano de 2013, conhecimento encetado no mercado … onde ambos na altura trabalhavam, e estariam a viver juntos há aproximadamente quatro anos. Segundo o próprio, a relação terá decorrido de forma harmoniosa até meados de 2015, ano em que o arguido refere ter tido conhecimento através de fotografias e mensagens visualizadas no telemóvel da companheira, que esta manteria uma relação afectiva em paralelo com outro indivíduo, situação que terá originado desavenças no seio do lar familiar.
II - Condições sociais e pessoais
Em período precedente à actual prisão, AA mantinha uma vivência em comum com a vítima, apesar de nos referir a ocorrência de episódios que descreve como de forte angústia, pelo conhecimento de que a companheira manteria uma outra relação extra conjugal. Ainda assim descreve um quotidiano aparentemente calmo com a companheira, retratando-se como um indivíduo pacífico e tolerante perante os comportamentos da companheira, pelo facto de nutrir sentimentos muito fortes para com esta, evitando assim a ruptura definitiva da relação com a eventual saída da companheira do lar familiar. Contrariamente, à data dos factos, o arguido descreve uma noite algo atribulada na sequência de uma conversa com a companheira, onde lhe terá dito a sua intenção de abandonar o lar familiar, mencionando a ausência de qualquer acto agressivo para com esta, conversa que terá terminado com a retirada da companheira para o quarto.
AA refere um modo de vida isento de qualquer prática aditiva, nomeadamente estupefacientes e álcool. Todavia, no decurso da entrevista foi possível verificar a sua forte hesitação e reserva, no esclarecimento de eventuais problemas de saúde, questão colocada por ter mencionado a toma diária de medicamentos, não só na presente situação de reclusão, mas em período precedente, tendo inclusivamente referido a toma de comprimidos na noite da ocorrência dos factos, alegadamente por forte cefaleia e por sic “sentir-se muito nervoso”. Foi-nos mencionado um acidente ocorrido quando contava quinze anos de idade, uma queda onde terá ficado inconsciente, que confirmámos junto do irmão, mas que não consegue especificar qualquer diagnóstico. Desde essa data o arguido descreve períodos de fortes cefaleias, com frequentes “zumbidos” nos ouvidos, episódios que ainda hoje ocorrem, sendo que nos últimos três anos precedentes à actual prisão, o próprio refere toma de “calmantes”, sem prescrição médica. AA é acompanhado em consultas pelos serviços de psicologia e psiquiatria no presente contexto prisional, onde diz beneficiar de terapêutica medicamentosa para dormir, o que não temos acesso a essa informação clínica.
AA apresentou um discurso coerente e organizado no decurso da entrevista, não deixando de evidenciar algum grau de controlo pessoal e grau de cautela perante as questões que foram sendo colocadas especialmente do âmbito afectivo, percepcionando-se uma calma aparente que terá mantido no decurso da vivência em comum com a companheira (vítima), ficando a dúvida de um comportamento calmo no quotidiano no seio familiar em período precedente aos factos de que vem acusado, bem como de uma acção estratégica face à questão do mencionado sobre a sua saúde, o que não temos como aferir, sendo de relevar no seu discurso sentimentos de preocupação face ao filho menor, sem menção a eventuais sentimentos de perda quanto à vítima, somente verbalizando o forte afecto que nutria pela mesma.
III - Impacto da situação jurídico-legal
A presente reclusão parece estar ser vivenciada de forma aparentemente serena, e do percepcionado, o impacto da presente situação jurídica no arguido surge direccionado paro o plano pessoal e futuras implicações, evidenciando forte preocupação face a não lhe ser possível agora acompanhar o filho menor como o desejaria.
No actual contexto prisional o arguido tem mantido um comportamento calmo e beneficiou de visitas de alguns familiares, nomeadamente pai, irmão e cunhado, que entretanto deixaram de o visitar por decisão do próprio arguido. Pelo facto de não estar laboralmente activo, ocupa o tempo na sua cela ou em convívio com outros companheiros de reclusão. A progenitora e irmãs mantêm residência no país de origem.
IV - Conclusão
Do apurado, parece poder concluir-se que o arguido parece ter registado no país de origem um processo de socialização aparentemente pautado por adequação aos valores e normas de acordo com a sua cultura. A sua deslocação para Portugal contou com o forte apoio do progenitor, residente no nosso país desde há várias décadas, tendo o arguido conseguido a sua inserção laboral com algum sucesso.
No plano afectivo destacam-se alguns relacionamentos afectivos, sendo hoje pai de um menor que vive com a respectiva progenitora. A última relação afectiva encetada e que culminou numa união de facto terá sofrido alterações na sua dinâmica especialmente em período precedente à actual prisão, onde o próprio refere episódios de desavenças com a companheira na sequência do seu conhecimento de que esta manteria outra relação em paralelo, não sendo contudo possível aferir o relacionamento do casal.
Por outro lado parece surgir como factor de alguma ponderação, a postura observada no arguido e algumas das suas afirmações no afectivo, com especial referência a questões do âmbito clínico (saúde mental) que não temos conhecimento”.
24 - Não tem quaisquer condenações averbadas no seu registo criminal.»
9. A decisão em matéria de facto encontra-se assim fundamentada, quanto à análise crítica da prova:
«O Tribunal decidiu da forma que supra consta quanto à matéria de facto tendo por base a análise crítica e conjugada de toda a prova produzida.
Assim, o arguido assumiu a autoria dos factos de forma consentânea com a demais prova colhida nos autos, tanto no que respeita à causa da morte como à hora a que esta ocorreu.
O Tribunal acolheu como boa a versão do arguido de que formulara a resolução de tirar a vida à ofendida ao longo do período de insónia dessa noite provocado pelo ciúme que sentia daquela e da relação que manteria com uma terceira pessoa e não em momento anterior da noite, tendo esperado que a vítima adormecesse, como resulta da acusação deduzida.
Não se mostrou possível ouvir em audiência a testemunha DD pelo que não se realizou prova de que o arguido tivesse ponderado desfazer-se do corpo da vítima, antes referindo o arguido que havia sido o amigo a fazer-lhe tal proposta, o que veio a recusar. De resto, insiste nesta versão de que o dito amigo, que ficou entretanto incomunicável, se mostrara empenhado em que o arguido se não entregasse às autoridades e ocultasse o crime cometido, o que se afigura ao Tribunal pouco credível e mesmo desfasado da demais dinâmica dos factos.
No que tange às condições pessoais e económicas do arguido atentou o Tribunal no teor do Relatório Social junto aos autos.
No que se refere à ausência de antecedentes criminais do arguido, teve o Tribunal em conta o CRC que se encontra junto aos autos.»
Do âmbito do recurso
10. O recurso tem por objecto um acórdão proferido pelo tribunal colectivo que aplica uma pena de prisão superior a 5 anos, admissível nos termos dos artigos 432.º, n.º 1, al. c), do CPP, cujo âmbito, que circunscreve os poderes de cognição deste Tribunal, se delimita pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I de 28.12.1995), quanto a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).
Nos termos do disposto no artigo 434.º do CPP, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nos citados n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.
11. O conhecimento do recurso implica que, no âmbito da sua competência, este Tribunal aprecie e decida, oficiosamente ou a pedido do recorrente, todas as questões de direito relacionadas com o objecto e âmbito do recurso, com vista à boa decisão.
