REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
IDENTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
Sumário


I - A estrutura acusatória do processo penal português implica, necessariamente, que, no requerimento para abertura da instrução, o assistente tenha de identificar, com rigor, as pessoas (singulares ou coletivas) que pretende sejam submetidas a julgamento.

II – Não existindo arguidos constituídos, a denominação EDP é insuficiente para designar quem é a pessoa coletiva em concreto, já que sob a designação EDP existem várias pessoas coletivas: EDP, Energias de Portugal, S.A., EDP Comercial, S.A, EDP Distribuição de Energia S.A., EDP Renováveis, S.A., entre outras.

Texto Integral


Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº 9/18.8GCCVD, que correm termos no Juízo Local Criminal de Portalegre, a Exmª Juíza de Instrução rejeitou o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente CM, com fundamento na sua inadmissibilidade legal.

Inconformada com essa decisão, recorreu a assistente, terminando a motivação do recurso com as seguintes (transcritas) conclusões:

“I. O tribunal a quo rejeitou o requerimento para abertura de instrução, com fundamento na inadmissibilidade legal, ao abrigo do disposto no Artigo 287º, nº 3 do C.P.P.

II. Contudo, inversamente ao que é afirmado no douto despacho, constam de requerimento para abertura de instrução os factos concretos a que a assistente teve acesso, em função da prova produzida no âmbito do inquérito, os quais deverão ser considerados relevantes e indicadores da prática de um crime de incêndio florestal, p. e p. pelo Artigo 274º do C.P.

III. A Assistente, na sequência do douto despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, requereu tempestivamente a abertura de instrução, na qual narrou os factos censuráveis, dando indicações tendentes à identificação de quem os cometeu, e para tal apresentou e requereu a correspondente produção de prova, nomeadamente as testemunhas que, na sua perspetiva, têm conhecimento direto dos factos, algumas das quais devidamente identificadas no decurso do inquérito, sem que tivessem sido chamadas para ser inquiridas. Mais indicou a assistente as normas incorretamente aplicadas na decisão de arquivamento, proferida pelo Ministério Público.

IV. Sendo certo que, ao não inquirir as testemunhas indicadas, o Tribunal a quo inviabilizou a produção de prova, que teria permitido concretizar quais os factos a imputar diretamente à referida entidade.

V. Perante tal circunstancialismo, a assistente viu-se impossibilitada de elencar mais factos para além daquele que expôs, porque as testemunhas em causa, algumas das quais identificadas no decurso do inquérito, poderiam carrear para os Autos matéria relevante, por terem conhecimento direto de factos, conhecimento que a Assistente não tem, e, fazendo-o agora para além do que consta do requerimento de abertura de instrução, estaria apenas a especular sobre o sucedido.

VI. Ao ver encerrado o inquérito, a assistente requereu a abertura de instrução, a qual vai funcionar como uma acusação que implicará necessariamente uma atividade investigatória e cognitiva do juiz de instrução, daí as citadas exigências das alíneas b) e c) do nº 3 do Artigo 283º, sob pena de nulidade.

VII. Aliás, este último preceito legal refere: “b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve....”.

VIII. Ainda que a peça em causa pudesse não estar elaborada com total perfeição, o que se equaciona apenas por mera hipótese, da mesma facilmente se depreendem os elementos, objetivo e subjetivo, do ilícito em causa, sendo de fácil apreensão e não suscitando, pela sua natureza, qualquer tipo de dificuldade.

IX. O douto despacho recorrido, ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução, sem efetuar as diligências possíveis para apurar os factos descritos naquele requerimento, acaba por violar o preceituado no nº 2 e nº 3 do Artigo 287º, no nº 1 do Artigo 286, nº 4 do Artigo 288º e nº 1 do 292º, todos do C.P.P., o artigo 20º do Constituição da República Portuguesa e o princípio basilar na Investigação, da descoberta da verdade material.

X. Pelas razões que se aduziram, entendemos que deve ser revogada a decisão recorrida e ser a mesma substituída por outra que ordene a Abertura de Instrução, de modo a ser analisada a prova indicada, a fim de se pronunciar a pessoa coletiva identificada nos Autos (EDP), pela prática de um crime de incêndio florestal previsto e punido pelo Art. 274º do Código Penal.

