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DEIXA TESTAMENTÁRIA
ENCARGO OU LEGADO
Sumário
Sumário do Relator:
I. Apurando-se, por actividade interpretativa, ter sido vontade do testador impor na esfera jurídica do réu, instituído único e universal herdeiro, a obrigação de satisfazer obrigação pecuniária a pessoas nomeadas – adstrição cujo propósito foi o de excluir da atribuição patrimonial objectivada nessa instituição do réu como herdeiro o valor a entregar àqueles terceiros –, deve qualificar-se tal disposição como encargo.
II. O encargo traduz-se numa obrigação (no interesse do próprio disponente ou no interesse de terceiro ou do próprio visado) imposta a beneficiário de uma atribuição patrimonial (no caso, ao réu, no testamento instituído pelo de cujus como único e universal herdeiro), não enquanto correspectivo ou contraprestação da atribuição recebida, mas sim para a limitar, moderar ou adstringir.
III. O regime jurídico do encargo faculta ao beneficiário exigir judicialmente ao obrigado o respectivo cumprimento (art. 2247º do CC).
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1)
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RELATÓRIO
Apelante (réu): (…)
Apelados (autores): (…)
(..) intentaram acção comum pedindo a condenação do réu (…) a pagar-lhes a quantia de doze mil e quinhentos euros (12.500,00€), acrescida de juros vencidos e vincendos, alegando ter sido o réu instituído como único e universal de (…) em testamento por este outorgado, ficando incumbido (nesse testamento) do encarGo de entregar a quantia de doze mil e quinhentos euros a cada um de três sobrinhos do testador, a saber(…) , este último falecido previamente ao testador, sucedendo-lhe o cônjuge, a autora (…), e os descendentes, os autores (…) assistindo-lhes, pois, o direito de exigir o cumprimento de tal encargo, pelo réu não cumprido.
Contestou o réu, pugnando pela improcedência da acção, sustentando (para lá da excepção dilatória da litispendência) que a disposição testamentária em causa deve qualificar-se como instituição de legado, invocando, assim, a ilegitimidade da autora (…) (porquanto não tendo o beneficiário sucedido ao testador, são chamados a suceder-lhe, por representação, os seus filhos, estando o cônjuge excluído de tal vocação sucessória), a caducidade da disposição testamentária (relativamente à autora M. T. – pelos fundamentos invocados para sustentar a sua ilegitimidade) e a nulidade do legado por inexistir no acervo hereditário do testador o montante reclamado pelos autores.
Cumprido o contraditório quanto às invocadas excepções, foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as excepções da litispendência e da ilegitimidade activa da autora (…) e afirmou, no mais, a validade e regularidade da instância, identificando o objecto do litígio e enunciando os temas da prova.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou o réu a pagar aos autores a quantia de doze mil e quinhentos euros (12.500,00€), acrescida de juros de mora à taxa de 4% desde a citação e até integral pagamento.
Inconformado, apela o réu, pugnando pela revogação da sentença e consequente improcedência da acção, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª- O Tribunal recorrido realizou uma incorrecta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto.
2ª- Nos presentes autos foi dada como provada a seguinte matéria:
(Omissis - Transcreve neste ponto o apelante a matéria dada como provada na sentença e que vai ser exposta na fundamentação do acórdão, que aqui se omite para obviar à sua repetição).
3ª- Não foi dada como não provada qualquer matéria de facto.
4º- Quanto à recorrida M. T. está caduca a disposição testamentária, sendo a mesma parte ilegítima na presente acção.
5ª- Dispõe a alínea a) do artigo 2317º do CC o seguinte: “As disposições testamentárias, quer se trate da instituição de herdeiro, quer da nomeação de legatário, caducam, além de outros casos: a) se o instituído ou nomeado falecer antes do testador, salvo havendo representação sucessória”.