Como se tem reafirmado em jurisprudência constante, a limitação do recurso ao reexame da matéria de direito não impede, porém, este tribunal de, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova –, os quais devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, se a sua sanação se revelar necessária à boa aplicação do direito, na dimensão do conhecimento do mérito do recurso. Trata-se, como se tem insistido, de vícios da decisão, de «lógica jurídica», de vícios lógicos do discurso decisório em matéria de facto que se revelam no texto da decisão e se evidenciam a partir dele, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, não de erros de julgamento da matéria de facto, nomeadamente de apreciação das provas, cujo conhecimento se encontra subtraído a este Tribunal [assim, como no acórdão de 02.10.2019, no Proc. n.º 3622/17.7JAPRT-P1.S1, por todos, o acórdão de 15.12.2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1 (Raul Borges), e abundante jurisprudência nele citada, em www.dgsi.pt].
12. O presente recurso limita-se à apreciação de questões de direito, na base da matéria de facto dada como provada, a qual, na ausência de qualquer dos vícios da decisão a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP, se deve considerar estabelecida.
Visto o acórdão recorrido, dele não resulta insuficiência da matéria de facto para a decisão, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou, ainda, erro notório na apreciação da prova, a que se refere este preceito, susceptíveis de prejudicar a decisão de direito, de que, por este motivo, este tribunal deva conhecer.
13. Das conclusões da motivação, extrai-se, em síntese, que o recorrente:
a) Pretende que o acórdão recorrido seja substituído por outro que o absolva da prática de um crime de homicídio qualificado, por, a seu ver, não se mostrarem preenchidas as circunstâncias qualificativas previstas nas alíneas b) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, que se julgue verificado que o crime foi desencadeado por forte «emoção violenta», integrando-se, assim, na previsão do artigo 133.º (homicídio privilegiado), ou, caso assim se não entenda, que deve ser condenado por um crime de homicídio simples (artigo 131.º); e
b) Que, em consequência, a pena seja reduzida para medida inferior a 14 anos, no caso de ser punido pelo artigo 131.º, ou, mantendo-se a qualificação, para não mais de 16 anos de prisão.
Quanto à qualificação jurídica dos factos
14. Quanto à qualificação jurídica dos factos e à determinação da moldura da pena, diz o acórdão recorrido:
«IV. 1 – Responsabilidade jurídico-penal
Cumpre, agora, proceder à análise da matéria factual apurada, por forma a determinar se esta é idónea a fundamentar a condenação do arguido pelo crime de que este vem acusado.
Ao arguido é imputada a prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e) do Código Penal.
Vejamos.
Estipula o art. 131.º do Código Penal, o seguinte:
“Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.
O direito penal confere a máxima protecção prevista no sistema jurídico aos bens jurídicos por este tutelados, já que o bem vida ocupa posição cimeira na hierarquia dos bens e valores fundamentais.
Trata-se de um crime material ou de resultado, por sua própria natureza, o que resulta directamente da expressão “matar outra pessoa”.
No que respeita ao elemento subjectivo, encontra-se previsto no preceito em referência a sua forma dolosa, a qual pode assumir qualquer uma das suas vertentes – dolo directo, necessário ou eventual.
A nossa lei penal não formula qualquer definição genérica de dolo, limitando-se a prescrever as formas que este pode assumir. Contudo, de acordo com a concepção avançada genericamente pela doutrina, o dolo é o conhecimento e a vontade de realização do facto típico, comportando, assim, um elemento intelectual e um elemento volitivo. Em conformidade com o disposto no art. 14.º, n.ºs 1, 2 e 3, o dolo pode, ainda, ser directo, necessário ou eventual.
No que respeita aos meios de execução, trata-se de um crime de execução livre, sendo sancionado o resultado independentemente da forma utilizada para o alcançar – os meios podem ser diretos ou indiretos (conquanto que subsista o nexo causal), mecânicos ou psíquicos e pode ser levado a cabo mediante uma atuação positiva ou omissiva.
Atendendo à factualidade dada como assente, resulta evidente o preenchimento dos elementos objetivos do descrito ilícito, tendo o resultado morte sobrevindo em consequência da conduta do arguido.
No que concerne à atitude psicológica do agente, agiu o arguido com dolo direto, na medida em que atuou movido pelo objetivo de tirar a vida ao ofendido, o que, de resto, na altura verbalizou.
Atentemos, agora, nas qualificativas do crime de homicídio imputado ao arguido.
Dispõe o art. 132.º, n.º 1 do Código Penal que “se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos”.
Como refere o STJ em Acórdão datado de 26-09-2007 (proc. 07P2591, in www.dgsi.pt):
“O crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art. 132.º do CP é um crime que repercute uma imagem global do facto agravada, um plus de culpa do agente, quando comparado com o homicídio simples, pelo concurso de circunstâncias apelidadas de exemplos-padrão, respeitantes à culpa, de verificação não automática, conotando o facto com um condicionalismo de tal modo grave, reflectindo uma atitude profundamente divorciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores comunitariamente reinantes (cf. Teresa Serra, Homicídio Qualificado, pág. 63), que a pena estabelecida para o homicídio simples não responderia aos sentimentos colectivos dominantes, ao seu sentido de justiça, e aos fins das penas”.
De acordo com o disposto no art. 132.º, n.º 2, al. b) do Código Penal mostra-se suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de a vítima se tratar de pessoa com quem o agente mantenha uma relação análoga à dos cônjuges. Não só pelo particular dever de respeito que assiste a quem mantém com outrem uma relação de tal natureza, como pela entrega e abandono - e consequente desproteção e vulnerabilidade - que tal natureza de relações envolve. É este, de resto, um caso paradigmático disso mesmo, já que a vítima havia mantido relações sexuais com o agressor e encontrava-se a dormir, na intimidade de sua casa e do seu quarto e, nessa medida, inteiramente à mercê do arguido.
O Tribunal não tem, pois, dúvidas em considerar que a conduta do arguido integra a sobredita previsão legal qualificativa.
Prosseguindo, prevê igualmente como revelador de uma maior censurabilidade ou perversidade a justificar um agravamento da punição a circunstância de o agente agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas. Resulta dos factos provados que o arguido se levantou durante a noite, deixando a vítima deitada a dormir e permaneceu algumas horas no terraço, tendo decidido então tirar-lhe a vida, dirigindo-se para o quarto, abraçando-a e asfixiando-a até à morte com a corda que cortara do estendal da roupa.
Não estamos perante uma situação em que alguém tivesse agido sob a emoção causada pelo choque de haver surpreendido a companheira envolvida numa relação com uma terceira pessoa, mas antes ante o resultado de uma resolução formada após horas de pensamento sobre o assunto e depois de ter mantido relações sexuais com a vítima. Nesta medida, afigura-se ao Tribunal que também as circunstâncias qualificativas atinentes à frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregues se verificam, de forma manifesta, no caso em presença.
Prosseguindo temos que o n.º 2, al. e) do art. 132.º do Código Penal prevê ainda como exemplo-padrão, suscetível de revelar a aludida especial censurabilidade, a circunstância de o agente atuar “por qualquer motivo fútil ou torpe”.
Voltemos à Jurisprudência, trazendo à colação o mesmo Acórdão do STJ já citado, numa passagem posterior do seu texto:
“(…)Na doutrina, ao motivo fútil tem sido atribuído o alcance de uma razão incompreensível para a generalidade das pessoas, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) o crime, revelando o facto, inteiramente desproporcionado, repudiado pelo homem médio, profunda insensibilidade e inconsideração pela vida humana – cf. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 32-33, Nelson Hungria, Comentário, V, pág. 164 e Maia Gonçalves, CP Anotado.