Termos em que, e nos mais de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V.Exas., deve ser dado provimento ao presente Recurso, e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, pelos fundamentos aduzidos”.
*
Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.

Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, entendendo que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.
No caso destes autos, e vistas as conclusões extraídas pela recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, a questão a apreciar, e em muito breve resumo, é a seguinte: aferir da existência de motivo legal de rejeição da instrução, face ao requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente.

2 - A decisão recorrida.

O despacho revidendo é do seguinte teor:
“Vem a assistente CM requerer a abertura de instrução.
Fá-los nos termos constantes de fls. 128-139, cujo teor damos aqui por reproduzido. Pretende assim a prolação de despacho de pronúncia da “EDP” pela prática do crime de incêndio florestal p. e p. pelo art.º 274.º do Código Penal.

Cumpre apreciar.
Refere o artigo 287º n.º 2 do CPP que «o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação (…) dos factos que (…) espera provar(…)», mais não quer que impor ao assistente, nos casos em que seja ele o requerente da instrução, que «narre, sinteticamente os factos que imputa ao arguido e que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, nos termos estabelecidos para a acusação e ainda as disposições legais aplicáveis, ou seja a qualificação jurídica dos factos» (cf. José Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Processo Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 74).

Conforme referimos na obra citada, p. 75, «é notória a pretensão de vincular desde logo o juiz de instrução a um determinado “objeto do processo” sobre o qual terá de se pronunciar, quando proferir o seu despacho - recorde-se que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento de abertura de instrução, conforme estabelece o artigo 309º. Não se limitando os poderes de investigação do juiz de instrução na sua atuação, terá no entanto no caso concreto em apreciação jurisdicional uma vinculação à acusação do Ministério Público ou do assistente ou ao requerimento de abertura de instrução. O modelo acusatório em que assenta a estrutura processual do Código além de se manter incólume, sai mais do que isso, notoriamente reforçado, com a alteração agora imposta».

A exigência da descrição minimamente factual dos conteúdos imputados é, atualmente, uma constante unânime na jurisprudência dos vários Tribunais das Relações [cf. Acórdãos deste Tribunal da Relação do Porto de 11.5.2011, processo 5881/07.4TAVNG-P1, relator Maria Dolores Silva e Sousa; Acórdão da Relação de Coimbra de 30.03.2011, processo 443/08, relator Eduardo Martins (todos disponíveis em www.dgsi.pt)].

Nos termos do disposto no art.º 274.º do Código Penal:
“1 - Quem provocar incêndio em terreno ocupado com floresta, incluindo matas, ou pastagem, mato, formações vegetais espontâneas ou em terreno agrícola, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

2 - Se, através da conduta referida no número anterior, o agente:

a) Criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado;
b) Deixar a vítima em situação económica difícil; ou
c) Atuar com intenção de obter benefício económico;
é punido com pena de prisão de três a doze anos.

3 - Se o perigo previsto na alínea a) do n.º 2 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos.

4 - Se a conduta prevista no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

5 - Se a conduta prevista no número anterior for praticada por negligência grosseira ou criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos.

6 - Quem impedir o combate aos incêndios referidos nos números anteriores é punido com pena de prisão de um a oito anos.

7 - Quem dificultar a extinção dos incêndios referidos nos números anteriores, designadamente destruindo ou tornando inutilizável o material destinado a combatê-los, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.

8 - Não é abrangida pelo disposto nos nºs 1 a 5 a realização de trabalhos e outras operações que, segundo os conhecimentos e a experiência da técnica florestal, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as regras aplicáveis, por pessoa qualificada ou devidamente autorizada, para combater incêndios, prevenir, debelar ou minorar a deterioração do património florestal ou garantir a sua defesa ou conservação.

9 - Quando qualquer dos crimes previstos nos números anteriores for cometido por inimputável, é aplicável a medida de segurança prevista no artigo 91.º, sob a forma de internamento intermitente e coincidente com os meses de maior risco de ocorrência de fogos.”.

No capítulo III do título IV do Código Penal, onde está inserido este artº 274, cuja epígrafe é “Dos crimes de perigo Comum”, o legislador enumera as situações ou comportamentos que podem criar o perigo, e que são merecedoras de tutela penal.

