PROCESSO ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESA
PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário


I. Respeitando o acórdão fundamento ao PER e o acórdão recorrido ao PEAP, conclui-se que as decisões em confronto não são proferidas no domínio ou vigência da mesma legislação, para efeitos do disposto no art.14º do CIRE, pois o PEAP só foi criado pelo DL n.79/2017, de 30 de junho.
 II. O PER, como previsto no art.17º-A n.1do CIRE, visa a recuperação e revitalização da atividade económica do devedor, tendo também subjacente a tutela do interesse geral da economia na manutenção das atividades económicas (como se extrai do Preâmbulo do DL n.79/2017), enquanto o PEAP, como estabelece o art.222º-A, n.1, não tem como finalidade a viabilização da atividade económica do devedor, mas sim permitir-lhe estabelecer um acordo de pagamento dos seus débitos.
III. Os diferentes objetivos legais subjacentes à figura do PER e do PEAP, bem como a ausência de equiparação do tipo de circunstâncias dos casos em confronto, não permitem concluir pela existência de divergência jurisprudencial sobre a mesma questão jurídica, na apreciação dos requisitos de aprovação dos respetivos planos, para efeitos do art.14º do CIRE.

Texto Integral


Acordam em conferência:

I. RELATÓRIO

1. AA propôs processo especial para acordo de pagamento, alegando não ter capacidade de, por meios próprios, cumprir pontualmente com as suas obrigações. É empresária em nome individual, exercendo a atividade de hotelaria. Alegou que:

- Em 2013, já havia proposto um PER, no âmbito do qual foi aprovado e homologado plano de revitalização, que a requerente foi cumprindo.

- Atualmente a requerente encontra-se com grandes dificuldades em cumprir as suas obrigações, estando a ser demandada judicialmente em dois processos e estando iminente e propositura de outras ações contra si;

- Reúne todas as condições para recuperar;

- Após contacto com alguns dos seus credores a requerente verificou a vontade de os mesmos entrarem no processo especial de acordo de pagamentos.

2. A credora BB, S.A. manifestou a sua oposição ao plano de acordo de pagamentos apresentado pela devedora.

Alegou que a requerente tem prestações em atraso relativamente a dois empréstimos, desde 2013 e 2016, respetivamente. E afirmou que, na ausência de plano, ficará numa situação mais favorável, uma vez que se verá ressarcida dos seus créditos num lapso de tempo muito menor.

3. A primeira instância, nos termos dos artigos 216.º, n.1, al. a) e 222º-F, n.2, do CIRE, não homologou o Acordo de Pagamento apresentado.

4. Não se conformando com essa decisão, a requerente interpôs recurso de apelação. O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 25.10.2018, decidiu pela improcedência do recurso, mantendo a decisão recorrida.

5. Inconformada com a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, que julgou improcedente o recurso de apelação, a recorrente interpôs recurso de revista, com base no art.14º do CIRE (que designou como Recurso Excecional), em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«A. No entendimento da credora, através da venda imediata do imóvel resultaria o pagamento integral e imediato do montante em dívida ao invés de ter que aguardar o cumprimento do Plano de Prestações constante do Acordo aprovado.

B. Ora, tal conclusão não pode jamais e em tempo algum ter acolhimento no âmbito dos presentes autos, senão vejamos:

C.   O Plano aprovado prevê o pagamento integral do capital em dívida e juros
vencidos, acrescido de juros vincendos.

D.  Não há lugar a qualquer tipo de perdão, não há lugar a qualquer tipo de carência, sendo que sobre o montante em dívida vencem-se juros,

E. e o prazo de pagamento, de 274 prestações, é inclusivamente inferior
àquele que decorre dos contratos de empréstimo assinados com a referida
credora, com base nos quais existe o presente crédito.

F. Os contratos de empréstimo que sustentam o valor em dívida prevêem uma
duração de trinta anos, sendo que até à presente data, em relação ao
primeiro empréstimo terão decorrido 6 anos e meio e em relação ao
segundo, 5 anos e meio, pelo que faltariam ainda 281 prestações no que
diz respeito ao primeiro empréstimo e 294 em relação ao segundo, pelo
que como se verifica o Plano, ao prever o reembolso em 274 prestações
para ambos os empréstimos é mais favorável do que a situação que
atualmente se verifica.

