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INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Sumário
I – A inversão do ónus de prova, prevista nos artigos 344º, nº 2, do Código Civil e 417º, nº 2, do Código de Processo Civil, depende dos seguintes pressupostos: a impossibilidade de realização da prova – com a inviabilidade prática da demonstração de determinado facto em juízo - pela parte onerada com o respectivo ónus; resultando causalmente tal impossibilidade da actuação da parte contrária; e que esta última actuação possa considerar-se como culposa.
II – Pretendo basicamente a A. requerente, numa acção de impugnação pauliana, instaurada com fundamento nos artigos 610º e 612º, nº 1 e 2, do Código Civil, produzir prova de que o negócio impugnado não teve subjacente o pagamento de qualquer quantia a título de preço, não é curial nem equilibrado obrigar os RR. a abrir mão do direito à reserva da sua própria intimidade, levando-os a permitir o conhecimento de todos os seus movimentos bancários, numa intromissão que, por não ser sequer fundamental para a boa decisão da causa, não se apresenta como minimamente proporcional aos interesses substantivos em confronto nos presentes autos, não se tendo sequer demonstrado minimamente que qualquer deles haja tentado dificultar ou inviabilizar a produção de prova a cargo da A.
III – Não pode, portanto, o juiz a quo, alheando-se completamente da análise – que lhe competia fazer - da hipotética culpabilidade dos RR. na pretensa inutilização ou agravamento da possibilidade de prova a cargo da parte contrária, bem como dos peculiares contornos do caso concreto, em termos da sua efectiva e real gravidade, generalizar e vulgarizar o emprego dessa mesma cominação, acedendo abertamente a todos os pedidos de informação que a A. fez verter nos autos relativamente à pessoa dos RR. e, quanto a todas essas matérias, associar indiscriminadamente a cominação sancionatória da inversão do ónus de prova, como se se tratasse da consequência usual, comum, corrente e como se este instituto não exigisse requisitos legais próprios para o seu accionamento, estando – como está - apenas reservado, em termos particulares e restritos, a situações de acentuada gravidade e culpa do sujeito processual que se encarrega de impedir ou dificultar gravemente a prova a produzir pela contraparte.
Texto Integral
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção).
I – RELATÓRIO
Nesta acção declarativa instaurada por AM… contra DL… e WP- I…, S.A., a A., através de requerimento entrado em juízo em 27 de Junho de 2018 (cfr. fls. 93 a 95), solicitou ao Tribunal que instasse os RR., com a cominação prevista no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Civil, para prestar as informações solicitadas no seu requerimento entrado em juízo em 25 de Setembro de 2017 (cfr. fls. 58 a 59), a saber:
Relativamente ao Réu DL…:
- identificar a conta ou contas bancárias onde forma efectuados os alegados depósitos dos preços de venda dos imóveis dos autos, notificando-se em seguida as instituições bancárias onde as contas se encontram abertas para juntarem aos autos a totalidade dos extractos bancários referentes aos movimentos a débito e a crédito realizados durante o ano de 2015.
Relativamente à Ré WP- I…, S.A.:
- quando é que procedeu ao pagamento do preço referido nas escrituras públicas constantes dos nºs 28º e 31º da p.i.;
- que meios de pagamento foram utilizados;
- juntar aos autos comprovativo documental dos meios de pagamento utilizados, e bem assim dos seus balancetes analíticos do ano de 2015, dos respectivos extractos de contas movimentadas, e ainda das conciliações das contas que foram objeto dos pagamentos/transferências/depósitos concernentes aos negócios em causa.
Através do requerimento entrado em juízo em 28 de Junho de 2018 (cfr. fls. 99 a 100), veio o Réu DL… referir:
- o pagamento dos imóveis foi realizado através de três transferências bancárias em conta aberta em nome do R., conforme resulta do documento nº 5 junto com a sua contestação.
- Demonstra-se, assim, que o Réu recebeu o pagamento do preço devido pela transmissão dos imóveis.
- O ónus de prova do pagamento em causa cabe exclusivamente à A.
- Ainda assim, o Réu prontificou-se a fazer tal prova, o que atesta o seu desejo de cooperação e a sua boa fé.
- O que a A. vem solicitar é pura e simplesmente o levantamento do sigilo bancário dos RR.
