CONTRATO DE SEGURO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
RENOVAÇÃO DO CONTRATO
Sumário


I – A aplicação do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL nº 72/2008, de 16.4 – LCS -, a contratos celebrados anteriormente, mas que subsistam na data da sua entrada em vigor, está sujeita a regimes diversos.
II – Quanto a contratos de renovação periódica, só a partir da primeira renovação que ocorra após a sua entrada em vigor, a nova lei lhes será aplicável, exceto quanto à respetiva formação em relação à qual se mantém a aplicação da lei antiga, nos termos do nº 1 do art. 3º deste DL.
III – Aos contratos de seguro não sujeitos a renovação que sejam de danos, a lei nova não se aplica, continuando a aplicar-se-lhes o regime vigente à data da outorga do contrato, nos termos do nº 1 do seu art. 4º.
IV – Para os contratos de seguro não sujeitos a renovação que sejam de pessoas, o nº 2 do seu art. 4º estabeleceu a obrigatoriedade da sua adaptação ao novo regime jurídico no prazo de dois anos após a sua entrada em vigor.
V – O regime referido em I - nomeadamente o prazo prescricional estabelecido no art. 121º da LCS - não pode aplicar-se a contratos a respeito dos quais se ignore se ainda estavam em vigor quando teve lugar o início de vigência do mesmo regime.
VI – Ainda que pudesse afirmar-se a subsistência do contrato de seguro à data da entrada em vigor da LCS e, bem assim, a sua renovabilidade, tendo o sinistro ocorrido no ano de 1999, nunca lhe seria aplicável aquele regime jurídico.
VII – O nº 2 do art. 2º do referido DL, ao excluir a aplicação desse regime jurídico aos sinistros que tenham ocorrido entre a entrada em vigor desse diploma e a data da sua aplicação ao respetivo contrato de seguro, está naturalmente a excluir a sua aplicação a sinistros que tenham tido lugar antes dessa data.

Texto Integral

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




I - AA propôs a presente ação contra a BB - Companhia de Seguros, S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe uma pensão anual e vitalícia, desde 19.10.2000, as atualizações dessa mesma pensão, subsídios de férias e de Natal e juros de mora.

Para o efeito, alegou, em síntese, ter celebrado com a ré um contrato de seguro na modalidade de acidentes de trabalho de trabalhadores por conta própria e ter sofrido em 29.10.1999, quando exercia por conta própria a profissão de carpinteiro de cofragens, um acidente de trabalho consistente numa forte dor lombar; foi sujeito a diversos tratamentos e a ré pagou-lhe diversas incapacidades temporárias, até 08.04.2010.


Na sua contestação, a ré invocou a prescrição do direito do autor, com apelo ao que dispõe o art. 121.º do anexo ao DL 72/2008, de 16 de Abril, norma que encurtou para cinco anos o prazo de exercício dos direitos emergentes do contrato de seguro.


  Em saneador-sentença, foi julgada procedente a exceção de prescrição do direito do autor, com absolvição da ré do pedido.

Conhecendo de recurso de apelação que o autor interpôs contra tal decisão, a Relação de Évora veio a proferir acórdão que, revogando-a, julgou improcedente a dita exceção perentória e ordenou o prosseguimento dos autos.


É deste aresto que a ré traz a presente revista, tendo apresentado alegações onde, pedindo a revogação do acórdão, formula as conclusões que passamos a transcrever:

1a) Considerou o Tribunal da Relação de Évora que, à data do evento gerador do suposto direito do recorrido, estavam em vigor os art°s 425° e seguintes do Código Comercial, e o art° 309° do Código Civil, pelo que era de vinte anos o prazo de prescrição para o exercício desse eventual direito.

2a) Considerou ainda o Tribunal da Relação que de nada releva invocar a introdução, pelo art° 121°, n° 2 do DL 72/2008, de 16 de Abril, de um regime específico de prescrição, ao fixar em cinco anos o prazo para o exercício de direitos emergentes do contrato de seguro.