VII - A nossa extensa jurisprudência a tal respeito não se dissocia desse entendimento, identificando o motivo fútil não tanto com o seu pouco relevo ou importância, mas antes com a «desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal em que ela se objectivou: motivo fútil é «o notoriamente desproporcionado ou inadequado aos olhos do homem médio, denotando o agente, com isso, egoísmo, intolerância, prepotência, mesquinhez» – Ac. do STJ de 25-06-1997, Proc. 96P1253, in www.dgsi.pt; motivo fútil será o motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática do crime, na inteira desproporção entre o motivo e a reacção homicida – Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. 05P2978, in www.dgsi.pt.”
Ainda, de acordo com a Jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão proferido no âmbito do Proc. 58/08.4JAGRD.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt):
“Motivo fútil é o motivo de importância mínima. Será também o motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida, o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime de que se trate, o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática”.
No entender do Tribunal, o ciúme, ainda que se mostre desvalioso pelo sentimento de posse que encerra e injustificado à luz dos valores que imperam na nossa ordem jurídica de respeito pela dignidade humana e, com isso, pela liberdade de cada um, constitui uma emoção poderosa, que afeta as estruturas mais fundas da auto-estima, pelo que, no entender do Tribunal, se não poderá considerar de inexpressiva importância, pelo que não preenche a qualificativa que vimos tratando. Como refere o Sr. Conselheiro Santos Carvalho em acórdão do STJ datado de 12-07-2011 (proferido no Proc. 830/09.8PBCTB.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt), “não se pode ver num «desgosto de amor» algo de despiciendo ou até mesmo fútil”. Neste sentido, para referir decisão mais recentes dos nossos Tribunais Superiores, veja-se Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 04-09-2018, proferido no Proc. 1069/16.1JABRG.G1 e disponível, igualmente, em www.dgsi.pt.
Mostram-se, assim, com a apontada exceção, inteiramente preenchidos os elementos típicos do ilícito e das qualificativas do mesmo inexistindo no caso quaisquer causas de exclusão da culpa ou da ilicitude.»
15. Defende o recorrente que não se verificam as circunstâncias relativas à culpa correspondentes aos exemplos-padrão de especial perversidade ou censurabilidade previstos nas alíneas b) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal (homicídio qualificado), que não são de funcionamento automático, e que os factos provados se reconduzem ao preenchimento da previsão típica do crime de homicídio privilegiado previsto e punido pelo artigo 133.º ou, se assim não se entender, à do crime de homicídio simples previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal.
16. Como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência – relembrando o recente acórdão de 02.10.2019, no Proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1 (em www.dgsi.pt) –, o crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal, constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, indiciadores daquele tipo de culpa, projectada no facto, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente [assim, entre outros, os acórdãos de 5.7.2017, Proc. 1074/16.8JAPRT.P1 (Rosa Tching), de 19.2.2014, Proc. 168/11. 0GCCUB.S1 (Santos Cabral), de 2.4.2008, Proc. 07P4730 (Raul Borges), de 18.10.2007, Proc. 07P2586 (Santos Carvalho), e de 20.06.2018, Proc. 3343/15.5JAPRT.G1.S2 (Vinício Ribeiro), em www.dgsi.pt, bem como os trabalhos preparatórios – Eduardo Correia, autor do Anteprojecto, Actas da Comissão Revisora do Código Penal, edição da AAFDL, 1979, p. 21 – e a jurisprudência e doutrina naqueles citadas, incluindo Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, comentário ao artigo 132.º do Código Penal, Fernanda Palma, O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português, Revista do Ministério Público, 1983, ano 4, vol. 15, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, Augusto Silva Dias, Direito Penal - Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008]. Exige-se, pois, que o agente tenha agido com culpa agravada, ou seja, que as concretas circunstâncias da sua conduta permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo susceptível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio.
17. A propósito dos conceitos indeterminados de «especial censurabilidade e perversidade», escreveu-se no acórdão de 18.10.2007 (Proc. 07P2586, cit.), citando Teresa Serra (loc. cit., p. 63-65): «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores... Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente... Importa salientar que a qualificação de especial se refere tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».
E sobre o tipo de culpa agravado do artigo 132.º considerou-se no acórdão de 19.2.2014 (Proc. 168/11.0GCCUB.S1, cit.): «Refere Silva Dias (loc. cit.) que a verificação do exemplo padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício, e não mais do que isso, tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. (...) O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível. Nas palavras de Margarida Silva Pereira ["Os Homicídios" pág. 40] a caracterização do art. 132.º do CP passa pela intersecção de três eixos fundamentais, a saber: a exclusão da aplicação automática; a aferição da qualificação por um critério de culpa no sentido de que se utilize os parâmetros consagrados e tipificados para aquilatar se no caso concreto existe de igual forma uma culpa especial e a permissão do recurso à analogia pois que ao juiz cabe sempre a possibilidade de construir em concreto os pressupostos da afirmação de uma especial censurabilidade, ou perversidade, os quais, embora não subsumíveis aos exemplos padrão, constituem, ainda assim, a demonstração de uma especial intensidade da culpa. Todavia, importa salientar que a valoração da culpa operada pelo art. 132.º do CP não aparece desligada de uma ilicitude qualitativamente mais intensa. (...) O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação».
18. A alegação do recorrente sobre o não funcionamento automático das circunstâncias enumeradas no n.º 2 do artigo 132.º, reflecte, pois, o pensamento legislativo presente na concepção do tipo de crime de homicídio qualificado, havendo, assim, que verificar se, no caso, se revelam e confirmam as circunstâncias dadas como provadas, indiciadoras de especial perversidade ou censurabilidade, em que se fundamenta a condenação por este tipo de crime.
19. De acordo com o disposto na alínea b) do n.º 2 do mesmo preceito, com a redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente «praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau».
Trata-se de avaliar se, dos factos provados, resulta, como julgou o tribunal recorrido, que o arguido, que não era casado com a vítima, praticou o facto contra pessoa com quem mantinha uma relação análoga à dos cônjuges, para efeito de qualificação do homicídio.
19.1. Relembrando a fundamentação, considera-se a este propósito no acórdão recorrido:
«De acordo com o disposto no art. 132.º, n.º 2, al. b) do Código Penal mostra-se suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de a vítima se tratar de pessoa com quem o agente mantenha uma relação análoga à dos cônjuges. Não só pelo particular dever de respeito que assiste a quem mantém com outrem uma relação de tal natureza, como pela entrega e abandono - e consequente desproteção e vulnerabilidade - que tal natureza de relações envolve. É este, de resto, um caso paradigmático disso mesmo, já que a vítima havia mantido relações sexuais com o agressor e encontrava-se a dormir, na intimidade de sua casa e do seu quarto e, nessa medida, inteiramente à mercê do arguido.
O Tribunal não tem, pois, dúvidas em considerar que a conduta do arguido integra a sobredita previsão legal qualificativa.»
19.2. Quanto a esta circunstância, defende o recorrente, em discordância, que, provado que «o arguido, aqui recorrente e a vítima já coabitavam há cerca de 4 anos, sendo que nos últimos 6 meses já tinham frequentes disputas verbais e nas últimas 3 semanas», e que «o arguido descobriu que ela teria uma relação com um outro companheiro, com o qual havia iniciado uma nova relação amorosa», «a circunstância do arguido à data dos factos estar a viver na mesma casa com a vítima, embora com conflitos há 6 meses, não pode por si só fazer operar a qualificação prevista na alínea b) do artigo 132.º do Código Penal, isto porque nessa mesma altura, a vítima até já possuía um novo relacionamento». Acrescentando ainda: (a) que «a violação dos deveres conjugais previstos especialmente no artigo 1672.º do Código Civil» (que vincula os cônjuges aos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência), não conduzindo «obrigatoriamente» à qualificação do homicídio, a ser considerada para efeitos de determinação da pena (artigo 71.º do Código Penal), «neste caso permite o afastamento da alínea b) do artigo 132.º», sendo que «a violação dos deveres conjugais também é imputável à vítima, que ainda no estado de unida de facto com o recorrente, passou a ter relações com outra pessoa», e (b) que «estava possuído por uma imputabilidade diminuída», pois que «o infeliz episódio apenas se deu, após uma discussão entre o recorrente e a vítima na fatídica noite», o que «causou necessariamente uma perturbação na capacidade de decisão do arguido, e que afectou a sua vontade» (conclusões VI a XII).
