I - A escritura de justificação notarial não é um ato constitutivo de direitos nem um ato translativo de direitos. É um ato declarativo de aquisição de um direito por via da usucapião, o qual se mostra necessário pelo facto de a usucapião, para ser eficaz, necessitar de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita.
II – Ainda que a escritura titule a aquisição por usucapião de parcela de prédio rústico inferior à unidade de cultura, o acto escriturado não configura um acto de fraccionamento.
III – O fraccionamento ocorre com o acto de divisão material, a partir do qual se iniciou a posse sobre cada uma das parcelas e que, prolongando-se no tempo, por período legalmente suficiente, permitiu a invocação por parte dos RR. da aquisição originária do direito de propriedade sobre cada uma delas por via da usucapião.
IV - Atenta a primitiva redação do art. 1379º, nº 1, do CC, a anulabilidade do ato de fracionamento de prédios rústicos, contra o disposto no art. 1376º, não impede a aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião.
V- A tal não obsta o facto de art. 1287º do CC excecionar, para efeitos de invocação da usucapião, a existência de “disposição em contrário”, segmento normativo que não abarca os casos de mera anulabilidade, como o que estava regulado na primitiva redação do art. 1379º, nº 1, do CC.
2ª SECÇÃO CÍVEL
« O Ministério Público interpôs recurso ordinário da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Local Cível de ...- Juiz I na ação instaurada por aquele contra AA e BB.
A sentença proferida na primeira instância julgou improcedente o pedido de declaração de anulabilidade dos negócios consubstanciados nas escrituras públicas de justificação de posse outorgadas, respetivamente, no dia 30 de abril de 2014, no Cartório Notarial da Licenciada CC, em ....
Na sua petição inicial, o Ministério Público alegou que através da justificação de posse realizada mediante as escrituras públicas supra mencionadas os prédios rústicos relativamente aos quais os Réus justificaram a respetiva posse foram desanexados de um prédio rústico composto de terreno vinha, descrito no registo predial de ... sob o n.º … da freguesia do ... e na matriz sob o art. 24 A daquela mesma freguesia, e que sendo as áreas daqueles prédios inferiores à área de cultura mínima, tal como é descrita no art. 1376.º, n.º 1, do Código Civil e Portarias 202/70, de 21/4 e 219/2016 de 9/08, a divisão do prédio original, operada pelas referidas justificações de posse, é proibida por lei.
Os Réus contestaram, alegando, em síntese, que: a) o prédio em causa nos autos (o descrito no registo predial de ... sob o n.º ... da freguesia do ... e na matriz sob o art. 24 A daquela mesma freguesia) entrou na esfera jurídica dos seus pais por força de uma divisão verbal dos terrenos que haviam sido herdados pela mãe dos Réus, após o óbito dos avós dos Réus, ocorrida no ano de 1986, e que no mesmo ano, e após a referida divisão verbal e adjudicação aos pais dos Réus das respetivas parcelas de terreno, estes dividiram um dos prédios rústicos em duas parcelas distintas e autónomas e doaram-nas verbalmente a cada um dos seus filhos, os ora Réus, parcelas que são aquelas que têm a composição referida no art. 2.º da petição inicial; b) cada um dos Réus entrou de imediato na posse efetiva e material do seu respetivo prédio rústico, procedendo à respetiva demarcação através da colocação dos respetivos marcos pelas áreas correspondentes, separando-o fisicamente do terreno mãe, procederam à respetiva limpeza, gradaram a terra, trataram das árvores e cepas, colheram os seus frutos, gozando de todas as utilidades e frutos do seu respetivo prédio, fazendo-o «com o animus de quem exerce direito próprio, sendo reconhecidos por toda a população local como legítimos donos, sempre agindo de boa-fé e de forma pacífica e ininterrupta e sem violência, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem qualquer oposição, ignorando lesar qualquer interesse alheio (…) sem qualquer interrupção, continuamente durante mais de 30 anos (…)»; c) «as escrituras ora impugnadas pelo Autor não são um destaque ou um fracionamento, ou uma desanexação, mas sim de uma aquisição originária da propriedade de duas parcelas de terreno em detrimento de qualquer exigência de âmbito administrativo e limitações legais», não se aplicando o condicionalismo da área mínima.
Na sentença foi declarado que os Réus exercem poder de facto e com animus de proprietários, respetivamente, sobre as parcelas de terreno cuja posse pretendem justificar, pelo menos desde 1986, e após doação verbal feita pelos seus pais (que procederam à divisão do terreno em duas parcelas iguais), à vista de todos e de modo pacífico; que em face da dimensão dos prédios usucapiados pelos Réus, 5957 m2 cada um, os mesmos têm uma dimensão inferior à unidade de cultura fixada, sendo compostos por terras hortícolas de regadio, por se tratarem de terrenos rústicos com vinha e horta, concluindo que a «desanexação resulta num fracionamento proibido pelo art. 1376.º, do CC.», logo anulável, nos termos do art. 1379.º, n.º 1, do CC, mas que, sendo a usucapião uma forma de aquisição originária da propriedade, aquela prevalece sobre as regras do fracionamento dos prédios rústicos, sanando qualquer vício que exista nesse sentido, ou seja, desanexando terrenos inferiores à unidade de cultura aplicável».
Mais uma vez irresignado, veio o MP interpor recurso de revista, tendo rematado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:
« - I – O acórdão ora recorrido manteve a sentença proferida em 1ª instância mas com diversa fundamentação, pelo que não ocorre uma situação de dupla conforme, sendo o mesmo recorrível nos termos gerais, atento o disposto no artº 671º nº 1 e nº 3 do NCPC.