3a) No entender do Tribunal da Relação o prazo previsto no art° 121°, n° 2 não é aplicável, uma vez que, de acordo com o art° 2o, n° 1, o novo regime apenas se aplica aos contratos de seguro celebrados após a sua entrada em vigor, ou seja, após 01/01/2009, quando o contrato dos autos foi celebrado em 1999.

4a) Certo é que, na ausência de regra específica no direito anterior, entendia-se ser de vinte anos o prazo de prescrição para o exercício dos direitos relativos ao contrato de seguro, por força do art° 309° do Código Civil, sendo igualmente certo que entrou em vigor um novo prazo de prescrição de cinco anos para o exercício desses direitos.

5a) A ser seguido o entendimento da douta decisão sob recurso, tal poderia permitir, por exemplo, que um beneficiário de seguro contratado em 2009, por facto gerador de uma prestação desse contrato, tivesse de exercer o seu direito, o mais tardar, até 2014, enquanto um beneficiário de seguro contratado em 2007 ou 2008 poderia exercer os seus direitos à mesma prestação até 2028.

6a) A ser assim, passariam a coexistir no tempo dois regimes de prazo de prescrição inteiramente diferentes para relações jurídicas idênticas, sendo o do beneficiário de seguro mais recente muito mais gravoso, porque mais reduzido do que o do beneficiário de seguro mais antigo.

7a) O objectivo do legislador não pode ter sido o de acolher uma desigualdade objectiva e uma injustificada diferenciação de regimes em situações de facto completamente idênticas.

8a) Por isso, devem ter aplicação o princípio geral na aplicação da lei no tempo, do art° 12° do Código Civil, e a regra para quando há alteração de prazos, do art° 297°, porque é de uma lei de alteração de prazos que se trata e é de uma sucessão de leis no tempo.

9a) A aplicação de um novo prazo de prescrição, mais curto que o antigo, de forma alguma atinge o titular do direito, uma vez que o novo prazo apenas se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, devendo o titular estar atento à alteração desse prazo na ponderação sobre a sua intenção de exercer um seu eventual direito.

10a) Tal assim o impõe a estabilidade das relações jurídicas e a certeza do Direito, estando inteiramente justificada a opção do legislador pela fixação de um prazo mais curto do que o anterior.

11a) Por outro lado, o art° 121° do DL 72/2008 é uma norma especial que se sobrepõe à norma geral do art° 309° do Código Civil.

12a) No caso dos autos, dado que quando entrou em vigor o DL 72/2008 ainda estava em curso o prazo de prescrição de 20 anos sobre a data do evento causador da prestação do seguro, iniciou-se em 01/01/2009, o prazo especial de prescrição de 5 anos para que o recorrido pudesse exercer o seu pretenso direito, o qual já se esgotou pela sua inércia.

13a) O entendimento defendido pela recorrente foi seguido pelo TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA, nos Acórdãos de 28/04/2016 [Processo: 437/03.3TTPTM-A.E1], 08/05/2014 [Processo: 1888/12.8TBFAR.E1], TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA, de 25/10/2016 [Processo: 55/15.3T8FCR-A.C1], e TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO NORTE, de 18/03/2010 [Processo: 01715/09.3BEBRG], SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, de 12/08/2009 [Processo: 0748/09], todos apreciando a sucessão de leis no tempo, e seu reflexo na fixação de diferentes prazos de prescrição, à luz dos art° 12°s e 297° do Código Civil, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

14a) Assim, verifica-se a prescrição do pretenso direito do recorrido, por terem decorrido mais de 5 anos desde a última causa de interrupção da prescrição, ou seja, 03/09/2010, tendo a recorrente sido citada na presente acção apenas em 28/07/2016.

15a) A douta decisão sob recurso violou, assim, os art°s 12°, 297°, 309° do Código Civil. e ainda os art° 2o e 121° do DL 72/2008, de 16 de Abril.