19.3. Para efeitos da verificação deste exemplo-padrão, releva da matéria de facto provada que o arguido e a vítima «mantiveram entre si uma relação marital, partilhando casa, cama e mesa como se marido e mulher fossem, por último na residência sita na Rua …, …, porta …, …, desde há quatro anos», relação que, nos últimos 6 meses, se deteriorou por o arguido se ter apercebido de que a vítima «manteria uma relação com outra pessoa», mas «continuaram a partilhar cama, mesa e habitação», o que se mantinha na noite em que o arguido pôs termo à vida da vítima, «depois de terem tido relações sexuais» na cama que partilhavam (pontos 1 a 3 dos factos provados). Diferentemente do afirmado pelo recorrente, não está provado que a acção de matar «apenas se deu, após uma discussão entre o recorrente e a vítima na fatídica noite», nem que tal discussão «causou uma perturbação na capacidade de decisão do arguido que afectou a sua vontade», factos que, nesta sede, dado a limitação do recurso à matéria de direito, não podem ser considerados.
19.4. A revisão do Código Penal de 2007 assumiu o propósito de incluir novas circunstâncias na enumeração do n.º 2 do artigo 132.º, nomeadamente a relação conjugal, presente ou passada, ou análoga, sem qualquer modificação de alcance ou de sentido da justificação da construção e definição do tipo qualificado de homicídio previsto neste preceito (assim, e no que se segue, o acórdão de 02.10.2019, Proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1, cit., supra, 17). Lê-se na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X (DAR II Série-A, n.º 10, de 18.10.2006, p. 4), que esteve na origem da Lei n.º 59/2007: «no âmbito dos crimes contra as pessoas, são acrescentadas novas circunstâncias ao homicídio qualificado. Assim, a relação conjugal (presente ou passada) ou análoga (incluindo entre pessoas do mesmo sexo), (…) passam a constar do elenco de circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade. No entanto, a técnica utilizada na tipificação do crime mantém-se inalterada. As circunstâncias não são definidas de forma taxativa, correspondendo antes a exemplos padrão, e não são de funcionamento automático, estando sujeitas a uma apreciação em concreto». Idêntica circunstância se incluiu no tipo de crime de violência doméstica (artigo 152.º): «No crime de violência doméstica é ampliado o âmbito subjectivo do crime, passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges», lê-se no mesmo local.
A criminalização destas condutas insere-se na linha das obrigações posteriormente impostas pela Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (CETS n.º 210, Istambul, 11.05.2011), ratificada por Portugal (RAR n.º 4/2013, e DPR n.º 13/2013, de 21 de Janeiro), a qual define a «violência doméstica» como abrangendo «todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima». Os actos de violência física, que devem ser criminalizados, incluem os actos de que resulte a morte da vítima (artigo 35.º da Convenção), como se explicita no respectivo relatório explicativo (n.º 188). Na acepção da convenção, o conceito de violência doméstica abrange, assim, as situações que podem constituir os crimes de homicídio qualificado [artigo 132.º, n.º 2, por verificação da especial censurabilidade ou perversidade com base na al. b)] e de violência doméstica [artigo 152.º, n.º 1, al. b)].
19.5 Escreveu-se a este propósito no acórdão de 05.07.2012, Proc. 2663/10.0GBABF.S1 (Arménio Sottomayor), em www.dgsi.pt, que agora se segue:
«A alínea b) constituiu um aditamento aos exemplos-padrão introduzido pela reforma do Código Penal de 2007. Até então “só quem tem com a vítima uma relação de parentesco na linha recta pode revelar uma superior energia criminosa por ter ultrapassado particulares contra-motivações éticas à decisão do homicídio” (Teresa Quintela de Brito, «O homicídio qualificado (art. 132º)», Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, pág. 215-6). Não estando o conjugicídio contemplado na hipótese da al. a), o legislador mostrou-se “sensível ao problema criminal dos maus-tratos conjugais evidenciados socialmente em grau crescente e coerente com a sua incriminação duma forma agravada” (Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II – Os Homicídios, pág. 102), deste modo satisfazendo “as pressões de alguns sectores da opinião pública e de certos grupos sociais, no sentido da especial censura do homicídio doloso perpetrado no quadro da chamada «violência doméstica» ”, como salienta Teresa Quintela de Brito, (op. cit., pág.179-180). Todavia, o legislador não se limitou a prever a agravação do homicídio cometido na pessoa do cônjuge, tendo-o alargado a relações familiares pretéritas e a relações familiares não parentais, ao incluir neste exemplo-padrão o ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
O exemplo-padrão em causa tem um evidente paralelismo com o da al. a), acerca do qual escreveu Figueiredo Dias: “Não parece exacto (…) que nestes casos «não é necessária nenhuma motivação especial do agente para que o homicídio seja qualificado. Basta que o agente tenha consciência da sua relação de parentesco com a vítima…». Exacto é, pelo contrário, que ainda nestas hipóteses se exige que a prática do homicídio revele uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, indiciada (mas não «automaticamente» verificada) por aquele ter vencido «as contra-motivações éticas relacionadas com os laços de parentesco” (Comentário, I, pág, 29).
Alargada ao cônjuge ou ex-cônjuge da vítima ou àquele que, ainda que do mesmo sexo e sem coabitação, com ela mantém ou manteve relação análoga à dos cônjuges, a especial censurabilidade ou perversidade resulta da “particular energia criminosa revelada na ultrapassagem de especiais deveres ético-sociais de respeito inerentes a tais tipos de relacionamento” (Teresa Quintela de Brito, op.cit., pág. 215-7). Conforme acentua Fernando Silva (Direito Penal Especial – Crimes contra as Pessoas 3, pág. 72 seg.): “A relação matrimonial assenta a sua vinculação na comunhão de vida, que pressupõe, principalmente, uma união pessoal. Os cônjuges, pelo enlace matrimonial, assumem um conjunto de poderes-deveres que os coloca numa especial relação, pressupondo um respeito e cooperação mútuos. A comunhão de vida que caracteriza a relação conjugal faz emergir uma nova realidade, a de um casal que vive em comunhão afectiva. Aos cônjuges exige-se uma especial e recíproca protecção, pelo que a atitude de actuar, lesando a vida do outro, é reveladora de uma energia criminal susceptível de um elevado grau de censura. A decisão de matar o cônjuge traduz, desde logo, a manifestação de um comportamento especialmente grave, próprio de quem vence contramotivações acrescidas, manifestando um elevado grau de culpa, na medida em que o agente, ao cometer tal facto, contraria, em absoluto, aquela que deveria ser a sua atitude perante o seu cônjuge.”
Mesmo sem o vínculo formal do casamento, sempre que a mera relação de namoro evolui para uma relação análoga à dos cônjuges, numa vivência de comunhão afectiva potenciadora de uma maior desinibição, criam-se, entre os companheiros, deveres de cooperação, de respeito e de protecção, que se prolongam para além do fim da relação. Mas, como acentua Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, pág. 401) “essa desinibição não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado”».