- II – As escrituras de justificação, embora se destinem a invocar a usucapião, não deixam por isso de constituir actos de fracionamento, que só a partir da sua celebração é possível impugnar, porque só então é possível ao Estado ter acesso a um documento escrito que permite verificar a existência de violação das regras impeditivas do fracionamento previstas no artº 1376º do CC.
- III – Uma adequada interpretação do artº 1379º nº 3 do CC, quando dispõe que “ A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto …” leva a concluir que o único acto “celebrado”, a partir do qual começa a correr o prazo para anulação do fracionamento, só pode ser o da “ celebração” da escritura de justificação onde é invocada a usucapião, dado que no início da posse não houve qualquer acto “celebrado”, mas apenas uma divisão material e doação, ambas verbais.
- IV – Deve, por isso entender-se que, na realidade, o fracionamento só se tornou operante com as escrituras de justificação, uma vez que só nesse momento os justificantes obtiveram título jurídico válido do fracionamento realizado.
- V - A não realização de escritura pública de divisão ou doação de fracções de um imóvel tem como consequência que a posse sobre tais fraccões se exerce de forma oculta, porque assim se impede que possa ser conhecida pelo interessado Estado, não sendo, pois, de considerar posse pública, nos termos do artº 1262º do CC.
- VI - A posse não pública ou oculta, não pode constituir fundamento para a usucapião, como resulta claramente do disposto no artº 1297º do CC, pelo que “os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública” – e assim, no caso dos autos, dado que a posse só se tornou pública com a celebração das escrituras de justificação, em 2014, só então se iniciou o prazo para a usucapião, que obviamente, ainda se não completou.
- VII – Tendo o acórdão recorrido considerado que as escrituras de justificação não constituem actos de fracionamento e que estes ocorreram na data da divisão e doação verbais realizadas em 1986, deveria então ter apreciado se esses actos de fracionamento violavam as normas proibitivas do mesmo, vigentes nessa data, o que não fez.
- VIII – Em 1986 os referidos actos de fracionamento violavam o disposto no artº 1376º nº 1 do CC e na Portaria nº 202/70, tal como sucedia na data das escrituras de justificação.
- IX – Dispondo o artº 1287º do CC, que a usucapião opera, “salvo disposição em contrário”, deverá entender-se que tal disposição em contrário é a constante do artº 1376º nº 1 do CC, que impede o fracionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura.
- X - Afirmar a prevalência da usucapião sobre a proibição de fraccionamento significa manifestamente esvaziar de conteúdo o disposto no artº 1376º nº 1 do C. Civil, tornando-o na prática letra morta, face a uma mera decisão dos proprietários de dividir “ de facto” um terreno cuja divisão a lei proíbe, bastando-lhes assim aguardar que o decurso do prazo da usucapião venha “ legalizar” um acto cometido com violação de norma legal imperativa.
- XI – O reconhecimento da usucapião com violação da proibição de fracionamento constitui, salvo melhor opinião, o reconhecimento de uma situação de abuso do direito, nos termos previstos no artº 334º do CC, uma vez que se mostra totalmente ilegítimo o exercício de um direito – a aquisição por usucapião – quando o titular não actua de boa-fé e antes visa obter um resultado que sabe perfeitamente que a lei lhe proíbe.
- XII - As regras de ordenamento do território, nelas se incluindo tanto as respeitantes a loteamentos e destaques, como as de proibição de fracionamento, por revestirem inequívoca natureza pública, devem prevalecer sobre as normas de direito privado relativas à usucapião, sob pena de, assim não se entendendo, se estar a deixar sem qualquer protecção o ordenamento do território nacional – e do mesmo passo a possibilitar actuações em fraude à lei.
- XIII - Ao alterar a redacção do disposto no artº 1379º nº 1 do CC, passando a impôr a sanção de nulidade para os actos de fracionamento violadores da unidade de cultura, a Lei nº 111/2015, de 27/08, reafirmou o carácter imperativo do disposto no artº 1376º do CC e confirmou, sem qualquer dúvida, dever prevalecer a proibição de fracionamento sobre o instituto da usucapião.
- XIV – O legislador demonstrou claramente, na exposição de motivos da Lei nº 111/2015, que pretendeu intervir “através da possibilidade de impedimento dos atos jurídicos que contrariem esses limites, com o objetivo de se garantir a sustentabilidade das estruturas fundiárias.”
- XV – No caso dos autos, mostra-se efectivamente violada a proibição de fracionamento contida no artº 1376º nº1 do CC, uma vez que a área de cada uma das parcelas fraccionadas é inferior à unidade de cultura fixada para a região pela Portaria nº 202/70, como expressamente se reconhece na sentença – unidade de cultura que se manteve idêntica quer em 1986 quer em 2014.
- XVI – Assim, é de acolher, no caso dos autos, a posição jurisprudencial que decorre dos Acórdãos do STJ de 30/4/2015 e de 26/1/2016 ( Procs. nº 10495/08.9TMSNT.L1.S1 e nº 5434/09.2TVLSB.L1.S1), bem como do acórdão da Relação de Évora de 25/5/2017 ( (Proc. nº 1214/16.7T8STB.E1), os quais decidiram , em situações absolutamente idênticas, no sentido de que a usucapião não prevalece sobre as regras de proibição do fracionamento.
- XVII – Não tendo assim decidido violou o douto acórdão recorrido o disposto nos artºs 1262º, 1287º, 1297º, 1376º e 1379º do Código Civil, devendo ter interpretado os mesmos com o sentido que decorre das conclusões que antecedem.
