PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS
ACORDO
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
Sumário


I - O acordo de promoção e protecção é estabelecido entre o tribunal e os pais, pelo que a sua homologação não pode ser integralmente equiparada a uma transacção, desde logo porque neste acordo o tribunal subscreve esse compromisso, enquanto na transação intervêm apenas as partes.
II - A revogação em sede de recurso da sentença homologatória de um acordo, só pode ter por fundamento a violação de um dos requisitos que o juiz tem que verificar, por exemplo, ter homologado acordo sem que as pessoas que fizeram a declaração tivessem capacidade e legitimidade para o efeito, em violação do preceituado nos artigo 9.º e 10.º, ou sem que o mesmo obedeça ao conteúdo obrigatório a que se refere o artigo 55.º, aplicável ex vi do artigo 113.º, n.º 1, todos da LPCJP.
III - Na medida de acolhimento residencial o acordo de promoção e protecção tem de ter o conteúdo a que alude o artigo 55.º, n.º 1, da LPCJP, mormente da sua alínea b), que estabelece a obrigatoriedade de nele ser fixado o prazo de duração da medida e o prazo em que a mesma deve ser revista.
IV - Não cumpre tal conteúdo obrigatório uma cláusula como a vertida no n.º 6 do acordo homologado, com o seguinte teor: “a presente medida terá a duração máxima prevista na lei e será revista semestralmente”, porquanto não estabelecendo a lei, em parte alguma, um prazo de duração para a medida de acolhimento residencial, apenas prevendo no artigo 61.º da LPCJP, que a mesma “tem a duração estabelecida no acordo ou na decisão judicial”, não pode o tribunal validar um acordo desta natureza que remeta para a “duração máxima prevista na lei”, quando esta é totalmente omissa a esse respeito.
V - Concluindo-se pela ilegalidade do acordo de promoção e protecção, por ausência de estabelecimento do prazo obrigatório de duração da medida de acolhimento residencial das crianças, a decisão homologatória desse acordo ilegal, não pode ser mantida.

Texto Integral


Processo n.º 748/10.1TMFAR-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]


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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I. RELATÓRIO
1. BB, mãe das crianças CC e DD, Requerida no Processo de Promoção e Proteção instaurado pelo Ministério Público em 21.12.2018, a favor daquelas[3], apresentou o presente recurso de apelação do «despacho-sentença (sic) que determinou o acolhimento dos dois menores em causa no presente processo junto da instituição Refúgio Aboim Ascensão, finalizando a respectiva minuta recursória com as seguintes conclusões[4]:
«1- O presente recurso tem por objeto toda a matéria de facto e de direito do despacho-sentença que determinou o acolhimento das duas crianças ora em causa por FALSIDADE dos relatórios da Segurança Social, porque não correspondem à verdade; por COAÇÃO, pois levaram a requerida, mãe das menores a prescindir de aconselhamento de advogado, e daí também consubstanciar um despacho inconstitucional - bem como a assinar um documento que sempre referiu não aceitar os seus termos, bem como por ILEGALIDADE, pois não respeita os diplomas legais que regulam a matéria.
2- A Petição efetivada pelo Ministério Público está eivada de falsidade, inverdades e más interpretações.
3- A Apelante não faltou às consultas que são indiadas na Petição.
4- As conclusões dos relatórios efetuados pelas técnicas da segurança social não correspondem à verdade.
5- O que está em causa é uma falta a uma consulta, perfeitamente identificada, remarcada e tudo já voltou à normalidade.
6- É falso que a menor CC tenha os comportamentos descritos pelos relatórios da Segurança Social.
7- A Petição em causa não teve nenhum elemento probatório, nem sequer um documento clinico que comprove estas afirmações.
8- Em todo o processo, desde a petição, incluindo a sessão judicial, esteve totalmente ausente qualquer avaliação jurídica ou a aplicação de qualquer critério jurídico para a tomada de qualquer decisão.
9- A própria Petição não tem factos; apenas conclusões.
