I. A eficácia do caso julgado material exclui toda a situação ou efeito contraditório ou incompatível com aquele que ficou definido na decisão transitada, tendo por finalidade evitar decisões concretamente incompatíveis, isto é, que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas.
II. A regra da prevalência da primeira decisão transitada em julgado, enunciada no artigo 625º, nº1 do Código de Processo Civil, vale apenas e tão só se a segunda decisão for contraditória com a primeira decisão, ou seja, se decretar efeitos jurídicos incompatíveis com os efeitos decretados pela primeira decisão.
III. A contradição prevista no artigo 625º, nº1 do Código de Processo Civil deve referir-se não apenas ao sentido das decisões (condenação e absolvição), mas também aos próprios termos das condenações.
IV. Há contradição de julgados não apenas quando a parte dispositiva da segunda decisão é essencialmente diferente da primeira, independentemente de os fundamentos serem ou não os mesmos, mas também quando a parte dispositiva da segunda decisão é idêntica à da primeira, mas a sua fundamentação é essencialmente diferente.
V. Diferentemente, há repetição ou conformidade de julgados se a parte dispositiva da segunda decisão e a sua fundamentação não for essencialmente diferente à da primeira decisão.
VI. Se a segunda decisão transitada em julgado for conforme com a primeira decisão transitada em julgado, ou seja, se decretar os mesmos efeitos jurídicos, deve ser cumprida a segunda decisão, tornando-se ineficaz a decisão mais antiga a partir da segunda decisão em diante.
2ª SECÇÃO CÍVEL
I. Relatório
1. Nos presentes autos, foi proferido o seguinte despacho:
«No já longínquo dia 30 de Maio de 2003 os autores AA, BB, e CC intentaram a presente acção declarativa, então sob a forma ordinária, sendo réus DD e EE.
O fundamento da acção é simples de relatar - invocando a qualidade de filhos do falecido FF, afirmam que este em vida constituiu determinada sociedade (de seu nome "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA"), de cujo capital social era proprietário quase exclusivo, apesar de, por na altura estar em litígio judicial com a sua então ainda esposa, ter solicitado à aqui ré DD que formalmente detivesse em seu nome a participação que verdadeiramente pertencia ao FF.
Afirmaram que a ré DD, à data do falecimento do FF, verdadeiramente não era titular de mais de 100 acções da sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA", e que a mesma ré tem recusado reconhecer o direito dos herdeiros à titularidade das ditas acções.
A acrescer, alegaram que os réus se apropriaram da quantia total de € 204 507,12, pertença do mesmo FF, cuja restituição à herança pretendem.
Esta quantia teria estado depositada na conta bancária do então "Banco HH" com o n° 3…06, da qual os réus alegadamente teriam utilizado € 73 822,08, e reteriam ainda € 130 685,04 (cfr artigos 86° a 91° da petição inicial).
Concluíram pedindo o reconhecimento dos direitos da herança sobre os ditos títulos, a anulação de eventuais deliberações sociais que tenham sido tomadas após o falecimento do FF, e a condenação dos réus a restituírem à herança a quantia global de € 204 507,12, acrescida de juros moratórios.
Na sua contestação os réus, após arguirem a ilegitimidade processual activa dos autores, a incompetência absoluta do tribunal quanto a um dos pedidos, a cumulação ilegal de pedidos e a ilegitimidade processual passiva dos réus, limitaram-se a pedir a improcedência do pedido dos autores, defendendo a sua titularidade das acções a que os autores se referem e negando a apropriação de dinheiros alheios.
Na sua réplica, os autores, em súmula, à cautela vieram requerer a redução do pedido, manifestando intenção de excluir da acção o pedido de declaração de nulidade de deliberações sociais, e requereram a intervenção principal provocada activa de II e JJ.
Admitido que foi o chamamento, as intervenientes apresentaram articulado autónomo, que foi mandado desentranhar por extemporâneo (cfr fls 234).
Foi proferido despacho saneador que, no que para o caso releva, admitiu a redução do pedido na réplica declarada pelos autores, julgou prejudicada as excepções dilatórias de ilegitimidade processual, e improcedentes as restantes excepções dilatórias.
Instruída a causa, foi em primeira instância proferida sentença que a) declarou a herança indivisa de FF exclusiva proprietária de 8400 acções, no valor nominal unitário de € 4,99, da sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA"; determinou a entrega à mesma herança indivisa dos títulos emitidos com referência à sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA"; e condenou os réus a restituírem ainda à mesma herança a quantia de € 130 685,04, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde 14 de Outubro de 2001.
Interposto recurso pelos réus, o Tribunal da Relação do Porto confirmou a sentença proferida em 1ª instância.
Novamente não se conformando com o decidido, os réus interpuseram revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que a negou.
Tendo os réus ainda questionado a conformidade constitucional de determinada interpretação/entendimento, que consideraram ter sido deixado expresso pelo Supremo Tribunal de Justiça quanto ao sentido e alcance dos artigos 577°, 578° e 580°, todos do Código de Processo Civil, pelo Tribunal Constitucional foi decidido não conhecer do recurso.
Já de regresso a este tribunal, os réus vieram requerer a apreciação da existência de caso julgado, concretamente entre a decisão proferida no presente processo e o decidido no âmbito da acção n° 1999/04.3TVPRT (questão que, verdade seja dita, já anteriormente haviam suscitado no processo, além do mais nas alegações do recurso que interpuseram da sentença proferida em 1a instância), pretensão que inicialmente mereceu a decisão prolatada a fls 4446 (indeferindo a apreciação pretendida), decisão que veio a ser revogada pelo Tribunal da Relação do Porto (no âmbito do apenso E), expressamente determinando a prolação de decisão que conheça da eventual existência de contradição entre a decisão final proferida nestes autos e a proferida no âmbito do processo n° 1999/04.3TVPRT, decisão que pelo Supremo Tribunal de Justiça foi mantida em recurso de revista na matéria interposto pelos autores.