Tal como resulta do ponto 31 do preâmbulo do Código Penal de 1982 (não houve neste aspeto alterações dignas de registo) o que está primacialmente em causa, neste capítulo, não é dano, mas sim o perigo. “A lei penal relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstrato) para que dessa forma o tipo legal seja preenchido (…) pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social” (Eduardo Correia, “ As grandes Linhas da Reforma Penal – Jornadas de Direito criminal, CEJ, pág. 24.).

Acresce que, em segundo lugar, deve ser suscetível de causar um dano não controlável, ou melhor dito difuso, com potência expansiva, sendo nesta aspeto, apto a poder causar alarme social.

Daí que, neste tipo de crimes, o legislador penal não possa esperar que o dano se produza, pois as condutas ilícitas podem causar efeitos altamente danosos, por expansivos, pelo que a proteção do bem jurídico tem de recuar para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.

Por outro lado, não obstante estarmos perante um crime de perigo o certo é que a lei não deixa de exigir, para a consumação do mesmo, que o agente produza - de forma intencional (dolosa) ou negligente – um resultado, qual seja um incêndio.

E o preenchimento deste tipo, que é de perigo, tanto pode ter lugar por via de ação como por omissão – art. 10.º, n.º 2, do CP, nos termos do qual “A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado. 3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada”. Assim, importará que exista uma relação de garante. Já que quando o tipo legal pode ser violado por pessoa sobre quem recai um dever especial trata-se de um crime específico próprio, em que a qualidade do agente ou o dever que sobre ele impende fundamenta a ilicitude.

São elementos objetivos do crime de incêndio florestal, p. e p. pelo art.º 274.º do Código Penal:
- a provocação de incêndio;

- em terreno ocupado com floresta ou terreno agrícola;

O crime em causa poderá ser doloso (art.º 274.º, n.º 1 e 2) ou negligente (art.º 274.º, n.ºs 3, 4 e 5).

Assim, quanto ao tipo subjetivo do ilícito, o crime de incêndio é um crime essencialmente doloso na medida em que comporta a existência de qualquer uma das formas de dolo mas que, face à construção assinalada do tipo objetivo isso implica que o agente tenha não só de querer e representar uma das condutas descritas mas também que represente e queira um resultado de perigo-violação referente aos bens jurídicos determinados no tipo. Se, outrossim, o agente quis provocar o incêndio que provocou mas apesar dessa prática perigosa estava convencido de que não criaria nenhum resultado de perigo-violação, ter-se-á de concluir que essa convicção se baseava em juízo pouco prudente revelador de negligência, sendo esta a situação prevista no n° 3 do artigo. Mas se o agente acendeu um fogo e não teve as cautelas exigidas para que esse fogo não alastrasse e não se tornasse um incêndio florestal, o que, porém, veio a acontecer, atuou ele de modo negligente sendo a sua conduta prevista e punida no nº 4 do artigo.

Em resumo, e em conformidade com a Ata da Sessão 32º da Comissão Revisora, de 90.05.17, a estrutura do tipo de crime (à semelhança do previsto no art.º 272.º do Código Penal) é tripartida com a seguinte configuração:

- Ação dolosa e criação dolosa de perigo (n.º 1 e 2);
- Ação dolosa e criação negligente de perigo (n.º 3);
- Ação negligente (n.º 4).

No caso em apreço, a assistente faz uma imputação aos três arguidos, em coautoria, do crime de incêndio florestal na forma na forma negligente (art.º 274.º, n.º 3 do Código Penal), embora, indevidamente façam referência ao n.º 2 do art.º 274.º (forma dolosa).

A negligência encontra-se delimitada no artº 15º, do Código Penal. Como resulta desta norma, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas atua sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ou não chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto (negligência inconsciente).

Temos, pois, que a negligência é antes de mais a violação de um dever objetivo de cuidado, consistindo este em o agente não ter usado aquela diligência exigida segundo as circunstâncias concretas, para evitar o evento (vide Eduardo Correia, in «Direito Criminal», vol. 1, pág. 421 e segs.).

Quer isto dizer que a realização de um tipo legal de crime negligente só pode censurar-se ao agente na medida em que este tenha omitido aqueles deveres de diligência a que, segundo as circunstâncias e os seus conhecimentos e capacidades pessoais, era obrigado, e que em consequência disso, não previu - como podia - aquela realização do crime, ou tendo-a previsto, confiou em que ela não teria lugar.

