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ESCUSA DE JUIZ
FALSIDADE DE TESTEMUNHO
JUIZ INTERVENIENTE JULGAMENTO ANTERIOR
Sumário
É fundamento para deferir escusa do Juiz para presidir a julgamento a circunstância de, num processo anterior no qual interveio, na sentença aí proferida, fundadamente ordenou a extracção de certidão com vista à instauração de procedimento criminal contra a então testemunha, pela prática de crime de falsidade de testemunho que ora se impõe apreciar.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
1. No âmbito do Processo Comum Singular nº 185/17.7T9VLN, que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Valença, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, o Exmo. Sr. Juiz de Direito, Dr. A. F., a exercer funções nesse tribunal, veio ao abrigo do disposto nos Artºs. 43º, nºs. 1, 2 e 4, e 45º, nº 1, al. a), do C.P.Penal, pedir escusa de intervenção no referido processo.
O pedido mostra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição 1):
“O arguido J. A. vem acusado da prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal.
Ora, da certidão junta aos autos resulta que presidi ao julgamento nos autos de processo comum singular com o n.º 214/14.6GBVLN em que o aqui arguido foi inquirido como testemunha, sendo que a acusação proferida nos presentes tem por base um despacho que proferi na sentença ordenado a extracção de certidão desse processo com vista à instauração de procedimento criminal contra a então testemunha e agora arguida pela prática de crime de falsidade de testemunho.
Em suma, a responsabilidade criminal que nestes autos se aprecia resulta directamente de depoimento prestado pelo impetrado aquando da sua inquirição como testemunha no julgamento realizado nos autos supra identificados.
Posto isto e após análise da convicção plasmada na sentença que subscrevi constato que, ao tomar posição sobre a prova então produzida, fiz referência expressa à falta de credibilidade do depoimento então prestado pelo aqui arguido J. A., nos seguintes termos:
“Na verdade, para além do que já referimos, foi possível perceber que o depoimento da testemunha J. A. foi claramente orquestrado para sustentar a versão dos factos trazida à liça pelos assistentes.
…
Ficou bem evidenciado que o depoente, apesar da advertência legal que lhe foi feita de que deveria responder com verdade sob pena de incorrer na prática de um crime de falso depoimento, não o fez. Acabámos por perceber que a testemunha já conhecia os assistentes – vive perto da M. F. e que o A. M. era inclusivamente muito amigo do seu pai. Veja-se a coincidência de aquele, precisamente naquele dia 30.04.2015, se ter deparado com o arguido – que nem sequer conhecia naquela data, como referiu – e de ter testemunhado da sua boca a confissão da prática dos factos. Mais, para além de ter dito que com toda a convicção que tudo aquilo se passou num Domingo, também assegurou que seriam 17 horas quando testemunhou a assunção de culpa produzida pelo arguido. Sucede que toda a prova produzida apontou no sentido de que a refrega que teve lugar na residência em questão ocorreu entre as 14 e as 15 horas do dia em questão, sendo que o arguido foi de resto conduzido pelo INEM ao Centro de Saúde de Monção (como asseverou a testemunha R. T.) em virtude dos ferimentos que sofreu.
Mais, o depoimento da testemunha sobre o modo como acabou por transmitir ao assistente o que presenciara é quase inacreditável. Referiu o depoente que naquele mesmo dia se deslocou ao café da terra e de imediato contou o sucedido ao assistente A. M., ou seja, que tinha visto um senhor a chorar no caminho arrependido por ter partido o carro do pai. Pergunta-se: a que propósito vai a testemunha relatar, e logo ao assistente, um acontecimento que não se reveste de qualquer importância particular, tendo em conta que nem sequer conhecia o arguido e, consequentemente, que nem sequer sabia ser ele filho do ofendido? O depoente não soube responder a tal perplexidade, como de resto antevimos.
Como já dissemos, a testemunha faltou clamorosamente à verdade e só pode perceber-se que o tenha feito sob “orientação” do ou dos assistente, caso contrário não vislumbramos que interesse tenha pretendido acautelar com tal postura senão a do (ou dos) assistente(s).”