10- É completamente INEPTA.
11- Imputa-se responsabilidades a progenitora, e isto é apenas um exemplo, quando a escola é que tem essas mesmas responsabilidades, como por exemplo,
12- O ensino especial que, após a criança ser deixada na escola, cabe às funcionárias levarem a menor ao ensino especial; e não o fizeram.
13- Imputa-se características às crianças que, em abstrato, se poderiam imputar a qualquer criança, sem se aferir um facto, sequer.
14- Não existe qualquer falta de higiene por parte das crianças.
15- Dizem que a criança tem “fraqueza social” apenas porque a criança é reservada, não indicando qualquer facto que leve a entender que isso seja uma situação negativa.
16- Todas as características imputadas à residência da progenitora dos menores são perfeitamente explicáveis e acontecem em cerca de 80% das residências de quase todos os portugueses.
17- Foi imediatamente proposto o acolhimento das crianças, sem averiguar quais seriam as outras opções, essencialmente, a nível familiar, ANTES da opção do acolhimento residencial.
18- Foi violado o art.º 20.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, pois,
19- A progenitora da criança foi influenciada pelas técnicas da segurança social a não procurar assistência jurídica, e que,
20- “O que a juíza decidisse no processo, estaria decidido, sem qualquer recurso.”
21-Ou seja, os serviços da Segurança Social, através das técnicas, induziram a progenitora das crianças a prescindir de acompanhamento jurídico e a aceitar deixar-se conduzir nas sessões judiciais e extrajudiciais sem qualquer acompanhamento jurídico e induziram-na a aceitar qualquer resolução do tribunal sem apelo nem agravo.
22- A progenitora assinou um acordo contra a sua vontade, ao contrário do que afirmou verbalmente na sessão judicial.
23- Foi homologada uma decisão que não corresponde a realidade do que se passou na audiência.
24- A Lei foi violada. Não foi atendido o superior interesse das crianças, pois,
25- Há elementos da família que podem albergar as crianças enquanto o tribunal achar necessário.
26- O tio materno, de nome Paulo B… ou a prime Tânia M…, sempre mostraram abertura para albergar as crianças, mas foram sempre preteridos e ignorados pelas técnicas da Segurança Social, e nem apresentaram essa solução à Juiz titular do processo, sempre direcionado a resolução do caso para o acolhimento das crianças em instituição.
27- A medida aplicada não respeita o art.º 4.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, não respeitando os seus critérios.
28- Não foi respeitado o art.º 39.º da LPCJ, nomeadamente no que diz respeito às medidas a aplicar respeitando o meio natural de vida das crianças.
29- A medida aplicada não respeita o princípio da intervenção mínima, a proporcionalidade, o princípio da responsabilidade parental, nem o princípio da prevalência da Família.
30- Esta decisão não tem em conta as orientações jurisprudenciais superiores, aliás, sendo totalmente contrária a essas mesmas decisões.
Termos em que, e nos demais de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via do mesmo, ser revogada a decisão recorrida e, em consequência: A) ser decretada a revogação/extinção do decretamento da medida aplicada, dando sem efeito o acordo dado pela ora Apelante, dado que esta não sabia o que estava assinar, uma vez que tinha dito peremptoriamente que não aceitava o acordo, B) A aplicação, caso V. Exa. assim o ache adequado da aplicação de uma medida de promoção e proteção prevista nas alíneas a) da CPCJP, tendo em conta tudo o alegado e demonstrado, e a manutenção das crianças junto da sua família, seus progenitores ou familiares diretos, que se mostraram disponíveis para receber as mesmas, abrindo-se, para o efeito, nova audiência judicial para efetiva confirmação, pela Sra. Dra. Juiz titular do processo da idoneidade desses parentes, como deveria ter acontecido desde inicio; C) A declaração da inconstitucionalidade da decisão ora recorrida por violação dos artigos 36, números 5, e 6 artigo 67.º e art.º 20.º, n.º 2, todos da Constituição da Republica Portuguesa».