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis concedendo-se a revista, deve o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue inteiramente procedente a presente acção…»
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Das conclusões acabadas de transcrever decorre que as questões objecto da revista são essencialmente duas:
- Saber se a escritura de justificação notarial, onde se invoca a aquisição por usucapião de parcela de terreno rústico inferior à unidade de cultura, constitui um acto de fraccionamento e se, consequentemente, o prazo para pedir a sua anulação se conta a partir da data da escritura.
- Saber se a verificação dos pressupostos da usucapião relativamente a uma parcela de prédio rústico com área inferior à unidade de cultura, resultante de mera divisão material, conduz ao reconhecimento do direito de propriedade sobre a dita parcela de terreno com base na usucapião.
Dos Factos
Nas instâncias foram considerados provados os seguintes factos:
«1. O 1.º Réu outorgou escritura de justificação no Cartório Notarial de ... de CC, no dia 30.04.2014, exarada de fls. 103 a fls. 108 do Livro de escrituras diversas n.º …, na qualidade de justificante.
2. Na escritura identificada em 1, o 1.º Réu declarou:
2.1 «Que, com exclusão de outrem, é dono e legítimo possuidor, de uma parcela de terreno rústica com a área total de cinco mil novecentos e cinquenta e sete metros quadrados, composto por vinha, sita em ..., freguesia do ..., concelho de ..., a confrontar do norte com ..., do sul com GG, do nascente com HH, e do poente com BB, a destacar do: PRÉDIO RÚSTICO, composto por vinha, com a área de trinta e cinco mil setecentos e quarenta e três vírgula vinte metros quadrados, a confrontar a norte com caminho público, a sul com DD, a nascente com EE e a poente com FF, sito em ..., freguesia do ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número QUINHENTOS E CINQUENTA E UM, registada a aquisição em comum e partes iguais a favor de GG, casada com II sob o regime de comunhão geral de bens, JJ, casada com KK sob o regime de comunhão geral de bens e LL, casada com MM, sob o regime de comunhão de bens adquiridos, em comum e partes iguais, (. . .) a desanexar do artigo 24 da Secção A da matriz predial rústica da União de Freguesias do ... e …, com o valor patrimonial de € 749,71, constando como titulares, em comum e partes iguais, GG, LL, e KK (cabeça de casal da herança de).
2.2 Que do prédio mãe referido eram titulares os avós do ora justificante, NN e mulher OO, casados que foram sob o regime da comunhão geral de bens.
2.3 Que, por morte de OO, ocorrida no ano de mil novecentos e setenta e dois, foi instaurado o inventário número doze barra setenta e dois, tendo nele sido adjudicado ao viúvo, NN, metade indivisa e a cada um dos restantes partilhantes um barra dezasseis avos indivisos, sendo destes a mãe dele justificante, JJ, casada com KK sob o regime de comunhão geral de bens.
2.4 Que estas adjudicações foram levadas às tábuas pela inscrição G-um, apresentação quarenta e três, de vinte de Setembro de dois mil e um.
2.5 Que por morte do referido PP- ocorrida em vinte e cinco de Julho de mil novecentos e setenta e sete, foi no mesmo tribunal, instaurado o processo de inventário número setenta e dois barra oitenta e cinco, e, nele a metade indivisa do "de cuius" adjudicada, em partes iguais às três filhas, OO, GG e LL e estas levaram às tábuas o direito assim adquirido pela inscrição G-dois, apresentação quarenta e quatro, de vinte de Setembro de dois mil e um.
2.6 Que, assim, após estes inventários, cada uma das mencionadas, OO, GG e LL ficou titular de indico prédio de onze barra quarenta e oito avos indivisos.
2.7 Que no ano de mil novecentos e oitenta e seis, os referidos OO e marido KK, não querendo continuar na situação de compropriedade então vigente, procederam, como ato prévio, ao fracionamento do prédio referido, com os restantes comproprietários (NN; GG; QQ; RR; SS; LL; e TT).
2.8 Que, então, por acordo de divisão verbal entre eles interessados, foram aos referidos OO e KK, adjudicadas duas parcelas de terreno, sendo uma delas a no início identificada.
2.9 Que ainda nessa data, os pais dele justificante, OO e KK, doaram verbalmente, o prédio acima identificado, a ele, AA, então solteiro, maior, tendo logo, ele, entrado na posse efetiva e material do indicado prédio, demarcando-o, limpando-o, tratando das cepas, substituindo as envelhecidas, podando-as, colhendo as uvas, gozando todas as suas utilidades, com ânimo de quem exerce direito próprio, sendo reconhecido como dono por toda a população loca" fazendo-o de boa fé, por ignorar lesar direito alheio, de forma pacífica, ininterrupta e sem violência, à vista e como o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.
2.10 Que, de facto, exerceu sobre o indicado prédio uma posse pacífica porque iniciada sem violência, nem coação e sem oposição de quem quer que fosse, nomeadamente dos vizinhos e habitantes da freguesia do ..., e ainda pública e de boa-fé porque exercida à vista e com o conhecimento de toda a gente, e por saber que não lesava qualquer direito alheio.
2.11 Que assim ele, justificante, desde a data de início do apossamento referido possui o prédio no início identificado, como prédio distinto e autónomo dos originais.
2.12 Que o acordo de divisão verbal mencionado não pode já ser titulado uma vez que um dos comproprietários, RR, faleceu no dia vinte e seis de Março de mil novecentos e noventa e oito; bem como a doação verbal referida também não pode ser titulada em virtude de o doador KK, ter falecido em cinte e cinco de Janeiro de dois mil e treze.
2.13 Que, assim, a partir dessa data por usucapião, modo de aquisição originária de propriedade espelhado nos atos materiais referidos praticados na forma indicada pelo prazo de vinte e oito anos.