6ª- Gozam do direito de representação na sucessão testamentária os descendentes do que faleceu antes do testador ou do que repudiou a herança ou o legado, se não houver outra causa de caducidade da vocação sucessória – artigo 2041, n.º 1 do CC.
7ª- A presente acção foi intentada pelos herdeiros do falecido legatário, sendo eles o cônjuge sobrevivo e os descendentes, não podendo esta ser parte na presente acção, em representação do legatário, pois nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2041º do CC apenas os descendentes representam o legatário.
8ª- O Tribunal a quo fez uma interpretação errada da matéria em discussão nos presentes autos, uma vez que concluiu que a atribuição patrimonial de € 12.500,00 realizada no testamento de 15-06-2005 a favor de A. T. constitui um encargo da instituição do recorrente como único e universal herdeiro do Padre A. C., e não um legado.
9ª- O testador A. C. faleceu no dia .. de Julho de 2016, no estado de solteiro, maior, tendo outorgado testamento no dia 15 de Junho de 2005 no Cartório Notarial de ..., no livro 1T, a fls. 4, não tendo deixado ascendentes nem descendentes que lhe sucedessem legalmente, para efeitos do disposto no artigo 2027º do Código Civil, pelo que o único título de vocação sucessória é o testamento, que outorgara em 15/06/2005 no Cartório Notarial de ....
10ª- Naquele testamento, A. C. instituiu seu único e universal herdeiro o recorrente, seu afilhado, casado com S. R., consigo residente, resultando ainda da sua leitura que o recorrente ficou incumbido de, após a morte do testador, entregar a quantia de € 12.500,00 a cada um dos três sobrinhos do testador, a saber: A. A., M. E. e A. T..
11ª- O início jurídico do fenómeno sucessório, tende à devolução sucessória das relações jurídicas transmissíveis do de cuius é a abertura da sucessão, a qual ocorre no momento da morte do seu autor e no lugar do seu último domicílio conforme disposto no artigo 2031º do CC.
12ª- O nº 2 do artigo 2030º do CC dispõe que se diz herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido, dizendo-se por legatário o que sucede em bens ou valores determinados, isto é, no legado o beneficiário sucede ao de cuius apenas em certos bens com exclusão do restante património, e o nº 3 daquele artigo 2030 do CC dispõe que é havido como herdeiro o que sucede no remanescente dos bens do falecido, não havendo especificação destes.
13ª- Os sucessores podem ser herdeiros ou legatários, sendo herdeiro aquele que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados.
14ª- Cada um dos três sobrinhos do testador apenas assume a qualidade de legatário, perante a herança aberta por óbito de A. C., porquanto lhe sucede em valores determinados e especificados, designadamente, na quantia, cada um, de € 12.500,00.
15ª- Enquanto em matéria de interpretação dos negócios jurídicos entre vivos, prevaleceu a teoria da impressão do destinatário (cfr., v. g., artigo 236°, n° 1), no testamento, cuja função é incorporar disposições de última vontade, o fim da interpretação deve encontrar-se na determinação da vontade real do testador, por forma a que seja efectivamente pesquisada a sua vontade.
16ª- À data da morte do testador A. C., inexistia, na massa da herança, qualquer quantia monetária que permitisse ao recorrente entregar aos legatários a quantia de € 12.500,00, sendo que quando o testador faleceu não deixou qualquer quantia monetária que permitisse ao recorrente cumprir os legados incluídos no testamento e, bem assim, entregar aos recorridos a quantia que estes vieram, erradamente, peticionar, tendo ficado demonstrado que as contas bancárias que existiam, à data da abertura da sucessão, apenas tinham um saldo bancário que totalizava € 14,12.
17ª- A massa da herança deixada pelo falecido era composta única e exclusivamente por bens imóveis, não contendo quaisquer quantias monetárias susceptíveis de dar cumprimento ao legado pelo recorrente, que na qualidade de único herdeiro instituído pelo testamento outorgado pelo falecido, não poderia nem tinha qualquer obrigação de proceder ao pagamento da quantia de € 12.500,00 aos recorridos, porquanto tal quantia não existia.