2. Pelo Ministério Público foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação.

3. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. Objecto do recurso
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[5], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, a única questão a apreciar no presente recurso é a de saber se deve ou não ser revogada a sentença que homologou o acordo alcançado no sentido de aplicação a favor das identificadas crianças da medida de acolhimento residencial.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
A tramitação processual relevante para a decisão do presente recurso é a decorrente deste Processo de Promoção e Proteção, assim sintetizada:
- O Ministério Público instaurou, em 21 de Dezembro de 2018, o presente processo judicial de promoção e protecção a favor das crianças EE, nascida a 21.10.2006, de CC, nascida a 02.12.2010, e de DD, nascido a 09.04.2018, todos filhos da recorrente BB, sendo a primeira filha de FF, e a segunda e terceira filhas de GG.
- Para o efeito, alegou, em síntese, que as crianças viviam sem quaisquer rotinas de higiene, numa casa com condições de habitação entre o fraco e o muito fraco, com faltas de comparência às consultas de vigilância infantil e de especialidade hospitalar.
- Mais alegou que, face à proposta de acolhimento apresentada pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, com fundamento na higiene deficitária, sinais de pediculose e sinais precoces de autonomia que se associam a negligência passiva, a mãe, ora recorrente, retirou o consentimento, tendo aquela CPCJ procedido à remessa do processo ao Ministério Público, nos termos do artigo 11.°, n.º 1, alínea c), e n.º 3, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo[6].
- Por despacho proferido em 10.01.2019, o tribunal declarou aberta a instrução, designou data para tomar declarações aos pais, determinou a notificação dos progenitores para, querendo, no prazo de 10 dias requererem a realização de diligências instrutórias ou juntarem meios de prova, solicitou à Segurança Social elaboração de relatório social, dele constando um plano concreto de intervenção, e solicitou que o técnico designado para acompanhar o caso comparecesse àquela diligência.
- Na acta da conferência realizada no dia 18 de Março de 2019, e para o que ora importa, consta o seguinte:
«Iniciada a conferência pela técnica da segurança social foi entregue acordo de promoção e proteção relativamente à criança EE celebrado na comissão de proteção de crianças e jovens de Olhão e relatório social. Nessa sequência foi determinado a remessa daqueles autos para este processo. (…)
No concernente às crianças CC e DD determina-se que se passe a celebrar acordo protetivo. (…)
ACORDO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO / (18 de março de 2019)
Pela Técnica do SAT da Segurança Social, Dr.ª T… e pelos Progenitores BB e GG foi dito acordarem em aplicar a favor das crianças CC e DD a medida de acolhimento residencial, prevista nos artigos 35º, n.º 1. alínea f) e 49º, todos da LPPCJP, mediante as seguintes condições:
1º As crianças CC e DD ficarão à guarda de instituição a indicar pela segurança social.
2º Os progenitores poderão visitar e contactar com os filhos de acordo com o regulamento da instituição.
3º Os progenitores manterão a casa limpa e organizada, pagando pontualmente as despesas domésticas.
4º Os progenitores manter-se-ão ativos profissionalmente de molde a promover ao seu sustento e dos filhos sem necessidade de apoios sociais.
5º Caso a mãe manifeste vontade em ser acompanhada por técnico na área da psicologia a gestora do processo, em articulação com a progenitora acionará esse suporte.
6º A presente medida terá a duração máxima prevista na lei e será revista semestralmente.
7º A técnica enviará relatórios semestrais de acompanhamento da situação, o primeiro até finais de agosto de 2019 e o segundo até finais de fevereiro de 2020.
Seguidamente, dada a palavra ao Digno Magistrado do Ministério Público, pelo mesmo foi dito nada ter a opor ao acordo agora alcançado, promovendo que o mesmo seja homologado.