G. Posto isto, o único ponto do Plano que é menos vantajoso para a credora
do que o atualmente em vigor é a taxa de juro, sendo certo que salvo o
elevado respeito, não se nos afigura que tal "pormenor" possa ser
suficiente para conduzir à não homologação do Plano nos termos do art.
216° do CIRE.

H. Ainda para mais quando tal facto é compensado pela diminuição do prazo de reembolso.

I. Sustenta a sentença ora em crise que o PEAP não pressupõe a recuperabilidade dos devedores, tendo este como finalidade única estabelecer a forma de pagamento aos credores, eliminando a possibilidade de recuperação dos devedores pessoas individuais.

J. Ora, o PEAP pressupõe a recuperabilidade dos devedores, tendo como finalidade estabelecer uma forma de pagamento aos credores.

K. Salvo o reiterado respeito, o processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir a recuperação e revitalização das pessoas singulares através da aprovação de um acordo de pagamento, que preveja uma reestruturação do seu passivo, evitando-se assim, a sua insolvência pessoal.

L. O processo especial para acordo de pagamento (PEAP) entrou em vigor em 1 de Julho de 2017, através do Decreto-Lei n. 79/2017, de 30 de Junho, que alterou profundamente o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

M. Em face da redação anterior do CIRE havia dúvidas sobre se o processo especial de revitalização (PER) se aplicava ou não às pessoas singulares.

N. Assim, o novo Decreto-Lei n. 79/2017, de 30 de Junho, veio esclarecer que o processo especial de revitalização (PER) se aplica apenas a empresas.

O. Deste modo, surgiu a necessidade de criar um mecanismo que permitisse a recuperação e reestruturação das pessoas singulares, o processo especial para acordo de pagamento (PEAP).

P. No próprio DL que criou o PEAP consta expressamente "apostou-se na credibilizaçao do processo especial de revitalização (PER) enquanto instrumento de recuperação, reforçou-se a transparência e a credibilizaçao do regime e desenhou-se um PER dirigido às empresas sem abandonar o formato para as pessoas singulares não titulares de empresa ou comerciantes." - sublinhado nosso.

Q. Donde resulta que foi intenção clara de manter o formato de recuperação para as pessoas singulares.

R. Não olvidemos que com a alteração legislativa, mesmo as pessoas singulares que exercem atividade comercial, como o aqui devedor, deixaram de puder utilizar o Processo Especial de Revitalização, pelo que a interpretação plasmada na sentença ora em crise que o PEAP não tinha como objetivo a recuperação do devedor, vedaria por completo tal possibilidade a todos os comerciantes que não exerçam a sua atividade através de empresa, o que manifestamente não foi o propósito do legislador.

S. Assim sendo, e igualmente em relação a Processos Especiais para Acordos de Pagamento, terá que se atender à reforma operada pela Lei 16/2102, de 20/4, na qual o CIRE passou a ter como objetivo principal, a recuperação, a revitalização da empresa/devedores em estado de pré-insolvência, relegando para segundo plano a respetiva liquidação.

T. Dando-se relevância à recuperação da devedora, em detrimento do anterior objetivo primordial, que era o de, em primeira linha, obter a satisfação dos direitos dos credores, por sobreposição às possibilidades de recuperação da devedora.

U. Como refere Menezes Cordeiro, in "Perspectivas Evolutivas do Direito da Insolvência", Themis, Ano XII, n. 22/23,2012, como linha inovadora da citada reforma surge "a primazia da satisfação dos credores; a ampliação da autonomia privada dos credores; a simplificação do processo ... a recuperação surge à frente como mera eventualidade, totalmente dependente da vontade dos credores. Mas esta primazia não funciona apenas em detrimento da empresa: ela exige, também, o sacrifício de terceiros que tenham contratado com a entidade insolvente."