- O requerimento apresentado pela A. não tem sustentabilidade, não devendo ser ordenando o levantamento do sigilo bancário do Réu.
O requerimento apresentado pelo A. em 27 de Junho de 2018 foi deferido através do despacho proferido em 26 de Setembro de 2018, ordenando-se as notificações pretendidas (alíneas a), b) c) e d) desse requerimento), com a legal advertência enunciada (cfr. fls. 102).
Fundou-se o juiz a quo no seguinte argumentário:
- tal documentação encontra-se na livre disponibilidade dos RR, não se podendo concluir pelo livre acesso à mesma por parte da A.;
- a documentação junta pelos RR. não demonstra cabal, inequívoca e inabalavelmente que o efectivo pagamento do preço de venda dos imóveis ocorreu;
Respondeu o Réu DL…, através do requerimento entrado em juízo em 31 de Outubro de 2018 (cfr. fls. 103 a 10), afirmando:
- Ainda que não estivesse obrigado a fazê-lo, o Réu apresentou nos autos prova documental do pagamento do preço devido pela 2ª Ré pela aquisição do imóvel.
- Não são os RR. que têm de provar que o pagamento foi feito, uma vez que o não pagamento deste constitui um facto constitutivo do direito da A.
- Tal corresponderia a uma ilegítima violação do ónus de prova.
- Apesar de não estar obrigado, o Réu junta os extractos bancários das suas contas bancárias relativamente ao período entre Fevereiro e Março de 2015, visando demonstrar unicamente a recepção do preço devido pelo pagamento do imóvel.
- O Réu não admite que a sua privacidade seja devassada pela sua ex-mulher, motivo pelo qual não revela os demais movimentos financeiros, indiferentes para os presentes autos e aos temas da prova.
Em 26 de Novembro de 2018, foi proferida a seguinte decisão (cfr. fls. 2 a 4): “Dos requerimentos das partes, respetivamente, do Réu e da Autora, de 31 de outubro e de 7 de novembro de 2018. Desde a interposição da sua petição inicial, que a Autora requereu a junção aos autos de documentação bancária atinente aos Réus com vista a fazer prova de certa factualidade por si alegada. Mais recentemente (cfr. despacho de 26-9-2018) em deferimento a requerimento da Autora, o Tribunal determinou a notificação de entidade bancária para prestar informações referentes aos Réus. Em razão do teor do requerimento do Réu DL…, de 31-10-2018, importa que se prestem dois esclarecimentos de ordem jurídica. Em primeiro lugar, a circunstância de o ónus da prova pertencer ao autor, não impede este de requerer a junção de documentos em poder da parte contrária ou de terceiros; ou a requisição de documentos (cfr. arts. 429º, 432º e 436º, todos, do Código de Processo Civil) concretamente, quando não tem acesso a tais documentos e entende que são de relevo para a prova dos factos que invoca e que tem o ónus de provar; o que não equivale a inverter o ónus da prova; e sem prejuízo do dever de cooperação de ambas as partes prevenido pelo art. 417º, do mesmo Código de Processo Civil. Por outro lado, em conformidade com o exposto pela Autora, mormente, nos pontos 3 a 6 do seu requerimento de 10 de julho de 2018, afigura-se-nos que não pode considerar-se inusitada a prova que pretende ver junta aos autos, que requereu e que foi deferida; do que se retira, como afirmámos no nosso antecedente despacho, que a documentação já junta aos autos não faz prova cabal e inequívoca do pagamento do preço em causa. A circunstância de certa quantia em dinheiro ser depositada em certa conta bancária num determinado momento, não impede que algum tempo depois retorne à conta bancária originária, sem que, na verdade, haja ocorrido qualquer efetivo pagamento. No que respeita aos elementos bancários solicitados ao “BP…”, como o revela a resposta desta entidade bancária de 29-10-2018, é apresentada a defesa de que tais elementos se encontram a coberto do “sigilo bancário”, invocando o disposto pelo art. 78º e seguintes do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedade Financeiras (Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de dezembro). A Autora continua a pugnar pela junção aos autos dos elementos bancários solicitados. Vejamos. Efectivamente, tendo sido solicitadas, em processo civil, como é o caso, a uma entidade bancária, informações atinentes a contas/extratos bancários dos seus clientes, esta pode, legitimamente, escusar-se a prestar tais informações fundando-se no segredo bancário prevenido por aquele art. 78º, do supra citado Dec.Lei nº 298/92, de 31-12. Na verdade, conforme os nºs 1 e 2, deste preceito legal, os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços; estando, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias. Conforme nº 1, do art. 79º, do mesmo Dec.Lei nº 298/92, de 31-12, os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição. É verdade que o art. 417º, nº 1, do Código de Processo Civil estatui que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, mormente, respondendo ao que lhes for perguntado e facultando o que for requisitado. Não obstante, o nº 3, al. c), deste mesmo diploma legal, dispõe que a recusa é, porém, legítima se a obediência importar violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4; o qual, por sua vez, nos remete para o processo penal e para o art. 135º, do Código de Processso Penal, com a epígrafe “segredo profissional”. Por sua vez, neste art. 135º, do C.P.Penal, mostra-se previsto pelo seu nº 2, que: Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.”