Ora, como linearmente resulta de fls 4506 e ss, a acção n° 1999/04.3TVPRT foi intentada pela aqui interveniente II, na qualidade de cabeça-de-casal da herança deixada por óbito de FF, contra os aqui réus, a qual, afirmando que os aqui réus mantinham na sua posse valores em títulos e dinheiro pertença da dita herança, depositados nas contas do então "Banco HH" n° 3…06 e n° 3…36, pretendeu a condenação dos réus a restituírem os títulos e valores nessas contas depositados.
Na dita acção n° 1999/04.3TVPRT a II e os réus acabaram por transigir, reconhecendo os réus àquela o direito à administração dos valores depositados nas contas bancárias n° 38…06 e n° 38…36 do agora "Banco KK, S.A.", à data em que nesse processo foi decretado o arrolamento, dando ordem a esta instituição para transferência de tais valores para conta bancária titulada pela ali autora, II, que identificam.
A transacção foi homologada por decisão transitada em julgado, proferida a 26 de Novembro de 2004.
Escusado seria dizê-lo, as excepções de litispendência e de caso julgado antes de mais visam impedir a prolação de 2 decisões sobre a mesma questão.
E a força do caso julgado manifesta-se em 2 vertentes: por um lado, a questão decidida não pode ser de novo reapreciada [excepção dilatória (ou efeito negativo) do caso julgado]; por outro lado, o respeito pelo conteúdo da decisão anteriormente adoptada implica que não possa haver decisão posterior que a contrarie [autoridade (ou efeito positivo) do caso julgado].
Na sequência, o artigo 625° do Código de Processo Civil regula quanto à existência de decisões de mérito contraditórias sobre a mesma questão jurídica, proferidas no âmbito de processos diversos, ambas insusceptíveis de recurso ordinário.
Contradição que, pelo menos, se deverá traduzir na existência de comandos com conteúdo não conciliável no segmento decisório das sentenças proferidas - ou seja, devemos estar perante "(...) decisões não conciliáveis nos seus próprios termos, quanto ao seu próprio objecto" (acórdão do STJ de 24 de Outubro de 2002, disponível em www.dgsi.jsti.pt/).
No caso não parece oferecer dúvida que a presente acção e a que correu termos sob o n° 1999/04.3TVPRT possuíram objecto parcialmente sobreposto - concretamente a matéria relativa à titularidade dos valores depositados na conta bancária do então "Banco HH" n° 3…06.
Em ambas acções a qualidade jurídica dos sujeitos intervenientes foi indiscutivelmente idêntica - na presente acção assumiram a posição de autores alguns dos herdeiros do falecido FF, em representação desta herança demandando as pessoas físicas que igualmente assumiram a qualidade de réus na acção n° 1999/04.3TVPRT.
Esta última foi intentada, como se disse, pela II, na qualidade de cabeça-de-casal da herança deixada pelo falecido FF.
A mesma II que, precisamente porque interessada na herança do dito FF, foi chamada a intervir como parte principal na presente acção.
Mas o que ao signatário surge absolutamente surpreendente é a manifesta falta de fundamento do alegado pelos aqui réus no seu requerimento de fls 4292 a 4299 pelo simples motivo de ... inexistir qualquer contradição entre o decidido nas 2 acções!!.
É que na acção que correu termos sob o n° 1999/04.3TVPRT, por transacção, foi reconhecida a pertença dos valores depositados na conta bancária n° 3…06 (hoje do "Banco KK, S.A.") à herança do falecido FF, por referência à data do decretamento do arrolamento no mesmo processo n° 1999/04.3TVPRT, reconhecimento que, como se disse, igualmente teve lugar no âmbito dos presentes autos (com a pequena especialidade de nesta acção se liquidar em € 130 685,04 o valor a restituir).
Ou seja, a existência de casos julgados contraditórios, realidade a que se refere a norma consagrada no actual artigo 625° do Código de Processo Civil (norma em absoluto equivalente ao artigo 675° do regime processual civil anterior à reforma), e pressuposto da sua aplicação, simplesmente não se verifica.
O requerido a fls 4229 manifestamente não possui fundamento.
*
Custas do incidente pelos réus, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs - artigo 527° do Código de Processo Civil e artigo 7º e tabela II do regulamento das custas processuais.».
2. Inconformados com esta decisão, dela apelaram a DD e marido para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão proferido em 18.12.2018, julgou totalmente improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
3. Inconformados de novo com esta decisão, vieram DD e marido interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo as suas alegações cm as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1.ª - Na parte da condenação no pagamento de 130.685,04 euros, a sentença transitada em julgado e proferida no processo principal com o n.º 3076/03.5 TVPRT e a sentença homologatória da transação efetuada no processo 1999/04.3TVPRT da … Secção da extinta … Vara Cível dizem respeito à mesma pretensão dos autores em ambos os processos e são contraditórias, devendo cumprir-se, nos termos do artigo 625.º - n.º 1 do CPC, que o douto despacho proferido em 1.ª instância e o acórdão em recurso violaram, a que transitou em julgado em primeiro lugar, que é a sentença homologatória da transação.