Nas contra-alegações apresentadas, o autor pugnou pela improcedência da revista.


Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questão única sujeita à nossa apreciação a de saber se está, ou não, prescrito o direito do autor.


II – Os factos a considerar para a decisão a proferir e que vêm descritos como provados são os seguintes:

1. Por contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho – trabalhadores por conta própria, titulado pela apólice n.º 2…2, com início em 16.06.1999, a Ré garantiu a cobertura dos acidentes de trabalho de que o A. fosse vítima em consequência do exercício da sua atividade profissional por conta própria.

2. Este contrato estava em vigor no dia 29.10.1999.

3. O A. declarou, para efeitos de seguro, auferir a retribuição anual de € 5.387,02.

4. O A. participou à Ré um sinistro ocorrido no dia 29.10.1999, quando exercia por conta própria a atividade de carpinteiro de cofragens, consistente em ter sentido uma forte dor nas costas quando efetuava o transporte de uma viga.

5. A Ré prestou assistência clínica ao A. desde o dia 30.10.1999, dando-lhe alta em 24.04.2000, com uma IPP de 10%.

6. A Ré voltou a prestar assistência clínica ao A. entre 2004 e 2010, por novas queixas na sequência do sinistro supra referido, pagando-lhe então diversas indemnizações por incapacidades temporárias.

7. No dia 03.08.2010, o A. participou no Tribunal do Trabalho de … a ocorrência do supra mencionado sinistro como acidente de trabalho, o qual tomou ali o n.º 607/l0.8TTFAR.

8. A Ré foi notificada do âmbito desse processo, pela primeira vez, em 03.09.2010.

9. Em tentativa de conciliação ali realizada em 01.02.2011, a Ré declarou que, dado o A. ser trabalhador independente e que o sinistro ocorreu em 1999, o Tribunal do Trabalho era incompetente em razão da matéria para regular os acidentes destes trabalhadores.

10. Nessa sequência, o A. propôs petição inicial contra a Seguradora, iniciando a fase contenciosa daquele processo.

11. A Ré foi citada para contestar essa petição inicial entre 20.06.2011 e 06.07.2011, data em que apresentou a sua contestação, arguindo a exceção de incompetência material.

12. Em saneador-sentença de 21.11.2011, o Tribunal do Trabalho de … julgou procedente a exceção de incompetência em razão da matéria e absolveu a Ré da instância.

13. A presente ação foi proposta em 26.07.2016 e a Ré citada a 28 seguinte.


III – Atentemos, antes de mais, nos argumentos e raciocínio usados por cada uma das instâncias para afirmar e negar, respetivamente, a prescrição do direito do autor.


Na sentença consta a seguinte argumentação:

“(…) considerando a data do acidente dos autos, não lhe é aplicável nem a Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965 nem a Lei 100/97, de 13 de Setembro, mas estando em causa um seguro facultativo era aplicável o regime do Código Comercial supra referido, pelo que, não constando dos artigos 425º a 462º do Código Comercial qualquer prazo de prescrição, necessariamente se tem que entender que o prazo de prescrição era o geral de 20 anos nos termos do artigo 309º do Código Civil por remissão do artigo 3º do Código Comercial.

Ora, as normas supra referidas do Código Comercial foram revogadas pelo artigo 6º do DL 72/2008, de 16 de Abril, o qual estabelece no artigo 121º, n.º 2 do anexo que estabelecem o Regime Jurídico do Contrato de Seguro que «Os restantes direitos emergentes do contrato de seguro prescrevem no prazo de cinco anos a contar da data em que o titular teve conhecimento do direito, sem prejuízo da prescrição ordinária a contar do facto que lhe deu causa», sendo a ressalva para o prazo de prescrição do direito do segurador ao prémio de seguro.

Assim sendo, verifica-se uma sucessão de leis no tempo e importa chamar à colação o artigo 297º do Código Civil, o qual estabelece que: «1- A lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar.