V. É no âmbito dos poderes de conformação do acordo de pagamento por parte da maioria dos credores da devedora em estado de pré-insolvência que surge a possibilidade, a título de exemplo, de perdoar ou reduzir do valor dos créditos, de capital ou de juros; condicionar o reembolso de créditos; modificar os prazos de vencimento e taxas de juros; constituir garantias e efetuar cessão de bens aos credores.

W. Neste sentido se pronunciam Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2.a Edição, Quid Júris, 2013, que defendem que "sendo o plano um meio alternativo de prossecução do interesse dos credores, que afasta o recurso à liquidação universal do património do devedor, ele deve conter, na plenitude, a regulação sucedânea dos interesses sob tutela, seja para evitar incertezas que sempre poderiam advir da concorrência de acordos ou estipulações estranhas ao instrumento geral, seja por razões de transparência, que aconselham que tudo fique devidamente explicitado para todos os credores poderem conhecer plenamente a situação e assim apreciá-la e valorá-la de modo a melhor fundamentarem a sua opção."

X. E mais à frente referem: "Corolário fundamental do regime fixado no preceito é o de que os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios existentes podem ser atingidos, desde que a afetação conste do plano, e nos termos nele especialmente previstos".

Y. Continuando, "Naturalmente, a exigência da dispensa do acordo de cada um dos credores que perca garantias ou privilégios, bastando a observação da maioria comum, constitui um importante instrumento de facilitação da aprovação de planos de insolvência."

Z. Daqui resulta que os credores, ou maioria dos credores, dispõem de uma ampla autonomia quanto à forma como podem recuperar os seus créditos, ponderando entre a não aprovação de um acordo de pagamento ou a sua aprovação, sem que, como é óbvio, possam violar o princípio da igualdade entre credores, princípio este que não tem carácter absoluto.

AA. Como refere Jorge Reis Novais in "Princípios Estruturantes da República Portuguesa", "a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspetiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável."

BB. Ora, tendo em vista o que ora se deixou dito e analisando o que consta do acordo de pagamento aprovado, relativamente ao plano de pagamentos proposto nomeadamente ao credor BB, S.A., verifíca-se que o acordo de pagamento contempla o pagamento da totalidade do crédito deste credor (capital e juros vencidos), acrescido do pagamento de juros vincendos calculados à taxa de juro indexada à Euribor a 3M acrescida de 1,10%, em 274 prestações mensais (cerca de 23 anos), com manutenção das garantias existentes.

CC. O Plano de  pagamentos constante no  acordo  de pagamento assemelha-se muito às condições contratuais acordadas pela devedora com o credor BB, S.A., com as únicas diferenças já apontadas, uma taxa de juro (respeitante aos juros vincendos mais reduzida) e um período de reembolso mais reduzido.

DD. Equacionar uma não homologação nas presentes circunstâncias em que um Plano prevê o pagamento integral da dívida, com juros, num prazo dentro do em vigor (no caso em apreço até menor) e com manutenção integral das garantias prestadas é manifestamente contraditório e violador dos princípios plasmados no próprio CIRE.

EE. A remissão efetuada pelo n.2 do artigo 222º-F do CIRE para o artigo 216.° do CIRE terá de ser interpretada com "as devidas adaptações".

FF. O art. 216º do CIRE insere-se no Capítulo II do Código que regulamenta a aprovação e homologação do plano de insolvência apresentado num processo de insolvência em que a alternativa legalmente estipulada à não aprovação de um plano de insolvência é a liquidação do ativo da empresa.

GG. Ora, um processo especial para acordo de pagamento é um processo comumente designado de pré-insolvencial não se podendo confundir, quer formalmente quer materialmente, com um processo de insolvência.

HH. Pelo que, o juízo de prognose da situação previsivelmente mais favorável para um credor na ausência de um acordo de pagamento, ou melhor dizendo, a situação previsivelmente menos favorável para um credor com a aprovação de um acordo de pagamento, terá de atender, primeiramente, à situação existente na ausência do acordo de pagamento e não à situação de liquidação e venda imediata de bens já que este cenário somente se verifica num plano de insolvência em sede de um processo de insolvência e não num processo especial para acordo de pagamento.

II. Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., para aferir se situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que resultaria na ausência de qualquer plano, importa proceder "a um exercício intelectual de prognose, frequentes vezes complexo, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele."