. Assim, em face a este último preceito legal, importa que se afira se nos encontramos perante uma de duas situações: de legitimidade ou ilegitimidade da escusa. E, para o que ora apreciamos, a escusa é legítima quando resulta de dever legal a que a instituição bancária se mostra adstrita, mormente, nos termos daquele art. 78º, do Dec. Lei nº 298/92, de 31-12; sendo ilegítima quando o que é solicitado não estiver compreendido no âmbito do segredo bancário ou quando tiver havido consentimento do titular da conta bancária. Aquele nº 2, do art. 135º, do Código de Processo Penal, reporta-se apenas aos casos de ilegitimidade da escusa formulada pela entidade bancária. Apurada essa ilegitimidade, o Tribunal ordena a prestação da informação pretendida. Distinto é o caso em que ocorre legitimidade da escusa; e, assim, os casos em que os elementos pretendidos estão abrangidos pelo segredo; e não existe autorização do titular da conta. Para este último caso - situação em que se verifica o sigilo bancário e não foi prestada autorização pelo titular da conta - não se ordenará a prestação de informação sem que ocorra ponderação sobre os interesses em confronto: os interesses protegidos pelo sigilo bancário/os interesses da realização da justiça no caso concreto. E, este juízo, conforme a previsão do nº 3, daquele art. 135º, do Código de Processo Penal, há-de, então, ser feito no âmbito de um incidente específico - o incidente de quebra do segredo profissional que deve ser suscitado no Tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver. Em face do exposto, para o caso dos nossos autos, considera-se legítima a escusa do “BP…” no fornecimento dos elementos solicitados pelo Tribunal, uma vez que os mesmos se enquadram na previsão do supra citado art. 78º, do Dec. Lei nº 298/92 e porque, com a solicitação, não seguiu autorização dos titulares das contas quanto ao fornecimento dessas informações; titulares, esses, que são os Réus nestes autos. Conforme o último requerimento da Autora ora em apreço, esta continua a pugnar pelo fornecimento de tais informações; e, em face da documentação junta aos autos até à data, a junção dos elementos requeridos pela Autora mostra-se pertinente para o cabal apuramento dos factos; tratando-se de elementos de caráter bancário, atinentes aos Réus, que, naturalmente, não estão acessíveis à Autora; de que esta carece para fazer prova da factualidade que alega; e que, estão na disponibilidade dos Réus. Com a autorização expressa por cada um dos Réus, dirigida à entidade bancária, de fornecimento ao processo, dos elementos identificados pela Autora naquele ser requerimento de 27 de junho de 2018, já o BP… não encontrará aquele óbice legal ao fornecimento dos elementos em causa. Assim, determina-se que se notifique o Réu DA… para transmitir aos autos o seu consentimento, à prestação, pelo “BP…”, das informações aludidas na al. b) do requerimento da Autora de 27 de junho de 2018. Igualmente, se determina a notificação da Ré “WP – I…, S.A.”, para vir, aos autos, expressar o seu consentimento, à prestação, pelo “BP…”, das informações aludidas na al. c) do requerimento da Autora de 27 de junho de 2018. Reitera-se, ainda, a notificação da Ré “WP – I…, S.A.”, para juntar aos autos os elementos aludidos na al. d), do requerimento da Autora de 27 de junho de 2018. Prazo: 10 (dez) dias. Em face do supra exposto, tais notificações dirigidas aos Réus são acompanhadas da advertência de inversão do ónus da prova, por falta de colaboração para a descoberta da verdade, conforme art. 417º, nº 2, do Código de Processo Civil. Nos termos que ora vêm de ser expostos, com facilidade se conclui pela inviabilidade de realização do julgamento agendado para o dia de amanhã, pois que não se mostram, ainda, reunidos todos os elementos documentais probatórios requeridos. Consequentemente, com vista a evitar a deslocação inútil dos convocados ao Tribunal, decide-se dar sem efeito o julgamento designado para o dia de amanhã. Notifique de imediato e por meio expedito (mormente, via telefónica) solicitando (dada a proximidade da data ora dada sem efeito) os ofícios dos Ilustres mandatários no sentido de dar a conhecer aos demais convocados que o agendamento da audiência final foi dado sem efeito.” (cfr. fls. 2 a 4).