2.14 Que do indicado prédio mãe, do qual os pais dele justificante deixaram de ser comproprietários pelos factos mencionados e pelos quais essa situação se tornou em situação jurídica, eles, KK e OO, depois por compra e não por partilha, se tornaram, de novo, comproprietários por efeito, das compra de cinco barra quarenta e oito indivisos levada às tábuas pela apresentação quatro, de quinze de Abril de dois mil e quatro.
2.15 Que, de facto, no ano de mil novecentos e oitenta e seis, as partes realizaram um contrato de divisão (nulo por falta de forma) de fracionamento contrário ao disposto no artigo 1376.º e 1378.º do Código Civil.
2.16 (…)
2.17 Que, assim, o ato ora titulado retroai os seus efeitos, por força do disposto no artigo 1288.º do Código Civil, à data do início da posse, ou seja, no caso concreto mil novecentos e oitenta e seis.
2.18 (…)
2.19 Que, assim, e em face do disposto nos artigos 1251, 1255, 1260, 1261, 1262, 1263 alínea a), 1287, 1288 e 1296, todos do Código Civil, o primeiro outorgante adquiriu por usucapião, com efeitos retrotraídos à data de mil novecentos e oitenta e seis, o direito de propriedade sobre o prédio que é objeto da presente escritura e nela está devidamente identificado, e ao qual, tão somente para efeitos de escritura se atribui o valor de MIL EUROS.»
3. Na escritura identificada em 1., UU, VV e XX declararam que «por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem. »
4. A 2.ª Ré outorgou escritura de justificação no Cartório Notarial de ... de CC, no dia 30.04.2014, exarada de fls. 97 a fls. 102 verso do Livro de escrituras diversas n.º 8-A, na qualidade de justificante.
5. Na escritura identificada em 4., a 2.ª Ré declarou:
5.1 «Que, com exclusão de outrem, é dona e legítima possuidora, de uma parcela de terreno rústica com a área total de cinco mil novecentos e cinquenta e sete metros quadrados, composto por vinha, sita em …, freguesia do ..., concelho de ..., a confrontar do norte com ..., do sul com GG, do nascente com AA, e do poente com ZZ, a destacar do: PRÉDIO RÚSTICO, composto por vinha, com a área de trinta e cinco mil, setecentos e quarenta e três vírgula vinte metros quadrados, a confrontar a norte com caminho público, a sul com DD, a nascente com EE e a poente com FF, sito em …, freguesia do ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número QUINHENTOS E CINQUENTA E UM, registada a aquisição em comum e partes iguais a favor de GG, casada com II sob o regime de comunhão geral de bens, JJ, casada com KK sob o regime de comunhão geral de bens e LL, casada com MM, sob o regime de comunhão de bens adquiridos, em comum e partes iguais, (…) a desanexar do artigo 24 da Secção A, da matriz predial rústica da União de Freguesias do ... e …, com o valor patrimonial de € 749,71, constando como titulares, em comum e partes iguais, GG, LL, e, KK (cabeça de casal da herança de).
5.2 Que do prédio mãe referido eram titulares os avós da ora justificante, NN e mulher OO, casados que foram sob o regime da comunhão geral de bens.
5.3 Que, por morte de OO, ocorrida no ano de mil novecentos e setenta e dois, foi instaurado o inventário número doze barra setenta e dois, tendo nele sido adjudicado ao viúvo, NN, metade indivisa e a cada um dos restantes partilhantes um barra dezasseis avos indivisos, sendo destes a mãe dela justificante, JJ, casada com KK sob o regime de comunhão geral de bens.
5.4 Que estas adjudicações foram levadas às tábuas pela inscrição G-um, apresentação quarenta e três, de vinte de Setembro de dois mil e um.
5.5 Que por morte do referido PP, ocorrida em vinte e cinco de Julho de mil novecentos e setenta e sete, foi no mesmo tribunal, instaurado o processo de inventário número setenta e dois barra oitenta e cinco, e, nele a metade indivisa do “de cuius” adjudicada, em partes iguais às três filhas, OO, GG e LL e estas levaram às tábuas o direito assim adquirido pela inscrição G-dois, apresentação quarenta e quatro, de vinte de Setembro de dois mil e um.
5.6 Que, assim, após estes inventários, cada uma das mencionadas, OO, GG e LL, ficou titular de indico prédio de onze barra quarenta e oito avos indivisos.
5.7 Que no ano de mil novecentos e oitenta e seis, os referidos OO e marido KK, não querendo continuar na situação de compropriedade então vigente, procederam, como ato prévio, ao fracionamento do prédio referido, com os restantes comproprietários (NN; GG; QQ; RR; SS; LL; e, TT).
5.8 Que, então, por acordo de divisão verbal entre eles interessados, foram aos referidos OO e KK, adjudicadas duas parcelas de terreno, sendo uma delas a no início identificada.
5.9 Que ainda nessa data, os pais dela justificante, OO e KK, doaram verbalmente, o prédio acima identificado, a ela, BB, então solteira, maior, tendo logo, ela, entrado na posse efetiva e material do indicado prédio, demarcando-o, limpando-o, tratando das cepas, substituindo as envelhecidas, podando-as, colhendo as uvas, gozando todas as suas utilidades, com ânimo de quem exerce direito próprio, sendo reconhecida como dona por toda a população local, fazendo-o de boa fé, por ignorar lesar direito alheio, de forma pacífica, ininterrupta e sem violência, à vista e como o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.
5.10 Que, de facto, exerceu sobre o indicado prédio uma posse pacífica porque iniciada sem violência, nem coação e sem oposição de quem quer que fosse, nomeadamente dos vizinhos e habitantes da freguesia de ..., e ainda pública e de boa-fé porque exercida à vista e com o conhecimento de toda a gente, e por saber que não lesava qualquer direito alheio.