18ª- Dispõe o artigo 2254 do CC que se o testador legar coisa determinada, ou coisa indeterminada de certo género, com a declaração de que aquela coisa ou esta género existe no seu património, mas assim não suceder ao tempo da sua morte, é nulo o legado.
19ª- Considera-se nulo o legado quando, à data da morte do testador, já não existia, na massa da herança, o bem objecto do legado.
20ª- Uma vez que o testador, na data da sua morte, não deixou qualquer quantia monetária, mostrou-se assim impossível ao recorrente satisfazer a pretensão dos recorridos, porquanto a massa da herança não compreende tal quantia.
21ª- Os bens imóveis que integram a herança não podem ser afectos ao cumprimento dos legados, uma vez que não são o objecto sucessório do legado, antes foi intenção do de cuius afectá-los na titularidade do recorrente, sendo que, caso assim fosse, o de cuius teria expressado, através do testamento, a sua vontade em que os seus sobrinhos lhe sucedessem na qualidade de legatários dos seus bens imóveis, o que não aconteceu.
22ª- À data da morte do testador não existia na massa da herança a quantia de € 12.500,00 o legado, ao abrigo do qual o testador incumbiu o recorrente de entregar aos recorridos, em representação do falecido A. T., a quantia de € 12.500,00, é nulo, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2254º e 286º do CC.
23ª- O Tribunal violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 2317º, al. a), 2041, nº 1, 2031º, 2030º, nº 2 e 3, 2243º, nº 1, 2039º, 2040º e 2041º, nº 1, 2254º e 286º, todos do CC.
Contra-alegaram os autores apelados, pugnando pela improcedência da apelação e manutenção de decisão recorrida.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Delimitação do objecto do recurso – questões a apreciar.
Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações do apelante (por estas se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), surpreendem-se os seguintes themae decidendum:
- qualificação da disposição testamentária como encargo (como defendido pelos autores e considerado na decisão recorrida) ou como legado (como sustentado pelo réu),
- qualificando a disposição testamentária como legado, decidir da sua invocada caducidade quanto à autora M. T. (por ter o beneficiário da disposição, seu marido, falecido antes do testador, cabendo a representação sucessória apenas aos descendentes) e bem assim da respectiva nulidade (art. 2254º do CC).
Esclarece-se que não cabe no âmbito da presente apelação apreciar da (i)legitimidade passiva da autora M. T. (como numa análise perfunctória se poderia concluir da conclusão 4ª do apelante).
Tal questão foi apreciada e decidida no despacho saneador, aí se julgando a invocada excepção improcedente e a autora M. T. como parte legítima. Não sendo tal decisão susceptível de impugnação imediata (art. 644º, nº 1 e 2 do CPC), ficou deferida a sua impugnação para o recurso a interpor da decisão final (art. 644º, nº 3 do CPC), sendo certo que o apelante, interpondo recurso da sentença, não impugnou a decisão proferida no despacho saneador sobre a invocada ilegitimidade da autora M. T., como deveria (e podia), caso pretendesse a sua reapreciação.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
1.O padre A. C. e M. J. eram filhos de J. C. (o qual também usava o nome J. C.) e A. F. (a qual também usava o nome A. F.).
2.O padre A. C. faleceu em ../07/2016, no estado de solteiro.
3.A. T. (o qual também usava o nome A. T.)era filho de A. T. e M. J..
4.A. T. faleceu em ../12/2008, no estado de casado com M. T. (a qual também usa o nome M. T.).
5.A. T. e M. T. são pais de C. T., Maria, E. A. e M. M..