Após, a Mm" Juíza proferiu o seguinte: DESPACHO
"Nos presentes autos de Promoção e Proteção instaurados, pelo Ministério Público com vista à proteção das crianças CC e DD, nascidas respetivamente em 2.12.2010 e 21.10.2006 respetivamente, homologo o acordo alcançado no sentido de aplicação a favor das crianças da medida de acolhimento residencial, face à posição assumida por todos os intervenientes processuais (…).
Solicite à técnica gestora que diligencie no sentido de preferencialmente as crianças serem acolhidas junto da instituição refúgio Aboim Ascensão. O sugerido pelo Tribunal tem por base a fragilidade de saúde e física da criança CC, porquanto no Algarve a referida instituição será aquela que melhor poderá dar resposta aos superiores interesses da criança, independentemente de a mesma já ter completado oito anos de idade».
- Seguidamente encontra-se exarado:
«Do douto despacho que antecede, foram todos os presentes devidamente notificados, tendo sido entregue cópia do acordo aos pais e à técnica.
Após, a Mmª Juíza deu por encerrada a presente diligência.
Para constar, se lavrou a presente ata que, lida e achada conforme, vai ser devidamente assinada».
- Após, no final da acta, constam 6 assinaturas, sendo a primeira, bem legível “BB”.
- O rosto do acordo encontra-se rubricado, sendo legível numa das rúbricas “BB”.
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III.2. – O mérito do recurso
Diz a Apelante no segmento das suas alegações que intitulou «OBJETO E DELIMITAÇÃO DO RECURSO», que «o presente recurso tem por objeto toda a matéria de facto e de direito do despacho-sentença que determinou o acolhimento das duas crianças ora em causa por FALSIDADE dos relatórios da Segurança Social, porque não correspondem à verdade; por COAÇÃO, pois levaram a requerida, mãe das menores a prescindir de aconselhamento de advogado, e daí também consubstanciar um despacho inconstitucional - bem como a assinar um documento que sempre referiu não aceitar os seus termos, bem como por ILEGALIDADE, pois não respeita os diplomas legais que regulam a matéria».
Seguidamente, num denominado «ENQUADRAMENTO PRÉVIO» subintitulado «FALSIDADE», numerados dos pontos 2 a 51 do corpo das alegações, a Apelante, vai transcrevendo pontos do requerimento inicial do Ministério Público e contrapondo aquilo que em seu entender se passou para concluir que tais factos/afirmações que elencou são falso(as), ou noutros pontos apresentando a sua justificação para a ocorrência do alegado, que aceita ter acontecido, mas sem que se extraia a “leitura” que dessas situações é feita, e noutros pontos insurgindo-se, com expressões que até se poderiam compreender pela emoção das partes mas que são totalmente desadequadas numa peça processual lavrada pela pena do seu mandatário constituído, como são as que se encontram de 29 a 31.
Prosseguindo, aduz a Apelante após o subtítulo «INCONSTITUCIONALIDADE», de 52 a 57, e depois de transcrever o n.º 2 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, que «os serviços da Segurança Social, através das técnicas, induziram a progenitora das crianças a prescindir de acompanhamento jurídico e a aceitar deixar-se conduzir nas sessões judiciais e extrajudiciais sem qualquer acompanhamento jurídico e induziram-na a aceitar qualquer resolução do tribunal sem apelo nem agravo.
Isto foi assim, tanto numa primeira fase, como na sessão judicial em que, devido à emoção que a situação impunha, às sucessivas investidas das técnicas da Segurança Social, assinou um acordo contrário àquilo que tinha dito em audiência.
Ou seja, a progenitora das crianças não aceitou a proposta do tribunal de acolhimento residencial dos seus filhos e fizeram-na assinar um documento que não corresponde àquilo que se passou em audiência.
Foi homologada uma decisão sobre uma situação que não corresponde à realidade; de maneira que a solução que se afigura mais conforme às regras seria reabrir a sessão para se achar a melhor solução a dar para o presente caso».