5.11 Que assim ela, justificante, desde a data de início do apossamento referido possui o prédio no início identificado, como prédio distinto e autónomo dos originais.
5.12 Que o acordo de divisão verbal mencionado não pode já ser titulado uma vez que um dos comproprietários, RR, faleceu no dia vinte e seis de Março de mil novecentos e noventa e oito; bem como a doação verbal referida também não pode ser titulada em virtude de o doador KK, ter falecido em cinte e cinco de Janeiro de dois mil e treze.
5.13 Que, assim, a partir dessa data por usucapião, modo de aquisição originária de propriedade espelhado nos atos materiais referidos praticados na forma indicada pelo prazo de vinte e oito anos.
5.14 Que do indicado prédio mãe, do qual os pais dela justificante deixaram de ser comproprietários pelos factos mencionados e pelos quais essa situação se tornou em situação jurídica, eles, KK e OO, depois por compra e não por partilha, se tornaram, de novo, comproprietários por efeito, das compra de cinco barra quarenta e oito indivisos levada às tábuas pela apresentação quatro, de quinze de Abril de dois mil e quatro.
5.15 Que, de facto, no ano de mil novecentos e oitenta e seis, as partes realizaram um contrato de divisão (nulo por falta de forma) de fracionamento contrário ao disposto no artigo 1376.º e 1378.º do Código Civil.
5.16 (…)
5.17 Que, assim, o ato ora titulado retroage os seus efeitos, por força do disposto no artigo 1288.º do Código Civil, à data do início da posse, ou seja, no caso concreto mil novecentos e oitenta e seis.
5.18 (…)
5.19 Que, assim, e em face do disposto nos artigos 1251, 1255, 1260, 1261, 1262, 1263 alínea a), 1287, 1288 e 1296, todos do Código Civil, a primeira outorgante adquiriu por usucapião, com efeitos retrotraídos à data de mil novecentos e oitenta e seis, o direito de propriedade sobre o prédio que é objeto da presente escritura e nela está devidamente identificado, e ao qual, tão somente para efeitos de escritura se atribui o valor de MIL EUROS.»
6. Na escritura id. em 4., UU, VV e XX declararam que «por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem. »
7. As áreas dos prédios destacados são de 5957,00 m2 cada um.
8. Através dos inventários obrigatórios dos avós dos Réus designadamente Inventário nº … e …., os prédios rústicos que compunham o acervo hereditário foram adjudicados em compropriedade aos sete filhos do falecido casal OO e NN, avós dos ora justificantes.
9. Que em data que não se pode precisar mas que se sabe ter sido em 1986, os irmãos procederam à divisão verbal dos terrenos herdados entre si, cabendo à mãe dos Réus JJ casada com KK sob o regime da comunhão geral de bens dois prédios rústicos, um deles o prédio em causa nos autos.
10. Sucede que, em 1986 logo que os irmãos procederam à divisão verbal entre si e lhes foram adjudicadas as respetivas parcelas de terreno, os pais dos Réus dividiram um dos prédios rústicos em duas parcelas distintas e autónomas e doaram verbalmente a cada um dos seus filhos – BB e AA – ora RR., as aludidas parcelas com a composição referida nas escrituras.
11. Foi em meados de 1986 que os pais dos Réus, doaram verbalmente aos seus filhos, ora RR., as aludidas parcelas supra referidas.
12. Sendo que, cada um dos Réus entraram de imediato na posse efetiva e material do seu respetivo prédio rústico, e demarcaram o seu prédio colocando os respetivos marcos pelas áreas correspondente;
13. Separando-os fisicamente e constituindo duas parcelas distintas e autónomas, aliás como se encontram até ao dia de hoje.
14. Desde então que os RR. limparam, trataram das cepas e árvores, gradaram a terra, semearam, colheram os seus frutos, gozando de todas as utilidades e frutos do seu respetivo prédio.
15. Os RR. são reconhecidos por toda a população local como legítimos donos.
16. Sempre agiram de boa fé e de forma pacifica e ininterrupta e sem violência à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem qualquer oposição, ignorando lesar qualquer interesse alheio.
17. O que sempre fizeram desde 1986.»
As questões judicandas, são exactamente idênticas às que foram objecto de apreciação na revista nº 6000/16.1T8STB.E1.S1, cujo acórdão, de 8/11/2018, foi relatado pelo aqui 2º Adjunto e com o qual se concorda inteiramente. Nesse aresto fez-se uma síntese da evolução legislativa do regime legal dos limites ao fraccionamento de prédios rústicose que pela sua completude vale a pena transcrever:
«O regime do fracionamento legal de prédios rústicos tem evoluído ao longo do tempo.
Resultava do art. 107º do Decreto nº 16.731, de 13 de Abril de 1929, que era “proibida, sob pena de nulidade … a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que provenham novos prédios de menos de ½ hectare”.
Tal regime foi genericamente mantido pela Lei nº 2.116, de 18-4-62, cuja Base I, nº 1, previa que “os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima correspondente à unidade de cultura fixada pelo Governo para cada zona do País”. O nº 2 cominava com a “nulidade” os atos de divisão contrários ao disposto no nº 1.
Na vigência deste diploma mantiveram-se as áreas mínimas previstas no art. 107º do Decreto nº 16.731 para aferir da validade dos atos de fracionamento de prédios rústicos.
Tal regime sofreu uma modificação parcial com o CC de 1967, cujo art. 1379º, nº 1, passou a estabelecer que “são anuláveis os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º e 1378º …” (no art. 1376º consagrou-se a regra segundo a qual “os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País …”).
O DL nº 384/88, de 25-10, revogou a Lei nº 2.116, de 14-8-62, e procurou “aperfeiçoar e ampliar os mecanismos reguladores do fracionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas”, estabelecendo no art. 19º, nº 1, que “ao fracionamento e à troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal aplicam-se, além das regras dos arts. 1376º e 1379º do CC, as disposições da presente lei”. No art. 20º, nº 1, previa-se que “a divisão em substância de prédio rústico ou conjunto de prédios rústicos que formem uma exploração agrícola e economicamente viável só poderá realizar-se” se da “divisão resultarem explorações com viabilidade técnico-económica” (al. c)) e se “do fracionamento não resultar grave prejuízo para a estabilidade ecológica” (al. d)).
Complementarmente, o DL nº 103/90, de 22-03, veio estatuir no art. 47º que:
“1 – São anuláveis os atos de fracionamento ou troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal que contrariem o disposto no art. 20º do DL nº 384/88, de 25-10.
2 – Têm legitimidade para a ação de anulação o Ministério Público, a DGHEA ou qualquer particular que goze de direito de preferência no âmbito da legislação sobre o emparcelamento ou fracionamento.
3 – O direito de ação de anulação caduca decorridos três anos sobre a celebração dos atos referidos no nº 1.
4 – A DGHEA tem igualmente legitimidade para a ação de anulação a que se refere o art. 1379º do CC”.
Com a nova redação do art. 1379º introduzida pela Lei nº 111/15, de 27-8, prevê-se que “são nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º e 1378º”.
3. Quanto à área da unidade de cultura relevante para efeitos daqueles preceitos também se verificou uma evolução legislativa:
O mencionado art. 107º do Decreto nº 16.731, de 13-4-9 (nos termos do qual era “proibida, sob pena de nulidade … a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que provenham novos prédios de menos de ½ hectare”), continuou a vigorar até à data da entrada em vigor da Port. nº 202/70.
Com a Portaria nº 202/70 foi fixada para a zona dos prédios em causa a área de 7,5 hectares como mínima para a unidade de cultura de terras de sequeiro.
Assim, a progressão no tempo revela que:
a) Até à entrada em vigor da Portaria nº 202/70 eram anuláveis os atos de fracionamento de prédios rústicos de área inferior a 1 hectare (10.000 m2) ou de que proviessem novos prédios de menos de ½ hectare (5.000 m2);
b) A partir da entrada em vigor da Portaria nº 202/70, até à entrada em vigor da Portaria nº 219/16, de 9-8, passou a valer para a zona a área de 7,5 hectares (75.000 m2) para terrenos de sequeiro;
c) A partir da entrada em vigor da Portaria nº 219/16 (já depois de ter sido proposta a presente ação), para a mesma zona foi fixada a área mínima de 48 hectares (480.000 m2 e não 48.000, como, por lapsus calami, consta do acórdão) para terrenos de sequeiro».
Vejamos agora a 1ª questão.
O Ministério Público pretende que se considere que a data do fracionamento corresponde à data em que foram outorgadas as escrituras de justificação notarial. Alega que só com a justificação notarial se tornou pública a invocação da usucapião sustentada na posse e só nesse momento o fracionamento se materializou num documento, através do qual se pôde verificar a infração das regras a que o mesmo obedeceu, para efeitos de invocação da anulabilidade referida na anterior redação do art. 1379º, nº 1, do CC. Tal como se decidiu no acórdão recorrido, «no caso concreto estão em causa as duas escrituras de justificação notarial referidas em II.2, através das quais os réus outorgantes se declararam titulares do direito de propriedade sobre cada uma das parcelas de terreno ali identificadas, por efeito do instituto jurídico da usucapião (cuja verificação, recorde-se, não é posta em crise pelo recorrente).
A outorga das referidas escrituras visou o estabelecimento do trato sucessivo previsto no art. 116.º, n.º 1 do Código de Registo Predial. De acordo com este normativo, o adquirente que não dispõe de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.
A justificação notarial para estabelecimento do trato sucessivo consiste, assim, numa forma especial de titular direitos sobre imóveis para efeitos de descrição na Conservatória do Registo Predial e baseia-se em declarações dos próprios interessadas (que têm, todavia, de ser confirmadas por três declarantes – art. 91.º, do Código de Notariado).
Como é referido no Acórdão do STJ de 09.07.2015, processo n.º 448/09.5TCFUN.L1.S1: «A escritura de justificação notarial tem por escopo providenciar aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que ou não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão. A justificação notarial associa-se, pois, à dinâmica do registo predial – art. 116.º, n.º 1, do CRP –, mormente à prova documental do facto jurídico a registar, imprescindível para o registo – cf. art. 43.º, n.º 1, do mesmo diploma. (…) Reduzida a escritura pública, constitui, por conseguinte, um documento autêntico que faz prova plena do facto jurídico que titula – cf. arts. 363.º, n.º 2, e 371.º, n.º 1, ambos do CC. Evidentemente, como qualquer outro ato jurídico, também a escritura de justificação notarial é passível de ser impugnada judicialmente, por parte de quem tenha legitimidade (…).»
Por seu turno, o art. 89.º do Código de Notariado dispõe que: «1 - A justificação, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais. 2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.»
Resulta já de todo o exposto supra que a escritura de justificação notarial não é um ato constitutivo de direitos nem um ato translativo de direitos. Consiste, ao invés, num ato declarativo de aquisição de um direito por via da usucapião, o qual se mostra necessário pelo facto de a usucapião, para ser eficaz, necessitar de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (art. 1287.º, do Código Civil e anotação ao mesmo no Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., p. 65).
Como se referiu no AUJ de 04-12-2007, «a justificação notarial não constitui acto translativo, pressupondo sempre, no caso de invocação de usucapião, uma sequência de actos a ela conducentes, que podem ser impugnados, antes ou depois de ser efectuado o registo, com base naquela escritura. É que a usucapião constitui o fundamento primário dos direitos reais na nossa ordem jurídica, não podendo esquecer-se que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião ( Oliveira Ascensão, Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa, ROA, Ano 34, pág. 43/46)».
Por conseguinte, as escrituras de justificação, em causa nos autos, configuram um acto jurídico de invocação da usucapião e não um acto de fraccionamento ou de transmissão de propriedade. Como bem se observa no Acórdão deste Tribunal acima citado «não é o referido ato (Escritura de justificação) que traduz o fracionamento do prédio, o qual deve corresponder ao ato de divisão material, a partir do qual se iniciou a posse sobre cada uma das parcelas que, prolongando-se no tempo, por período legalmente suficiente, permitiu a invocação por parte dos RR. da aquisição originária do direito de propriedade sobre cada uma delas por via da usucapião.
Posto que a usucapião, como forma de aquisição originária de direitos reais, careça de ser invocada (art. 303º, ex vi art. 1284º do CC), quando tal ocorra e quando se reconheça a verificação dos correspondentes requisitos legais (posse prolongada no tempo por período suficiente), essa aquisição retrotrai-se à data do início da posse (art. 1288º do CC)», no mesmo sentido vide Ac. do STJ de 15/11/2018, revista nº 2769/17.4T8STB.E1.S1, relatado por Graça Trigo.
Voltando aos autos, vem provado que:
«10. … em 1986 …os pais dos Réus dividiram um dos prédios rústicos em duas parcelas distintas e autónomas e doaram verbalmente a cada um dos seus filhos – BB e AA – ora RR., as aludidas parcelas com a composição referida nas escrituras.
11. Foi em meados de 1986 que os pais dos Réus, doaram verbalmente aos seus filhos, ora RR., as aludidas parcelas supra referidas.
12. Sendo que, cada um dos Réus entraram de imediato na posse efetiva e material do seu respetivo prédio rústico, e demarcaram o seu prédio colocando os respetivos marcos pelas áreas correspondente;
13. Separando-os fisicamente e constituindo duas parcelas distintas e autónomas, aliás como se encontram até ao dia de hoje.
14. Desde então que os RR. limparam, trataram das cepas e árvores, gradaram a terra, semearam, colheram os seus frutos, gozando de todas as utilidades e frutos do seu respetivo prédio.
15. Os RR. são reconhecidos por toda a população local como legítimos donos.
16. Sempre agiram de boa fé e de forma pacifica e ininterrupta e sem violência à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem qualquer oposição, ignorando lesar qualquer interesse alheio.
17. O que sempre fizeram desde 1986.»
Daqui decorre que o acto de fraccionamento ocorreu em meados de 1986 e sendo ilegal, por não respeitar a unidade de cultura, que à data era de 7,5ha, tal ilicitude acarretava a anulabilidade do acto nos termos do disposto no art.º 1379º, nº 1do CC. Ora à data da escritura de justificação impugnanda há muito tinha caducado o direito à anulação do acto de fraccionamento. Consequentemente a acção teria de improceder como improcedeu.
A apreciação da segunda questão estaria prejudicada pela solução dada à primeira. Porém não deixaremos de reiterar o entendimento que tem sido seguido nesta secção do STJ, quanto a tal questão e que é lapidarmente retratado na fundamentação do Ac. de 1/03/2018, proferido na revista nº 1011/16.0T8STB.E1.S2 onde se pode ler o seguinte:
«enfrentando, agora, a questão nuclear objecto do presente recurso de saber se a usucapião pode, ou não, incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura fixada por lei (art. 21º do DL nº 384/88, de 25.10, art. 53.º do DL nº 103/90, de 22.03 e Portaria n.º 202/70, de 21.04), impõe-se referir que, também contrariamente ao afirmado pelo recorrente, temos por certo que a «disposição em contrário» ressalvada pelo art. 1287º do C. Civil, não abarca a situação prevista no art. 1376º do mesmo código, na medida em que inexiste qualquer norma excecional que estabeleça, taxativamente, que a posse mantida sobre as parcelas de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião, ou seja, que as mesmas não podem ser adquiridas por usucapião.
De realçar, como é consabido e resulta do citado art. 1287º, que o instituto da usucapião assenta na existência da posse, definida, nos termos do art. 1251º do C. Civil, como o poder de facto (corpus) que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (corpus), mantido, de forma ininterrupta pacífica e pública ( arts. 1261º e 1262º, do C. Civil), durante um certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem ( móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse ( titulada ou não titulada e de boa fé ou de má fé – cfr. arts. 1259º , 1260º e 1294º, todos do C. Civil).
Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (cfr. art. 1288º do C. Civil), adquirindo-se o direito de propriedade no momento em que se iniciou a posse (cfr. art. 1317º, al. c), do C. Civil).
A usucapião é, assim, uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, que no dizer do Acórdão do STJ, de 27.06.2006 (proc. nº 06ª1471)[4], «se funda direta e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes dessa aquisição tenham incidido sobre a coisa».
Dito de outro modo e nas palavras de Oliveira Ascenção, «o novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo. Em consequência, não lhe podem ser opostas as excepções de que seria passível o direito daquele titular»[5].
No mesmo sentido, afirma Abílio Vassalo Abreu, que «o direito adquirido por usucapião surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, pois não depende geneticamente de um direito anterior, depende tão só, do facto aquisitivo em que o processo de usucapião se analisa» [6].