JJ. E na ausência de um acordo de pagamento existiriam as condições contratuais (que são muito semelhantes com as condições previstas no acordo de pagamento) constantes nos contratos de empréstimos celebrados entre a credora e a devedora.

KK. Como se refere no Acórdão do STJ, de 03/03/2015, Processo n 1480/13.0TYLS.L1.S1, o plano de recuperação, "não vai deixar tudo na mesma, sob pena de ser inútil. Implicará alterações no que respeita aos prazos de cumprimento das obrigações a que o devedor estava vinculado e, porventura, nos montantes pecuniários devidos, seja na sua globalidade, seja   quanto ao  valor  e ao numero de prestações parcelares".

LL."É   natural   que   um plano   de   recuperação   implique   alterações, designadamente, quanto aos prazos de cumprimento das obrigações a que o devedor esteja vinculado, aos montantes devidos e ao número de prestações parcelares."

MM.  Conforme anteriormente referido, com a aprovação e homologação do acordo de pagamento o credor mantém o seu crédito na sua totalidade (não existe perdão de capital, de juros vencidos ou vincendos), será pago em prazo muito semelhante ao estabelecido nos   contratos de financiamento (senão mesmo num prazo até mais curto) e mantém as garantias que já dispõe.

NN. Alias neste processo a não aprovação de um acordo de pagamento, nem tão pouco a sua não homologação, conduz necessariamente e irreversivelmente a um processo de insolvência e à liquidação de ativo.

OO. Ainda para mais num caso em que, como bem refere e sustenta a credora com a avaliação por si junta com o seu requerimento, o ativo do Devedor é substancialmente superior ao seu passivo.

PP. Pelo que forçosamente e até por força do restante ativo que o Devedor é proprietário e do valor global do passivo, o parecer a que alude o art. 222o-G, n.4 do CIRE será obrigatoriamente no sentido da não insolvência do Devedor.

QQ. Sendo que qualquer eventual ação de insolvência a propor por tal credora também estará sempre condenada ao insucesso.

RR. Enfatize-se que inexiste um processo executivo intentado pela credora BB contra o Devedor.

SS. Bem como qualquer processo de insolvência pendente contra o Devedor.

TT. Pelo que jamais e em tempo algum, poderá ser aferida a situação mais favorável do referido credor com o cenário de liquidação, que no caso dos presentes autos não é minimamente credível ou provável.

UU. O propósito da alínea a) do art. 216o do CIRE é proteger os credores de situações manifestamente abusivas, de perdões exagerados, de prazos de pagamento excessivos

VV. O que não é manifestamente o caso dos presentes autos, como já supra demonstrado.

WW. Enfatize-se que os dois Acórdãos citados na sentença ora em crise referem-se exatamente a casos em que se verificam tais excessos, pelo que salvo o reiterado respeito, não podem os mesmos servirem de sustentação à presente decisão por não serem com ela minimamente comparáveis.

XX. No que diz respeito ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/09/2017, Proc. n. 16985/16.2T8SNT, no qual a medida de pagamento proposta ao credor hipotecário era de dois anos de carência, pagamento de 50% do capital em 9 anos subsequentes àqueles dois sendo 1% no terceiro ano, 2,5% no quarto ano, 3% no quinto ano, 5% no sexto ano, 6% no sétimo e no oitavo ano, 6,5% no nono ano, 7%, no décimo ano, 13% no décimo primeiro ano e 50% pagos no último ano".

   YY. Enfatize-se que em tal Acórdão, os Exmos. Desembargadores reforçaram que "A devedora considera, no entanto, que não se verifica a previsão do art. 216/1-a do CIRE, porque esta é também a situação do B com o PER, mas esquece que, segundo o PER, o B não receberá nenhum valor a titulo de capital durante os dois primeiros anos".

ZZ. O que não é claramente o caso dos presentes autos, o credor começa a receber capital e juros no mês seguinte ao da votação, com todos os juros vencidos até à presente data a serem integralmente pagos e num prazo inferior ao que estava previsto nos contratos de empréstimo outorgados.