6.No dia 15/06/2005 o padre A. C. outorgou testamento no Cartório Notarial de M. B., aí declarando que ‘(…) institui seu único e universal herdeiro, seu afilhado, L. R., casado com S. R. (…) se o referido herdeiro não sobreviver ao testador, institui seu único e universal herdeiro (…) V. R. (…) e, bem assim, quaisquer outros filhos nascituros e concepturos do mesmo casal. Fica incumbido o referido L. R. de após a morte do testador, entregar a quantia de doze mil e quinhentos euros, a cada um dos três sobrinhos a seguir identificados, A. A., residente em Coimbra, M. E., residente em Gondomar; e A. T., residente em .... Fica ainda incumbido o mesmo L. R. de conceder a qualquer um dos três sobrinhos atrás identificados o direito de preferência ou opção, pelo mesmo preço e condições de pagamento, na compra da sua casa de ..., na Rua da …, concelho de ... inscrito na matriz no artº urbano ..., na hipótese de o mesmo L. R. querer vendê-la. Que revoga o testamento cerrado, pelo testador escrito e assinado a 28 de Abril de 1994 e aprovado por instrumento da mesma data, outorgado no Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar’.
7.No dia 09/09/2016 foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros no Cartório Notarial de M. B. na qual L. R. declarou (intervindo na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de A. C.)‘que no dia onze de Julho de dois mil e dezasseis (…) faleceu A. C. (…) no estado de solteiro, maior, sem descendentes ou ascendentes vivos. Que o falecido fez testamento público outorgado neste Cartório Notarial, no dia quinze de Junho de dois mil e cinco (…) no qual instituiu seu único e universal herdeiro L. R., declarante nesta escritura, com a obrigação do cumprimento dos encargos referidos no testamento. E que não há outras pessoas que segundo a lei e o testamento prefiram ao mencionado herdeiro ou quem com ele concorra à sucessão’.
8.Na participação do óbito de A. C., para efeitos de liquidação do respectivo imposto do selo, o réu relacionou os seguintes imóveis:
Natureza
Freguesia
Concelho
Artigo
Fracção Autónoma
Valor Pat. (€) e data aval.
Urbano
...
...
...º
-
12.000,00/2015
Urbano
...
...
...
AD
56.196,60/2016
Urbano
...
...
...
AC
81.472,80/2016
Rústico
...
...
…
-
114,72/1995
Rústico
...
...
…
-
729,14/1995
9.Em 11/07/2016 A. C. era titular de duas contas bancárias abertas na Caixa ..., com os saldos de € 10,00 e € 4,12.
10.Por referência a 11/07/2016 não são conhecidas a A. C. outras contas bancárias para além das indicadas em 9.
11. Não foi apurada a existência em 11/07/2016 de outras quantias monetárias pertencentes a A. C. para além das referenciadas em 9.
12.Por reporte a 11/07/2016 os imóveis a seguir identificados apresentavam os valores de mercado infra indicados:
Natureza
Freguesia
Concelho
Artigo
Fracção Autónoma
Valor Mercado (€)
Urbano
...
...
...º
-
99.000,00
Urbano
...
...
...
AD
56.000,00
Urbano
...
...
...
AC
67.000,00
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Fundamentação de direito
A apreciação da presente apelação demanda duas tarefas sucessivas, ‘uma de interpretação, outra de qualificação’ – impõe-se em primeiro lugar descobrir ‘a voluntas testatoris segundo os critérios legais da hermenêutica testamentária’ e, ‘desvendada essa vontade, sabido o que o testador pretendeu’, cumprirá ‘definir o modelo legal a que se ajusta a instituição feita, qualificando-a’ (2), mormente como encargo (assim propugnam os autores apelados) ou como legado (como sustenta o réu apelante).