E daí concluir-se, no citado Acórdão do STJ, de 27.06.2006, que «irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam vícios de natureza formal ou substancial. O que passa a relevar e a obter tutela jurídica é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse. Concorrendo, aferidas pelas características desta, os requisitos da usucapião, os vícios anteriores não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes».
Neste mesmo sentido, já decidiram os Acórdãos do STJ, de 19.04.2004 (proc. nº 2988/04); 27.06.2006 (proc. nº 1471/06); de 12.01.2012 (proc. nº 136/05.1TBFUN.L1.S1); de 04.02.2014 (proc. nº 314/2000.P1.S1) e de 06.04.2017 (proc. nº 1578/11.9TBVNG.P1.S1) [7].
Significa tudo isto, no caso dos autos e face aos factos assentes e supra descritos sobre os nºs 1 a 13, que, à data da celebração das duas escrituras de justificação notarial (02.01.2015), já haviam decorrido, mais de quinze anos, quer desde a data da divisão do prédio rústico, da criação de cada uma das referidas parcelas de terreno com a área de três mil setecentos e oitenta e sete metros quadrados e da consequente adjudicação aos réus AA e CC, quer desde o início da posse dos réus sobre cada uma delas, o que tudo ocorreu em março de 1988.
E porque a partir desta data, os réus passaram a usar e fruir as respetivas parcelas, como prédios autónomos, como se fossem coisa sua, sem oposição de quem quer que seja e à vista de toda a gente, dúvidas não restam que tal posse, embora não titulada, porque mantida por mais de 15 anos, de boa fé, pacífica, pública confere aos réus a aquisição do direito de propriedade sobre tais parcelas de terreno por usucapião (cfr. arts. 1259º,1260º, 1261º, 1262º, 1296º e 1287º, todos do C. Civil), carecendo, por isso, a ilegalidade do fracionamento do prédio rústico em causa de potencialidade ou idoneidade para interferir na operância desta forma de aquisição.
De realçar ser esta também a posição de Castro Mendes que sempre defendeu não obstar à aquisição por usucapião de parte de prédio, dividido verbalmente pelos anteriores comproprietários, o facto de a sua superfície ser inferior a meio hectare, tendo em conta o valor da unidade de cultura fixado pela Portaria n.º 202/70, de 21/04[8].
E esta é também a orientação seguida por Pires de Lima e Antunes Varela, que referem que «se, através de um negócio jurídico nulo (v.g., por falta de forma) se realizar um fracionamento ou uma troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 1378.º, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais. Embora as regras sobre fracionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinadas por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no n.º 3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião)»[9] .
Daí poder concluir-se, na esteira de tudo o que acima se deixou dito, que a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura fixada na Portaria n.º 202/70, de 21/04, prevalece sobre a proibição contida no art. 1376º, nº 1 do C. Civil, não operando a anulabilidade do ato de fracionamento previsto no nº 1 do art. 1379º do C. Civil (na redação anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27.08).
E nem se argumente, como o faz o recorrente, que o interesse público que a norma do art° 1376° n°1 do CC visa salvaguardar – estruturação fundiária nacional e o ordenamento territorial em termos socialmente adequados – deve prevalecer sobre os interesses subjacentes à usucapião.
É que também as regras da usucapião são determinadas por razões de interesse público.
Com efeito, como refere Durval Ferreira, a usucapião não visa satisfazer um interesse individual do possuidor, mas, antes, o interesse público de «assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer, através do usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e á sua titularidade»[10] .
Do mesmo modo não colhe o argumento avançado pelo recorrente no sentido de que a sanção de nulidade, agora, imposta pelo art. 1379º, n.º 1 do C. Civil, na redação dada pela Lei nº 111/2015, para os actos de fracionamento violadores da unidade de cultura, é bem elucidativa da vontade do legislador reafirmar o caráter imperativo dessa norma e confirmar a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fracionamento, tanto mais, que ficando sujeita ao regime estatuído nos art.ºs 294º e 286º, ambos do C. Civil, pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado e pode até ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
Desde logo, porque, como já ensinava Manuel de Andrade, «o princípio de que a nulidade absoluta pode, por via de acção, ser invocada a todo o empo, não prevalece sobre a doutrina da prescrição aquisitiva»[11].
No mesmo sentido, afirma Mota Pinto que a possibilidade da invocação perpétua da nulidade, pode ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva (usucapião)[12]».
Voltando ao caso dos autos e considerando que se nos apresenta uma divisão material de prédios rústicos, sem que se intrometa qualquer outra questão de natureza urbanística que porventura encontrasse nas respectivas regras consequências mais gravosas do que a anulabilidade prevista na primitiva redacção do art. 1379º do CC, concluímos pela improcedência da acção de impugnação sustentada na anulabilidade dos actos de fraccionamento subjacentes às escrituras de justificação notarial.
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Pelo exposto, na improcedência da revista, confirma-se a decisão recorrida.
Notifique.
Lisboa, em 28 de março de 2019.
Bernardo Domingos (Relator)
João Bernardo
Abrantes Geraldes
_________
[1] Parcialmente transcrito do acórdão recorrido.
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[4] In www dgsi.pt e in CJ/STJ, ano 2006, tomo II, pág. 133.
[5] In, “ Direito Civil- Reais”, 5ª ed., pág. 300.
[6] In, “ Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária vs Usucapião”, Coimbra, pág. 19.
[7] Todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] In, “Teoria Geral”, 1979, Vol. II, pág. 235.
[9] In, “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2.ª edição, pág. 269
[10] In, “ Posse e Usucapião”, Almedina, 3ª ed., pág. 494.
[11] In “ Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pág. 418.
[12] In, “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 470