Entendo que a apreciação de situações como a presente devem ser apreciadas casuisticamente já que a intervenção de um juiz noutro processo (tendo em conta o disposto no artigo 43.º, n.º 2, do CPP) nem sempre constituirá – e em regra não constituirá – fundamento para formular um pedido de escusa. Mas parece-me que no caso específico dos crimes de falsidade de testemunho a questão ganha uma acuidade acrescida que resulta, naturalmente, de o juiz que ouviu alguém como testemunha num determinado processo ser o mesmo que, por causa desse mesmo depoimento, o vai julgar num outro. E no caso concreto entendo que, salvo melhor opinião, a posição que plasmei na sentença condenatória por mim subscrita nos autos supra identificados acerca do depoimento prestado pelo agora arguido J. A. pode, na perspectiva do homem comum e do cidadão médio, fazê-lo suspeitar que o juiz deixe de ser imparcial e que como tal prejudique a livre apreciação da prova a produzir.
Por outro lado, em bom rigor, a situação cai igualmente na situação prevista no artigo 43.º, n.º 2, do CPP, dado que tive intervenção noutro processo em que os mesmos factos, apesar de vistos de um prisma distinto, se discutiram. Ou seja, a situação pode dar azo a um incidente de recusa com base em invocação de intervenção suspeita, alegada em fundamento sério e grave de desconfiança à imparcialidade do juiz. Ainda que não aceite a suspeita, a verdade é que a possibilidade de dedução do incidente de recusa está prevista para casos como o presente.
Assim sendo, em face do exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 43.º, n.ºs 1, 2 e 4, e 45.°, n.º 1, alínea a), do CPP, solicito escusa para intervenção no processamento dos presentes autos, nas fases que ainda se tenham que tramitar, designadamente a fase do julgamento.
Uma vez que o processo não reveste natureza urgente, entendo que não há necessidade de recorrer ao expediente de extracção de certidão dos autos para instruir o incidente, devendo antes o mesmo subir ao Tribunal da Relação de Guimarães – artigo 45.°, n.º 1, alínea a), do CPP.
Notifique e após remeta os autos àquele Tribunal.”
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2. Efectuado exame preliminar, colhidos os vistos legais, não havendo necessidade de proceder a diligências de prova, cumpre conhecer e decidir (2).
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Antes de mais, há que atentar nos seguintes elementos fácticos que os autos nos revelam:
- No dia 06/10/2016 realizou-se a audiência de discussão e julgamento no âmbito do Proc. Comum Singular nº 214/14.6GBVLN, da então Instância Local, Secção de Competência Genérica (2) de Valença, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, a qual foi presidida pelo Exmo. Sr. Juiz de Direito, Dr. A. F., ora Requerente;
- Em tal audiência foi inquirido, na qualidade de testemunha, J. A., ora arguido;
- Após o julgamento, foi proferida a respectiva sentença, na qual o Exmo. Sr. Juiz, em sede de fundamentação da matéria de facto, exarou o seguinte, no que ora interessa considerar:
“Na verdade, para além do que já referimos, foi possível perceber que o depoimento da testemunha J. A. foi claramente orquestrado para sustentar a versão dos factos trazida à liça pelos assistentes. (...) Ficou bem evidenciado que o depoente, apesar da advertência legal que lhe foi feita de que deveria responder com verdade sob pena de incorrer na prática de um crime de falso depoimento, não o fez. Acabámos por perceber que a testemunha já conhecia os assistentes – vive perto da M. F. e que o A. M. era inclusivamente muito amigo do seu pai. Veja-se a coincidência de aquele, precisamente naquele dia 30.04.2015, se ter deparado com o arguido – que nem sequer conhecia naquela data, como referiu – e de ter testemunhado da sua boca a confissão da prática dos factos. Mais, para além de ter dito que com toda a convicção que tudo aquilo se passou num Domingo, também assegurou que seriam 17 horas quando testemunhou a assunção de culpa produzida pelo arguido. Sucede que toda a prova produzida apontou no sentido de que a refrega que teve lugar na residência em questão ocorreu entre as 14 e as 15 horas do dia em questão, sendo que o arguido foi de resto conduzido pelo INEM ao Centro de Saúde de Monção (como asseverou a testemunha R. T.) em virtude dos ferimentos que sofreu.