2.ª - Mas o douto despacho proferido em 1.ª instância concluiu que inexiste qualquer contradição entre o decidido nas duas ações, a pretexto de que, na ação que correu termos sob o n.º 1999/04.3TVPRT, por transação, foi reconhecida a pertença dos valores depositados na conta bancária n.º 3…06 (hoje do Banco KK, S.A.) à herança do falecido FF, por referência à data do decretamento da arrolamento no mesmo processo n.º 1999/04.3TVPRT, reconhecimento que, como se disse, igualmente teve lugar no âmbito dos presentes autos (com a pequena especialidade de nesta ação se liquidar em euros 130.685,04 o valor a restituir)”.
3.ª - A pequena especialidade de na decisão desta ação se liquidar em 130.685,04 euros o valor a restituir consiste, sim, em, surpreendentemente, quase dez anos depois de instaurada esta ação, nela ter sido proferida a sentença de 9/4/2010 que condenou os réus aqui recorrentes “a devolver e a restituir ao acervo hereditário indiviso da herança por morte do Dr. FF o montante de 130.685,04 euros correspondente a Esc. 26.200.000$00 que retêm e fazem parte do referido acervo hereditário da herança por morte do Dr. FF acrescidos de juros vencidos e vincendos à taxa legal desde 14 de Outubro de 2001 até efetivo e integral pagamento” – certidão da sentença.
4.ª E o certo é que os ora recorrentes já nada retinham daquele acervo hereditário naquela data de 14 de Outubro de 2010, porque, em 23 de novembro de 2004, quase seis anos antes, tinham outorgado em transação que foi homologada por sentença no P. º n.º 1999/04.3TVPRT, - certidão junta ao P. º n.º 3076/03.5TVPRT com a referência 18540611- e que integralmente cumpriram – certidão do processo de arrolamento junta com o requerimento de 16/9/2015 com a referência 6391946 - sentença que os condenou nos precisos termos da transação, pois que, ao contrário do que se pressupõe no douto despacho proferido em 1.ª instância, em violação do artigo 290.º, n.º 3 do CPC, uma sentença homologatória de transação condena ou absolve nos precisos termos da transação.
5.ª - A questão do requerimento dos aqui recorrentes indeferido pela decisão proferida em 1.ª instância e confirmado pelo acórdão em recurso, questão que é a de que, das duas decisões contraditórias, se cumpra a que passou em julgado em primeiro lugar, como é direito dos recorrentes, nos termos do artigo 625.º do CPC, normativo que rege para as situações em que há duas decisões contraditórias e que o despacho proferido em 1.ª instância e o acórdão em recurso violaram, deixando de o aplicar, não tinha sido suscitada no P. º n.º 3076/03.5TVPRT, além do mais nas alegações de recurso da sentença proferida em 1.ª instância, como se diz entre parêntesis, no douto despacho proferido em 1.ª instância.
6.ª - É certo que os ora recorrentes já haviam suscitado a questão do caso julgado no P. º n.º 3076/03.5, designadamente nas alegações de recurso que interpuseram da sentença proferida em 1.ª instância para a Relação do Porto e para o Supremo Tribunal de Justiça e que o acórdão do S.T.J. tão só não julgou procedente a exceção dilatória de caso julgado, mas decidiu que, no pressuposto de ter sido homologada por sentença com trânsito em julgado, sentença que não tinha sido junta, a exceção perentória de transação, como a qualificou A. dos Reis, no 3.º vol. do Comentário, tem, entre as partes, o valor de caso julgado - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no P. 9 n.9 3076/03.5TVPRT
7.ª - E não se diga, como naquele acórdão do STJ disse o nosso mais alto Tribunal, que, em caso de transação homologada por sentença, não estamos perante uma exceção de caso julgado, mas de uma exceção perentória de transação, com autoridade de caso julgado, interpretando os artigos 577.º - i), 578.º e 580.º - n.º s 1 e 2 do atual Código de Processo Civil de forma a afastar que eles abranjam o caso de transação homologada por sentença, pois esta interpretação daqueles artigos do Código de Processo Civil é inteiramente obsoleta, porque hoje o Código Civil de 1966 vigente não prescreve, nos artigos 1248.º a 1250.º sobre o contrato de transação, nada de semelhante ao que era estabelecido no artigo 1718.º do Código Civil de 1867, que conferia à transação a força de produzir entre as partes o efeito de coisa julgada, como se entendeu durante muito tempo dos dois últimos séculos até à publicação do atual Código Civil e até à Constituição de 1976, tanto mais que esta não permite aquela interpretação daqueles referidos artigos do CPC, sob pena de inconstitucionalidade, por violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, ínsitos no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
8.ª – E já MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1963, p. 282, ainda na vigência do Código Civil de 1876, incluía nas decisões a que compete o caso julgado material, ao lado das que versam sobre o fundo da causa e portanto sobre os bens discutidos no processo e das que estatuem sobre a pretensão do Autor, “as que definem a relação ou situação jurídica deduzida em juízo”, também quanto às quais o caso julgado material acresce ao formal, ali esclarecendo, na nota 4, que bastante próximo da autoridade de caso julgado material que compete a estas decisões é o valor jurídico da transação extrajudicial (Código Civil, artigo 1718.º) ou de outros possíveis negócios declarativos.