(…)

in casu, está em causa um prazo que passou de 20 a 5 anos, mas do qual apenas tinham decorrido 9 anos, 2 anos e 3 dias considerando a entrada em vigor do DL 72/2008, de 16 de Abril, o qual entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009, tal como resulta do seu artigo 7º, pelo que se aplica o novo prazo de 5 anos à situação dos autos.

Nos autos provou-se que a Ré prestou assistência clínica ao Autor aos ferimentos do Autor desde 30 de Outubro de 1999, dando-lhe alta em 24-04-2000, com uma IPP de 10%, tendo voltado a prestar serviços clínicos entre 2004 e 2010, por novas queixas na sequência do acidente aqui em causa.

Apurou-se ainda que, em 3 de Agosto de 2010, o Autor intentou no Tribunal do Trabalho de … o processo n.º 607/10.8TTFAR contra a Ré com vista à obtenção de reparação dos danos ocorridos no acidente que sofreu em 29 de Outubro de 1999 no âmbito do regime dos acidentes de trabalho, tento a Ré sido notificada no âmbito desse processo, pela 1ª vez, em 3 de Setembro de 2010, tendo ainda sido citada para contestar no âmbito desse processo entre 20-06-2011 e 06-07-2011, data em que apresentou a sua contestação, tendo sido preferida decisão que absolveu a Ré da instância em 21 de Novembro de 2011, por incompetência material daquele Tribunal.

O artigo 323º do Código Civil dispõe que: “1- A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente. 

2 – Se a citação ou notificação se não tiver dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa ao imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias”.

Por sua vez, o artigo 326º do Código Civil consagra que: “1.- A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo seguinte. 

2.- A nova prescrição está sujeita ao prazo da prescrição primitiva, salvo o disposto no artigo 311.º”.

Finalmente, o artigo 327º do Código Civil estatui que: “1- Se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo.

2. Quando, porém, se verifique a desistência ou a absolvição da instância, ou esta seja considerada deserta, ou fique sem efeito o compromisso arbitral, o novo prazo prescricional começa a correr logo após o acto interruptivo. 

(…)

Assim, mesmo ocorrendo sucessivas causas de interrupção da prescrição até 3 de Setembro de 2010, o certo é que desde a intervenção pela 1ª vez da Ré no processo n.º 607/10.8TTFAR (que é claramente um acto de interrupção da prescrição porque configura uma notificação judicial de acto que exprimia directamente a intenção do Autor de receber o capital seguro aqui em causa, havendo interrupção seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente) e até à citação da Ré neste processo em 28 de Julho de 2016, tenho a presente acção sido intentada em 26 de Julho de 2016, decorrerem mais de 5 anos, na medida em que, tendo a Ré sido absolvida da instância, o novo prazo prescricional começou a correr logo após o acto interruptivo ocorrido em 3 de Setembro de 2010, tal como resulta dos supra transcritos artigos 323º, n.º 1 e 327º, n.º 2 do Código Civil. Nestes termos, por terem decorrido mais de 5 anos desde a última causa de interrupção da prescrição do direito ao capital seguro invocado pelo direito, necessariamente se conclui que o mesmo se encontra prescrito, ou seja, há uma causa de extinção do direito que o Autor pretendia exercer, o que leva à absolvição da Ré do pedido, estando prejudicada a apreciação das demais questões invocadas pelo Autor, nos termos do disposto no artigo 608º, n.º 2 do Código de Processo Civil de 2013.

  


Já no acórdão recorrido discorreu-se do seguinte modo:

(…) O art. 2.º do DL 72/2008, sob a epígrafe “Aplicação no tempo”, dispõe o seguinte:

«1 – O disposto no regime jurídico do contrato de seguro aplica-se aos contratos de seguro celebrados após a entrada em vigor do presente decreto-lei, assim como ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, com as especificidades constantes dos artigos seguintes.