Mais, o depoimento da testemunha sobre o modo como acabou por transmitir ao assistente o que presenciara é quase inacreditável. Referiu o depoente que naquele mesmo dia se deslocou ao café da terra e de imediato contou o sucedido ao assistente A. M., ou seja, que tinha visto um senhor a chorar no caminho arrependido por ter partido o carro do pai. Pergunta-se: a que propósito vai a testemunha relatar, e logo ao assistente, um acontecimento que não se reveste de qualquer importância particular, tendo em conta que nem sequer conhecia o arguido e, consequentemente, que nem sequer sabia ser ele filho do ofendido? O depoente não soube responder a tal perplexidade, como de resto antevimos.
Como já dissemos, a testemunha faltou clamorosamente à verdade e só pode perceber-se que o tenha feito sob “orientação” do ou dos assistente, caso contrário não vislumbramos que interesse tenha pretendido acautelar com tal postura senão a do (ou dos) assistente(s).”;
- Na parte final da aludida sentença o Exmo. Sr. Juiz determinou se procedesse à transcrição do depoimento da mencionada testemunha, J. A., bem como à extracção de certidão da acta de audiência de discussão e julgamento mais recente e da sentença, e a sua remessa aos Serviços do Ministério Público;
- Cumprido que foi aquele despacho, no Departamento de Investigação e Acção Penal - Secção de Valença, da Procuradoria da República da Comarca de Viana do Castelo, foi aberto o respectivo inquérito, em cujo âmbito foi constituído arguido J. A., o qual acabou por ser acusado da prática, em autora material, e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo Artº 360º, nºs. 1 e 3, do Código Penal, nos seguintes termos:
“O Ministério Público deduz acusação, nos termos do disposto no artigo 282, n.º4, alínea a) do Código de Processo Penal, em Processo Comum perante o Tribunal Singular contra,
J. A., desempregado, solteiro, filho de … e de …, natural de Viana do Castelo, nascido em .. de … de 1992, com residência na Rua …, Lugar de …, freguesia de …, concelho de Valença (TIR – fls.53).
Porquanto,
1. No dia 6 de Outubro de 2016, pela manhã, durante a audiência de julgamento, que teve lugar no âmbito do Processo nº 214/14.6GBVLN, no Juízo de Competência Genérica de Valença, o arguido prestou depoimento, na qualidade de testemunha, perante o Meritíssimo Juiz, depois de devidamente ajuramentado e advertido das consequências criminais, no caso de prestar falsas declarações. 2. Não obstante tal advertência, nessa audiência, o arguido faltou à verdade ao declarar ter presenciado o arguido naquele processo – L. M. – a admitir ter partido o carro ao seu pai, assistente no dito processo. 3. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que aquilo que declarava não correspondia à verdade, segundo os seus conhecimentos. 4. O que fez perante um Juiz, depois de devidamente ajuramentado e advertido das consequências criminais, no caso de prestar falsas declarações. 5. Bem como sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Pelo exposto, cometeu o arguido, J. A., em autoria material, na forma consumada, um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º, n.º1 e n.º3 do Código Penal.
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PROVA
DOCUMENTAL, a constante dos autos, designadamente,
. Certidão extraída do Processo n.º214/14.6GBVLN (fls.3 a 35);
. Certificado do registo criminal do arguido de fls.38 (…).”; e
- Remetidos os autos a Juízo, foram os mesmos distribuídos ao Exmo. Sr. Juiz Requerente, o qual, como questão prévia, suscitou o presente incidente.
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2. Posto isto, analisemos então, a pretensão do Exmo. Sr. Juiz Requerente.
As regras da independência e imparcialidade do tribunal são inerentes ao princípio constitucional do acesso ao direito e tutele jurisdicional efectiva, consagrado pelo Artº 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e bem assim uma importante dimensão das garantias de defesa do processo criminal e do princípio do juiz natural (Artºs. 32º, nº 1, e 32º, nº 9, da Constituição da República Portuguesa).
Nessa perspectiva, a imparcialidade do tribunal constitui, pois, um dos elementos integrantes da garantia do chamado processo equitativo, com consagração expressa no Artº 6º, § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e no Artº 20º, nº 4, da nossa lei fundamental.
Ora, tendo em vista assegurar a efectiva imparcialidade do julgador, o C.P.Penal regula, no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.
No que concerne às recusas e escusas, prescreve o Artº 43º:
“1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”.
2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.
3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.
4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.”.
Recusa e escusa são, assim, duas figuras processuais que visam o mesmo objectivo: obstar a que um juiz intervenha num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Sendo certo que o que as distingue é a diferente legitimidade para a respectiva dedução: a recusa pode ser deduzida pelo Mº Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (Artº 43º, nº 3, do C.P.Penal, ao passo que a escusa só pode ser pedida pelo próprio juiz (nº 4 do mesmo preceito legal).
Porém, e como vem sendo afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, a imparcialidade deve ser avaliada sob duas perspectivas: uma perspectiva subjectiva, e uma perspectiva objectiva.
Efectivamente, como salienta Henriques Gaspar, in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2016, 2ª Edição Revista, págs. 110/113, “na perspectiva subjectiva, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro íntimo perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão”. Acrescentando que “a dimensão subjectiva, por princípio, impõe que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjectiva presume-se até prova em contrário (...)”.
Já na perspectiva objectiva – diz – “em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulação de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, que seja objectivamente justificado quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra os seus interesses”.
Na mesma senda pronuncia-se Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, págs. 132/133, em anotação ao artigo 43º e citando jurisprudência do TEDH, quando refere que “a imparcialidade pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo. O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjectivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção”. Por outro lado, explica o mesmo autor: “O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade (…). A perspectiva do queixoso pode ser importante, mas não é decisiva”.
E, a nível jurisprudencial, citamos, a título meramente exemplificativo, o acórdão deste TRG de 29/11/2010, proferido no âmbito do Proc. nº 728/09.0PBGMR-A.G1, in www.dgsi.pt, no qual se afirma:
“A questão tem duas componentes. Uma subjectiva, atinente à posição pessoal do juiz e àquilo que ele, perante um certo dado ou circunstância, guarda em si e possa representar motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão. Deste ponto de vista subjectivo impõe-se, em regra, a demonstração da predisposição do julgador para favorecer/desfavorecer um interessado na decisão e, por isso, presume-se a imparcialidade até prova em contrário; e outra objectiva, relacionada com as aparências susceptíveis de serem avaliadas pelos destinatários da decisão, suscitando motivo sério e grave acerca da imparcialidade da intervenção do juiz.”.
Como se alcança do transcrito Artº 43º, nº 4, do C.P.Penal, para que o juiz possa pedir escusa torna-se necessário que:
- A sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita;
- Por se verificar motivo, sério e grave;
- Adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Como lapidarmente se expende no Ac. da Relação de Évora, de 5/12/2000, in CJ XXV-V-284, “O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar de objectiva justificação, avaliando as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstancias, a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador; o que importa é, pois, determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado deixe de ser imparcial e injustamente o prejudique.”.
Ora, tendo em conta as considerações jurídicas supra sumariamente explanadas, atentemos na situação sub-judice.
Desde logo se dizendo, numa perspectiva subjectiva de imparcialidade, que não está minimamente em causa qualquer comportamento concreto do Exmo. Sr. Juiz Requerente susceptível de levantar suspeita da sua imparcialidade, tanto mais que, como se viu, tendo sido o mesmo a suscitar este incidente, tal é claramente revelador de uma conduta irrepressível e escrupulosa.
E à luz da perspectiva objectiva de imparcialidade, o que nos dizem os autos?
Como supra se referiu, foram os presentes autos distribuídos ao Exmo. Sr. Juiz Requerente tendo em vista o julgamento do arguido J. A., acusado pelo Ministério Público da prática, em autora material, e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo Artº 360º, nºs. 1 e 3, do Código Penal.
Sucede que tais autos tiveram a sua origem na certidão extraída do Proc. Comum Singular nº 214/14.6GBVLN, da então Instância Local, Secção de Competência Genérica (2) de Valença, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, em cujo âmbito no dia 06/10/2016 se realizou a audiência de discussão e julgamento, presidida precisamente pelo ora Exmo. Sr. Juiz Requerente, o qual, na sentença aí proferida, em sede de motivação da decisão de facto, reputou de falso o depoimento do ora arguido, ali testemunha.
Ora, como bem assinala o Exmo. Requerente, em situações como a presente, de casos específicos dos crimes de falsidade de testemunho, “(...) a questão ganha uma acuidade acrescida que resulta, naturalmente, de o juiz que ouviu alguém como testemunha num determinado processo ser o mesmo que, por causa desse mesmo depoimento, o vai julgar num outro.”. Podendo, no caso concreto, a posição que o Exmo. Sr. Juiz plasmou na sentença que subscreveu naqueloutro processo “(...) acerca do depoimento prestado pelo ora arguido J. A. na perspectiva do homem comum e do cidadão médio, fazê-lo suspeitar que o juiz deixe de ser imparcial e que como tal prejudique a livre apreciação da prova a produzir.”.
Na verdade, é razoável supor que o arguido, e até o cidadão comum, suscite dúvidas e fique de algum modo apreensivo se confrontado com o mesmo juiz que interveio em julgamento anterior no qual considerou num determinado sentido o depoimento que então prestou na qualidade de testemunha e que o vai julgar tendo precisamente em vista apreciar se, na realidade, faltou ou não à verdade.
Assim sendo, perante o circunstancialismo acabado de relatar, afigura-se-nos estarem verificados os enunciados requisitos relativos à imparcialidade objectiva.
Pois - e repetindo-nos -, sem pormos em questão a idoneidade da Exmo. Sr. Juiz Requerente, cremos que, a ter de intervir nos presentes autos, a sua actuação poderia colocar em crise o reconhecimento público da sua imparcialidade enquanto juiz (de julgamento) do processo, sendo adequada a levar um cidadão médio, representativo da comunidade a, fundadamente, suspeitar que o Requerente, pelas invocadas circunstâncias, possa não manter uma posição de isenção na audiência de discussão e julgamento a que teria de presidir.
Não sendo demais salientar que a doutrina nacional coloca o acento tónico da salvaguarda da imparcialidade precisamente nesta vertente objectiva, como sucede com Manuel Cavaleiro Ferreira (3), que a propósito afirma:
“(...) Não importa, aliás, que, na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial; interessa, sobretudo, considerar se em relação ao processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados. É este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza: a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios; mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento de suspeição (...)”.
Pelo que, sendo este o plano em que se deve situar e decidir a questão, entendemos existir fundamento para a escusa que vem solicitada.
III. DISPOSITIVO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em deferir o pedido de escusa formulado pelo Exmo. Sr. Juiz de Direito, Dr. A. F. relativamente ao Processo Comum Singular nº 185/17.7T9VLN, do Juízo de Competência Genérica de Valença, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, devendo ser cumprido o disposto no Artº 46º do C.P.Penal.
Sem custas.
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 25 de Março de 2019
(António Teixeira)
(Nazaré Saraiva)
1. Transcrição em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator. 2. Nos termos do disposto no Artº 44º do C.P. Penal, a formulação do pedido de escusa é admissível até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório, só o sendo posteriormente, e apenas até à sentença ou até à decisão instrutória, quando os factos que o fundamentam sejam supervenientes ou de conhecimento posterior ao início da audiência ou do debate. No caso vertente, o pedido de escusa é tempestivo, uma vez que foi deduzido pelo Exmo. Sr. Juiz a quem compete tramitar os autos, e designadamente presidir ao julgamento, sendo certo que o processo se encontra precisamente no momento da prolação dos despachos a que aludem os Artºs. 311º e 312º do C.P.Penal. Por outro lado, conforme dispõe o Artº 45º, nº 1, al. a), do C.P.Penal, o pedido de escusa deve ser apresentado perante o tribunal imediatamente superior. Estando em causa o pedido de escusa de um Sr. Juiz de Direito, mostra-se o mesmo correctamente apresentado perante a Relação competente. 3. In “Curso de Processo Penal”, I, pág. 237.