O tipo de culpa traduz-se na violação do cuidado a que o agente, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de prestar – Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Questões fundamentais, a doutrina geral do crime, pág. 633.

“Somente quando o tipo de ilícito negligente se encontra preenchido pela conduta tem sentido indagar ainda se o mandado geral de cuidado e previsão podia também ter sido cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades individuais, a sua inteligência e a sua formação, a sua experiência de vida e a sua posição social” – ob. cit. pág. 634.

Diz este professor que “a responsabilização de alguém por um delito negligente implica sempre uma “responsabilidade pelo acaso”” O resultado não tem uma função somente limitadora, mas constitutiva do desvalor unitário do ilícito negligente: é a partir deste desvalor que se compreende a finalidade da norma, como é a partir dele que se determina a medida do cuidado devido. A responsabilização é fundada num efetivo desvalor da ação e de resultado. “O elemento que parece conferir especificidade ao tipo ilícito negligente é a violação pelo agente, de um dever objetivo de cuidado que, no caso sobre ele impendia” – ob. cit. pág. 638.

Por cuidado objetivamente devido deve entender-se a “violação de normas de cuidado que servem concreta e especificamente o tipo de ilícito respetivo, não da observância geral do cuidado com que toda a pessoa deve comportar-se no seu relacionamento interpessoal e comunitário” – ob. cit. § 10.

A violação do dever objetivo de cuidado deriva de normas jurídicas de comportamento existentes – sejam gerais e abstratas, inseridas em leis ou regulamentos, sejam individuais, contidas em ordens ou prescrições da autoridade competente. A violação de tais normas constituirá indício de conduta contrária ao cuidado objetivamente exigido, mas não pode por si só fundamentá-lo. Efetivamente quando o perigo típico do comportamento pressuposto pela norma jurídica falte, não pode tal comportamento ser contrário ao dever objetivo de cuidado. Pode também derivar de normas reguladoras de certos tipos de atividade.

Por outro lado, a responsabilidade criminal das pessoas coletivas encontra-se prevista no art.º 11.º, n.º 2 do Código Penal, nos termos do qual “As pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 152.º-A e 152.º-B, nos artigos 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 176.º, 217.º a 222.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285,º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 376.º, quando cometidos: a) Em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem”.

Assim, o facto praticado em nome e no interesse coletivo não é elemento constitutivo do tipo de crime, mas condição da imputação. A lei portuguesa não se basta com que a infração seja praticada pelo órgão ou representante da pessoa coletiva, exige ainda que o facto seja praticado em nome e no interesse dela. Aquela exigência como que delimita negativamente os casos em que a vontade do órgão não se confunde necessariamente com a vontade própria da pessoa coletiva.

Para a delimitação do conceito de representante da pessoa coletiva chama-se à colação as considerações tecidas por Fernanda Palma, a propósito da norma idêntica do nº 1 do artº 7º do RJIFNA, aprovado pelo DL nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, na declaração de voto aposta no acórdão do Tribunal Constitucional nº 395/2003, publicado no DR, II serie, de 06/02/2004: “(...) a expressão «representante de pessoa coletiva» só abrange com precisão e determinabilidade as pessoas que são representantes legais de pessoas coletivas, não podendo o intérprete fundamentar, consistentemente, na expressão «representante de pessoa coletiva» a inclusão de quaisquer pessoas que ajam no interesse e em nome de uma pessoa coletiva ou, mesmo mais restritivamente, certas categorias de pessoas que ajam nessas condições. A ratio legis exige que esse nexo de imputação se construa a partir de agentes cuja atuação deva ser considerada como «a voz e o corpo» da pessoa coletiva, por ela poder controlar tais agentes.

Assim, a legislação reconhece e aplica a teoria da vontade própria da pessoa coletiva dirigida para o cometimento do ato criminoso, criando critérios subjetivos e objetivos para a sua aferição.

Recorde-se que a culpa não é transmissível e a pessoa coletiva assume de forma distinta das pessoas que representam os seus órgãos a culpa no cometimento da infração.

Efetuadas estas considerações, é bom de ver que no caso concreto a assistente CM não cumpriu no seu requerimento o que lhe era exigível em termos de imputação de um facto ilícito típico a um agente concreto.