Nesta distinta qualificação da disposição testamentária feita pelo autor do testamento (o acto jurídico referido no facto provado com o número 6) a favor dos seus sobrinhos (um deles, o marido e pai dos autores), incumbindo o instituído herdeiro de lhes entregar, após a sua morte, quantia monetária, entroncam as partes os respectivos argumentos jurídico-normativos:
- o fundamento jurídico da pretensão dos autores alicerça-se na qualificação da disposição testamentária em causa como encargo, cujo regime jurídico lhes permite exigir ao réu apelante o respectivo cumprimento (art. 2247º do CC) (3): ao beneficiário onerado com a cláusula acessória típica (4) do encargo pode ser judicialmente reclamado o cumprimento (5), mormente pelos beneficiários da cláusula (6), pois o encargo (modo) vincula (7);
- por contraponto, sustenta o réu as excepções invocadas (tanto a caducidade da disposição quanto à autora M. T., quanto a sua nulidade, nos termos do art. 2254º, nº 1 do CC) na qualificação da disposição testamentária em questão como legado.
Impõe-se, pois, proceder à interpretação do testamento onde tal disposição foi estabelecida, em vista de a qualificar.
Testamento, como o dispõe o art. 2179º, nº 1 do CC, é o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles.
O testamento é, tipicamente, um acto de disposição de bens (8) – um acto de disposição patrimonial, mortis causa, um negócio jurídico unilateral não receptício, originado na vontade exclusiva do seu autor, livremente revogável, que não confere aos beneficiários mais do que uma expectativa de suceder, pois que herdeiro e legatório só à morte do autor da sucessão adquirem verdadeiro direito sobre o acervo de bens em que se traduzia o património do de cujus (9). É um ‘negócio estranho ao comércio jurídico’ (10), pretendendo com tal expressão significar-se que enquanto a teoria geral do negócio tem evoluído ‘no sentido de uma orientação objectivista, em ordem à protecção da confiança do declaratário e, reflexamente, dos interesses gerais da contratação, sendo a essa luz que se explicam, v.g., a prevalência, em certos termos, da declaração sobre a vontade, a interpretação objectiva dos negócios jurídicos (doutrina da impressão do destinatário), etc.’, relativamente aos negócios estranhos ao comércio jurídico, não surge aquela oposição de interesses do declarante e, por outro lado, os interesses do declaratário e os interesses gerais da contratação (11).
Da natureza do testamento – um acto de disposição patrimonial, mortis causa, originado na vontade exclusiva do seu autor, livremente revogável; um negócio jurídico unilateral não receptício, estranho ao comércio jurídico, negócio pessoal (art. 2182º do CC), no sentido de que deve exprimir a própria vontade do autor (12) ou, dito de outro modo, um acto caracterizado pela sua natureza genuinamente ou intrinsecamente pessoal, sendo um acto pessoalíssimo (13)– resultam especialidades importantes, desde logo em matéria de interpretação (14), a actividade esta destinada a fixar o sentido e alcance decisivo do testamento, buscando-se assim o que o testamento, ontologicamente, está destinado a conter: a vontade do testador.
Dispõe o art. 2187º, nº 1 do CC que na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento, acrescentando o nº 2 do referido normativo que é de admitida prova complementar (sobre o que foi aquela vontade do testador declarada no testamento), não surtindo porém qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso.
Consagra abertamente este normativo a posição subjectivista em matéria de interpretação das disposições testamentárias, mantendo aliás a linha de orientação que provinha já do art. 1761º do Código de Seabra, afastando-se da doutrina objectivista da impressão do destinatário (15) – sentido subjectivo, com o limite do contexto do testamento, que vale ‘não apenas para as hipóteses em que o contexto do testamento dê margem a hesitações, por obscuro ou equívoco, mas para todos os casos em que se ponha o problema da interpretação duma cláusula testamentária, assim se proscrevendo quaisquer veleidades de aplicação da errada máxima «in claris no fit interpretativo»’ (16).
A descoberta da intenção do declarante (de cujus) – o alvo da interpretação da disposição testamentária (17) –, da sua ‘vontade psicológica’ (18), terá de buscar-se, na situação em análise, no texto (todo o contexto – não apenas o texto da cláusula interpretanda, mas todo o contexto (19)) do testamento, pois que nenhuma prova complementar as partes produziram (nº 2 do art. 2187º do CC) sobre a real vontade do autor da sucessão ou mesmo sobre meios estranhos ao texto do testamento capazes de auxiliar no apuramento daquela.
A vontade do de cujus manifestou-se, no testamento interpretando, em três disposições:
- a primeira, em que instituiu único e universal herdeiro. Disposição em que erige/institui o herdeiro, que é referido como único e universal – e assim se a expressão único aponta para que, com exclusão doutrem, o instituído (o réu) sucederá, como herdeiro, ao testador nas suas relações jurídicas patrimoniais, a expressão universal terá de acrescentar sentido àquela primeira, mormente que tal sucessão se estenderia por todo o património;
- a segunda, a disposição objecto do litígio. Declarou ficar aquele instituído herdeiro incumbido de, após a sua (testador) morte, entregar a quantia de doze mil e quinhentos euros a cada um dos seus (testador) três sobrinhos, que nomeou. Destaque para que o ponto referencial de tal disposição está no sujeito a quem o testador vincula (e também, por contraponto, a quem beneficia) e não já no objecto mediato, no quid sobre que recai – o foco está na incumbência, na sujeição ou na vinculação do aqui réu (na disposição testamentária nominalmente identificado), nomeado único e universal herdeiro, a entregar aos identificados beneficiários determinado montante pecuniário, ou seja, na obrigação assim criada àquele sujeito (aqui réu);
- a terceira (e última), na qual estabelece ficar o instituído herdeiro incumbido de conceder a qualquer um dos seus sobrinhos identificados (beneficiários da disposição anterior) o direito de preferência ou opção, pelo mesmo preço e condições de pagamento, na compra da casa de ..., ..., inscrita na matriz sob o artigo urbano ... (um dos bens que integravam o acervo hereditário do de cujus), na hipótese de querer vendê-la. Também aqui estabeleceu uma incumbência, uma sujeição ou uma vinculação do réu, em favor dos beneficiários (um deles o marido e pai dos autores), mas a fluorescência da disposição em causa incide já não nos sujeitos mas antes no concreto bem que é o seu objecto mediato (o imóvel urbano aí referido).
Esta última disposição constitui a instituição dum verdeiro legado (permitido pelo art. 2235º do CC) – um duplo legado (20), conjugável (mesmo em termos da intrínseca coerência da vontade do de cujus) com o facto do legatário onerado ter sido constituído como único e universal herdeiro (21). Referimos a coerência intrínseca da vontade do testador (em face desta simultânea instituição do réu como herdeiro único e universal e como legatário onerado com a obrigação de conceder preferência na venda de bem), pois consegue conjugar o propósito de ver o nomeado herdeiro a suceder-lhe em todas as suas relações jurídicas patrimoniais (herdeiro de todos os seus bens) com o de proporcionar a outros familiares a possibilidade de, assim o pretendam, manter um dos seus bens imóveis na propriedade da família (através do exercício da preferência).
Esta terceira e última disposição, não aportando um elemento de directo e imediato relevo para a apreensão do sentido segunda, não é de todo indiferente na procura do propósito/vontade do testador ao estabelecê-la.
Importante considerar que o quid da segunda atribuição patrimonial (a disposição interpretanda) é um valor monetário, não um objecto – o herdeiro foi incumbido não a entregar uma coisa (ou uma quantidade de coisa de certa género) mas antes um valor monetário. Tal disposição não a conexionou o de cujus a qualquer valor monetário do seu património, designadamente fazendo um ligâme à existência do objecto mediato dela no seu património.
Mais importante – não se limitou a estabelecer que aos seus identificados sobrinhos beneficiava com a atribuição do referido valor, antes identificando o antes instituído herdeiro como o sujeito passivo da obrigação que então ali gerava.
Para beneficiar estes seus sobrinhos (um deles o falecido marido e pai dos autores) escolheu o testador uma via que a actividade hermenêutica não pode desprezar – não uma via directa entre o seu património e os beneficiários de tal atribuição patrimonial (sem intermediário – directamente do seu património para aqueles beneficiários), antes gerando/constituindo uma obrigação cujos sujeitos activos são os beneficiários e cujo sujeito passivo é o herdeiro nomeado.
O sentido útil de tal via escolhida pelo testador para beneficiar os seus nomeados sobrinhos acrescenta algo ao que, quanto à responsabilidade passiva, já resultaria da nomeação do réu como único e universal herdeiro – mais do que a indicação do simples cumpridor de atribuição patrimonial do montante declarado (e respectivos beneficiários), o sentido útil da cláusula revela-se na criação de uma obrigação na esfera jurídica do instituído herdeiro (aí constituído como titular passivo de tal obrigação); o foco significativo e relevante de tal declaração do de cujus está na adstrição que impõe ao sujeito passivo dessa disposição em vista de satisfazer a atribuição patrimonial estabelecida a favor dos beneficiários.
Valorizando o contexto do testamento, encontramos na terceira disposição apoio para assim concluir. Tendo instituído um único e universal herdeiro (primeira disposição), o facto do de cujus ter possibilitado a outros familiares seus a faculdade de, assim o pretendessem, manter na propriedade da família um identificado bem que o herdeiro pudesse querer alienar (a terceira disposição), demonstra não ter desconsiderado (na disposição de última vontade quanto ao seu património) as relações/ligações familiares.
Em vista de alcançar (conciliando-os) os propósitos de instituir um único e universal herdeiro – que lhe sucederia na titularidade de todos os bens (de todas as suas relações patrimoniais) – e não desconsiderar ‘patrimonialmente’ os seus familiares, estabeleceu o de cujus a referida segunda disposição – disposição que a um tempo beneficia os seus familiares (evitando a desconsideração ‘patrimonial’ destes) e vincula/obriga o herdeiro, pois que enquanto sujeito passivo da obrigação vê adstringida a sua instituição enquanto tal. Obrigação a que fica sujeito precisamente para que a sua instituição como herdeiro se coadune com aquele propósito do de cujus de não desconsiderar patrimonialmente os seus indicados e nomeados sobrinhos – a instituição de herdeiro é contida até ao ponto necessário para acolher a disposição a favor dos sobrinhos do de cujus.
Adstrição que visa tão só excluir da atribuição patrimonial objectivada na instituição do réu como herdeiro o valor tido pelo de cujus como adequado para ‘considerar patrimonialmente’ os seus familiares – o réu foi instituído como o único e universal herdeiro, ainda que a total amplitude dessa atribuição merecesse um aperto para assim ser satisfeita a disposição a favor daqueles indicados familiares do testador.
Interpretado o testamento – e apurada a vontade psicológica do testador –, a tarefa de qualificar a disposição apresenta-se simples.
A disposição em causa traduz-se numa obrigação a favor de terceiro (dos nomeados sobrinhos do testador) imposta ao réu, beneficiário de uma atribuição patrimonial (no testamento foi instituído pelo de cujus como único e universal herdeiro), não enquanto correspectivo ou contraprestação da atribuição recebida, mas sim para a limitar, moderar ou adstringir.
Verificadas, pois, as características do encargo (ou modo), que constitui a cláusula acessória típica por virtude da qual nas doações e nas liberalidades testamentárias o seu autor impõe ao respectivo beneficiário a obrigação de adoptar um certo comportamento (dar ou não dar, fazer ou não fazer alguma coisa), no interesse do próprio disponente ou no interesse de terceiro ou do próprio beneficiário (22) – quer quanto à estrutura (obrigação imposta ao beneficiário de atribuição patrimonial), quer quanto à função (instrumento de pura limitação ou moderação daquela atribuição) (23).
Qualificada a disposição patrimonial que beneficiou o marido e pai dos autores como encargo, a improcedência da apelação é evidente – os autores, enquanto sucessores (mulher e filhos) de beneficiário da cláusula, podem exigir judicialmente do réu, herdeiro onerado com o encargo, o seu cumprimento (art. 2247º do CC).
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo apelante.
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Guimarães, 6/05/2019
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico)
1. Apelação nº 2222/17.6T8VRL.G1; Relator: João Ramos Lopes; Adjuntos: José Fernando Cardoso Amaral; Helena Melo 2. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões – Noções Fundamentais, 6ª edição, reimpressão, 1996, pp. 210/211. 3. Descura-se a hipótese do incumprimento não ser imputável ou obrigado/devedor (impossibilidade definitiva ou temporária – arts. 790º e 792º do C), por não interessar à economia da decisão. Em tais situações (impossibilidade definitiva ou temporária não imputável ao devedor), a obrigação de cumprir o encargo extingue-se ou não têm lugar os efeitos da mora, não sofrendo o devedor qualquer consequência – Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição actualizada, 1983, p. 581 (em nota). 4. Duplamente típica – socialmente típica, porque comum no comércio jurídico e juridicamente típica, porque, em alguma medida, disciplinada pela lei. Assim (considerando o encargo – modo – como cláusula acessória típica em ambos os sentidos), Nuno Manuel Pinto de Oliveira, ‘Cláusulas Acessórias ao Contrato: Cláusulas de Exclusão e de Limitação do Dever de Indemnizar e Cláusulas Penais’, Almedina, pp. 9/10. 5. E descurando até outras consequências do incumprimento (art. 2248º do CC). 6. P. ex., Mota Pinto, obra citada, p. 581 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume VI, 1998, pp. 390/391. 7. Acórdão do STJ de 21/10/2014 (Hélder Roque), no sítio www.dgsi.pt/jstj. 8. Referimos apenas o conteúdo típico do testamento, pois que este pode também ter por conteúdo, mesmo exclusivamente, outras finalidades ou conteúdos atípicos: o testamento pode ser utilizado pelo testador para fazer disposições relativas ao seu cadáver, para nomear tutor, revogar a tutela – art. 1928º, nº 3 –, para fazer perfilhação – art. 1830º, c) –, etc.. Cfr., a propósito, Pereira Coelho, Direito das Sucessões (Lições ao curso de 1973-1974), Coimbra, 1992, pp. 331/332. 9. Cfr. o referido acórdão do STJ de 21/10/2014 (citando, a propósito, Inocêncio Galvão Telles e Pereira Coelho). 10. Prof. Pereira Coelho, obra citada, p. 336. 11. Prof. Pereira Coelho, obra citada, pp. 336/337. 12. Autor e obra citados na nota anterior, p. 218. 13. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 293. 14. Cfr., p. ex., Mota Pinto, obra citada, p. 456 e Pereira Coelho, obra citada, p. 337. 15. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 302 e acórdão do STJ de 7/05/2015 (Fernanda Isabel Pereira), no sítio www.dgsi.pt/jstj. 16. Mota Pinto, obra citada, pp. 451/452. 17. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 303. 18. A expressão é de Mota Pinto, obra citada, p. 452. 19. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 305. 20. P. de Lima e A. Varela, obra citada, p. 374 – por um lado, o legado da relação jurídica hereditária a favor da pessoa a quem é imposta a obrigação de conceder preferência a terceiro na venda de coisa; por outro lado, o outro legatário, o terceiro titular do direito de preferência correspondente à obrigação correlativa imposta ao primeiro legatário. 21. Tratando-se assim, porque imposta a obrigação de preferência a um herdeiro, de um pré-legado em relação ao bem em causa – P. de Lima e A. Varela, obra citada, p. 374. 22. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 4ª reimpressão, 1974, p. 393, Mota Pinto, obra citada, p. 577 e Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 386. Cfr. também o citado acórdão do STJ de 21/10/2014 (Hélder Roque). 23. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 386 e o citado acórdão do STJ de 21/10/2014 (Hélder Roque).