Diz depois a Apelante, de 58 a 72 que esta decisão também viola a lei, em síntese, porque não respeita o princípio da prevalência da família «porque afastar os menores, um com ainda meses de idade, dos cuidados e conforto dos seus pais seria desproporcional, pois, de um modo objetivo e ponderado, chegar-se-á à conclusão de que com um acompanhamento regular das instituições que V. Exa. achar por adequadas, é preferível os menores começarem e continuarem as suas vidas junto dos seus pais», para seguidamente aduzir que a progenitora tem todas as condições físicas para manter as crianças consigo, assim como outros familiares, «em vez da opção de serem recolhidas por uma instituição».
Finalmente, de 73 a 111, esgrime a Apelante com o «DIREITO», invocando preceitos da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, seus princípios e a sua aplicação na jurisprudência, tudo para demonstrar que «a manter-se esta decisão violar-se-ão diversos preceitos legais e constitucionais».
Por seu turno, o Ministério Público contrapõe que o recurso não é admissível, citando, para além do mais o acórdão desta conferência de 26.10.2017, e pugnando a final pela sua improcedência.
Vejamos, então, se a pretensão da Apelante pode ou não proceder.
Em primeiro lugar, importa salientar que os presentes autos de Promoção e Protecção têm por objecto a protecção das crianças[7] CC e DD, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, nos termos previstos no artigo 1.º da Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo, aplicável às crianças e jovens que se encontram em perigo (artigo 2.º da LPCJP), visando a aplicação de medidas de promoção dos direitos e de protecção a crianças e jovens em situações de risco que ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação, nomeadamente, com vista a proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover todos os referidos aspectos e bem assim o seu bem-estar e desenvolvimento integral.
Assim, de acordo com o preceituado no artigo 3.º da LPCJP, a legitimidade da intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais (…) ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento (…).
Conforme adverte TOMÉ RAMIÃO[8], «o perigo a que se reporta este normativo traduz a existência de uma situação de facto que ameace a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança ou do jovem, não se exigindo a verificação da efectiva lesão (…). Basta, por isso, a criação de um real ou muito provável perigo, ainda longe de dano sério (…).
Assim, só é legítima a intervenção desde que o perigo afecte ou possa afectar a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou do jovem.
Por outro lado, essa intervenção terá de ter por finalidade o afastamento do perigo em que a criança ou o jovem se encontra e proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, como se enuncia no artigo 34.º».
No caso em apreço, o processo iniciou-se com a sinalização da situação das crianças à CPCJ de Olhão, tendo pela Comissão sido realizadas as diligências tendentes ao conhecimento da vida familiar e vindo a ser proposta a medida de acolhimento residencial, medida que a mãe recusou, retirando o consentimento para a intervenção da CPCJ em 03.12.2018, o que determinou a remessa dos autos para o Ministério Público.
Como é sabido, atenta a natureza subsidiária da intervenção judicial, expressa no artigo 4.º, alínea j), da LPCJP, a mesma só ocorreu neste caso precisamente porque, existindo informações que suportam a sinalização efectuada, a mãe recusou o consentimento para a intervenção da CPCJ.
Conforme assertivamente já se observou no Acórdão deste Tribunal da Relação de 08.07.2010, «a incapacidade de exercer uma paternidade ou maternidade responsável pode configurar uma situação que pode qualificar-se de maus tratos. Na verdade, por maus tratos não se entende só a agressão física ou psicológica, mas também “o insucesso na garantia do bem-estar material e psicológico da criança, necessário ao seu desenvolvimento saudável e harmonioso”»[9].
Ora, quando é da própria família que a criança tem de ser protegida, ainda que transitoriamente, e esta recusa a intervenção das CPCJ, a proteção da criança compete ao Tribunal de Família e Menores, por força das disposições conjugadas do artigo 123.º, n.º 1, alínea g), da Lei de Organização do Sistema Judiciário, e nomeadamente dos artigos 1.º, 2.º, 3.º 6.º e 100.º e ss. da LPCJP.