Em primeiro lugar, indica que pretende a pronúncia da denunciada EDP. Ora, no caso inexiste arguido constituído, sendo que a denominação EDP é insuficiente para designar quem é a pessoa coletiva em concreto, já que sob a designação EDP existem várias pessoas coletivas: EDP, Energias de Portugal, S.A., EDP Comercial, S.A, EDP Distribuição de Energia S.A., EDP Renováveis, S.A., entre outras. No entanto, e considerando o objeto social de cada uma delas, a EDP Distribuição de Energia S.A. seria a responsável pela manutenção da linha, pelo que poderíamos entender que a instrução havia sido requerida contra esta pessoa coletiva.

Acresce que não alegou a assistente factos relativos ao direito de propriedade sobre os bens ardidos e deveria tê-lo feito. Em processo-crime não se pode “presumir” factualidade não alegada.

Noutra medida, compulsados os factos alegados pela assistente e que constam do requerimento de abertura de instrução, concluímos que os mesmos não são suficientes para preencher o tipo legal de crime imputado (presumindo-se que à pessoa coletiva EDP - Distribuição de Energia, S.A.).

A responsabilidade criminal das pessoas coletivas não é objetiva.

Efetivamente, o facto praticado em nome e no interesse coletivo não é elemento constitutivo do tipo de crime, mas condição da imputação.

Impendia sobre a assistente a obrigação de alegar que o ato omitido, gerador de responsabilidade, foi cometido por representante da denunciada e no interesse da atividade por esta preconizadas (interesse coletivo), ainda que não soubesse, em concreto, identificar essa pessoa. A descrição factual efetuada pela assistente é omissa nessa parte. Sem esses factos não pode ser imputado o crime à sociedade denunciada.

Por outro lado, não é alegado que algum representante da denunciada tivesse omitido o cumprimento de dever jurídico suscetível de desencadear a sua responsabilidade penal, ainda que a título negligente, nomeadamente que tivesse descurado o seu dever de vigilância da atividade exercida por algum funcionário seu, e, na afirmativa, em que medida. Importaria alegar esses factos. A alegação de que não foi efetuada a gestão do combustível na faixa por baixo dos cabos de média tensão, por si só, é insuficiente.

Acresce ainda que a negligência, tal como o dolo, tem dois elementos: o volitivo e o intelectual. Na descrição factual não se encontra qualquer referência factual donde se possa extrair o dolo ou a negligência. Ao que acresce que o facto de não se saber se a imputação que é feita é a título doloso ou negligente, já que apenas há referência ao art.º 274.º do Código Penal. Efetivamente, o facto de o incêndio poder ter sido provocado pelo toque de uma árvore na linha não traduz em si uma violação de um dever de cuidado, consubstanciador de ato negligente, suscetível de gerar responsabilidade criminal para a aqui denunciada. A realização de um tipo legal de crime negligente só pode censurar-se ao agente na medida em que este tenha omitido aqueles deveres de diligência a que, segundo as circunstâncias e os seus conhecimentos e capacidades pessoais, era obrigado, e que em consequência disso, não previu – como podia – aquela realização do crime, ou, tendo-a previsto, confiou em que ela não teria lugar.

Ora, é evidente que a instrução requerida por assistente tem que conter a alegação de factos concretos, e a sua subsunção jurídica, o que no caso não ocorre, pois ao longo do articulado mencionam-se factos, desgarrados e sem sequência, não cabendo ao Juiz de Instrução compila-los e tentar transformá-los numa imputação concreta.

Mas ainda que fosse efetuado esse esforço, a factualidade descrita ao longo do articulado não é suficiente para imputar o crime em causa, já que a própria assistente não especificou sequer se estamos perante o tipo doloso ou negligente. Seria a mesma coisa que numa imputação de homicídio dizer-se apenas que A matou B.

Incumbia à assistente elencar os factos concretos que pretende imputar a pessoa concreta, e ainda indicar as disposições legais aplicáveis, em termos idênticos ao que o Ministério Público faz quando deduz acusação.