Apresentaram os RR., destinatários da mencionada notificação, recurso desta decisão, o qual foi admitido como de apelação (cfr. fls. 176).
Juntas as competentes alegações, a fls. 5 a 18, formularam os apelantes as seguintes conclusões:
A. A Recorrida, ex-mulher do Recorrente DL…, estribou a sua causa de pedir no argumento de que não ocorrera o pagamento do preço pelos imóveis em questão, o que veio a ficar refletido no ponto C) dos Temas da Prova.
B. Atenta a regra geral do ónus da prova, constante do art. 342.º, n.º 1, do Código Civil, é à Recorrida que cabe fazer prova que os Réus não pretenderam vender e comprar os imóveis em causa e que o respetivo preço não foi pago.
C. Sem prejuízo disso, os Recorrentes invocaram já em sua defesa: a existência das escrituras públicas de compra e venda dos referidos imóveis, que o IMT e Imposto de Selo devidos pela transmissão dos mesmos, foram liquidados pela compradora, e que a transmissão dos imóveis a favor do seu novo proprietário foi registada a favor do adquirente junto do Registo Predial e da Autoridade Tributária.
D. Os Réus juntaram também já – por sua iniciativa e para contraprova da tese da Recorrida – os seguintes documentos:
i.) Os seus extratos bancários, entre Fevereiro e Março de 2015, que demonstram o pagamento dos preços na conta bancária do Recorrente DL… (cf. documento n.º 4, junto com a Contestação, ref.º 26705095); ii.) Declaração do Banco “BP…” confirmando que a titularidade dessa conta bancária pertence ao Recorrente DL…; iii.) Comprovativo da operação bancária de transferência dos preços, da parte da Recorrente compradora, para o Recorrente DL….
E. Porém, e insolitamente, o Tribunal a quo veio a deferir o pedido da Recorrida de aditamento aos meios de prova indicados na Petição Inicial, através do despacho de 26 de Setembro de 2018, e, indo agora ainda mais além, através do Despacho recorrido, em que onera os Réus com a “inversão do ónus da prova”, caso os mesmos não consintam no levantamento dos seus sigilos bancários relativamente a todo o ano de 2015.
F. Contudo, relativamente à inversão do ónus da prova, por alegada falta de colaboração das partes, a lei exige que a recusa da parte seja culposa e com isso, tenha tornado impossível a prova ao onerado.
G. Como é fácil de ver, a eventual falta de consentimento dos Recorrentes para que se levante o seu sigilo bancário, relativamente a todo o ano de 2015, não é de índole a “culposamente tornar impossível a prova que cabe à Recorrida”, uma vez que: (i) não só não existe qualquer facto culposo, (ii) o sigilo bancário goza de proteção e consagração legal, apenas podendo ser levantado nas situações expressamente previstas na lei, o que não sucede no presente caso, (iii) não torna impossível a prova que cabe à Recorrida, visto que já se encontram juntos aos autos todos os documentos relevantes relativos ao pagamento e recebimento dos preços; e (iv) constam ainda dos outos outros factos indiciários da vontade real dos Réus de vender e comprar os imóveis em causa (escrituras de compra e venda, de que consta a liquidação dos impostos inerentes, e registos subsequentes).