Em sentido idêntico pode ver-se ainda o acórdão de 21.10.2009, Proc. 589/08.6PBVLG.S1 (Pires da Graça).
19.6. O efeito de qualificação atribuído à circunstância de a vítima ser cônjuge do agente ou de manter com ele uma relação análoga à dos cônjuges «decorre de uma exigência intensificada de respeito pela vida do outro com quem se resolveu constituir família ou formar uma comunhão de vida. A morte dolosa do cônjuge ou do companheiro comporta, em regra, uma quebra radical da solidariedade que é em princípio devida pelo agente á vítima. O que normalmente será susceptível de indiciar uma especial perversidade, fundada num pesado desvalor de atitude revelado por esta perversão da relação dialógica do “ser-com-o-outro” e do “ser-para-o-outro”». Trata-se, todavia, de um indício «que carece de confirmação pela imagem global do facto, sendo as relações conjugais um campo privilegiado para a derrogação qualificadora do exemplo-padrão», «seja porque a morte é dada por razões de solidariedade e de compaixão, como sucede de modo paradigmático no caso daquele que tira a vida ao cônjuge para o libertar de dores atrozes e irreversíveis; seja porque a vítima tudo fez para desmerecer a solidariedade do agente, sujeitando-o com regularidade a maus tratos e humilhações, aparecendo o homicídio, na perspectiva do cônjuge maltratado, como um meio, porventura único, de se libertar da opressão a que se encontra sujeito» (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª ed., 2012, p. 58-59).
19.7. Do conjunto dos factos provados extrai-se, para além do que anteriormente se referiu (supra, 19.3), que a relação entre o arguido e a vítima «pautava-se por disputas verbais», «nos últimos 6 meses», «por motivos relacionados com ciúmes da parte do arguido», que «cerca de 3 semanas» antes «o arguido, após visualizar mensagens no telemóvel de BB, apercebeu-se que a sua companheira manteria uma relação com outra pessoa, após o que a confrontou e, não obstante aquela manifestar dúvidas quanto a manter a relação com o arguido, chegando a fazer juízos comparativos entre os dois, continuaram a partilhar cama, mesa e habitação», que «na noite de 9 para 10, depois de terem tido relações sexuais, [o arguido] levantou-se e foi para a cozinha e depois para o terraço fumar cigarros, onde permaneceu algumas horas a pensar sobre a traição daquela, tendo então formulado a intenção de retirar a vida à sua companheira», que «cerca das 4 horas, retirou uma corda do estendal e dirigiu-se ao quarto, deitando a companheira, que se encontrava a dormir, sobre o seu braço, após o que enrolou a corda à volta do seu pescoço e apertou, com força», que «enquanto apertava o pescoço de BB esta acordou e tentou resistir, tendo o arguido prosseguido com a sua conduta até vir a causar-lhe a morte por estrangulamento (constrição extrínseca do pescoço)» e que «agiu ciente de que BB era sua companheira, movido por ciúmes pelo facto de a mesma alegadamente estar a manter relação amorosa com terceiro», «com o propósito de lhe tirar a vida», encontrando-se esta «numa posição inferior sem capacidade de defesa pois que se encontrava a dormir não tendo capacidade de se aperceber da atuação do arguido e opor defesa» (pontos 2, 3, 4, 5, 6, 12 e 13).
19.8. Dúvida, pois, não existe de que o arguido e a vítima viveram numa situação análoga à dos cônjuges, numa situação de comunhão de vida, durante cerca de 4 anos – como o próprio recorrente reconhece –, de que os factos foram determinados por essa relação e por ciúme devido ao facto de a vítima alegadamente manter uma relação amorosa com outra pessoa e de que a morte da vítima foi um resultado querido, planeado, pensado e obtido em circunstâncias que não lhe permitiam oferecer oposição, no espaço mais íntimo e na cama que partilhavam e onde, horas antes, tinham mantido relações de sexo.
No quadro factual descrito e no que releva para efeitos da verificação do exemplo-padrão da alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º, não adquire qualquer relevância mitigadora do efeito indiciador da perversidade a invocada circunstância de alegadamente a vítima ter violado deveres de fidelidade para com o arguido – facto que era do seu conhecimento desde há vários meses –, que, na tese do recorrente, se lhe imporiam por analogia com os que se constituem numa relação de casamento. Tal irrelevância se deve também registar, em particular, quanto à circunstância de a vítima já «possuir novo relacionamento» – alegado pelo arguido como obstáculo ao funcionamento deste exemplo-padrão –, pois que, como evidencia a descrição dos factos provados, apesar desse relacionamento, perturbador da relação, o arguido e a vítima continuavam a coabitar e a partilhar a mesma casa e a mesma cama, como se casados fossem. O mesmo devendo afirmar-se ainda quanto ao «ciúme» gerador de «disputas verbais», que «moveu» o arguido (factos 2 e 12), enquanto sentimento essencialmente associado ao sentido de posse, cujo concreto efeito ao nível de eventual perturbação psicológica no momento da prática do crime não está demonstrado.
19.9. Dados o sentido e alcance do âmbito de protecção penal, por via do tipo de homicídio qualificado, à relação análoga à dos cônjuges, nos termos anteriormente expostos, deve, assim, concluir-se que se mostra preenchida a circunstância prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. E, não se encontrando, nas circunstâncias do caso, motivo que lhe retire o efeito indiciador de especial censurabilidade ou perversidade do facto homicida, deverá também concluir-se que se revela operativo este efeito de agravação da culpa, requerendo punição com fundamento na qualificação do crime de homicídio nos termos do n.º 1 deste preceito.
20. Nos termos da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente «agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas».
20.1. Recordando a fundamentação, considera-se no acórdão recorrido:
«Prosseguindo, prevê igualmente como revelador de uma maior censurabilidade ou perversidade a justificar um agravamento da punição a circunstância de o agente agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas. Resulta dos factos provados que o arguido se levantou durante a noite, deixando a vítima deitada a dormir e permaneceu algumas horas no terraço, tendo decidido então tirar-lhe a vida, dirigindo-se para o quarto, abraçando-a e asfixiando-a até à morte com a corda que cortara do estendal da roupa.
Não estamos perante uma situação em que alguém tivesse agido sob a emoção causada pelo choque de haver surpreendido a companheira envolvida numa relação com uma terceira pessoa, mas antes ante o resultado de uma resolução formada após horas de pensamento sobre o assunto e depois de ter mantido relações sexuais com a vítima. Nesta medida, afigura-se ao Tribunal que também as circunstâncias qualificativas atinentes à frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregues se verificam, de forma manifesta, no caso em presença.»
20.2. Quanto a esta circunstância alega o recorrente que «ficou demonstrado que "o arguido persistiu na intenção de matar por algumas horas”», mas que «também consta do douto acórdão que não resultou provado que o arguido alguma vez tenha pensado ou planeado matar a vítima previamente à fatídica noite», pelo que «a afirmação do Colectivo que o arguido persistiu na intenção de matar, por algumas horas, não se coaduna com os factos provados e não provados» (conclusão XIII). Acrescentando que, «estando na posse de uma faca, que foi buscar à cozinha para cortar a corda, e, estando a vitima deitada na cama, não parece razoável dar como provado que o mesmo tinha a intenção de a matar, nem que tenha actuado no referido plano que arquitectou, já que o poderia ter feito logo que pegou na faca de cozinha», e concluindo que se mostra «errónea a interpretação do Tribunal Coletivo, quando defendeu a existência de uma especial censurabilidade na conduta do arguido, agindo de caso pensado e em obediência a um minucioso plano, e que assim preencheu a agravação do artigo 132.º, n.º 2, j) do Código Penal» (conclusões VIV e XV).
20.3. Retomando o que se disse no acórdão de 5.7.2017 (Proc. 1074/16.8JAPRT.P1), convocado no acórdão de 15.01.2019 (Proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1), em www.dgsi.pt, sobre o exemplo-padrão da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal:
«Contempla este exemplo-padrão, sob o denominador comum da premeditação, a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. Trata-se de circunstâncias agravativas relacionadas com o processo de formação da resolução criminosa.
Segundo Fernando Silva (Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas, Quid Juris, 2008, 2ª ed., págs. 60 e segs.), “A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, os quais demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo”. “Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflecte sobre o acto, e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha”.
A premeditação, reveladora, indiciariamente, de especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime, surge, assim, materializada em três situações:
A frieza de ânimo, que, na expressão do Acórdão de 06.01.2010 (proc. 38/08.2JAAVR.C1.S1- 3ª Secção - relator Cons. Oliveira Mendes), se traduz “na actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto” (neste mesmo sentido, cfr. Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 83 e 84 e entre muitos outros, os Acórdãos do STJ, de 17.04.2013 (proc. nº 237/11.7JASTB.L1.S1-3ª Secção- Relator Raul Borges); de 13.11.2013 (proc. Nº 2032/11.4JAPRT.P1.S1-3ª Secção- Relator Cons. Maia Costa); de 19.02.2014 (proc nº 168/11.0GCCUB.S1-3ª Secção- Relator Cons. Santos Cabral) e de 12.03.2015 ( proc. nº 405/13.7JABRG.G1.S1-5ª Secção- Relator Cons. Francisco Caetano).
A reflexão sobre os meios empregados, segundo Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos (Código Penal Anotado, 3ª ed., II vol., págs 27 e 28), consiste na escolha ponderada pelo agente dos meios de atuação que, por força do efeito letal que possuem, facilitem a execução do crime projectado ou proporcionem mais probabilidades de êxito. Traduz-se, deste modo, na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar, significando, no dizer do Acórdão do STJ, de 14.05.2009 (proc. 389/06.8GAACN.C1.S1 - 3ª Secção - relator Cons. Armindo Monteiro), “um amadurecimento temporal sobre o modo de o praticar, a congeminação serena e perdurante no campo da consciência da ideação de matar e dos meios a usar”.
A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (premeditação propriamente dita), traduzida na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar e na persistência no propósito de matar por mais de 24 horas, tempo considerado suficiente para o agente poder vencer emoções, ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequências do ato (Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. I, 2ª ed., págs. 83 e 84 e Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 83 e 84)».
20.4. Perante o exposto, dada a matéria de facto provada, torna-se evidente que não assiste razão ao recorrente.
Por um lado, sendo o recurso restrito à matéria de direito, não pode o argumento do recorrente fundar-se, como se funda, em factos não provados – nomeadamente a alegada posse de uma faca – ou em juízos relativos à apreciação da prova (supra, 20.2).
Por outro, como resulta claro da decisão recorrida, não está em causa a persistência na intenção de matar por mais de 24 horas, mas saber se o recorrente agiu com «frieza de ânimo» e com «reflexão sobre os meios empregados», como decidiu o acórdão recorrido.
A este propósito, o acórdão não suscita qualquer crítica. Estando provado que o arguido, «depois de terem tido relações sexuais, levantou-se e foi para a cozinha e depois para o terraço fumar cigarros, onde permaneceu algumas horas a pensar sobre a traição daquela, tendo então formulado a intenção de retirar a vida à sua companheira.», que «cerca das 4 horas, retirou uma corda do estendal e dirigiu-se ao quarto, deitando a companheira, que se encontrava a dormir, sobre o seu braço, após o que enrolou a corda à volta do seu pescoço e apertou, com força» e que «enquanto apertava o pescoço de BB esta acordou e tentou resistir, tendo o arguido prosseguido com a sua conduta até vir a causar-lhe a morte por estrangulamento)», mostra-se justificadamente fundada a conclusão do tribunal recorrido quanto à verificação destas circunstâncias.
21. Alega ainda o recorrente que «estava possuído por uma imputabilidade diminuída, o que é incompatível com um homicídio qualificado», que se «indicia uma atitude fortemente emotiva, até porque conforme resulta da confissão do arguido e ainda da testemunha sua sogra e seu irmão, era a mulher da sua vida, além disso, o arguido não previa o final trágico, nem nunca foi sua intenção», que «sabendo o recorrente da nova relação amorosa, provocou-lhe a diminuição da culpa», que «o comportamento violento foi certamente desencadeado por uma emoção muito forte, uma “emoção violenta” compreensível», que «a forte emoção verificada, nomeadamente o ciúme exacerbado, o querer conquistar a vítima, e saber da existência de uma nova relação amorosa, aliado à discussão prévia aos factos, impediram o recorrente de valorar a ilicitude da sua conduta e de evitar a prática do crime nas circunstâncias em que o fez, aliás, como se observa da prova produzida, nomeadamente pelas declarações do recorrente, e perante as circunstâncias descritas nos autos, este praticou o crime de forma repentina, abrupta, sob forte e compreensível emoção, torturado, desorientado e traumatizado "cego" pela ideia da sua esposa viver com outro companheiro, ainda no estado de unida de facto com o mesmo» que «referiu o seu irmão e sua sogra, o arguido tinha a BB como “a mulher da sua vida", e que queria conquistá-la, pelo que a verificação do crime apenas se poderá conceber num estado de espírito que tenha influído decisivamente o seu comportamento, num estado de alta depressão e instabilidade, não se vislumbrando qualquer aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida, não prevendo que, com o seu acto pudesse provocar a morte da infeliz da companheira», que «aquela circunstância configura, na avaliação conjunta e global dos factos, a pré-existência de um conflito interior inalterável, e que durava há bastante tempo, o que originou um transbordamento, da descarga afectiva», que «no momento que puxou a corda no pescoço da vítima, tirando-lhe a vida, agiu dominado por um estado de afecto emocional, sendo que, de tal forma, não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente fiel ao direito não deixaria de ser sensível, sempre afirmando que não teve intenção de matar a BB», pelo que «mostra-se assim preenchida a previsão normativa do art. 133.º, do CP, ou seja, o crime de homicídio privilegiado, por ter agido sob forte e compreensível emoção, torturado e desorientado pela ideia da sua ainda companheira, viver/estar com outra pessoa». (conclusões XII a XXV).
E ainda que, «caso assim não se entenda», deve «ser condenado apenas por crime de homicídio simples, tal como se prevê no artigo 131.º do C. P.» (conclusão XXVIII).
21.1. O tipo de crime de homicídio privilegiado da previsão do artigo 133.º do Código Penal, construído, tal como o tipo de crime de homicídio qualificado, a partir do tipo fundamental do artigo 131.º, assenta na consideração, inversa, de circunstâncias que «diminuam sensivelmente a culpa do agente», nomeadamente a emoção violenta (sobre o fundamento, consequências e elementos privilegiadores, cfr., por todos, Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Comentário Conimbricense, cit., p. 81ss).
Para que a diminuição da culpa possa ocorrer por virtude de emoção violenta, torna-se necessário, desde logo, que o agente cometa o crime sob um estado emocional que dele se apoderou, provocado por uma situação pela qual não pode ser censurado, em reacção agressiva a essa situação (assim, também, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Os crimes contra as pessoas, Quid Juris, 2017, p. 101ss).