  2 – O regime referido no número anterior não se aplica aos sinistros ocorridos entre a data da entrada em vigor do presente decreto-lei e a data da sua aplicação ao contrato de seguro em causa.»

   O n.º 2 deste art. 2.º, prevendo que o novo regime não se aplicava aos sinistros ocorridos entre a data de entrada em vigor do novo regime e a data da sua aplicação ao contrato de seguro em causa, justificava-se porquanto os arts. 3.º e 4.º continham disposições aplicáveis aos contratos renováveis e a contratos não sujeitos a renovação.

   Em especial, no que concerne aos contratos de seguro com renovação periódica, o art. 3.º n.º 1 previa que o novo regime apenas se aplicava a partir da primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do dito diploma, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato, nomeadamente as constantes dos artigos 18.º a 26.º, 27.º, 32.º a 37.º, 78.º, 87.º, 88.º, 89.º, 151.º, 154.º, 158.º, 178.º, 179.º, 185.º e 187.º do regime jurídico do contrato de seguro.

  Ou seja, os contratos renováveis periodicamente continuariam sujeitos à lei antiga até à primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do novo diploma, com algumas excepções, onde não consta a nova regra de prescrição de cinco anos do art. 121.º n.º 2 do novo regime.

    Primeira ilação a retirar, pois, deste enquadramento legal: o novo prazo de prescrição de cinco anos poderia não ser aplicável a sinistros ocorridos já após a entrada em vigor do novo diploma, caso estivesse em causa um contrato de seguro renovável cuja primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do novo diploma ainda não tivesse ocorrido.

   Segunda ilação a retirar: o novo regime não se aplica aos sinistros ocorridos antes da sua entrada em vigor, que assim continuam a regular-se pela lei anterior.

   É o que resulta do art. 2.º n.º 1 do DL 72/2008, pelo que, ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida, não nos encontramos perante uma situação de sucessão de leis no tempo, pois o sinistro continua a regular-se pela lei em vigor ao tempo da sua ocorrência, maxime, os arts. 425.º a 462.º do Código Comercial, e o art. 309.º do Código Civil, por remissão do art. 3.º daquele diploma.

Na jurisprudência, pugnando pela sujeição ao anterior regime dos sinistros ocorridos antes da aplicação legal do novo regime jurídico aprovado pelo DL 72/2008, vejam-se os seguintes arestos, todos publicados na página da DGSI:

  - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.01.2011 (Proc. 79/10.7T2GDL.E1):

«1 – O regime jurídico estabelecido pelo DL 72/2008 de 16.04, só é aplicável ao contrato celebrado entre apelante e apelada a partir de 14.12.2009 por ser nesta data que ocorreu a primeira renovação posterior à data de entrada em vigor daquele diploma;

2 – Tendo o sinistro ocorrido em 16.11.2009, não lhe é aplicável o regime jurídico estabelecido pelo DL 72/2008 de 16.04, mas as normas dos arts. 425º a 462º do Código Comercial.»

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.04.2014 (Proc. 6659/09.6TVLSB.L1.S1): «Ao contrato de seguro celebrado em 16-02-2004 e cujo sinistro ocorra antes de 01-01-2009, não á aplicável o regime do DL n.º 72/2008, de 16-04 (artigo 2º, n.º 2).»

Finalmente, decidindo expressamente acerca das regras de prescrição de sinistros anteriores à aplicação do novo regime, veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães de 06.10.2016 (Proc. 653/14.2T8GMR.G1): «Ao contrato de seguro de grupo cujo sinistro ocorreu em 2 de Abril de 2008, ao qual a 2.ª A. e o falecido CC aderiram em 2001, são aplicáveis as normas constantes do Código Comercial (art. 425.º e ss.) e, na sua falta, as normas do Código Civil e ainda quanto ao pagamento dos prémios de seguro, por se tratar de um seguro de vida, o Decreto de 21.10.97. O prazo de prescrição a considerar, na falta de disposição especial, tal como defendem as apelantes, é o prazo ordinário de 20 anos estabelecido no Código Civil (art. 309.º do CC), prazo esse que não tinha decorrido à data em que as AA. requereram o pagamento do capital seguro à Ré, por força da morte do referido CC.»

     Em resumo, tendo o sinistro ocorrido em Outubro de 1999, beneficia do prazo de prescrição geral de 20 anos estabelecido no art. 309.º do Código Civil, dado não lhe puder ser aplicável o prazo curto de 5 anos do art. 121.º n.º 2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de Abril, pois a tanto obsta o art. 2.º n.º 1 deste último diploma.

     Tal prazo de 20 anos ainda não decorreu, pelo que o recurso merece provimento.”


      A solução diametralmente oposta a que chegaram as instâncias – uma afirmando e a outra negando a existência de prescrição do direito que o autor pretende fazer valer na ação – tem subjacente a diferente opção feita em cada uma das decisões sobre o regime jurídico aplicável ao direito acionado pelo autor.

A sentença considerou ser aplicável, não obstante o acidente ter ocorrido em 29.10.1999, o regime jurídico do contrato de seguro, também denominado Lei do Contrato de Seguro – LCS -, anexo ao Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de abril[1], enquanto o acórdão recorrido considerou que o caso continuava a ser regulado pelos arts. 425º a 462º do Código Comercial - normas revogadas por aquele diploma - e pelo  art. 309º do Código Civil, por força do que estabelece o art. 3º do C. Comercial.

E, em conformidade, o acórdão teve como não verificada a prescrição por ser de vinte anos o respetivo prazo, ao passo que a sentença considerou haver uma sucessão de leis no tempo e no confronto dos dois prazos de prescrição previstos, por recurso à regra instituída no nº 1 do art. 297º do CC, concluiu estar já decorrido o prazo prescricional de cinco anos aplicável.

E é esta última, na sua essência, a tese sustentada pela ora recorrente.


Mas, salvo o devido respeito, sem razão.


Comentando o nº 1 do art. 2º do Dec. Lei nº 72/2008, supra transcrito, Romano Martinez[2], depois de salientar que foi intuito do legislador assegurar que o novo regime do contrato de seguro passe, com celeridade, a regular todas as relações jurídicas de seguro, escreve o seguinte: “prescreve-se, primeiro, que o novo regime se aplica, na totalidade, aos contratos de seguro celebrados a partir de 1 de Janeiro de 2009 e, seguidamente, que a nova lei também se aplica às situações jurídicas constituídas em momento anterior que perdurem nessa data, todavia neste caso, a nova lei não se aplica à formação do contrato, mas tão só ao seu conteúdo, ou seja, a questões relacionadas com a execução do vínculo.

(…) Em qualquer caso, pode dizer-se que, aos contratos novos, se aplica imediatamente e na íntegra a lei nova, e que aos contratos antigos a lei nova tem aplicação diferida e parcial, verificando-se, por isso, em parte, a sobrevivência da lei antiga.”

    Aqui, à semelhança do que se dispõe na parte final do nº 2 do art. 12º do CC, a aplicação da lei nova a situações jurídicas constituídas antes da sua entrada em vigor pressupõe que estas últimas ainda subsistam.

Aliás, de outro modo não poderia ser, pois que, uma vez extintas, não faria sentido pretender regulá-las.

E, assim, no tocante aos contratos de seguro anteriormente celebrados, subsistentes na data da entrada em vigor da nova lei – 1 de Janeiro de 2009 –, o Decreto-Lei nº 72/2008 prevê dois regimes diversos.

Sendo de renovação periódica, só a partir da primeira renovação que ocorra após a sua entrada em vigor, a nova lei lhes será aplicável, exceto quanto à respetiva formação em relação à qual se mantém a aplicação da lei antiga, isto conforme o nº 1 do seu art. 3º.