H. Com efeito, a nossa jurisprudência e a doutrina têm entendido que é necessária, para além da recusa ou não justificação da falta de colaboração da parte, a verificação cumulativa dos requisitos do n.º 2 do artigo 344.º do CPC (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18.12.2017, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03.12.2009 e José Lebre de Freitas).
I. Nem se alcança que outros meios de prova adicionais se exigem aos Recorrentes para demonstrar que venderam os imóveis e receberam os preços, e muito menos que possam sustentar que são aqueles quem “culposamente” impede a Recorrida de provar que o preço não foi pago, ou que a intenção das partes não era comprar e vender os imóveis !!!
J. E muito menos se entende a relevância, para o que se encontra em discussão nos presentes autos, de revelar todos os movimentos bancários das contas bancárias dos Réus relativamente a um ano inteiro, não se podendo aceitar a hipótese teórica suscitada no Despacho ora recorrido, de que o depósito bancário de determinado montante não impede que este regresse à origem…
K. E, admitindo que a pretensão da Recorrida até fará sentido para o período em que tais vendas ocorreram (Fevereiro e Março de 2015), os respetivos extratos, dos quais resulta o pagamento dos preços, já se encontram juntos aos autos!
L. Atento o exposto, é por demais evidente que os requisitos do art. 344.º, n.º 2, Código Civil, ex vi art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, não se encontram preenchidos, violando assim o Despacho recorrido as referidas normas legais, na parte em que onera os Réus com a inversão do ónus da prova em caso de eventual falta de consentimento para levantamento do seu sigilo bancário, relativamente a todo o ano de 2015.
M. Ora, se há comportamento que outrossim se pode imputar aos Recorrentes é o seu excesso de voluntarismo, com o intuito de fazer a contraprova dos factos invocados pela Recorrida, estando amplamente demonstrado nos autos, quer o efetivo pagamento dos preços, quer a vontade real de proceder à transmissão dos imóveis em causa.
E, não obstante todo o voluntarismo e espírito de colaboração dos Recorrentes – que conhecem naturalmente limites, quando terceiros (neste caso, a Recorrida) pretendem devassar o seu segredo bancário -, o que aqueles se encontram manifestamente impossibilitados de provar, no lugar da Recorrida, é o que esta invoca em sede de Petição Inicial, por não corresponder à verdade!
Contra-alegou a A. pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
Apresentou as seguintes conclusões:
a) - A conta bancária com o IBAN PT… do Banco BP…, S.A., em nome do Recorrente D…, encontra-se encerrada.
b) - Dos extratos bancários, entre Fevereiro e Março de 2015, e a declaração do Banco “BP…” juntos aos autos, confirmando que a titularidade dessa conta bancária pertence ao Recorrente DL…, apenas se retira que o dinheiro, que alegadamente teria servido para pagamento dos imóveis dos autos, deu entrada na conta bancária referida na alínea anterior.
c) - Apenas se consegue provar que o Réu D… recebeu efetivamente o preço da alegada venda dos imóveis dos autos, e assim que estes lhe foram efetivamente pagos, se se demonstrar que os valores transferidos para a sua conta pela Ré WP – I…, S.A., não foram, antes do encerramento da mesma, transferidos para contas de terceiros, como sejam, nomeadamente, as da Ré WP – I…, S.A. ou da SI… – SGPS, S.A., e que, deste modo, a referida conta não serviu ou foi útil apenas para justificar, do ponto de vista financeiro, a operação em causa.
d) - É, pois, pertinente, para apuramento do efetivo e real pagamento dos preços das compras e vendas dos autos que sejam apurados os movimentos bancários a débito e a crédito de todo o ano de 2015 e bem assim as datas de abertura e encerramento das contas.
e) - Os ora recorrentes não deram, entretanto, cumprimento ao doutamente ordenado no despacho de 26/09/2018, vindo inclusive, o Réu D…, por requerimento datado de 31/10/2018, entre o mais, recusar prestar qualquer colaboração.
f) - A documentação já junta aos autos pelos Recorrentes não faz prova cabal e inequívoca do pagamento do preço em causa. A circunstância de certa quantia em dinheiro ser depositada em certa conta bancária num determinado momento, não impede que algum tempo depois retorne à conta bancária originária, sem que, na verdade, haja ocorrido qualquer efetivo pagamento.