9.ª - Mas, quanto à transação judicial, hoje, para efeitos de exceção dilatória de caso julgado, não pode distinguir-se entre a sentença homologatória de uma transação, nos termos do atual artigo 290.º - n.º 3 do Código de Processo Civil vigente ou do artigo 300.º - n.º 3 do anterior Código, e uma sentença pela qual o Juiz decide a causa com base nos factos dados como provados e no direito aplicável - Ac. do STJ de 11.10.92, no BMJ n.º 420, pág. 431; Ac. do Tribunal da Rel. do Porto de 9/3/2000, na Col. Jur. 2000, 2.º, pág. 186; Ac. do STJ de 25/3/2004, no Proc. 04B4074/ITIJ/Net; e, finalmente, Ac. do STJ de 20-03-2014, proferido no P.º n.º 392/10.3TBBRG.G1.S1 – Relator CONS. FERNANDES DO VALE.
10ª - E sempre é certo que não se trata agora de decisão de uma exceção dilatória de caso julgado ou de uma exceção perentória de transação, questão que já foi julgada como exceção perentória de transação por acórdão transitado em julgado do STJ, pois do que se trata é de uma decisão sobre a questão da existência de duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, devendo cumprir-se a que transitou em julgado em primeiro lugar, nos termos do artigo 625.º do CPC, que o despacho proferido em 1.ª instância e o acórdão em recurso violaram, pois não pode deixar de abranger também a sentença homologatória de uma transação sob pena de se violar o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, ínsitos no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
11.ª Violaram o despacho proferido em 1.ª instância e o acórdão em recurso os referidos artigos 290.º n.º 3 e 625.º - n.º 1 do Código de Processo Civil e o referido princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, ínsitos no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, deve conceder-se provimento ao recurso e, revogando-se o douto acórdão recorrido, decidir-se que são contraditórias as decisões proferidas nos processos n.º s 3076/03.5TVPRT e 1999/04.5TVPRT sobre a mesma pretensão e deve cumprir-se a que transitou em julgado em primeiro lugar que foi a proferida no P. º n.º 1999/04.5, como é de JUSTIÇA!».
4. II e JJ responderam, concluindo as suas contra-alegações cm as seguintes conclusões, que se transcrevem:
A) Os recorrentes interpuseram recurso de revista alegando que há casos julgados contraditórios;
B) Os casos julgados contraditórios seriam a sentença proferida no Procº nº 3076/03.5TVPRT e a transação homologada no Procº nº 1999/04.3TVPRT;
C) De acordo com o artº 625 do Código de Processo Civil para que haja casos julgados contraditórios é necessário que ocorra a repetição de uma causa quanto aos sujeitos, ao pedido e à coisa de pedir;
D) Confrontando o processo nº 3076/03 com o processo nº 1999/04 verifica-se o seguinte:
· Quanto aos sujeitos:
- No Procº nº 1999/04 figura como autora II;
- No Procº nº 3076/03 figuram como autores: o AA, o BB e o CC e como Chamadas II e JJ;
· Quanto ao pedido:
- No Procº nº 1994/04 pede-se a devolução dos bens e valores depositados em duas contas bancárias;
No Procº nº 3076/03 pede-se além do mais, o reconhecimento da propriedade da herança indivisa do Dr FF como única e exclusiva titular de 8.400 acções da S.A.; a entrega dos títulos representativos dessas acções; a condenação dos Réus no
- pagamento de € 130.685,04 acrescidos dos juros desde 14 de Outubro de 2001;
· Quanto à causa de pedir:
- No Procº nº 1994/04 a autora II invoca a sua qualidade de cabeça de casal da herança do Dr FF enquanto administradora da herança jacente;
- No Procº nº 3076/03 os autores invocam a sua qualidade de herdeiros do Dr FF, a quem se transmitiram os direitos que integram o respectivo acervo hereditário;
E) Não há pois qualquer identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir entre as duas referidas ações, pelo que carece de qualquer fundamento a invocada exceção;
F) Acresce que esta alegada ofensa de caso julgado, se existisse, já tinha sido apreciada e decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça no recurso de revista interposto nos autos principais;
G) O que os recorrentes pretendem é que no presente recurso seja reapreciado o que já foi apreciado e decidido nos autos principais;
H) A sentença recorrida no Procº nº 3076/03 apreciou e decidiu o mérito da causa, tendo a força e o alcance de caso julgado material, nos termos do artº 621 do Código de Processo Civil;
I) Por seu turno no Procº nº 1999/04 foi proferida sentença homologatória da transação que não se pronunciou sobre o mérito da causa, antes se limitou a fiscalizar a regularidade e a validade do acordo;
K) Acresce que a transação celebrada no Procº nº 1999/04 não foi cumprida, pois a recorrida não recebeu na conta bancária nela indicada quaisquer valores ou depósitos;
L) Importa ainda referir que com recurso a estes expedientes processuais as recorrentes ainda nada receberam em consequência da sentença condenatória, apesar de a ação ter sido instaurada há mais de 15 anos, a sentença ter sido proferida há mais de 8 anos e o seu trânsito em julgado ter ocorrido há mais de 4 anos;
M) Isto apesar de os recorrentes não terem provado nos autos que tivessem procedido ao pagamento do montante condenatório no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença (artº 650, nº 3 do Código de Processo Civil);
N) E de o Tribunal de 1ª instância ter ordenado o cumprimento do disposto no artº 650, nº 4 do Código de Processo Civil, consubstanciado na execução da garantia bancária da Caixa LL. S.A.;
O) Impõe-se, por isso, que se faça cumprir a sentença condenatória transitada em julgado, em respeito pelas decisões judiciais e pelo Estado de Direito»
Termos em que concluem pela improcedência do recurso.
5. Remetido o processo à Formação de Juízes a que alude o art. 672º, nº3 do CPC, foi proferido acórdão que, tendo em conta que a presente ação foi intentada em 30.05.2003 e considerando ter a Lei nº 41/2013, de 26.06, ressalvado o disposto no nº3 do art. 671º e com ele o regime emergente da dupla conformidade, determinou a distribuição do recurso como revista normal.
6. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Delimitação do objeto do recurso
Antes de mais, importa reter que, tendo a presente ação sido interposta em 30.05.2003 e as decisões impugnadas proferidas em 24.05.2018 e em 18.12.2018, respetivamente pelo Tribunal de 1.ª Instância e pelo Tribunal da Relação, é aqui aplicável o regime do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/ 2013, de 26.06, nos termos do respetivo art.º 5.º, n.º 1, sendo aplicável aos recursos, nos termos do disposto no art. 7º, nº1 desta mesma lei, o regime decorrente do DL nº 303/2007, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela citada lei, com exceção do disposto no nº 3 do art. 671º do CPC.
Assim e consabido que, de harmonia com o disposto nos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1], diremos que, no âmbito do presente recurso, a única questão a decidir consiste em saber se são contraditórios os casos julgados formados pelas decisões proferidas nos processos nºs 3076/03.5TVPRT e 1999/04.5TVPRT.
III. Fundamentação
3.1. Fundamentação de facto
O Tribunal da Relação considerou que o quadro fáctico relevante era o extraído do relatório supra
3.2. Fundamentação de direito
Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se única e exclusivamente com a questão de saber se são contraditórios os casos julgados formados pelas decisões proferidas nos processos nºs 3076/03.5TVPRT e 1999/04.5TVPRT.
No sentido negativo pronunciou-se o despacho proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, considerando, no essencial, que, não obstante a presente ação e a ação nº 1999/04.3TVPRT, possuírem objeto parcialmente sobreposto, na medida em que ambas as ações foi reconhecida a pertença dos valores depositados na conta bancária n° 3…06 do, então, “Banco HH” (hoje do "Banco KK, S.A.") à herança do falecido FF, certo é que, na transação efetuada na ação nº 1999/04.3TVPRT, esse reconhecimento foi feito por referência à data do decretamento do arrolamento no mesmo processo n° 1999/04.3TVPRT, enquanto que na presente ação foi liquidado em € 130 685,04 o valor a restituir, o que tanto basta para se concluir pela inexistência de qualquer contradição entre o conteúdo material da decisão final proferida no âmbito destes autos e o conteúdo material da decisão final proferida no âmbito da ação declarativa que correu termos sob o n° 1999/04.3TVPRT.
Por sua vez, o acórdão recorrido, corroborando este entendimento, afirmou, no essencial, que:
« (…)
Como se viu, na primeira decisão transitada os réus reconheceram à herança o direito à administração dos valores depositados nas contas bancárias n° 3…06 e n° 3…36 do agora "Banco KK, S.A.", à data em que nesse processo foi decretado o arrolamento, dando ordem a esta instituição para transferência de tais valores para conta bancária titulada pela ali autora, II, na qualidade de cabeça de casal da herança.
Na decisão proferida nestes autos declarou-se a herança indivisa de FF exclusiva proprietária de 8400 acções, no valor nominal unitário de € 4,99, da sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA", determinou-se a entrega à mesma herança indivisa dos títulos emitidos com referência à sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA"; e condenou-se os réus a restituírem ainda à mesma herança a quantia de € 130 685,04, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde 14 de Outubro de 2001.
Desta enunciação é patente não haver qualquer contradição entre as citadas decisões. Em ambas ficou estipulada a pertença à herança dos valores depositados nas contas bancárias e entrega à mesma desses valores.
Na sentença dos autos determinou-se a entrega 130 685,04, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde 14 de Outubro de 2001.
Se, por acaso, a entrega deste montante já tivesse sido efectuada no cumprimento da primeira decisão, bastava aos réus comprovar nestes autos esse cumprimento, mas o certo é que nem sequer invocam tal facto».
Contra este entendimento, insurgem-se os recorrentes, sustentando que, na parte da condenação no pagamento de 130.685,04 euros, a sentença transitada em julgado e proferida no processo n.º 3076/03.5 TVPRT e a sentença homologatória da transação efetuada no processo 1999/04.3TVPRT da … Secção da extinta … Vara Cível dizem respeito à mesma pretensão dos autores em ambos os processos e são contraditórias, pelo que, nos termos do artigo 625.º - n.º 1 do CPC, deve cumprir-se a sentença homologatória da transação proferida no processo nº 1999/04.5TVPRT, por ser a decisão que transitou em primeiro lugar.
Vejamos, pois, de que lado está a razão, tendo em conta que, para a resolução desta questão, interessa ter presente a seguinte factualidade que vem demonstrada nos autos:
1º- Na ação com processo ordinário, instaurada em 08.04.2004 e que correu termos na extinta …Vara Cível do Porto, …Secção, sob o n° 1999/04.3TVPRT, II, na qualidade de cabeça-de-casal da herança deixada por óbito do seu falecido marido, FF, demandou os réus, DD e marido, EE, pedindo a condenação destes a restituírem à autora os bens e valores depositados nas contas bancárias nºs 3…06 e 3…36, do Banco KK, S.A.
Alegou, para tanto e em síntese, que a ré tinha em seu poder 41.000.000$00 da referida herança, que gastou parcialmente para proceder à liquidação de uma livrança, por ela avalizada e subscrita pela sociedade “ Laboratório de Análises Patológicas MM, Lda”, mantendo o remanescente daquele montante que, em 14 de outubro de 2001, rondaria os 26.200.000$00 em carteira de títulos e depósitos a prazo e à ordem, depositado na conta nº 3…06, aberta no Banco HH em nome dos réus.