AAA. Na mesma medida o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/11/2007, citado igualmente na decisão ora em crise, o qual, salvo o elevado respeito não pode ser comparado à situação dos presentes autos, senão vejamos:

BBB. Em primeiro lugar o caso em causa em tal Acórdão diz respeito a um plano apresentado em sede de processo de insolvência, onde forçosamente e contrariamente ao que aqui sucede, a comparação da situação mais favorável é sempre aferível por referência à liquidação do ativo em sede de insolvência.

CCC. Em segundo lugar porque a proposta em causa em tal processo para o credor que dispunha de duas hipotecas era a conversão de tal crédito em leasing, sendo que, como bem aponta o referido Acórdão, tal nem sequer seria possível sem a anuência do credor hipotecário que no caso concreto tenha votado expressamente contra.

DDD. Veja-se o teor de tal Acórdão, "analise-se agora o plano de insolvência aprovado, na parte em que se reporta ao apelante e na parte em que interessa ao particular sob apreciação: nele diz-se simplesmente que o pagamento ao apelante seria feito "mediante transformação do crédito hipotecário numa operação de leasing das instalações onde funcionava a insolvente (...) ", em 15 anos (sendo o primeiro de carência) e em prestações mensais. Mas, convir-se-á, isto não passa de um propósito abstracto, lacunoso, que demandaria a especificação da forma como tal operação seria realizada na prática. Era indispensável definir como iria o credor (ou um terceiro?) adquirir aposição de locador (não esquecer que, nos termos do artigo 1º do Dec. Lei 149/95 de 24 de Junho, locação financeira é o contrato pelo qual uma das parte se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados), ademais considerando que o bem a locar está onerado com duas hipotecas a favor do credor e que teriam que ser expurgadas. Era ainda indispensável definir o montante das rendas (ademais quando é certo que estamos a falar de uma operação que iria valer por 15 anos, e onde é possível estabelecer um valor residual a ser pago pelo locatário no fim do contrato, caso opte pela aquisição da coisa), porque sem retribuição concreta fixada não pode ter-se por caracterizado e alcançado um contrato de locação. Por outro lado, a "operação de leasing" proposta traduz-se juridicamente na concretização de uma relação contratual, o que demandaria a anuência do credor locador à emissão da correspondente declaração de vontade. O que de todo em todo não aconteceu, nem podia acontecer, na medida em que o credor em causa votou contra a aprovação do plano. O que significa que (tanto mais que, como se disse, nunca seriam admissíveis subsequentes negociações tendentes a enformar ou completar o plano) a dita operação jamais seria exequível”.

EEE. Tendo sido esse o motivo da não homologação e não pura e simplesmente a situação mais favorável do credor hipotecário na ausência de plano do que na vigência do mesmo, como ocorre no caso dos presentes autos.

FFF. Interpretar a alínea a) do art. 216° do CIRE no âmbito da aplicação do mesmo a processos especiais de revitalização e processos especiais para acordo de pagamento, no sentido de que qualquer credor hipotecário que disponha de uma hipoteca sobre um imóvel com um valor superior ao do seu crédito pode sempre inviabilizar um Plano e forçar a venda imediata dos bens é deturpar manifestamente o propósito dos PERs e PEAPs e contrariar a finalidade de recuperação prevista no CIRE.

GGG. Não homologando um Plano numa situação como a dos presentes autos em que o credor hipotecário vai receber a totalidade do seu crédito e juros vencidos

HHH. vencendo-se juros, sem qualquer tipo de carência no reembolso, num prazo menor do que o anteriormente acordado pelas partes

III. E mantendo uma garantia que, de acordo com a própria credora tem um valor quase três vezes superior ao valor do seu crédito, o que, por si só, garante sempre a ressarcibilidade do mesmo em caso de qualquer incumprimento.

JJJ. Não tem qualquer acolhimento legal e é manifestamente contrário ao espirito da lei.

KKK. Nesse sentido, e não se verificando um tratamento menos favorável, discriminatório, injustificado ou, por demais, desproporcional ou uma situação previsivelmente menos favorável com a aprovação do acordo do que a que existiria na ausência dele quanto ao credor BB, S.A. que justifique a não homologação do acordo de pagamento por força do disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 216.° do CIRE, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, da lavra dos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação, determine a homologação do Acordo de Pagamentos junto aos autos e assim se fazendo JUSTIÇA!”.»