g) - Os ora recorrentes, cientes da pertinência da prova requerida pela Autora e ordenada pelo Tribunal, e de que os documentos que juntaram nada trazem de novo aos autos e em nada contribuem para o apuramento dos factos, impossibilitando assim culposamente a prova destes, recusam-se, deliberada e intencionalmente, a cumprir o doutamente ordenado nos despachos de 26/09/2018 e 26/11/2018 e, nessa medida, a colaborar com o Tribunal na descoberta da verdade.
h) - Os recorrentes sabem perfeitamente que a inação dos mesmos, por falta de colaboração, ao não consentirem no levantamento do sigilo bancário, impossibilita a Autora, ora recorrida, de fazer prova da falta de pagamento efetivo dos preços das compras e vendas dos autos.
i) - Sabendo igualmente os mesmos que, dependendo o levantamento do sigilo bancário de sua autorização, e não estando impedidos de o fazer, só não dão a referida autorização porque não querem, ou seja, não prestam a devida autorização, porque culposamente não querem colaborar com o tribunal na procura da verdade, obstruindo assim a ação da justiça.
j) - A falta de colaboração dos recorrentes na junção aos autos de elementos e documentos solicitados pela recorrida e pelo tribunal, apenas na posse dos mesmos, e sendo os únicos meios de fazer prova do alegado pela recorrida, os recorrentes impossibilitam intencional e culposamente esta prova.
k) - Estão, pois, preenchidos os pressupostos de aplicação do disposto no nº 2 do artigo 344º do Código Civil.
l) - Não merece qualquer reparo ou censura a decisão do douto despacho recorrido no que respeita à cominação da inversão do ónus de prova, designadamente no caso de os recorrentes não prestarem o seu consentimento ao levantamento do sigilo bancário, por falta de colaboração para a descoberta da verdade.
m) No caso em apreço, não se justifica obstaculizar o levantamento do sigilo bancário quando foi o próprio recorrente D… que, em relação às contas dos autos, ao trazê-las à colação, possibilita a investigação dos factos com base e à luz do vertido nas mesmas e nos documentos – ainda que incompletos e truncados - que as sustentam, também por ele já juntos aos autos.
II – FACTOS PROVADOS. Os indicados no RELATÓRIO supra.
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar:
Cominação processual sancionatória fixada na decisão recorrida (inversão do ónus de prova, nos termos do artigo 344º, nº 2, do Código Civil e 417º, nº 2, do Código de Processo Civil). Fundamento legal. Requisitos da inversão do ónus de prova. Passemos à sua análise:
Está apenas em causa, no âmbito do conhecimento da presente apelação, apurar se, atento o circunstancialismo sub judice, existe fundamento e justificação legal para a cominação sancionatória da inversão do ónus da prova, nos termos conjugados do artigo 344º, nº 2, do Código Civil, e do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável à possível ausência de completa satisfação do ordenado pelo juiz a quo aquando da notificação dirigida a cada um dos RR.
Note-se, desde logo, que a presente acção reveste a natureza de acção de impugnação pauliana versando a realização de contratos de transmissão de imóveis entre os RR. com o premeditado objectivo de frustrar a efectivação do crédito de que a A. é titular perante o 1º Réu.
A demandante invoca expressamente a má fé do devedor (o Réu DL…) e da sociedade transmissária dos bens (a Ré WP- I…, S.A.), invocando que ambos praticaram os actos com plena consciência do prejuízo que através dele causavam à A., remetendo para o preenchimento da previsão dos nºs 1 e 2 do artigo 612º do Código Civil (artigos 51º a 68º da petição inicial).