Assim, em face da materialidade decorrente do processo da Comissão, não restam quaisquer dúvidas da legitimidade da intervenção efectuada pelo Ministério Público em benefício das crianças, ao abrigo do disposto no artigo 105.º, n.º 1, da LPCJP, a qual teve como finalidade imediata o afastamento da situação de potencial perigo em que se ponderou que as mesmas estavam a ser colocadas pelos comportamentos da progenitora os quais, conforme recolhidos dos elementos constantes naquele processo, foram vertidos para o requerimento inicial que, independentemente da técnica utilizada pelo magistrado subscritor, contém realmente factos, daí ter sido proferido o despacho judicial inicial, a que alude o artigo 107.º da LPCJP, declarando aberta a instrução.
Acresce que, de acordo com o preceituado no artigo 100.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, o processo de promoção e protecção, é um processo de jurisdição voluntária, significando que «o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admissíveis as provas que o juiz considere necessárias»[10].
Significa o que vimos de dizer que, efectuadas as diligências instrutórias, se houvesse decisão, ao tribunal incumbiria assentar os factos que se viessem a apurar.
Acontece que, determinada a realização de relatório social, e designada data para tomar declarações aos pais, veio a ser obtido o acordo que acima transcrevemos, que o tribunal se limitou a homologar. Portanto, não há «factos» que possam ser passíveis de conhecimento por via de impugnação recursiva, pura e simplesmente porque não há decisão do tribunal, entenda-se, proferida após a instrução dos autos a ordenar o seu prosseguimento para a realização do debate judicial, conforme previsto no artigo 110.º da LPCJP, porquanto os mesmos terminaram antes desse momento processual, precisamente porque se exarou em acta ter existido acordo dos progenitores das crianças para que lhes fosse aplicada a medida de acolhimento em instituição.
Assim sendo, salvo o devido respeito são irrelevantes as considerações tecidas pela Apelante a respeito da veracidade da factualidade vertida no requerimento inicial, porquanto os factos carreados para os autos não foram sujeitos a todos os meios de prova, admissíveis para apuramento da dimensão da necessidade de intervenção do tribunal no seio da família, para a protecção do superior interesse das crianças em questão, já que, em rectas contas, existiu logo na fase inicial do processo uma «decisão negociada» nos moldes previstos no artigo 112.º da LPCJP, «e isto porque a intervenção judicial deve privilegiar as decisões negociadas, só havendo lugar a debate judicial, quando não seja possível o acordo»[11].
A definição do que é o acordo de promoção e protecção consta do artigo 5.º, alínea j) da LPCJP, como sendo o “compromisso reduzido a escrito entre as comissões de proteção de crianças e jovens ou o tribunal e os pais, pelo qual se estabelece um plano contendo medida de promoção e de proteção”.
Ora, é a manifestação livre e informada para este acordo que a Apelante vem colocar em causa, sendo - ao contrário do preconizado na resposta pelo Ministério Público -, apenas parcialmente aplicáveis à situação em presença, as considerações que a respeito da transacção expendemos no citado aresto de 26.10.2017[12], e obviamente que com as necessárias adaptações, porque no caso, o acordo de promoção e protecção foi estabelecido entre o tribunal e os pais, pelo que a sua homologação não pode ser integralmente equiparada a uma transacção, desde logo porque neste acordo o tribunal subscreve esse compromisso, enquanto na transação intervêm apenas as partes.
Não obstante, é-o parcialmente, já que vistas as alegações de recurso verificamos que a Recorrente verdadeiramente não assaca à decisão recorrida que homologou o acordo expresso da progenitora qualquer vício, porquanto o que sustenta a sua pretensão é a invocação de um vício, sim, mas na manifestação da sua vontade ali expressa e que esse acordo homologou. Mas, tal vício, a existir, não pode sustentar a respectiva pretensão por via de recurso[13], porque a manifestação de vontade no sentido do referido acordo, que foi expressa pela progenitora perante o tribunal, obrigava in casu o juiz, a julgar a validade ou invalidade do mesmo de harmonia com o superior interesse das crianças que visava acautelar, como fez. Acresce ainda que, salvo caso de manifesta ilegalidade, não pode haver recurso da homologação do acordo de promoção e protecção, porquanto o artigo 123.º, n.º 1 da LPCJP apenas admite “recurso das decisões que, definitiva ou provisoriamente, se pronunciem sobre a aplicação … de medidas de promoção e protecção”, e a situação em presença trata da homologação de um acordo e não de decisão judicial de mérito que aplique uma daquelas medidas.