21.2. Como se concluiu no acórdão recorrido, não se retira da matéria de facto provada – como se disse, só esta pode ser considerada, não podendo, por isso, ter-se em conta elementos de facto e de prova invocados para além dela, como os mencionados nas conclusões XX a XXIV da motivação do recurso – que o recorrente tenha sido afectado por uma situação exterior que lhe tenha causado um estado emocional que o tenha levado a agir em reacção a essa situação. Se, como resulta dos factos provados, o arguido agiu «movido por ciúmes», importa notar que tal sentimento ou estado de afecto perdurava já, pelo menos, por seis meses, sendo causa de «disputas verbais» entre este e a vítima (ponto 6 da matéria de facto provada), e que, apesar disso, mantinham a relação de coabitação, não surgindo como um elemento novo que tenha provocado uma alteração emocional que dele se apoderou na noite em que foi praticado o crime.
A propósito da relevância do ciúme, para efeitos do disposto no artigo 133.º do Código Penal, numa situação em que o agente do crime agiu em reacção violenta perante o facto de a vítima lhe ter dito, de surpresa, após este lhe ter perguntado o que se passava, «que quando estava sozinha arranjava outros homens e que ele não tinha nada a ver com isso», consignou-se no acórdão de 14.7.2010, proc. 408/2010.3PRLSB.L2.S1 (Raul Borges): «No caso em análise, não se verifica em concreto uma situação de exigibilidade diminuída, de diminuição sensível da culpa, pois ao arguido era exigível comportamento diferente. O ciúme não pode constituir um elemento privilegiador do homicídio. A reacção violenta do arguido, ainda que eventualmente desencadeada por desespero, não pode receber a cobertura do art.º 133.º do Cód. Penal, porque o arguido tinha o dever de autocontrolar as suas emoções. A valorização do ciúme ou da desconfiança sobre a fidelidade da pessoa com quem se tem uma relação afectiva, como elemento mitigador da responsabilidade criminal, é absolutamente de rejeitar no ordenamento jurídico de um Estado de direito democrático, assente na dignidade da pessoa humana e no direito de todos ao livre desenvolvimento da sua personalidade (cfr. Ac. STJ de 3/10/2007, proc. n.º 07P2791 e de 1/03/2006, proc. n.º 05P3789, www.dgsi.pt/)». Em idêntico sentido, pode ler-se no acórdão de 29.04.2009, proc. 434/2009.07.0PAMAI.S1 (Maia Costa): «A valorização do ciúme como motivação, em termos atenuativos, é incompatível com um dos valores básicos em que assenta a nossa comunidade política: o respeito pela autonomia individual, pela liberdade de escolha de um projecto de vida por parte de cada pessoa (arts. 1.º e 26.º da Constituição)».
21.3. Como se viu, dos factos provados resulta que a decisão de matar, livre e consciente, se seguiu a uma reflexão de «algumas horas», que terminou com a fria escolha do momento e do meio apto a produzir a morte nas circunstâncias determinadas pela vontade do arguido.
O desvalor da acção pelo preenchimento da previsão na norma (tipo) do artigo 132.º exclui, portanto, a aplicação do artigo 133.º do Código Penal.
O mesmo sucedendo relativamente ao tipo de crime do artigo 131.º do Código Penal (homicídio simples), afastado que se mostra, desde logo, pelo critério da relação de especialidade que com ele estabelece o artigo 132.º, que nele comporta toda a previsão normativa daquele, acrescida do elemento de perversidade que o qualifica.
22. Nesta conformidade, tal como no acórdão recorrido, se deve concluir, perante os factos provados, que a conduta do arguido se subsume à previsão típica do artigo 132.º do Código Penal, pelo preenchimento dos exemplos-padrão das alíneas b) e j) do n.º 2 deste preceito, sendo, por conseguinte, aplicável uma pena 12 a 15 anos de prisão.
Quanto à determinação da medida da pena
23. De acordo com o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, do Código Penal e 375.º, n.º 1, do CPP, que concretizam o dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.º da Constituição, na sentença são expressamente referidos e especificados os fundamentos da medida da pena.
A determinação da medida da pena vem fundamentada nos seguintes termos:
«De acordo com o prescrito no art. 71.º do Código Penal a determinação da medida da pena far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
Como prescreve o Prof. Figueiredo Dias, na sua obra “Direito Penal - Consequências Jurídicas do Crime”, culpa e prevenção são os termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena.
Assim, a pena concreta não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa, que nos indica, in concreto, o seu limite máximo. O princípio da culpa enquanto limite máximo da punição encontra-se, actualmente, consagrado em letra de lei, no art. 40.º do Código Penal, onde expressamente se prescreve que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
O segundo termo do binómio - a prevenção - assume, ainda, as facetas distintas de prevenção geral e prevenção especial. A prevenção geral tem em vista, primordialmente, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma infringida. É com base neste critério, já dentro da moldura penal abstratamente aplicável, que vamos encontrar o limite mínimo da pena em concreto - que será o que logra, ainda, assegurar este desígnio de prevenção geral.
Tendo em vista as balizas encontradas entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos - restará fazer actuar considerações atinentes à ressocialização do arguido, actuando o critério da prevenção especial, para com base nelas determinar em último termo a medida da pena.
Vejamos.
O crime de homicídio, previsto no art. 131.º e 132.º, nºs 1 e 2, als. b), e) e j) do Código Penal é punido com a moldura abstrata de pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
Atentando no grau de ilicitude, importa ter presente que o crime em causa vitimou uma jovem de 23 anos de idade, pujante de vida, tendo-lhe sido coartada uma significativa parte da expectativa média de vida para um ser humano.
No que respeita ao grau de culpa do agente, cabe ponderar que os factos foram praticados enquanto a vítima se encontrava a dormir e, por isso, numa situação de absoluta exposição e vulnerabilidade e sem a menor possibilidade de defesa, sendo que, mesmo ponderada a circunstância de a relação se encontrar numa fase conturbada, a discussão que haviam mantido nessa noite não havia deixado na vítima qualquer estado de alerta, já que o casal havido mantido, nessa mesma noite, como refere o arguido, relações sexuais. Citando Teresa Serra (”Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena”, págs. 63 a 65):
«Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores... Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma conceção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala BINDER. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor, especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente... Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».
Estando em causa a violação do bem jurídico mais valioso são prementes as necessidades de prevenção geral suscitadas pelo caso, devendo a medida da pena ir ao encontro do denominado “ponto óptimo” entre as expectativas da comunidade na reafirmação dos valores vigentes na ordem jurídica e sua proteção, o limite da culpa do arguido, e a sua visada reintegração,
A favor do arguido pondera a confissão que operou dos factos, o arrependimento que manifestou e materializou ao se entregar às autoridades policiais, e a ausência de antecedentes criminais.
Tudo ponderado, mostra-se adequado à prossecução dos fins subjacentes à aplicação das penas a condenação do arguido na seguinte pena: dezoito anos de prisão.»
24. Entende o recorrente que a pena é excessiva, por violar os princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade, sem atender ao disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal e em violação dos artigos 10.º e 18.º, n.º 2, da Constituição, pelo que, mantendo-se a punição pelo crime de homicídio qualificado, deve ser reduzida ao limite de 16 anos de prisão.
Alega, em síntese, que «não tem quaisquer antecedentes criminais, mostrou arrependimento de culpa e de desespero, entregou-se voluntariamente às autoridades, confessou integralmente e sem reservas a prática do crime, o que demonstra que se tratou de um acto irreflectido e imponderado» – circunstâncias que, como se vê, foram consideradas – e que «tem tido um comportamento em contexto prisional adaptado às normas internas, à data estava socialmente bem integrado, facto que deveria ter sido levado em conta no acórdão recorrido» (conclusões XXIX e XXX).
25. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».
Estabelece o artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (n.º 1) e que, na sua determinação concreta, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente as enumeradas no n.º 2:
Como se tem reafirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que, como é sabido, se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).
26. A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pela necessidade de protecção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada, em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigos 40.º e 71.º do Código Penal). A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de actuar de acordo com o direito, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2). Na determinação da medida da pena, nos termos do artigo 71.º, de enumeração não taxativa, devem ser levados em consideração as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto (personalidade onde o facto radica e o fundamenta), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, incluídas no denominado “tipo complexivo total” (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2001, p. 234) e não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele. Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto – nomeadamente, nos termos do n.º 2, os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os factores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm a ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do artigo 71.º do Código Penal, segue-se, em particular, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357).
27. O acórdão condenatório levou em conta a idade da vítima (23 anos), a circunstância de esta se encontrar a dormir, «numa situação de absoluta exposição e vulnerabilidade e sem a menor possibilidade de defesa, sendo que, mesmo ponderada a circunstância de a relação se encontrar numa fase conturbada, a discussão que haviam mantido nessa noite não havia deixado na vítima qualquer estado de alerta, já que o casal havido mantido, nessa mesma noite, como refere o arguido, relações sexuais», a especial perversidade e censurabilidade do facto e, a favor do arguido, a confissão dos factos, o arrependimento «que manifestou e materializou ao se entregar às autoridades policiais», e a ausência de antecedentes criminais. Considera «prementes as necessidades de prevenção geral suscitadas pelo caso» por estar em causa «a violação do bem jurídico mais valioso».
28. Da matéria de facto provada resulta ainda que o arguido, nascido a 14.09.1989, «parece ter registado no país de origem um processo de socialização aparentemente pautado por adequação aos valores e normas de acordo com a sua cultura», vive, desde a idade de 17 anos, com o seu progenitor, que reside em Portugal há cerca de três décadas, estabelecendo com este uma «relação afectiva gratificante», tem trabalhado regularmente, tendo conseguido inserção laboral «com algum sucesso», vivenciando os tempos livres preferencialmente no seio familiar e ocasionalmente em convívio com amigos, «retratando-se como pessoa sociável e de fácil relacionamento», tem um filho de uma anterior relação, que diz apoiar, não lhe sendo conhecidos comportamentos aditivos, nomeadamente de estupefacientes ou de álcool, e revela bom comportamento em meio prisional, onde se encontra acompanhado psicologicamente. Resulta ainda que o arguido viveu com a vítima, que conheceu no mercado da Ribeira, onde ambos trabalhavam, durante cerca de quatro anos, que a relação entre eles se deteriorou pelo conhecimento que teve de que esta «manteria uma outra relação extra conjugal», que este «descreve um quotidiano aparentemente calmo com a companheira, retratando-se como um indivíduo pacífico e tolerante perante os comportamentos da companheira, pelo facto de nutrir sentimentos muito fortes para com esta, evitando assim a ruptura definitiva da relação com a eventual saída da companheira do lar familiar», o que lhe terá provocado episódios de «forte angústia»,
29. Como anteriormente se esclareceu, o crime de homicídio resulta qualificado por razões de especial censurabilidade ou perversidade reveladas pelas circunstâncias previstas nas alíneas b) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal – relação análoga à dos cônjuges [al. b)], frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregados [al. j)].
Verificado que o crime resulta qualificado por uma destas circunstâncias – desde logo a da al. b) –, deverão as outras duas ser consideradas com efeito de agravação para efeitos de determinação da pena de acordo com o critério estabelecido artigo 71.º, como tem sido decidido em jurisprudência constante deste tribunal [assim, designadamente, o acórdão de 18.01.2012, proc. 306/10.0JAPRT.P1.S1 (Santos Cabral), de 12.09.2012, proc. 1221/11.6JAPRT.S1 (Raul Borges), de 25.03.2015, proc. 1504/12.8PHLRS.L1.S1 (Santos Cabral), e de 07.05.2015, proc. 2368/12.7JAPRT.P1.S2 (Francisco caetano), em www.dgsi.pt, como se decidiu no acórdão de 9.10.2019, no Proc. n.º 24/17.9JAPTM-E1.S1. Sobre este ponto, na doutrina, Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Comentário, cit., p. 79, e Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipos de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1997, p. 102].
30. Não se podendo fundar em considerações preventivas de ordem geral pressupostas na definição dos crimes e das molduras abstractas das penas, em vista da adequada protecção dos bens jurídicos em causa, sob pena de violação da proibição da dupla valoração, a determinação da pena dentro da moldura penal correspondente ao crime praticado, de 12 a 25 anos de prisão, há-de comportar-se no quadro e nos limites da gravidade dos factos concretos, nas suas próprias circunstâncias concorrentes por via da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) anteriormente descritas, isto é, em função da gravidade dos ataques ao objecto da acção levada a efeito pelo arguido, tendo em conta as finalidades de prevenção especial de ressocialização.
31. Para além das circunstâncias anteriormente referidas, reveladoras de especial perversidade e censurabilidade [frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregados – al. j) do n.º 2 do artigo 132.º], militam contra o arguido o modo de execução do facto – o deitar da vítima sobre o braço, o enrolamento da corda à volta do pescoço da vítima enquanto esta dormia, o apertar da corda com força e persistência depois de esta acordar e tentar resistir, tudo isto após, horas antes, terem tido relações de sexo na cama que partilhavam –, a forte intensidade do dolo directo, o sentimento de posse manifestado no cometimento do crime, movido por ciúme, aproveitando-se do facto de a vítima se encontrar a dormir, sem capacidade de se aperceber do arguido e de lhe opor defesa, e o comportamento imediatamente posterior à consumação do crime (o vestir do corpo da arguida, que enrolou num lençol, e o aguardar até que amanhecesse) [circunstâncias das alíneas a), b), c) e e) do n.º 2 do artigo 71.º].
São, pois, muito elevados o grau de culpa e as exigências de prevenção geral, revelados pelas circunstâncias mencionadas, a ter em conta nos termos do artigo 71.º do Código Penal), acrescendo ainda, quanto a estas, a também elevada frequência e gravidade dos crimes de violência doméstica, do público conhecimento, a considerar como factor de agravação da pena dentro dos limites permitidos pelo grau de culpa, como anteriormente se explicitou (supra, 26, parte final).
A favor do arguido, nos termos do mesmo preceito, revelam-se a confissão, o arrependimento que manifestou e materializou ao entregar-se às autoridades policiais e a ausência de antecedentes criminais, considerados no acórdão recorrido, bem como o bom comportamento prisional e inserção social, a não revelarem especiais exigências decorrentes das necessidades de prevenção especial.
32. Assim, tendo em conta a moldura da pena abstractamente aplicável, numa consideração global das circunstâncias relativas ao facto e ao agente relevantes para determinação da pena, a que se refere o artigo 71.º do Código Penal, não se surpreendem elementos que, na definição do substrato de facto, permitam constituir justificada base de um juízo de discordância relativamente à pena aplicada por violação do critério de proporcionalidade que se impõe em vista da realização das finalidades que presidem à sua aplicação.
Improcedendo também o recurso nesta parte.
Quanto a custas
33. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
Nestes termos, em consideração da complexidade do recurso, considera-se adequada a condenação do recorrente em 6 UC.
III. Decisão
34. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:
a) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo a decisão recorrida.
b) Condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 6 UC.
Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Novembro de 2019.
José Luís Lopes da Mota (Relator)
Maria da Conceição Simão Gomes