6. As partes foram notificadas, nos termos do art.655º, para se pronunciarem quanto à previsível não admissibilidade do recurso, formulada, no despacho da relatora, nos seguintes termos:

«A recorrente junta dois acórdãos fundamento por via dos quais pretende demonstrar que existe oposição entre o que neles se decidiu e o que se decidiu no acórdão recorrido. Todavia, não se afigura que a oposição de acórdão exista, nos termos exigidos pelo art.14º do CIRE.

- Um dos acórdãos fundamento – o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo n. 1030/14.0T8VNF.G1, de 25/02/2016 – além de respeitar à figura do PER não é proferido no âmbito da mesma legislação, pois o PEAP só foi criado pelo DL n. 79/2017, de 30 de junho (que entrou em vigor em 01.07.2017).

- O outro acórdão – do Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do Proc. n. 1923/17.3T8VIS.C1, de 23/01/2018 – além de respeitar ao PER e não ao PEAP, é invocado de forma vaga, invocando os objetivos gerais do CIRE (recuperação e revitalização de empresas) e não por ter interpretado e aplicado a lei de forma diversa para solucionar idêntico problema normativo.

Afigurando-se que o conhecimento do objeto do recurso não é possível, devem as partes ser notificadas, nos termos do art.652º, n.1, alínea b) e art.655º, n.1 do CPC (aplicáveis ex vi do art.679º do CPC e 17º do CIRE), para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem

7. Em resposta à notificação, a recorrente veio (a fls. 302-306 dos autos), essencialmente, reafirmar a sua discordância com a decisão do TRG, de 25.10.2018, que não revogou a sentença recorrida, mantendo a decisão de não aprovar o plano de pagamentos.

            Não contrariou, decisivamente, as razões apontadas naquela notificação no sentido da previsível não admissibilidade do recurso.

8. A recorrida, BB (a fls. 309 dos autos) veio defender a não admissibilidade do recurso.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A questão prévia da admissibilidade do recurso:

1. Está em causa um Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), regulado nos artigos 222º-A a 222º- J do CIRE, ao qual, nos termos do art. 222º-A, n. 3, in fine, se aplicam “todas as regras previstas no presente Código que não sejam incompatíveis com a sua natureza.

2. Deste modo, o recurso para o STJ só é possível caso se verifiquem os requisitos cumulativos exigidos pelo art.14º do CIRE. Dispõe esta norma:

«1. No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme»

3. Estabelece-se, assim, a regra da não admissibilidade do recurso para o STJ em matéria respeitante ao processo de insolvência e processos conexos. 

Para que esta regra possa ser excecionada, o recorrente tem o ónus de demonstrar: a existência de oposição, sobre a mesma questão fundamental de direito, entre decisões de tribunais superiores, no domínio da mesma legislação.

4. Explicitando o modo como a norma tem sido aplicada pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, veja-se, por exemplo, o sumariado no acórdão de 09.04.2019 (relatora Ana Paula Boularot)[1]:

«I. O normativo inserto no artigo 14º n.1 do CIRE, admite a recorribilidade dos Acórdãos produzidos em sede de insolvência e acções conexas, PER/PEAP, apenas nos casos em que a decisão proferida esteja em oposição com outra da mesma Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

II. O fundamento base para a admissibilidade recursória, é a oposição de julgados, a qual se afere pela questão nuclear de direito tratada no Acórdão recorrido, que terá de estar em contradição com questão idêntica tratada num outro Acórdão: as situações em equação tem de ter a mesma similitude, porque se a não tiverem, óbvio se torna que não se poderá conceber qualquer oposição jurisprudencial.

III. Aquele mencionado normativo exige efectivamente para a interposição e conhecimento do objecto do recurso que as decisões em confronto – Acórdão recorrido e Acórdão fundamento – se contradigam no que tange à mesma questão fundamental de direito, não se bastando com a existência de um Aresto que em abstracto pudesse estar em oposição caso a questão tivesse sido abordada pelo Acórdão recorrido, exigindo a Lei que a questão tratada, em ambos os Acórdãos em confronto, tenham a mesma incidência fáctico-jurídica decidida em termos contrários.