Assim, a revogação em sede de recurso da sentença homologatória de um acordo, só pode ter por fundamento a violação de um dos requisitos que o juiz tem que verificar, por exemplo, ter homologado acordo sem que as pessoas que fizeram a declaração tivessem capacidade e legitimidade para o efeito, em violação do preceituado nos artigo 9.º e 10.º, ou sem que o mesmo obedeça ao conteúdo obrigatório a que se refere o artigo 55.º, aplicável ex vi do artigo 113.º, n.º 1, todos da LPCJP.
Revertendo ao caso em apreço, significa isto que, tendo os progenitores manifestado no processo a vontade de que as crianças fossem provisoriamente acolhidas em instituição, o tribunal, que homologa o seu acordo, aprecia da validade e regularidade das declarações das partes e, concluindo pela respectiva validade, quanto ao seu objecto e à qualidade dos intervenientes, confirma os termos e efeitos desses actos praticados no processo.
Entendeu o tribunal que o acordo sujeito à homologação continha todos os requisitos, homologando-o e determinando seguidamente o acolhimento das crianças no Refúgio Aboim Ascensão.
Acontece que, o acordo de promoção e protecção tem de ter o conteúdo a que alude o artigo 55.º, n.º 1, da LPCJP, mormente da sua alínea b), que estabelece a obrigatoriedade de nele ser fixado o prazo de duração da medida e o prazo em que a mesma deve ser revista.
Por isso que, na aplicação da medida de acolhimento residencial, não cumpra tal conteúdo obrigatório cláusula como a vertida no n.º 6 do acordo homologado, com o seguinte teor: “a presente medida terá a duração máxima prevista na lei e será revista semestralmente”.
De facto, não estabelecendo a lei, em parte alguma, um prazo de duração para a medida de acolhimento residencial, prevista no artigo 35.º, n.º 1, alínea f) - ao contrário, por exemplo, das medidas a executar no meio natural de vida -, apenas prevendo no artigo 61.º da LPCJP, que a mesma “tem a duração estabelecida no acordo ou na decisão judicial”, não pode o tribunal validar um acordo desta natureza que remeta para a “duração máxima prevista na lei”, quando esta é totalmente omissa a esse respeito.
Efectivamente, o acordo para a medida de acolhimento residencial tem que fixar um prazo de duração, o qual é essencial, tanto mais que se os pais dão o seu consentimento têm de estar cientes para que prazo de duração o subscrevem, e mais, se o acordo é dado para um determinado prazo tal significa que o tribunal não pode prorrogá-lo para além desse prazo, cessando a medida findo esse prazo, se antes não cessar, na sequência da revisão prevista no artigo 62.º, e podendo os progenitores recorrer depois das decisões de revisão ou prorrogação.
Nestes termos, concluindo-se pela ilegalidade do acordo de promoção e protecção, por ausência de estabelecimento do prazo obrigatório de duração da medida de acolhimento residencial das crianças, a decisão homologatória desse acordo ilegal, não pode ser mantida.
Pelo exposto, em face da ilegalidade do acordo homologado, a apelação procede, devendo ser agendada nova conferência para a celebração de novo acordo com fixação de prazo, se for o caso, ou para prosseguirem os autos os seus normais termos para debate judicial, se não for possível a obtenção daquele acordo com prazo, ou de um outro acordo de promoção e protecção que acautele o superior interesse das crianças.
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III.2.3. - Síntese conclusiva:
I - O acordo de promoção e protecção é estabelecido entre o tribunal e os pais, pelo que a sua homologação não pode ser integralmente equiparada a uma transacção, desde logo porque neste acordo o tribunal subscreve esse compromisso, enquanto na transação intervêm apenas as partes.
II - A revogação em sede de recurso da sentença homologatória de um acordo, só pode ter por fundamento a violação de um dos requisitos que o juiz tem que verificar, por exemplo, ter homologado acordo sem que as pessoas que fizeram a declaração tivessem capacidade e legitimidade para o efeito, em violação do preceituado nos artigo 9.º e 10.º, ou sem que o mesmo obedeça ao conteúdo obrigatório a que se refere o artigo 55.º, aplicável ex vi do artigo 113.º, n.º 1, todos da LPCJP.
III - Na medida de acolhimento residencial o acordo de promoção e protecção tem de ter o conteúdo a que alude o artigo 55.º, n.º 1, da LPCJP, mormente da sua alínea b), que estabelece a obrigatoriedade de nele ser fixado o prazo de duração da medida e o prazo em que a mesma deve ser revista.
IV - Não cumpre tal conteúdo obrigatório uma cláusula como a vertida no n.º 6 do acordo homologado, com o seguinte teor: “a presente medida terá a duração máxima prevista na lei e será revista semestralmente”, porquanto não estabelecendo a lei, em parte alguma, um prazo de duração para a medida de acolhimento residencial, apenas prevendo no artigo 61.º da LPCJP, que a mesma “tem a duração estabelecida no acordo ou na decisão judicial”, não pode o tribunal validar um acordo desta natureza que remeta para a “duração máxima prevista na lei”, quando esta é totalmente omissa a esse respeito.
V - Concluindo-se pela ilegalidade do acordo de promoção e protecção, por ausência de estabelecimento do prazo obrigatório de duração da medida de acolhimento residencial das crianças, a decisão homologatória desse acordo ilegal, não pode ser mantida.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando a sentença homologatória, e determinando que seja agendada nova conferência para a celebração de acordo, ou prosseguimento dos autos para debate judicial, consoante o resultado da mesma.
Sem custas por delas estar isento o Ministério Público.
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Évora, 16 de Maio de 2019
Albertina Pedroso [14]
Tomé Ramião
Francisco Xavier (tem voto de conformidade do Exm.º Adjunto que não assina por não se encontrar presente).


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[1] Juízo de Família e Menores de Faro - Juiz 2
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] E da jovem EE, irmã uterina, relativamente à qual foi homologado o acordo alcançado no sentido de aplicação da medida de apoio junto do pai, e que não está em causa na apelação.
[4] Que pela sua extensão e repetição aqui se reduzem às que se consideram pertinentes para a compreensão do objecto do recurso.
[5] Doravante abreviadamente designado CPC.
[6] Doravante abreviadamente designada LPCJP
[7] Note-se que falamos hoje da Criança, e já não do menor, que anteriormente constava no próprio nome da lei de protecção, em evolução que tem subjacente a ideia de que a Criança é «a peça mais importante de todas, porque mais indefesa e vulnerável», cfr. PAULO GUERRA e HELENA BOLIEIRO, in Os Novos rumos do Direito da Família e das Crianças e Jovens, I Congresso de Direito da Família e das Crianças, Almedina 2016, pág. 284.
[8] Ora 1.º Adjunto, in Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada e Comentada, 4.ª edição revista e aumentada, Quid Juris, pág. 26.
[9] Proferido no processo n.º 100/09.1TMFAR.E1, e disponível em www.dgsi.pt.
[10] Cfr. TOMÉ RAMIÃO, ob. cit., pág. 151.
[11] Idem, pág. 172.
[12] Proferido no processo n.º 1682/14.1TBFAR.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[13] Mas apenas por erro ou vício da declaração de consentimento, nos termos gerais, como desenvolvidamente referimos no citado aresto de 26.10.2017.
[14] Texto elaborado e revisto pela Relatora.