Assim, como regra, há “uma sobrevigência da lei antiga que, depois de revogada, continua a regular este contrato até ao dia 30 de Junho de 2009.[3]

Aos contratos de seguro não sujeitos a renovação que sejam de danos, a lei nova não se aplica, continuando a aplicar-se-lhes o regime vigente à data da outorga do contrato – nº 1 do art. 4º.

E quanto aos de pessoas, o nº 2 do art. 4º estabeleceu a obrigatoriedade da sua adaptação ao novo regime jurídico no prazo de dois anos após a sua entrada em vigor.


No caso somos confrontados, desde logo, com a circunstância de nada nos factos provados – e nem sequer nos alegados – permitir concluir que o contrato de seguro celebrado entre as partes subsistisse em 1 de Janeiro de 2009, de sorte a que LCS, com início de vigência nessa data, pudesse eventualmente passar a regular as questões atinentes à sua execução.

Aliás, segundo o sustentado pelo autor, tanto nas contra-alegações que apresentou na presente revista, como nas alegações que produziu em sede de recurso de apelação, o contrato em causa, nessa data, já não existia.

Segundo os dados passíveis de serem considerados, apenas se sabe que, aquando do sinistro, o contrato de seguro estava em vigor – facto nº. 2.

Daí que não possa fundadamente sustentar-se que ao caso se aplica o regime jurídico em causa.

E alcançada esta conclusão, não faz sentido, salvo o devido respeito por opinião contrária, sustentar, como sustentou a recorrente nas alegações da apelação[4] – como se salienta no acórdão recorrido -, que ao caso se aplique apenas e “desgarradamente” o art. 121º desse mesmo regime jurídico, onde se estabelece o dito prazo prescricional cinco anos.


Ademais.

Mesmo no caso, não verificado, de se poder afirmar a subsistência do contrato, à data da entrada em vigor da LCS e, bem assim, a sua renovabilidade, porque o sinistro ocorreu no recuado ano de 1999, nunca lhe seria aplicável aquele regime jurídico.

E isto porque o nº 2 do art. 2º, ao excluir a aplicação desse regime jurídico aos sinistros que tenham ocorrido entre a entrada em vigor do Dec. Lei nº 72/2008 e a data da sua aplicação ao respetivo contrato de seguro, está naturalmente a excluir a sua aplicação a sinistros que tenham tido lugar antes dessa data.

Comentando o dito preceito, escreve Romano Martinez que, por virtude do regime transitório nele estabelecido, “a lei nova só se aplica aos sinistros que ocorram depois da entrada em vigor do novo regime.[5]

É evidente que tal se não verifica no caso em análise.

O entendimento exposto foi o adotado nos acórdãos citados pelo aresto impugnado.

Assim, e como bem se entendeu neste, o contrato de seguro aqui em causa continua a ser regido pelas aí citadas normas do Código Comercial e, em matéria de prescrição, pelo art. 309º do CC, o que leva, pelas razões claramente explicitadas no mesmo aresto, a que o prazo prescricional de 20 anos não tenha ainda decorrido, sendo caso de julgar improcedente esta exceção perentória invocada pela ré.

Deste modo, a revista improcede.


IV – Pelo exposto, julga-se a revista improcedente, confirmando-se o acórdão impugnado.


Lisboa, 30.05.2019


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

Catarina Serra

Bernardo Domingos

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[1] Diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.
[2] Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2ª edição, pág. 25
[3] Ibidem pág. 27 e referindo-se a hipótese de contrato com renovação periódica, celebrado (ou prorrogado) a 1 de Julho de 2008
[4] Ao afirmar: «Há, pois, que reconhecer que o DL 72/2008, apesar de não se aplicar ao conteúdo substantivo do contrato, tem, todavia, uma aplicação ao caso dos autos, ainda que limitada ao novo prazo de prescrição introduzido pelo seu art. 121.º, funcionando nessa parte como lei nova.»
[5] Obra citada, pág. 26