Não reunindo o requerimento de abertura de instrução os requisitos legais, caberá ao Juiz de Instrução rejeitá-lo, já que o mesmo não é passível de aperfeiçoamento (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2005 -publicado no D.R., I-A, de 04-11-2005 -, nos termos do qual foi fixada jurisprudência nos termos seguintes: “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”).

Em face do exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução efetuado pela CM na qualidade de assistente, por inadmissibilidade legal, ao abrigo do disposto no artigo 287º, nº 3, do CPP.

Custas pela assistente, que se fixam em 2 UC, onde se inclui o valor já pago a título de taxa de justiça devido pela abertura de instrução.
Notifique”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.
Alega a recorrente que, face ao requerimento para abertura da instrução por si apresentado, não corre qualquer motivo para rejeição da instrução.

Cumpre decidir.
Sendo a instrução uma fase jurisdicional, a actividade processual desenvolvida em tal fase é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações (cfr., neste sentido, Prof. Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in “Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal”, CEJ, 1988, pág. 16).

Por isso, a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito, antes contempla a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

Em boa verdade, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, sempre tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o nº 2 do artigo 287º do C. P. Penal (cfr. artigo 288º, nº 4, do mesmo código).

O artigo 286º, nº 1, do C. P. Penal, indica expressamente como objectivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A abertura de instrução, como decorre do preceituado no artigo 287º, nº 1, al. b), do C. P. Penal, pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

Dispõe o nº 2 deste mesmo artigo 287º que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, nº 3, als. b) e c), do C. P. Penal.

No que tange à acusação pelo Ministério Público, estabelece este último preceito que a mesma contém, além do mais, sob pena de nulidade: b) “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

Quanto à direção e natureza da instrução, e como acima já aflorado, dispõe o artigo 288º, nº 4, do C. P. Penal, que o juiz de instrução investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em consideração a indicação constante do requerimento da abertura de instrução.

Por sua vez, determina o artigo 307º, nº 1, do mesmo C. P. Penal, que, encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução.

Acresce que o artigo 309º, nº 1, do C. P. Penal, prevê que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.

Resulta do exposto que, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, o requerimento de abertura de instrução determinará o objeto da instrução, definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como da decisão instrutória de pronúncia.

Assim sendo, e por outras palavras, podemos legitimamente afirmar que o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente tem de constituir, substancialmente, uma acusação alternativa, que, dada a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público (no seu despacho de arquivamento), vai, necessariamente, ser sujeita a comprovação judicial.

Nestes termos, perante o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, sendo que tal requerimento contém substancialmente uma acusação, deverá o mesmo fazer a narração dos factos, tal como para a acusação o impõe o artigo 283º, nº 3, al. b), do C. P. Penal.

Aliás, a importância da fixação do objeto da instrução liga-se diretamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, ainda que mitigada pelo princípio da investigação judicial (cfr. artigo 289º, nº 1, do C. P. Penal, na fase da instrução), e, por outro lado, com a existência de todas as garantias de defesa (cfr. artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa).

À luz dos anteriores considerandos, e analisado o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente, verifica-se que o despacho revidendo não nos merece qualquer reparo ou censura.

Desde logo, e como bem se assinala no despacho recorrido, no requerimento para abertura da instrução em apreço não estão descritos, de modo algum (bem ou mal, de forma completa ou parcial), os elementos subjetivos do crime imputado à “EDP” em tal requerimento.

Assim sendo, tal como se encontra configurada no requerimento para abertura da instrução, a conduta da “EDP” é criminalmente atípica, por ausência dos elementos subjetivos do crime imputado pela assistente à “EDP” (note-se, com interesse para a questão que agora nos ocupa, o decidido no Acórdão nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 20-11-2014 e publicado em DR, I série, de 27-01-2015, o qual uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do CPP”).

Depois, também os elementos objetivos do crime em causa não estão descritos com rigor, concretude, consistência e apreensibilidade, traduzindo o vertido no requerimento para abertura da instrução, isso sim, uma manifestação de mera discordância com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.

Aliás, a própria assistente, na motivação do presente recurso, reconhece essa realidade (ainda que de forma não explícita), nomeadamente quando alega que, “ao não inquirir as testemunhas indicadas, o tribunal a quo inviabilizou a produção de prova, que teria permitido concretizar quais os factos a imputar diretamente à referida entidade” (a “EDP”), e, bem assim, quando afirma que “as testemunhas em causa, algumas das quais identificadas no decurso do inquérito, poderiam carrear para os Autos matéria relevante, por terem conhecimento direto de factos, conhecimento que a Assistente não tem” - sublinhados nossos -.

Por outras palavras: vendo encerrado o inquérito, e discordando do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, a assistente requereu a abertura de instrução, mas, ao fazê-lo através do requerimento indeferido pelo despacho revidendo, a assistente não atentou na exigência legal segundo a qual o requerimento para abertura da instrução tem de conter todos os factos necessários para o preenchimento do tipo legal de crime imputado (ou seja, o requerimento para a abertura da instrução deve funcionar, em substância, como uma acusação, sendo ainda que, só no caso de esse requerimento assim se configurar, o Juiz de Instrução poderá declarar aberta a instrução e iniciar a atividade investigatória e cognitiva que a lei lhe impõe).

Ora, e repete-se, esses concretos factos, imputados à “EDP”, não estão descritos, com o mínimo de suficiência, no requerimento para abertura da instrução em apreço (como a própria assistente reconhece na motivação do recurso e acima já referimos), e, ao contrário do entendimento expresso na motivação do recurso, não podem ser as testemunhas (ou outros quaisquer elementos de prova), na fase da instrução, a trazer ao processo os factos não elencados no requerimento para abertura da instrução.

Em suma: lido (e relido) o requerimento para abertura da instrução em causa, verifica-se, manifestamente, que, nele, não são descritos factos concretos, minimamente circunstanciados e apreensíveis, que permitam integrar os elementos objetivos do imputado crime de incêndio florestal, sendo certo, por outro lado, que o Juiz de Instrução não pode “criar” por si a factualidade em falta (mesmo que, durante as diligências de instrução, concluísse pela existência de indícios dessa factualidade agora em falta).

Por último, nem sequer a arguida está suficientemente identificada no requerimento para abertura da instrução em análise.

Com efeito, no requerimento para abertura da instrução que apresentou, a assistente indica, sempre e sem mais, a “EDP” como “autora” de um crime de incêndio florestal, solicitando ao Juiz de Instrução que faça diligências com vista a apurar os factos que permitam afirmar essa “autoria”.

Ora, e conforme se escreve no despacho recorrido, “no caso inexiste arguido constituído, sendo que a denominação EDP é insuficiente para designar quem é a pessoa coletiva em concreto, já que sob a designação EDP existem várias pessoas coletivas: EDP, Energias de Portugal, S.A., EDP Comercial, S.A, EDP Distribuição de Energia S.A., EDP Renováveis, S.A., entre outras”.

Neste ponto, como nos anteriores, a assistente esqueceu (com o devido respeito) que a estrutura acusatória do processo penal português implica, necessariamente, que, no requerimento para abertura da instrução, o assistente tenha de identificar, com rigor, as pessoas (singulares ou coletivas) que pretende sejam submetidas a julgamento.

Em jeito de síntese de tudo o que ficou exposto, e usando as palavras da Exmª Procuradora-Geral Adjunta constantes do seu parecer, a propósito do requerimento para abertura da instrução apresentado nos autos pela assistente, “a simples leitura da peça processual em causa permite verificar a sua deficiente formulação, já que na mesma não vêm expressos elementos mínimos tendentes à identificação da arguida, com identificação expressa e completa da pessoa coletiva que pretende submeter a julgamento, não consta a narração sintética dos factos concretos suscetíveis de, em abstrato, integrar o crime que, na ótica da assistente, deve ser imputado, com menção do lugar e do tempo da sua prática (…), e, por fim, também a factualidade integradora do elemento subjetivo do tipo legal a imputar não se mostra suficientemente contida na descrição da atuação da eventual arguida”.

Por via de tudo o que vem de dizer-se, o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente não é processualmente apto para a pronúncia de quem quer que seja, tudo se passando como se não tivesse havido requerimento, o que determina a impossibilidade de abertura da fase de instrução.

Face ao predito, o recurso interposto pela assistente é de improceder.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso da assistente, mantendo-se, consequentemente, o douto despacho revidendo.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.
*
Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 05 de novembro de 2019
____________________________
(João Manuel Monteiro Amaro)
____________________________
(Laura Goulart Maurício)