Na sequência dos vários requerimentos probatórios que a A. fez juntar ao processo, determinou o tribunal a quo a notificação dos RR. para: - o Réu DA… para transmitir aos autos o seu consentimento, à prestação, pelo “BP…”, das informações aludidas na al. b) do requerimento da Autora de 27 de junho de 2018. - A Ré WP – I…, S.A., para vir, aos autos, expressar o seu consentimento, à prestação, pelo “BP…”, das informações aludidas na al. c) do requerimento da Autora de 27 de junho de 2018 e para juntar aos autos os elementos aludidos na al. d), do requerimento da Autora de 27 de junho de 2018, ou seja, informar quando é que procedeu ao pagamento do preço referido nas escrituras públicase que meios de pagamento foram utilizados; juntar aos autos comprovativo documental dos meios de pagamento utilizados, e bem assim dos seus balancetes analíticos do ano de 2015, dos respectivos extractos de contas movimentadas, e ainda das conciliações das contas que foram objeto dos pagamentos/transferências/depósitos concernentes aos negócios em causa. Vejamos:
Nos termos do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Civil: “Aqueles que recusem a colaboração (para a descoberta da verdade) devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus de prova decorrente do preceituado no nº 2 do artigo 344º do Código Civil”.
Conforme escrevem, sobre este ponto, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado. Parte geral e processo de declaração. Artigos 1º a 702º”, a página 491: “...vigorando o princípio da livre apreciação das provas, não está vedado, antes se justifica com toda a pertinência, que se extraiam dos comportamentos processuais das partes elementos que interfiram na formação da convicção. Tal princípio não vigora apenas para efeitos de apreciação crítica dos meios de prova, devendo estender-se à apreciação da conduta processual, designadamente à que respeita à instrução da causa. Daí que, mesmo sem inversão do ónus da prova, mecanismo que deverá ser resguardado para casos se maior gravidade, o juiz poderá sustentar a sua decisão sobre matéria de facto provada e não provada também na ponderação do modo como as partes se posicionaram no que concerne ao exercício do ónus da prova e de contraprova e ao acatamento do princípio da cooperação em matéria probatória.”.
Parece-nos absolutamente evidente que a situação sub judice, face ao comportamento e à postura assumida pelas partes (em especial os RR.) e tendo também em consideração o concreto objecto do litígio, não reveste as características mínimas que tornam exigível, necessária ou justificada a gravosa aplicação da cominação processual sancionatória em referência.
O juiz a quo, alheando-se completamente da análise – que lhe competia fazer - da hipotética culpabilidade dos RR. na pretensa inutilização ou agravamento da possibilidade de prova a cargo da parte contrária, bem como dos peculiares contornos do caso concreto, em termos da sua efectiva e real gravidade, entendeu generalizar e vulgarizar o emprego dessa mesma cominação, objectivamente inadequada à situação sub judice.
Ou seja, acedeu abertamente a todos os pedidos de informação que a A. fez verter nos autos relativamente à pessoa dos RR. e, quanto a todas essas matérias associou indiscriminadamente a cominação da inversão do ónus de prova, como se se tratasse da consequência usual, comum, corrente e como se este instituto não exigisse requisitos legais próprios para o seu accionamento, estando – como está - apenas reservado, em termos particulares e restritos, a situações de acentuada gravidade e culpa do sujeito processual que se encarrega de impedir ou dificultar gravemente a prova a produzir pela contraparte.
Conforme esclarece Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume II, página 409: “O comportamento do recusante pode, mais drasticamente, determinar, quando verificado o condicionalismo do artigo 344º, nº 2, do Código Civil, a inversão do ónus de prova. Tal acontece quando a recusa impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios produzidos”.
O que significa que a inversão do ónus de prova depende dos seguintes pressupostos:
- a impossibilidade de realização da prova – com a inviabilidade prática da demonstração de determinado facto em juízo - pela parte onerada com o respectivo ónus;
- resultando causalmente tal impossibilidade da actuação da parte contrária;
- que esta última actuação possa considerar-se como culposa.
(sobre esta matéria, vide entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Janeiro de 2019 (relator Ferreira Pinto); o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31 de Janeiro de 2019 (relator Aristides Rodrigues); o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de Outubro de 2010 (relator Arlindo Oliveira), todos publicitados in www.jusnet.pt).
Ora, nenhum desses pressupostos se verifica in casu, como é absolutamente claro e evidente. Concretizando:
- Quanto à ordenada autorização para o levantamento do sigilo bancário por parte dos notificandos.
Antes de mais, cumpre salientar que a alegação produzida pela A. no sentido de que as escrituras de compra e venda de imóveis entre os RR. não incluíram a entrega de qualquer contrapartida monetária entre o vendedor e a compradora, constitui a concreta alegação de um facto que se integra na causa de pedir da presente acção.