IV. Se essa decisão contrária não existir, não há lugar à recorribilidade prevenida no artigo 14º, n.1 do CIRE, porque o próprio normativo a impede e restringe, restringindo assim o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça no âmbito dos poderes de conformação atribuídos ao legislador, sem que se mostre violado qualquer preceito constitucional, nomeadamente o artigo 20º n.1 da CRPortuguesa

5. A recorrente juntou dois acórdãos fundamento –  ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo n. 1030/14.0T8VNF.G1, de 25/02/2016, e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no âmbito do Proc. n. 1923/17.3T8VIS.C1, de 23/01/2018 – para demonstrar a existência de oposição entre o que neles se decidiu e o que se decidiu no acórdão recorrido.

Todavia, como já se adiantou no despacho da relatora, destinado a cumprir o disposto no art.655º do CPC, entre o acórdão recorrido e os invocados acórdãos fundamento não se verifica a contradição jurisprudencial exigida pelo art.14º do CIRE para que o recurso de revista possa ser admitido.

Os dois acórdãos fundamento respeitam ao Processo Especial de Revitalização, regulado nos artigos 17º-A a 17º-J do CIRE, e não ao PEAP, regulado nos artigos 222º-A a 222º -J do mesmo diploma.

Assim, facilmente se conclui que o acórdão recorrido e os acórdãos fundamento não são proferidos no domínio ou vigência da mesma legislação, pois o PEAP só foi criado pelo DL n.79/2017, de 30 de junho (que entrou em vigor em 01.07.2017).

O PER visa a recuperação e revitalização da atividade económica do devedor (art.17º-A, n.1), tendo também subjacente a tutela do interesse geral da economia na manutenção das atividades económicas (como se extrai do Preâmbulo do DL n.79/2017), enquanto o PEAP não tem como finalidade a viabilização da atividade económica do devedor, mas sim permitir-lhe estabelecer um acordo de pagamento dos seus débitos, como estabelece o art.222º-A, n.1.

Os diferentes objetivos legais subjacentes à figura do PER e do PEAP fazem com que, em princípio, acórdãos que respeitam a essas diferentes figuras não sejam confrontáveis, entre si, para efeitos do art.14º do CIRE, dado não serem proferidos no domínio da mesma legislação.

6. Ainda que tal obstáculo legal (decisões proferidas no domínio de diferente legislação) não existisse, sempre se concluiria que os acórdãos em confronto não revelam diferentes entendimentos quanto à aplicação do direito. Efetivamente, a recorrente não demonstra que exista uma oposição de decisões sobre a mesma questão fundamental de direito. Não demonstra claramente que perante factos equiparáveis as duas decisões tenham interpretado e aplicado a lei de modo oposto. 

A diversidade decisória que se identifica entre acórdãos fundamento e acórdão recorrido assenta no facto de as circunstâncias concretas serem distintas e de as figuras jurídicas em causa terem diferentes objetivos.

7. A recorrente justifica a existência de contradição entre o acórdão recorrido e o supra referido acórdão do TRG (de 25.02.2016) nos seguintes termos:

«De acordo com o Acórdão ora recorrido, o presente PEAP não pode ser homologado pois "a permitir-se a situação pretendida pela devedora, esta seria uma forma de fazer extinguir as ações em curso, aprovado e homologado que fosse o acordo de pagamento, obstando a que a credora fosse paga pelo produto da venda do imóvel no referido processo executivo pendente, como lhe é mais favorável"'.

Salvo o devido e maior respeito, a aqui Recorrente não pode conformar-se com a interpretação que decorre do Acórdão ora recorrido, pois no caso em apreço o plano especial para acordo de pagamento seria mais favorável para satisfazer os créditos dos credores e ainda para que a devedora continue a desempenhar a sua atividade no âmbito comercial. Estamos perante a possibilidade de a devedora liquidar todos os seus créditos sem recorrer de imediato ao seu património, e importa ressalvar que esta contingência está a ser colocada em causa por apenas uma credora.

O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que serve aqui de fundamento segue no mesmo entendimento que a ora Recorrente, pois defende que "no PER privilegia-se, sempre que possível, a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação".»

Para justificar a oposição com o acórdão do TRC, de 23.01.2018, a recorrente alega o seguinte:
«De acordo com o constante no Acórdão ora em recurso, "a permitir-se a situação pretendida pela devedora, esta seria uma forma de fazer extinguir as ações em curso, aprovado e homologado que fosse o acordo de pagamento".
Ora, salvo o devido e maior respeito, não pode o aqui recorrente concordar com tal interpretação, se assim fosse, nenhum empresário em nome individual, como a aqui recorrente, teria a possibilidade de intentar um processo com vista à sua recuperação, simplesmente por existirem outras ações em curso, o que não se afigura ter sido a intenção do legislador.
O legislador procurou sim a recuperação dos empresários em nome individual através dos PEAPs, sendo que a recuperação é um ponto transversal a todo o CIRE.

O Acórdão fundamento comunga precisamente deste entendimento transversal da ideia da recuperação, referindo-se ao objetivo da recuperação não como um ponto específico dos Processos Especiais de Revitalização, outrossim como um ponto transversal a todo o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, veja-se no sumário "O CIRE tem como objectivo principal, a recuperação, a revitalização da empresa em estado de pré-insolvência, relegando para segundo plano a respectiva liquidação. Dá-se relevância à recuperação da empresa, em detrimento do anterior objectivo primordial, que era o de, em primeira linha, obter a satisfação dos direitos dos credores, por sobreposição às possibilidades de recuperação da devedora''.

Paralelamente, entre os dois Acórdãos, recorrido e fundamento existe ainda uma divergência no que diz respeito à interpretação e alcance da norma constante no n. l do art. 216° do CIRE, mais concretamente no que concerne ao conceito da situação mais favorável na ausência de plano.
Enquanto o Acórdão recorrido entende que efetivamente deve prevalecer a "situação pretendida pela devedora", nomeadamente, manter as "ações em curso", sendo certo que, salvo o reiterado respeito, no âmbito de um processo especial de acordo de pagamento a liquidação do património da devedora deve ser disposto como último recurso.
No caso em apreço, o processo especial de revitalização detém todas as condições necessárias para que os credores vejam os seus créditos satisfeitos, não havendo, qualquer justificação, para recorrer de imediato à liquidação do património da devedora.

Além do mais, o património da devedora, como supra referido, não tem viabilidade para satisfazer o crédito da credora BB, S.A, não podendo assim esta assegurar o seu crédito através de uma eventual venda, na qual a avaliação do bem carece de veracidade.»

 

            8. Ora, dos referidos excertos das alegações da recorrida para justificar a recorribilidade da decisão, resulta manifestamente que entre as decisões em causa não existe qualquer oposição quanto a uma mesma questão fundamental de direito. Como supra referido, os objetivos de recuperação económica dos devedores, mencionados nos acórdãos fundamento, respeitam à figura do PER, não sendo, por isso, extravasáveis para figuras jurídicas que não apresentam o mesmo objetivo.

9. O mesmo se deve afirmar quanto à interpretação do art.216º do CIRE, no que respeita ao conceito de situação mais favorável ao credor na ausência de plano aprovado. Não sendo as situações a que respeitam os acórdãos em confronto factualmente equiparáveis, a questão de saber se a aprovação do plano é ou não a solução mais favorável ao interesse dos credores, não é, pela sua própria natureza, suscetível de sustentar o confronto jurídico quanto à aplicação da mesma norma nas diferentes situações.

10. Em resumo, os acórdãos convocados como fundamento não encerram qualquer contradição jurídica com o acórdão recorrido, no que respeita à aplicação de idênticas normas jurídicas, suscetível de preencher o apertado critério de recorribilidade que o legislador consagrou no art.14º do CIRE.

DECISÃO: Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento do objeto do recurso.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 10 de setembro de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1]http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/46470d6ea98e0bd1802583d70052c935?OpenDocument