Mais alegou que, apesar da ré ser titular da conta nº 3…36, sediada no Banco HH, os valores aí depositados também pertenciam à dita herança.
E alegou ainda que mau grado a ré ter confessado todos estes factos, os réus têm-se recusado a entregar à autora os bens e valores depositados nas duas referidas contas.
2º- Na dita ação n° 1999/04.3TVPRT, a II e os réus lavraram transação nos seguintes termos:
«Primeiro: os Réus declaram e reconhecem que os bens e valores existentes à data em que foi decretado o arrolamento e que se encontram nas contas bancárias nºs 3…06 e 3…36, domiciliadas no Banco KK, S.A., integram o acervo hereditário do falecido Dr. FF, competindo à autora a sua administração atenta a qualidade de cabeça de casal, conforme certidão extraída do processo de inventário.
Segundo: Em execução desta declaração e reconhecimento os Réus ordenam, de forma irrevogável e incondicional, ao Banco KK, S.A. que transfira os bens e valores depositados ou associados às contas bancárias nºs 3…06 e 3…36 para a conta bancária com o NIB 003…05, titulada pela Autora II, igualmente domiciliada no Banco KK, S.A., devendo as mencionadas contas ficar saldadas.
Terceiro: Em simultâneo com a introdução desta transação em Juízo, a Autora e os Réus apresentaram no Processo nº 2053-B/2002 da … Secção, do … Juízo Cível da Comarca do Porto, onde foi tramitado o procedimento cautelar de arrolamento, um requerimento a requerer o levantamento do arrolamento das contas bancárias números 3…06 e 3…36 para permitir que o Banco KK, S.A. possa fazer a aqui ordenada transferência.
Quarta: A transferência deve ser executada no prazo máximo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença homologatória desta transacção e do despacho que ordenar o levantamento do arrolamento.
Quinta: Custas em dívida a Juízo em partes iguais, prescindido reciprocamente de custas de parte e procuradoria».
3º- Esta transacção foi homologada por decisão transitada em julgado, proferida a 26 de Novembro de 2004, nos seguintes termos:
« (…)
Tal transacção é válida, quer objectiva, quer subjectivamente, pelo que ao abrigo dos arts. 293º, nº 2, 294º e 300º, todos do CP, homologa-se, por sentença, condenando-se as partes a cumprir nos precisos termos acordados. (…) »
4º- Em 30 de Maio de 2003 os autores AA, BB, e CC intentaram contra os réus DD e EE ação declarativa, com processo ordinário, que correu termos na … Vara dos Juízos Cíveis do Porto, sob o nº 3076/03.5TVPRT, pedindo que seja:
a) declarado que o falecido Dr. FF é o único e exclusivo proprietário de 8.800 ações – por força do aumento do capital social – do capital social da sociedade GG - Laboratório Anatomia Patológica, S.A., com sede na Rua …, …, …, …, matriculada na 1ª Secção da Conservatória do Registo Comercial do … sob o nº 6895.
b) Ser em consequência a R. condenada a devolver e entregar aos AA, os títulos que eventualmente tenham sido emitidos e que detém ilegítima e ilicitamente em referência à sociedade, GG - Laboratório Anatomia Patológica, S.A., com sede na Rua …, …, … , …, matriculada na 1ª Secção da Conservatória do Registo Comercial do … sob o nº 6895.
c) (…)
d) Serem os RR condenados a pagar uma indenização aos AA. no valor de 73.822,08 Euros, correspondente a 14.800.000$00, os quais eram da propriedade do falecido DR. FF, e que os RR gastaram em benefício próprio, sem qualquer título que legitimasse, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal, desde 14 de Outubro de 2001 até efetivo e integral pagamento, sendo os vencidos no valor de 8.228,23 Euros.
e) Serem os RR condenados a devolver e a restituir ao AA o montante de 130.685,04 Euros, correspondente a Esc: 26.200.000$00, que retêm abusivamente e que fazem parte do acervo hereditário da herança por morte do Dr. FF, pai dos AA., acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal, desde 14 de Outubro de 2001 até efetivo e integral pagamento, sendo os vencidos no valor de 14.554,38 Euros.
f) Serem os RR. Condenados no pagamento de custas e demais encargos legais.»
Como fundamento destes pedidos alegaram, para tanto e em síntese, serem filhos do falecido FF, que, em vida, constituiu a sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA", de cujo capital social era proprietário quase exclusivo, apesar de, por na altura estar em litígio judicial com a sua então ainda mulher, ter solicitado à ré DD que formalmente detivesse em seu nome a participação que verdadeiramente pertencia ao FF.
Mais alegaram que a ré DD, à data do falecimento do FF, verdadeiramente não era titular de mais de 100 ações da sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA", e que a mesma ré tem-se recusado reconhecer o direito dos herdeiros à titularidade das ditas ações.
Alegaram ainda que os réus apropriaram-se da quantia total de € 204 507,12, pertença do mesmo FF e que teria estado depositada na conta bancária do então "Banco HH" com o n° 3…06, da qual os réus alegadamente teriam utilizado € 73 822,08, e reteriam ainda € 130 685,04.
5º- Nesta ação nº 3076/03.5TVPRT, requereram os autores a intervenção principal provocada ativa de II e JJ, que foi admitida.
6º- Na ação nº 3076/03.5TVPRT foi, em 09.04.2010, proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência:
a) declarou a herança indivisa do Dr. FF a única e exclusiva proprietária de 8400 ações – por força do aumento do capital social- no valor nominal de € 4,99 cada uma, no capital da sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA"; determinou a entrega à mesma herança indivisa dos títulos emitidos com referência à sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA", com sede na Rua …, …, …, …, matriculada na 1ª Secção da Conservatória do Registo Comercial do … sob o nº 6895.
b) determinou a entrega ao acervo hereditário indiviso da herança por morte do Dr. FF, dos títulos emitidos com referência à sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA", com sede na Rua …., …, …, …, matriculada na 1ª Secção da Conservatória do Registo Comercial do … sob o nº 6895.
c) condenou os réus a devolver e a restituir ao acervo hereditário indiviso da herança por morte do Dr. FF o montante de € 130 685,04, correspondente a Esc: 26.200.000$00, que retêm e que fazem parte do acervo hereditário indiviso da herança por morte do Dr. FF, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde 14 de Outubro de 2001 até efectivo e integral pagamento.
7º- Inconformados com esta decisão, dela apelaram os réus para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão proferido em 9 de abril de 2013, confirmou a sentença proferida em 1ª instância.
8º- Novamente inconformados com esta decisão, os réus interpuseram revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão proferido em 23 de janeiro de 2014, confirmou o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, embora por fundamentação não coincidente com o mesmo.
Exposto este quadro factual, dele resulta evidente estarmos perante duas sentenças transitadas em julgado, que, de harmonia com o disposto no art. 619º, nº 1[2] do C.P. Civil, ficam a ter, no que respeita à relação material controvertida por elas decidida, «força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º ».
A eficácia do caso julgado material há-de analisar-se na vertente positiva, que impõe a vinculação a uma certa solução já definida e na vertente negativa, que reflete a impossibilidade ou proibição de que no futuro se venha a decidir questão já decidida, com trânsito em julgado, no sentido oposto.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa[3], «o caso julgado da decisão também possui um valor enunciativo: essa eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada. (…). Além disso, está igualmente afastado todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada».
Segundo Manuel de Andrade, a força obrigatória reconhecida ao caso julgado material, impõe-se por razões de «certeza ou segurança jurídica»[4] e tem por finalidade, « obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas), a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão e, portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados »[5].
Daí dispor o art. 625º do CPC que:
«1 - Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.
2 - É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual».
Daqui decorre, como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[6], que, não obstante os mecanismos previstos no CPC para evitar a consumação da violação do caso julgado, tais como a oficiosidade de conhecimento da existência de duas decisões contraditórias nos limites objetivos e subjetivos definidos pelo art. 581º, nos termos do art. 578º, e da recorribilidade sem dependência do valor da causa, nos termos do art. 629º, nº2, al. a), uma vez consumada a violação do caso julgado, os seus efeitos são remediados, a posteriori, através de uma medida que concede prevalência à decisão que transitou em primeiro lugar e que redunda na ineficácia da sentença coberta por trânsito em julgado posterior, constituindo ainda fundamento de oposição à execução que venha a ser instaurada com base em tal decisão (art. 729º, al. f) do CPC).
Com efeito, já ensinava Alberto dos Reis, a eficácia jurídica da segunda decisão fica prejudicada, paralisada pela força e autoridade do caso julgado anterior[7].
No mesmo sentido, referem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto[8] que a prolação de decisão de mérito que o caso julgado impediria conduz a que ela seja ineficaz.
De sublinhar, porém, que a regra enunciada no citado art. 625º, nº1, vale apenas e tão só se a segunda decisão for contraditória com a primeira decisão, ou seja, se decretar efeitos jurídicos incompatíveis com os efeitos decretados pela primeira decisão.
E, para este efeito, tal como refere o Acórdão do STJ, de 09.07.1986 (processo nº 038464)[9], a contradição prevista no citado artigo 625 nº.1, do CPC «deve referir-se não apenas ao sentido das decisões (condenação e absolvição), mas também aos próprios termos das condenações».
Dito de outro modo e nas palavras de Rui Pinto[10], «há contradição de julgados não apenas quando a parte dispositiva da segunda decisão é essencialmente diferente da primeira, independentemente de os fundamentos serem ou não os mesmos, mas também quando a parte dispositiva da segunda decisão é idêntica (ou não é essencialmente diferente) à da primeira, mas a sua fundamentação é essencialmente diferente».
Diferentemente e ainda no dizer deste mesmo autor, há repetição (ou conformidade) de julgados se a parte dispositiva da segunda decisão é idêntica (ou não é essencialmente diferente) à da primeira e a sua fundamentação não é essencialmente diferente».
Ora, analisando, neste contexto jurídico, as ações nº 1999/04.3TVPRT e nº 3076/03.5TVPRT-H e consabido que a identidade jurídica não tem necessariamente que coincidir com a identidade física dos sujeitos, antes interessando que estes atuem como titulares da mesma relação substancial, não afetando, por isso, a identidade dos sujeitos a simples diversidade da sua posição processual, como autores ou como réus, diremos, desde logo, não se suscitarem quaisquer dúvidas acerca da identidade dos sujeitos.
Com efeito, são réus numa e noutra ação, a DD e EE, sendo certo que a circunstância de na ação nº1999/04.3TVPRT ter intervindo apenas a II, na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por óbito de FF, e de na presente figurarem como autores os respetivos herdeiros, incluindo a referida II, não obsta à identidade dos autores, na medida em que eles são portadores do mesmo interesse substancial quanto à relação jurídica em causa, atuando com o mesmo interesse jurídico daquela herança[11].
De igual modo e, não obstante a presente ação ter um objeto mais amplo, a verdade é que, a nosso ver, ocorre a identidade do pedido formulado na ação nº1999/04.3TVPRT - condenação dos réus a restituírem à autora os bens e valores depositados nas contas bancárias nºs 3…06 e 3…36, do Banco KK, S.A. - e o pedidos formulados nas alíneas a) e b) da presente ação - declarado que o falecido Dr. FF é o único e exclusivo proprietário de 8.800 ações – por força do aumento do capital social – do capital social da sociedade GG - Laboratório Anatomia Patológica, S.A., com sede na Rua …, …, …, …, matriculada na 1ª Secção da Conservatória do Registo Comercial do … sob o nº 6895 e ser a R. condenada a devolver e entregar aos AA, os títulos que eventualmente tenham sido emitidos e que detém ilegítima e ilicitamente em referência à sociedade, GG - Laboratório Anatomia Patológica, S.A., com sede na Rua …, …, …, …, matriculada na 1ª Secção da Conservatória do Registo Comercial do Porto sob o nº 6895.
Acresce a identidade das causa de pedir, pois não há dúvida emergirem estes pedidos do mesmo facto jurídico concreto - serem os bens e valores depositados nas duas referidas contas nº 3…06 e nº 3…36 , abertas no Banco HH pertença da herança de FF e recusa dos réus em proceder à entrega desses mesmo bens e valores.
E se é certo que, em ambas as ações, foi reconhecido que os bens e valores existentes à data em que foi decretado o arrolamento e que se encontram nas contas bancárias nºs 3…06 e 3…36, domiciliadas no Banco KK, S.A., pertencem à herança indivisa do falecido Dr. FF, tendo os réus sido condenados a devolvê-los e a restituí-los a este acervo hereditário, não menos certo é que, enquanto na ação nº1999/04.3TVPRT foram condenados a dar ordem ao Banco KK, S.A. para que transferisse os referidos bens e valores para a conta bancária com o NIB 003…05, titulada pela cabeça de casal da dita herança, II, igualmente domiciliada no Banco KK, S.A., na presente ação foi reconhecido que os referidos títulos que os réus retêm - 8400 acções, no valor nominal unitário de € 4,99, da sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA" - são no montante de € 130 685,04, tendo os réus sido condenados a devolver e restituir este montante ao acervo hereditário indiviso da herança do falecido Dr. FF, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde 14 de Outubro de 2001 até efetivo e integral pagamento.
Mas sendo assim, tal como afirmaram as instâncias, não se vislumbra que os efeitos jurídicos decretados pela sentença proferida na presente ação sejam incompatíveis com os efeitos decretados pela sentença homologatória da transação proferida na ação nº 1999/04.3TVPRT, ou seja, não se vê a parte dispositiva da sentença proferida na presente ação seja “essencialmente diferente” ou inconciliável com a sentença homologatória, pelo que evidente se torna não estarmos perante caso julgados contraditórios.
No fundo, estamos perante duas decisões que decretaram o mesmo efeito jurídico principal – restituição à herança indivisa do falecido Dr. FF dos títulos emitidos com referência à sociedade "GG - Laboratório de Anatomia Patológica, SA", com sede na Rua …, …, …, …, matriculada na 1ª Secção da Conservatória do Registo Comercial do … sob o nº 6895, que os réus retinham se recusavam a entregar -, o que tanto basta para afastar a aplicação do preceituado no art. 625º, nº1 do CPC.
Daí que arredada a existência de casos julgados contraditórios e porque a sentença proferida nos presente autos tem um objeto mais amplo do que a sentença homologatória proferida na ação nº 1999/04.3TVPRT, na medida em que, na presente ação o valor dos referidos títulos foi fixado no montante de € 130 685,04, tendo os réus sido ainda condenados no pagamento de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde 14 de Outubro de 2001 até efetivo e integral pagamento, julgamos que, por razões de salvaguarda do princípio da certeza ou segurança jurídica, a melhor solução, tal como preconiza Rui Pinto[12], é entender que deve ser cumprida a decisão proferida nos presentes autos, inutilizando-se os efeitos da sentença homologatória proferida na ação nº 1999/04.3TVPRT, que se torna ineficaz a partir do trânsito em julgado da sentença proferida nos presentes autos.
Termos em que improcedem as razões invocadas pelos recorrentes.
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
As custas da revista ficam a cargo dos recorrentes.
Supremo Tribunal de Justiça, 4 de julho de 2019
Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)
Rosa Maria Ribeiro Coelho
Catarina Serra
________
[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Que reproduz, com a mera atualização das remissões, o anterior art. 671º, na redação do DL nº 303/2007, de 24.08.
[3] In, “ Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil”, Lisboa, 1997, pág. 579.
[4] In “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, 306.
[5] In “ Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, 318.
[6] In “ Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. I Almedina 2018, pág. 748.
[7] In, “Código Processo Civil anotado”, Vol. V, Coimbra Editora, 1952, págs. 196 e 197.
[8] In, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, Coimbra Editora, 2001, pág. 693
[9] In BMJ, nº 359, pág. 549 e cujo sumário está acessível in www.dgsi.pt/stj.
[10] “Exceção e autoridade de caso julgado - algumas notas provisórias”, in, Julgar Online, novembro de 2018, pág. 17.
[11] Neste sentido, cfr. Maria José Capelo, in, “ A Sentença, a Autoridade e a Prova”, pág. 324 e Acórdão do STJ, de 09.07.2015 (processo nº 896/09) e de 22.02.2015 ( processo nº 915/09), acessíveis in www. dgsi. pt/stj .
[12] In, Exceção e autoridade de caso julgado - algumas notas provisórias”, in, Julgar Online, novembro de 2018, pág. 16.