Não resulta dos autos que qualquer dos RR. tenha concorrido de algum modo para dificultar ou impossibilitar a prova desse mesmo facto pela parte contrária, onerada com o seu ónus, nos termos do artigo 342º, nº 1, do Código Civil.
Ou melhor, rigorosamente nada o indicia.
Dir-se-á, ainda, que tratando-se aqui de uma acção de impugnação pauliana, nos termos dos artigos 610º e 612º do Código Civil, a respectiva procedência não depende sequer da prova que não houve contrapartida monetária nos actos negociais de transferências de bens.
Tratando-se de actos onerosos encontram-se estes, da mesma forma, sujeitos aos efeitos da impugnação paulina, demonstrados que sejam todos os seus requisitos legais.
Como se disse, neste caso concreto, tratando-se de uma acção de impugnação pauliana assente na verificação dos requisitos constantes do artigo 612º, nº 1 e 2, do Código Civil, a sua procedência não depende sequer, enquanto conditio sine qua non, da prova da gratuitidade do acto impugnado.
Mesmo tratando-se de um acto oneroso, o mesmo é abrangido pelo instituto da impugnação pauliana, exigindo-se então que se prove a má fé de ambos os celebrantes (transmitente e transmissário).
Por outro lado, a recusa legítima da entidade bancária respectiva em fornecer os elementos pertinentes às conta tituladas pelos seus clientes, salvaguardada na sua vinculação ao dever de sigilo bancário, poderá ser naturalmente superada, se tal se justificar, através do incidente de quebra de sigilo profissional, tal como de resto judiciosamente consta da decisão recorrida (vide, sobre esta matéria, o disposto no artigo 417º, nº 4, do Código de Processo Civil).
É esse o expediente legal idóneo e natural para alcançar esse desiderato.
Sendo suscitado tal incidente, se aquilatará então nessa sede da prevalência, ou não, do interesse da administração da justiça no caso concreto sobre os da confiança e fiabilidade do sistema bancário salvaguardados pela defesa do sigilo bancário, sendo certo que assiste ao titular de contas bancárias o direito de, à partida e em princípio, não ser obrigado a consentir na sua completa intromissão e devassa.
Com efeito, não se nos afigura curial obrigar os RR. a abrir mão do direito à reserva da sua própria intimidade, levando-os a permitir o conhecimento de todos os seus movimentos bancários, numa intromissão que, por não ser sequer fundamental para a boa decisão da causa, não se apresenta como minimamente proporcional aos interesses substantivos em confronto nos presentes autos.
Pelo que não se vê razão alguma para a consequência processual associada à dita notificação – a inversão do ónus de prova, a pretexto de uma possível falta de colaboração com o tribunal, não se logrando descortinar a prática de qualquer acto por parte dos RR. conducentes à inviabilização da possibilidade de prova a realizar pela A.
2 – Quanto às pretendidas informações e notificação para a junção de documentos por parte da Ré “WP – I…, S.A.”, sob a mesma cominação processual.
Precisamente pela mesma ordem de razões, não se vê fundamento sério para a aplicação da gravosa cominação processual de inversão do ónus de prova, determinada pelo juiz a quo.
Acresce que logo na sua petição inicial a A. requereu o depoimento de parte de ambos os RR. relativamente à matéria de facto que se reporta à realização dessas mesmas escrituras.
É nesse momento processual que os RR. deverão explicar-se relativamente às questões que agora, precocemente, o Tribunal, a requerimento da A., entendeu dirigir-lhes.
Não se vê, ainda, como já se sublinhou abundantemente, que exista qualquer postura desta Ré, no sentido de dificultar ou inviabilizar a produção de prova a cargo da A., justificando minimamente, a inversão do ónus de prova com que é confrontado pelo tribunal a quo.
Da mesma forma não há motivo sério e atendível para sacrificar gratuitamente o dever de reserva que protege justificadamente a confidencialidade das suas informações comerciais próprias, obrigando esta sociedade a apresentar, neste contexto, o registo pormenorizado da sua actividade no mercado.
Procede, portanto, a presente apelação.
O que se decide, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos.
IV - DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelada.