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CONTRAFACÇÃO DE CHANCELA
CRIME DE PERIGO
CONSUMAÇÃO
Sumário
I - O crime de contrafacção de chancela, previsto no art. 269º, 1 do C. Penal, é um crime de perigo abstracto que, para a sua consumação, não exige a ocorrência de um concretizado perigo, bastando-se com a mera possibilidade da sua ocorrência. II - O referido crime consuma-se, assim, quando o perigo típico é criado, pois é nesse momento que ocorre a negação objectiva de valores ínsita na previsão típica do art. 269º, 1 do C. Penal.
Texto Integral
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
Nos autos de processo comum (colectivo) que, sob o nº ./02.0ZRPRT, correram termos pela .ª Vara Criminal do Porto, foram submetidos a julgamento os arguidos B………. e C………., acusados pela prática, em co-autoria material, de um crime de auxílio à emigração ilegal, na forma continuada, previsto e punido pelo art. 134º do D.L. n.º. 244/98, 8 de Agosto, um crime de associação de auxílio à imigração ilegal, previsto e punido pelo artigo 135º números 1, 2 e 3 do mesmo Decreto-Lei, um crime de angariação de mão de obra ilegal, previsto e punido pelo artigo 136º –A, números 1 e 2 do referido Decreto-Lei, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 4/2001, um crime de falsificação de documento, na forma continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 256º, nº.1, alíneas a) e b), 30º número 2 e 79º do Cód. Penal; um crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigos 217º e 218º, nº.1 e nº.2 alíneas b) e c), 30º número 2 e 79º todos do Cód. Penal. Ainda ao arguido B………. o crime previsto e punido pelo art. 269, nº.1, do Cód. Penal.
Efectuado o julgamento, viria a ser proferido acórdão decidindo nos seguintes termos:
Absolver os arguidos B………. e C………. da co-autoria de um crime de auxílio à emigração ilegal, na forma continuada, previsto e punido pelo art. 134 do D.L. n.º. 244/98, 8 de Agosto.
Absolver estes arguidos da co-autoria de um crime de associação de auxílio à imigração ilegal, previsto e punido pelo artigo 135º números 1,2 e 3 do mesmo Decreto-Lei;
Absolver os arguidos da co-autoria de um crime de angariação de mão-de-obra ilegal, previsto e punido pelo artigo 136 –A, números 1 e 2 do referido Decreto-Lei, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 4/2001;
Absolver os arguidos da co-autoria um crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigos 217º e 218º, nº.1 e nº.2 alíneas b) e c), 30º número 2 e 79º todos do Cód. Penal;
Absolver o arguido B………. da autoria de um crime previsto e punido pelo art. 269, nº.1, do Cód. Penal.
Condenar o arguido B………. pela co-autoria de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256, nº.1, alíneas a) e b) do Cód. Penal na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
Condenar este arguido pela autoria de um crime previsto e punido pelo artigo 271º do Código Penal na pena de 8 (oito) meses de prisão;
Condenar este arguido na pena única de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão;
Suspender a execução desta pena pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses;
Condenar o arguido C………., pela co-autoria de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256, nº.1, alíneas a) e b) do Cód. Penal, na pena de 12 (doze) meses de prisão;
Suspender a execução desta pena pelo período de 2 (dois) anos.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desta decisão, motivando e concluindo nos seguintes termos:
1. O acórdão recorrido absolveu os arguidos B………. e C………. da prática de um crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 134º do Dec-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, por que estavam acusados, por ter entendido, face à matéria dada como provada, que a sua conduta não integrava a previsão daquele preceito legal, uma vez que não foram os arguidos que contactaram no estrangeiro os cidadãos D………. e E………., não foram aqueles que, por qualquer modo, os fizeram vir para o nosso país.
2. Tais cidadãos, de nacionalidade marroquina, entraram em Portugal sem serem titulares de autorização de permanência, conforme resulta da matéria dada como provada, portanto, ilegalmente, face ao disposto no art. 136º do citado diploma legal conjugado com o art. 13º do mesmo diploma, na redacção do Dec-Lei n.º 4/2001, de 10 de Janeiro.
3. E resulta de tal matéria que os arguidos venderam, a cada um deles, um contrato de trabalho falso, por 2.250,00 euros, cada, que não tinha por finalidade a prestação de trabalho por parte daqueles imigrantes para a entidade patronal que constava dos mesmos que, aliás, não os tinha subscrito e desconhecia a sua existência, mas possibilitar que os mesmos obtivessem junto do SEF a autorização de permanência, tendo, para o efeito, sido aposto em tais contratos um carimbo com o parecer favorável da Inspecção-Geral de Trabalho que também era falso.
4. Ora, o art. 134º, n.º 1, do Dec-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, vigente à data da prática dos factos, e, actualmente, o art. 134º-A, n.º 1, do mesmo diploma legal, aditado pelo Dec-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, define como crime de auxílio à imigração ilegal a conduta de quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada irregular/ilegal de cidadão estrangeiro em território nacional.
5. Assim, o combate à imigração ilegal que está na génese deste preceito não pode passar pela punição apenas daqueles que trazem os imigrantes ilegais para o território português, com entendeu o acórdão recorrido, mas também daqueles que, como os arguidos, lhes arranjam documentação falsa para se poderem legalizar, já que tanto uns como os outros, com tais comportamentos, favorecem ou facilitam a entrada ilegal de cidadãos estrangeiros no nosso país.
6. Pelo exposto, os factos dados como provados, e uma vez que os arguidos actuaram com intenção lucrativa, integram-se na previsão do crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p., à data da sua prática, pelo art. 134º, n.ºs 1 e 2, do Dec-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, e, actualmente, pelo art. 134º-A, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma legal, aditado pelo Dec-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, pelo que, ao absolver os arguidos da prática, em co-autoria, de tal crime, violou o acórdão recorrido os referidos preceitos legais.
7. O acórdão recorrido entendeu que os factos dados como provados não integravam a previsão do crime de contrafacção de chancelas do art. 269º, n.º 1, do Cód. Penal, por que o arguido B………. estava acusado, mas sim actos preparatórios deste crime, pelo que absolveu o mesmo da prática daquele crime e o condenou pela autoria do crime p. e p. pelo art. 271º, n.º 1, do mesmo diploma.
8. O art. 269º, n.º 1, do Cód. Penal prevê e pune a conduta de quem, com intenção de os empregar como autênticos ou intactos, contrafizer ou falsificar selos, cunhos, marcas ou chancelas de qualquer autoridade ou repartição pública, punindo-se assim neste preceito legal a contrafacção ou falsificação do próprio instrumento, pelo que tal crime consuma-se quando termina o fabrico do instrumento semelhante ao autêntico.
9. Ora, da matéria apurada resulta que o arguido B........., recorrendo ao uso da informática, criou um documento, que estava guardado numa disquete, o qual reproduz uma marca idêntica àquela produzida pelo carimbo usado pela Inspecção-Geral de Trabalho para atestar o seu parecer favorável nos contratos de trabalho realizados com trabalhadores estrangeiros, para efeitos de autorização de permanência.
10. Tendo criado tal documento com intenção de utilizar o carimbo imprimido pelo mesmo em contratos de trabalho realizados com cidadãos estrangeiros, a fim de os apresentar no SEF e assim obter a legalização dos mesmos.
11. Pelo que estamos perante o crime de contrafacção de chancelas previsto no n.º 1 do art. 269º do Cód. Penal, na sua forma consumada, e não perante actos preparatórios deste crime, como entendeu o acórdão recorrido, por não se ter feito a prova de que foi o arguido B......... que contrafez o carimbo que foi aposto nos contratos de trabalho realizados com os cidadãos marroquinos D………. e E………., já que para a verificação deste crime não se exige a utilização do instrumento contrafeito, mas apenas que o mesmo tenha sido fabricado com intenção de ser utilizado como se fosse autêntico, estando-se perante um crime de perigo abstracto.
12. Da matéria dada como provada resulta assim que o arguido B………. praticou todos os actos de execução do crime de contrafacção de chancelas, p. e p. pelo art. 269º, n.º 1, do Cód. Penal, tendo consumado tal crime, e não apenas actos preparatórios do mesmo, pelo que o acórdão recorrido, ao ter absolvido o arguido da prática deste crime, violou tal preceito legal.
13. Nestes termos, deve-se conceder provimento ao recurso, revogando-se, parcialmente, em conformidade, o douto acórdão recorrido e condenando-se os arguidos B………. e C………. pela prática, em co-autoria, de um crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p., à data da prática dos factos, pelo art. 134º, n.ºs 1 e 2, do Dec-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto e, actualmente, pelo art. 134º-A, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma, aditado pelo Dec-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, e o arguido B………. pela autoria de um crime de contrafacção de chancela, p. e p. pelo art. 269º, n.º 1, do Cód. Penal.
Também inconformado, o arguido B………. interpôs recurso da mesma decisão, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
1. Irregularidade do acórdão: art. 374º nº 1-d) do CPP: a sentença começa por um relatório, que contém: d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação se tiver sido apresentada.
2. À falta desta indicação, a lei comina como uma irregularidade, por força do artigo 118º, nº 2 do CPP.
3. Na fundamentação da decisão é obrigatória a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do exame crítico destas.
4. O tribunal a quo, além de não fazer qualquer referência à defesa apresentada, não se deu ao trabalho de ouvir o que disseram as testemunhas apresentadas pelo recorrente
5. Cometeu o tribunal a quo uma irremediável irregularidade processual por violação das supra indicadas disposições legais (3).
6. Nulidade do Acórdão: art. 379º nº 1-c): é nula a sentença: c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
7. Á data da prestação das declarações para memória futura, o recorrente ainda não tinha sido constituído arguido.
8. O arguido requereu que tais declarações não deviam ser consideradas para efeitos de condenação em virtude de àquela data ainda não ter sido constituído arguido.
9. As declarações para memória futura devem ser consideradas desde que o julgador, na decisão proferida, recorra a outros meios de prova por forma a obter confirmação/infirmação dessas provas antecipadas, por confronto, análise crítica, descredibilização, corroboração.
10. O tribunal a quo indica como prova irrefutável os depoimentos das testemunhas F………. e G………., que não falaram em momento algum de factos constantes da acusação e pelos quais o recorrente estava acusado.
11. A jurisprudência e a doutrina é unânime em considerar que a acusação delimita o objecto do processo e é este mesmo objecto que delimita os poderes de cognição do tribunal. Ao vedar os poderes de cognição do juiz a outros factos, que não os contidos na acusação, está a garantir-se ao arguido que só deles tenha de defender-se e que por outros não poderá ser condenado.
12. Não há qualquer identidade entre os factos relatados pelas duas testemunhas F………. e G………. e os factos constantes das declarações para memória futura prestadas por D………. e E………. .
13. As testemunhas D………. e E………. ao contrário das testemunhas F………. e G………., nunca fizeram o reconhecimento dos arguidos, tendo apenas feito referência à sua existência.
14. O tribunal a quo não poderia como efectivamente fez, retirar ilações dos depoimentos das testemunhas F………. e G………. para confirmar as declarações para memória futura das testemunhas D………. e E………. .
15. O tribunal a quo, ao conhecer de tais factos (depoimentos de F………. e G……….) e neles se basear para a confirmação dos factos constantes das declarações para memória futura.
16. A decisão está ferida de erro notório na apreciação da prova: o recorrente contraditou factos constante da acusação e pelos quais veio a ser condenado.
17. O tribunal a quo concluiu que a disquete era do recorrente e que continha documentos por ele elaborados.
18. A pasta criada e contida na disquete pode ter sido criada em qualquer um dos computadores, não se tendo apurado em qual dos três computadores foi criada.
19. Resultou do auto de verificação da disquete apreendida, concretamente na impressão das características do documento, continha o nome de “H……….” como sendo a pessoa quem criou o documento.
20. Os computadores do escritório funcionavam em rede.
21. A sala de reuniões, além de ser usada pelos estagiários, era também o local onde funcionava a delegação da ordem dos advogados de Marco de Canaveses.
22. O escritório sempre teve uma funcionária de nome “I……….”, o que contraria as declarações para memória futura prestadas por D………. e E………., que declararam ter sido recebidos por um funcionário.
23. O tribunal a quo, errou notoriamente na apreciação do depoimento da testemunha J………. .
24. Esta testemunha identificou outra pessoa diferente do recorrente como sendo a pessoa que elaborou contratos.
25. Há discrepância entre o que o tribunal a quo considerou provado que a testemunha disse e o que efectivamente disse.
26. Há erro notório na apreciação da prova, e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão: art. 410º, nº2-b) 2ª parte do CPP, quando o tribunal a quo aplica ao recorrente uma pena de prisão de 8 (oito) meses, pela prática do crime previsto e punido pelo art. 271º do código penal.
27. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos: O arguido B......... foi assim, no seu escritório, aprimorando a reprodução de uma marca em tudo semelhante ao carimbo usado pelo M………., recorrendo, para o efeito ao uso da informática.
28. O tribunal a quo deu como provado que o carimbo aposto nos contratos de fls. 34, 35, 44 e 45 era falso.
29. Da testemunha L………., o tribunal a quo deu como provado a explicação que esta testemunha dá das diferenças existentes entre o carimbo verdadeiro usado pelo M………. e o carimbo encontrado no conteúdo da disquete (fls. 327 dos autos e fls. 56 e ss. do apenso A), apontando as seguintes:
a)- a palavra “contrato” está em minúsculas carimbo encontrado no conteúdo da disquete e no carimbo verdadeiro usado pelo M………. está escrito em maiúsculas “Contrato”.
b)- o espaço para manuscrever é menor no carimbo encontrado no conteúdo da disquete do que o espaço do carimbo verdadeiro usado pelo M………. .
30. O tribunal a quo está equivocado quanto à apreciação dos factos assim como entra em contradição entre a fundamentação e a decisão.
31. Entre os carimbos que se encontram apostos nos contratos de fls. 34, 35, 44 e 45 e o carimbo verdadeiro usado pelo M………., verifica-se que são exactamente iguais, o que leva o homem médio a considerar que o carimbo aposto nos contratos de fls. 34, 35, 44 e 45 não é o carimbo encontrado no conteúdo da disquete mas sim o verdadeiro carimbo do M………. .
32. Resulta assim do texto e contexto da decisão proferida uma descoordenação factual entre a prova produzida e a que se considerou provada.
Deste modo, a decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos: 118º, nº 2; 374º, nº 1 – d); 379ª, nº 1 – c); 410º, nº 2 – b) e c), todos do código de processo penal.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, e, em consequência, deve acórdão recorrido ser revogado substituindo-se por outro que absolva o arguido/recorrente da pena em que foi condenado com todas as legais consequências.
Ao recurso do arguido respondeu o MP, concluindo pelo seu não provimento.
O arguido C………. respondeu ao recurso do MP, concluindo pela confirmação do decidido. Também o arguido B………. respondeu, concluindo pela manutenção da decisão ou pela sua substituição por decisão que o absolva.
Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer onde conclui pelo provimento do recurso do MP e não provimento do recurso do arguido B………. .
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
FACTOS ASSENTES:
Desde data que não foi possível apurar que os arguidos encetaram uma relação de amizade tendo até o arguido B………., testemunhado o casamento do C………. o qual teve lugar em 10 de Fevereiro de 2002, na Conservatória do Registo Civil do Marco de Canaveses.
Sendo o C………. cidadão marroquino, com ele estabeleceram contacto, pelo menos dois cidadãos oriundos desse país que se encontravam ilegais em Portugal e aos quais prometeu a obtenção de toda a documentação necessária a conseguir a legalização no nosso país, pedindo-lhes, para tanto o pagamento, de 2250,00 €.
A situação de precariedade em que viviam, como ilegais noutros países, levou a que esses cidadãos acedessem ao que lhes era proposto, angariando a quantia em dinheiro que lhes era exigida sempre confiando que, desse modo, alcançariam a pretendida legalização a qual sabiam só poder ser efectivada mediante a apresentação aos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras de contrato de trabalho válido nos termos da legislação então em vigor.
Contudo estes cidadãos, tal como os arguidos bem sabiam, nunca pretenderam celebrar, para cumprir, um contrato de trabalho em Portugal mas apenas obter a dita legalização a fim de poderem permanecer no nosso país e, ou circular livremente no espaço da União Europeia.
O arguido C………. actuava conjuntamente com o arguido B………., advogado de profissão, o qual elaborava os pretensos contratos de trabalho, para tanto utilizando o nome de empreiteiros da área do Marco de Canaveses, alguns dos quais foram, efectivamente, contactados pelo C………., o qual lhes perguntava se precisavam de trabalhadores, como modo de, no assentimento destes, obterem os seus elementos identificativos que, posteriormente, eram usados para “ compor” os contratos de trabalho.
O cidadão Marroquino D………., recém chegado de França, onde viveu e trabalhou na condição de ilegal, ouviu falar, junto da comunidade marroquina no Porto, do arguido C………. como sendo a pessoa que obtinha contratos de trabalho que permitiam a legalização junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de cidadãos que permanecessem ilegalmente em Portugal.
Após ter obtido o seu contacto, combinaram encontrar-se, no dia 21 ou 22 de Fevereiro de 2002, num café desta cidade, onde o arguido C………. convenceu o D………. de que lhe conseguiria um contrato de trabalho que lhe permitia a desejada legalização. Para tanto exigiu-lhe o pagamento da quantia de 2250,00 €, tendo o D………. entregue, de imediato a quantia de 250,00 €, acordando que a restante seria entregue no dia seguinte aquando da entrega do contrato de trabalho.
De seguida, e a fim de conseguir um impresso em tudo semelhante a um contrato de trabalho, o arguido C………. entrou em contacto com o arguido B………. o qual, com os elementos de identificação fornecidos, elaborou o documento, que se acha junto a folhas 34 e 35 dos autos «Contrato de Trabalho a Termo Certo com Trabalhador Estrangeiro», do qual constava, como entidade empregadora “J……….” e como trabalhador o ofendido D………., facto que ambos os arguidos sabiam não correspondia à verdade até porque o aludido J......... nem sabia que aquele contrato tinha sido elaborado em que figurava o seu nome como entidade empregadora.
Conseguido tal impresso cujo formulário o arguido B......... possuía no computador do seu escritório, no Marco de Canaveses, no dia 23 de Fevereiro de 2002, o dito D………. encontrou-se com os arguidos, junto do CTT do Porto, na ………., onde o C………. lho entregou como se de um verdadeiro contrato de trabalho se tratasse.
Quando tal contrato lhe foi entregue o mesmo tinha já aposto, na parte inferior direita do documento o carimbo do M………. . No entanto este era falso. Com efeito tal carimbo, em tudo igual ao verdadeiro, acedido em circunstâncias que não se lograram apurar, evidenciava uma rubrica que não pertencia a nenhum funcionário desse organismo. O contrato em apreço, portanto, nunca tinha sido apresentado àquela entidade e não tinha obtido dela a informação favorável.
Nesse documento, pelo seu próprio punho, o arguido C………., no lugar destinado à assinatura do trabalhador, tinha aposto uma assinatura como se fosse o próprio D………. a fazê-la, tendo-o advertido que, aquando do preenchimento do pedido de autorização de permanência, devia tentar fazer uma semelhante.
Contra a entrega desse papel, o ofendido D………. pagou o restante do preço combinado previamente montante esse que os arguidos integraram nos seus patrimónios fazendo-a sua, bem sabendo que o D………. só conseguiria a pretendida legalização se não fosse, como foi, detectado que o contrato não era verdadeiro.
Foi, também, nessas circunstâncias de tempo que o ofendido E………., recém chegado de França, onde viveu e trabalhou na condição de ilegal, ouviu falar, junto da comunidade marroquina no Porto, do arguido C………. como sendo a pessoa que obtinha contratos de trabalho que permitiam a legalização, mediante a obtenção do competente visto, junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de cidadãos que permanecessem ilegalmente em Portugal.
Após ter obtido o seu contacto, combinaram ambos encontrarem-se, no dia 21 de Fevereiro de 2002, no restaurante N………., sito na ………., no Porto, onde o arguido C………. disse ao E………. que lhe conseguiria um contrato de trabalho que lhe permitia a desejada legalização. Para tanto exigiu-lhe o pagamento da quantia de 2250 euros, tendo o E………. entregue de imediato a quantia de 250 euros, acordando que o restante seria entregue no dia seguinte aquando da entrega do contrato de trabalho.
De seguida o arguido C………. contactou o arguido B......... o qual, com os elementos de identificação fornecidos elaborou o documento que se encontra a fls. 44 e 45 «Contrato de Trabalho a Termo Certo Com Trabalhador Estrangeiro», onde constava, como entidade empregadora “J……….“ e como trabalhador o ofendido E………., facto que ambos os arguidos sabiam não corresponder à verdade, pois o aludido J………. não tinha elaborado contrato de trabalho com aquele cidadão Marroquino, nem sabia que eram elaborados contratos de trabalho em que figurava o seu nome como entidade empregadora.
Conseguido esse documento, cujo formulário o arguido B......... possuía no seu computador, no dia 23 de Fevereiro de 2002, o ofendido E………. encontrou-se com os arguidos junto dos CTT do Porto, na ………., onde este lho entregou, como se de um contrato de trabalho verdadeiro se tratasse.
O arguido C………., no lugar destinado à assinatura do trabalhador tinha aposto uma como se fosse a do próprio E………., tendo-o advertido que, aquando do preenchimento do pedido de autorização de permanência, devia tentar fazer uma semelhante. Contra a entrega desse papel o ofendido E………. entregou-lhe a quantia de 2000 euros, que tinha conseguido juntar e que era tudo o que possuía e que o arguido C………. integrou no seu património fazendo sua, bem sabendo que o E………. só conseguiria a pretendida legalização se não fosse, como foi, detectado que o contrato não era verdadeiro.
Os arguidos C………. e B………. agiram de forma voluntária, livre e conscientemente, com o propósito conseguido de obterem enriquecimento a que sabiam não terem direito, aproveitando-se da situação ilegal e de necessidade em que se encontravam aqueles dois emigrantes que neles confiaram; para tal não hesitaram em forjar “contratos de trabalho” carimbados com um carimbo falso em tudo semelhante ao usado pelo M………., abusando da assinatura da entidade que nos contratos figurava com empregadora e falsificando a assinatura do trabalhador, com intenção de obter para os referidos cidadãos um benefício a que estes não tinham direito e a causar prejuízo ao Estado português.
O arguido B………. detinha, no seu escritório de advocacia, para além de outros, os seguintes escritos, que foram apreendidos em busca que ali foi realizada:
a) - Um papel com a última folha com um contrato de trabalho e com um esboço, no verso, em azul, encontrado que se encontrava numa pasta de papel, sobre a mesa;
b) - Cópia de um fax da Embaixada de Portugal em O………. constituído por três folhas, que se encontrava dentro de uma pasta em pele de cor castanha;
c) – um envelope do M………. contendo no seu interior um contrato de trabalho entre “P……….” e “Q……….”, em três folhas;
d) – dois cantos rasgados de uma folha A4 contendo o final de um contrato de trabalho contendo o carimbo da Inspecção-geral do Trabalho;
e) – duas folhas A4 contendo, cada uma delas, uma cópia impressa o timbre da Inspecção-geral de Trabalho (Informação Favorável para efeitos de Autorização de Permanência);
f) – Um recibo de vencimento em nome de “S……….”; uma informação e três cópias relativas a S………. e a empresa empregadora “T……….”; uma fotocópia de minuta de carta “Carta a capear o pedido de informação favorável”; um contrato de trabalho a termo certo, figurando como outorgantes “T……….” e “S……….”, datado de 24 de Abril de 2001, uma carta assinada em nome de T………. para a delegação da área inspectiva, dois duplicados do aludido contrato de trabalho, uma fotocópia de folhas contendo a fotografia e identificação de S………., um recibo de documentos em nome de S………., sendo requerente “T………., três documentos relativos à identificação de trabalhadores e declaração de início de actividade;
g) – uma disquete contendo uma pasta com cinco documentos nomeados, no auto de verificação do conteúdo da disquete constante dos autos, por “U……….”, “U1……….”, “U2……….” “V……….” e “W……….”.
Quatro destes documentos foram impressos – só não o tendo sido o nomeado “V……….”.
O Documento “U……….” foi criado em 19/02/2002, pelas 04:02.00 Horas, modificado nesse dia pelas 04:02,58 horas, impresso nesse dia pelas 3:54,00 horas. Este documento consta como contrato de trabalho a termo Certo com Trabalhador Estrangeiro e nele figuram como primeiro outorgante X………. e como segundo outorgante G………. e está datado de 26 de Outubro de 2001;
O Documento “U1……….” foi criado no dia 19/02/2002 pelas 04:02,00 horas, modificado às 04:02,10 horas desse mesmo dia e impresso, ainda nesse dia pelas 3:51 horas. Este documento consta como contrato de trabalho a termo Certo com Trabalhador Estrangeiro e nele figuram como primeiro outorgante X………. e como segundo outorgante F………. e está datado de 27 de Outubro de 2001;
O documento “U2……….” foi criado no dia 21/01/2002 pelas 11:09 horas, modificado pelas 11:36 horas desse dia e no mesmo dia impresso pelas 11:29 horas. Este documento consta como contrato de trabalho a termo Certo com Trabalhador Estrangeiro e nele figuram como primeiro outorgante X………. e como segundo outorgante Y………. e está datado de 20 de Novembro de 2001;
O documento “W……….” criado no dia 19/02/2002 pelas 00,36 horas, modificado nesse dia pelas 2:18 horas e impresso ainda nesse mesmo dia pelas 00:46 horas. Este documento reproduz uma folha A4 em branco, nela constando no seu canto inferior direito uma marca idêntica ao carimbo usada pelo M………. .
f) - Fotocópias de uma carta de condução e de dois passaportes em nome de Z………., uma fotocópia do cartão de beneficiário da segurança social, no mesmo nome, uma declaração em nome do mesmo e uma identificação do mesmo beneficiário com o carimbo do serviço social do Marco de Canaveses.
Nessa mesma ocasião foi ainda efectuada uma busca aos documentos inseridos nos computadores do escritório, que se encontravam a funcionar em rede. Foi encontrado para além de outros, um modelo de um contrato de trabalho por tempo indeterminado com trabalhador estrangeiro, tendo deste documento sido feito uma cópia.
O arguido B………. foi assim, no seu escritório, aprimorando a reprodução de uma marca em tudo semelhante ao carimbo usado pelo M………., recorrendo, para o efeito ao uso da informática.
Actuou de modo livre, consciente e deliberado, ensaiando um modo de fazer reproduzir o selo a tinta de óleo resultante da aposição do carimbo legítimo da então Inspecção-Geral do Trabalho.
Sabia o arguido que tal conduta era, como é proibida e punida por lei. Não obstante este conhecimento o arguido actuou pela forma descrita, com o intuito de uma vez conseguida a imitação, o usar em documentos semelhantes aos que acima se referiram e deste modo, apresenta-los no SEF, e obter a legalização de cidadãos estrangeiros.
Mais se provou que:
O arguido B………. é oriundo de uma família de elevada condição sócio económica, sendo filho de um casal de professores, tendo o pai, mais tarde, obtido a licenciatura em Direito e feito carreira como advogado na cidade do Marco de Canaveses.
Sendo o mais novo de 4 irmãos, foi muito protegido. Os pais investiram na escolarização dos filhos, todos tendo frequentado o ensino superior e encontrando-se presente com as suas vidas perfeitamente organizadas.
O arguido terminou o curso de Direito aos 26 anos de idade, tendo efectuado o estágio no escritório do pai no Marco de Canaveses, escritório onde desde há cerca de dois anos, exerce, sozinho, a sua profissão de advogado, por falecimento do progenitor.
Aos dezassete anos de idade iniciou uma relação de namoro com a actual cônjuge, com a qual contraiu matrimónio aos 27 anos.
O arguido é primário.
O arguido C………. nasceu em Marrocos, numa família constituída pelos pais e quatro irmãos. O pai é artesão e a mãe doméstica.
Desde cedo começou a acompanhar o pai no fabrico de artesanato, numa pequena oficina de que aquele era proprietário, tendo concluído apenas o 4º ano do ensino básico.
O pai sempre viajou pelo mundo na divulgação do artesanato, e por volta de 98, aquando da “AE……….” o arguido acompanhou-o, trabalhando no pavilhão de Marrocos. Depois permaneceu em Portugal na venda de artesanato marroquino, actividade que não conseguiu rentabilizar, vindo posteriormente a inserir-se na área da construção civil, nas obras de melhoramento do aeroporto Sá Carneiro, no Porto. Nessa altura legalizou-se e no ano de 2000 conheceu a sua actual mulher, com a qual se encontra casado desde há quatro anos, natural esta de Marco de Canaveses, onde veio a fixar residência.
Integra este agregado familiar, uma filha da mulher, agora com 9 anos de idade.
A situação económica do agregado familiar assenta no salário do arguido, trabalhador por conta de outrem numa empresa de confecção têxtil, onde aufere um vencimento mensal de 446,00 €. A mulher trabalha como auxiliar de cozinha, o vencimento de 200,00 €.
Vivem em casa de renda pela qual pagam 170,00 €. Têm ainda como despesas fixas 140,00 € da prestação de um empréstimo feito para aquisição de uma viatura, mais os gastos com água e luz que em média ascendem a 60,00 €, mensais.
Vivem com dificuldades económicas pelo que se socorrem dos pais da mulher.
O arguido é primário.
Factos não provados:
Não se provou que os cidadãos D………. e E………. estivessem convencidos que os contratos de trabalho que os arguidos lhes venderam fossem verdadeiros.
Não se provou que o ofendido K………., recém-chegado de França onde viveu e trabalhou na condição de ilegal, ouviu falar, em Agosto do ano de 2001, junto da comunidade marroquina no Porto, do arguido C………. como sendo a pessoa que obtinha contratos de trabalho que permitiam a legalização, mediante a obtenção do competente visto, junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de cidadãos que permanecessem ilegalmente em Portugal.
Não se provou que através de um seu conhecido este ofendido tenha sido apresentado no restaurante N………., sito no Porto, na ………., no Porto, ao arguido C……….., tendo comparecido este acompanhado do arguido B..........
Não se provou que ambos tenham convencido o K………., que também lhe conseguiam um contrato de trabalho que lhe permitia a desejada legalização. Nem que lhe exigiram o pagamento da quantia de 2500 euros, quantia que este só pagou aquando, dois dias depois, da entrega do contrato de trabalho.
Não se provou que, ainda nesse dia e a fim de conseguirem um impresso em tudo semelhante a um contrato de trabalho, os arguidos com os elementos de identificação fornecidos e com a cópia de um contrato de trabalho onde conseguiram apor uma imitação de carimbo do M………., elaboraram o documento onde constava, entre outros, o nome da entidade empregadora, J………. e, como trabalhador, o ofendido K………., facto que ambos os arguidos sabiam que não correspondia à verdade.
Não se provou que conseguido tal impresso, cujo formulário o arguido B......... possuía no seu computador pessoal, no Marco de Canaveses, o ofendido K………. se tenha encontrado com os arguidos, no Porto, onde entregou a quantia de 2500 euros que era tudo o que possuía e que os arguidos dividiram entre si.
Pelo que também se não provou que, pelo seu próprio punho, o arguido C………., e no lugar destinado à assinatura do trabalhador tinha aposto uma assinatura como se fosse o próprio K………. a fazê-la, tendo-o advertido que, aquando do preenchimento do pedido de autorização de permanência devia tentar fazer uma semelhante.
Não se provou que também no ano de 2001, o ofendido AB………. tenha conhecido, no Marco de Canaveses o arguido C………. como sendo a pessoa que obtinha contratos de trabalho que permitiam a legalização, mediante a obtenção do competente visto, junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de cidadãos que permanecessem ilegalmente em Portugal.
E que o arguido C………. o tenha convencido de que lhe conseguia um contrato de trabalho que permitia a sua legalização, bastando, para tanto que lhe entregasse a quantia de esc. 60000$00.
E que através de um intermediário angariado pelos arguidos, este ofendido, apesar de não ter qualquer quantia em dinheiro, conseguiu arranjar e pagou, em Maio de 2001, no Marco de Canaveses a aludida quantia tendo, nesse acto, sido entregue pelo C………. o contrato de trabalho cuja cópia se encontra a fls. 324 a 326, onde os arguidos com os elementos de identificação fornecidos e com a cópia de um contrato de trabalho onde conseguiram apor uma imitação de carimbo do M………., elaboraram o documento onde constava, entre outros, o nome da entidade empregadora, AC………. e como trabalhador o ofendido AB………., facto que ambos os arguidos sabiam que não correspondia à verdade.
Não se provou que, na posse de tal documento, que aparentava ser um contrato de trabalho válido e que entregou no SEF, em Bragança, o AB………. tenha conseguido a pretendia autorização de residência em Portugal.
Não se provou que tal contrato nunca tinha sido celebrado na realidade, desconhecendo a entidade que aí figurava como empregadora a sua existência.
Não se provou que no ano de 2001, quando o ofendido AD………. se encontrava na Alemanha, tenha sido contactado pelo arguido C………., o qual o convenceu de que, mediante a entrega da quantia de 14000 francos franceses, lhe conseguia entregar documentos mediante os quais obtinha a sua legalização em Portugal mediante a obtenção da autorização de residência emitida pelo SEF.
Nem que este convencido de que conseguia a almejada legalização o AD………. enviou para o arguido C………. a quantia de 14000 francos Franceses.
Não se provou que na posse dos mesmos, os arguidos C………. e B………. elaboraram os documentos exigidos pelo SEF necessários para a legalização.
Não se provaram outros factos para além dos dados como provados, nem quaisquer outros que, alegados estejam em manifesta contradição com os dados como provados.
Não se provaram mais factos com interesse para a boa decisão da causa.
DECIDINDO:
I – RECURSO DO MP.
O recurso do MP é limitado à matéria de direito, resumindo-se, em síntese, à discordância que manifesta relativamente à absolvição dos arguidos B………. e C………., pois que, no seu entendimento, a matéria de facto assente nos autos integra a prática de um crime de auxílio à emigração ilegal, em co-autoria e ainda a prática de um crime de contrafacção de chancela, pelo primeiro, em autoria singular.
a) O crime de auxílio à imigração ilegal.
Este ilícito é da previsão do artº 134º do Decreto-Lei 244/98 de 8 de Agosto que estatui que “1- Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada irregular de cidadão estrangeiro em território nacional será punido com prisão até 3 anos.
2- Se o agente praticar as condutas referidas no número anterior com intenção lucrativa a prisão será de 1 a 4 anos.
3 – A tentativa é punível”.
Na decisão de primeira instância foi considerado, em síntese, que os arguidos não teriam praticado tal crime pois que «não foram os arguidos que os [aos dois referidos indivíduos de nacionalidade marroquina] contactaram no estrangeiro, não foram estes que, por qualquer modo os fizeram vir para o nosso país. Eles já se encontravam em território nacional quando, por contacto previamente estabelecido com outros cidadãos, vieram a contactar e a estabelecer conhecimento com os arguidos.»
Na sua motivação, pretende o MP que «para o preenchimento deste crime não se tornava necessário, como entendeu o tribunal, que os arguidos tivessem contactado os cidadãos marroquinos no estrangeiro ou que, por qualquer modo, os fizessem vir para o nosso país. (…) Ora, o combate à imigração ilegal (…) não pode passar pela punição apenas das pessoas que trazem os imigrantes ilegais para o território português, mas também daqueles que, como os arguidos, lhes arranjam documentação falsa para os mesmos se poderem legalizar. Na verdade, tanto uns como os outros, com tais comportamentos, estão a favorecer ou a facilitar a entrada irregular/ilegal de cidadãos estrangeiros no nosso país.»
Cremos, todavia, que sem razão. Com efeito, a previsão típica objectiva inclui apenas a conduta daqueles que favorecerem ou facilitarem, por qualquer forma, a entrada irregular de cidadão estrangeiro em território nacional, o que, manifestamente, não é o caso dos autos em que a conduta dos agentes apenas se iniciou a partir de momento em que os referidos ofendidos se haviam já penetrado irregularmente no território nacional. Aliás, tal evidência é manifestada pelo segundo parágrafo da factualidade assente, do qual resulta, ainda que de certo modo conclusivamente, que «sendo o C………. cidadão marroquino, com ele estabeleceram contacto, pelo menos dois cidadãos oriundos desse país que se encontravam ilegais em Portugal». Assim sendo, não se mostra preenchida a factualidade da previsão incriminadora, que exige, entre o mais, que o agente favoreça ou facilite, por qualquer forma, a entrada irregular de cidadão estrangeiro no nosso país. Pois se eles, sem o contributo [provado] dos arguidos, já haviam nele penetrado irregularmente… O elemento literal e lógico da interpretação é claro e, deste modo veda o recurso à interpretação extensiva da norma em apreço (artº 9º, 2 e 3, CCivil).
Assim sendo, não se nos afigura legitimo o recurso á argumentação de que o ‘espírito da norma’ pretende também abarcar a situação daqueles que «como os arguidos, lhes arranjam documentação falsa para os mesmos se poderem legalizar». Cremos, aliás, que a adopção de uma interpretação tão extensiva criaria o perigo de generalização do conteúdo normativo, com a consequente instabilidade interpretativa, com a consequente instabilidade interpretativa, pouco consentânea com as regras de direito e de processo penal.
Por isso, neste pormenor, deve improceder o recurso do MP.
b) O crime de contrafacção de chancela.
Prossegue o MP suscitando idêntica questão, mas agora relativamente ao crime de contrafacção de chancela, pretendendo que dos factos assentes consta factualidade suficiente para condenar o arguido B………. pela prática deste delito.
Resulta do artigo 269º do Código Penal que “1- Quem, com intenção de os empregar como autênticos ou intactos, contrafizer ou falsificar selos, cunhos, marcas ou chancelas de qualquer autoridade ou repartição pública é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
2 – Quem, com a referida intenção, adquirir, receber em depósito, importar, ou por outro modo introduzir em território português, para si ou para outra pessoa, os objectos referidos no número anterior, quando falsos ou falsificados, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
3 – Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, utilizar sem autorização de que de direito, objectos referidos no número 1, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena e multa até 240 dias”.
No douto acórdão recorrido, a propósito, começa por fazer-se referência aos dois “contratos de trabalho” que foram forjados pelos arguidos e que continham, para além do mais um carimbo igual ao que era usado pelo M………. mas que era falso, porque a rubrica dele constante não era de nenhum dos funcionários desse organismo. Passou-se a análise do ‘dano’, sendo certo que o tipo legal em estudo é, manifestamente, um tipo de perigo e de perigo abstracto, pois que não exige, sequer, a ocorrência de um concretizado perigo, bastando-se com a mera possibilidade de ocorrência; ou seja, bastará que nos circunstancialismos psicológicos a que a norma faz expressa referência [dolo intencional] o agente contrafaça ou falsifique ‘selo, cunho, marca ou chancela’ de uso por autoridade ou repartição pública. Ora, foi apreendida ao arguido em causa, no seu escritório de advocacia, uma disquete contendo cinco documentos, entre eles um designado de ‘W……….’ «criado no dia 19/02/2002 pelas 00,36 horas, modificado nesse dia pelas 2:18 horas e impresso ainda nesse mesmo dia pelas 00:46 horas. Este documento reproduz uma folha A4 em branco, nela constando no seu canto inferior direito uma marca idêntica ao carimbo usada pelo M……….»; foi ainda provado que ele «actuou de modo livre, consciente e deliberado, ensaiando um modo de fazer reproduzir o selo a tinta de óleo resultante da aposição do carimbo legítimo da então Inspecção-Geral do Trabalho».
Face a tal factualidade, foi considerado que a conduta deste arguido constituía a prática de meros actos preparatórios, pelo que a sua conduta foi integrada na previsão da norma do artº 271º do CP.
Pretende o MP, na sua motivação, que a norma do artº 269º, 1, CP, não «exige a utilização do instrumento contrafeito apto a deixar marcas de uma autoridade pública, mas apenas que o mesmo tenha sido fabricado com intenção de ser utilizado como se fosse autêntico». Realça depois a natureza de crime de perigo, a que atrás fizemos já referência. Cremos que, neste pormenor, acertadamente.
O tipo em causa, verificada a acrescida exigência subjectiva feita pela norma em estudo (de um dolo qualificado), dá-se por preenchido perante o mero perigo constituído pela contrafacção, independentemente da concreta utilização dos meios a tal destinados.
A norma do artº 271º, referindo-se a actos preparatórios, «preparação da preparação» daquele crime de perigo (v. Comentário Conimbricense, tomo II, pag. 857), não tem aplicação ao caso, pois que se consumou o crime de perigo em causa; o agente, com a intenção prevista na norma, havia levado a cabo a contrafacção daquela chancela; ela encontrava-se pronta e capaz de levar a efeito a prática de crimes de dano, de resultado, não previstos na previsão legal. Ou seja, não se mostrava em falta nenhuma das características que haveria de dotar a ‘chancela’ em causa para efeitos de levar a cabo os seus atributos próprios ou atribuídos, as falsificações que ela potenciava, que ela era susceptível de produzir. Por isso, não pode falar-se em actos preparatórios mas antes em consumação do perigo típico. Ou seja, o momento de ilicitude, de negação objectiva de valores ínsito na previsão típica do artº 269º, 1, está consumado. Por isso, deve a conduta deste arguido ser integrada na respectiva previsão típica.
A previsão incriminadora deste tipo é a de prisão de 1 a 5 anos.
Na determinação da medida e do tipo de pena a aplicar ao agente são atendidas todas as circunstâncias que a favor dele ou contra ele militem, designadamente as necessidades de repressão e as premências de retribuição da conduta do arguido, em termos de prevenção especial.
E se é verdade que essas razões são exigentes até tendo em vista o fim de protecção da organização da nossa sociedade e do seu ordenamento legal, não podemos olvidar que, em todos os casos, as penas (tipo e medida) deverão sempre ser encontradas tendo em atenção o princípio da culpa, de retribuição.
Na concretização da pena a aplicar ao arguido B………., pela prática deste crime, teremos em consideração todas as circunstâncias referidas no acórdão recorrido, designadamente:
- a acentuada ilicitude;
- o dolo intenso;
- a culpa intensa do agente, advogado, que foi capaz de ultrapassar a barreira ética e criminal que essa condição lhe impunha de modo agravado, praticando um crime em que estão em causa bens atinentes à organização da nossa sociedade;
- a sua integração profissional, familiar e social; e
- a inexistência de antecedentes criminais conhecidos.
Atentos tais pressupostos e bem assim a referida moldura penal, cremos ajustada uma pena de 2 anos de prisão. Encontrada a medida da pena única, averiguemos se existem razões que justifiquem a sua não efectividade, mediante suspensão da respectiva execução.
Porque este arguido foi alvo de condenação pela prática de dois crimes, há que encontrar a pena única correspondente ao cúmulo jurídico, operação a efectuar de acordo com a previsão do artº 77º do CP. Assim, considerando a gravidade objectiva dos factos e a personalidade do agente, já atrás referidas e analisadas, e atentas essas penas singulares, de 1 ano e 6 meses de prisão (artº 256º, 1, a) e b), do CP) e de 2 anos de prisão (artº 269º, 1, CP), fixaremos em 2 anos e 9 meses a pena única, correspondente ao referido cúmulo.
Porque tal pena de prisão o permite, passaremos a averiguar se se impõe a sua efectividade ou se, ao invés, deve ela ver a sua execução suspensa.
Como escreveu Landrove (apud Carlos Suárez-Mira Rodrigues e outros, in ‘Manual de Derecho Penal. Tomo I., Parte General’, 2ª ed., pag. 446) mediante esta figura «o condenado fica dispensado da execução da pena prevista na sentença, mas debaixo da ameaça de que, se não cumpre determinadas condições durante um tempo especificamente assinalado, terá lugar a execução suspensa.»
Atentos todos os parâmetros atrás chamados á colação, o efeito ressocializador que se pretende tenha o instituto aqui em causa o grau de ilicitude do facto e da culpa do agente, etc.), há que formular um juízo de prognose, em termos de obter uma das seguintes conclusões, aliás referidas expressa ou implicitamente, na norma do referido artº 50º:
- ou ele (o juízo de prognose) é favorável (atenta a adequada e suficiente realização das finalidades da punição, satisfeitas mediante a mera censura do facto e a ameaça da prisão) e então é de sujeitar a execução da pena a uma suspensão;
- ou não é, e a pena deve ser efectiva.
Cremos que todas essas razões, devidamente conjugadas, criam uma convicção íntima e forte de que o processo de ressocialização do arguido será prosseguido mediante a aplicação de uma pena com execução suspensa, mostrando-se adequado o período fixado em primeira instância.
Relativamente ao crime de falsificação, único relativamente ao qual se poderia pôr a questão da opção pela alternativa pena de multa, cremos que as apontadas necessidades de prevenção e de reprovação impõe a opção pela pena de multa, já que essas exigências não serão prosseguidas mediante a aplicação de uma pena daquele tipo.
II – RECURSO DO ARGUIDO B………..
a) a questão da irregularidade por falta de observância da norma do artº 374º, 1, d), CPP.
Estatui esta norma que a sentença contém «a indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada»; por outro lado, resulta da norma do artº 380º, 1, a) e 3, CPP, que não ocorrendo nulidade da sentença, pode sempre o tribunal, mesmo o de recurso, sanar tal irregularidade, «quando possível». Ora verificada a ocorrência de tal falta no acórdão impugnado, oficiosamente procedemos à sua correcção, dele fazendo constar que o arguido agora em causa, apresentou contestação a fls. 986-7, aí concluindo não ter praticado os factos por cuja prática vem acusado.
Deste modo prático se ultrapassa a primeira questão suscitada pelo recorrente.
b) A questão da pretensa falta de fundamentação.
Dispõe, a propósito, o artº 374º, 2, já citado, que a fundamentação do acórdão «consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal», sob pena de nulidade de tal peça (artº 379º, 1, a)).
O dever de fundamentar as decisões judiciais tem por objectivo a salvaguarda do exercício democrático do direito de defesa, consagrado no artº 32º da CRP (que, por sua vez, é uma emanação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais – artº 205º). Reflexamente, este dever prende-se com a necessidade de tornar as sentenças em peças que, só por si, tornam explícita e compreensível a reacção da sociedade perante um ‘pedaço ou retalho de vida’ que por violar gravemente os princípio dirigentes da organização em sociedade é elevado à categoria de crime, merecedor de uma pena. Ou seja, a sentença, só por si, há-de explicar-se por si mesma, o seu texto há-de ser de tal modo claro que demonstre qual a sequência lógica seguida, quais os raciocínios efectuados, quais as regras da experiência ou do senso comum a que foi lançada mão. Não quer isto dizer que essa obrigação seja exigente ao ponto de tornar inviável a sua observância concreta; ou seja, o dever de fundamentar não obriga a explicar a análise a que se procedeu, o raciocínio efectuado, o juízo feito, ponto por ponto, bastando-se com a indicação das mesmas segundo uma visão global e compreensiva, indicando-as de um modo tanto quanto possível completo, ainda que sucinto, no dizer da lei. O que há-de resultar necessariamente da sentença é a indicação das provas e a sindicância sobre o respectivo valor relativo. «Através da indicação dos meios de prova e do seu exame crítico, efectuados na fundamentação, como o impõe o artº 374º, 2, CPP, é possível ao tribunal de recurso apreciar se a convicção do julgador está fundamentada num processo racional e lógico de valoração da prova.» (ac. STJ de 27/5/2004, CJS-II-211)
O tribunal recorrido procurou respigar da acusação e da contestação os factos que tinham relevância. Ora, e no que concerne aos factos de relevância imediata, o acórdão foi explícito em indicar as razões por que foram eles julgados provados ou não. O processo dinâmico, lógico e sequencial de formação da convicção do tribunal ‘a quo’ mostra-se suficientemente fundamentado.
O modo como a indicação probatória se encontra elaborada torna perceptíveis para os destinatários do acórdão as razões do decidido. No que concerne aos factos não provados, o aresto foi expresso em afirmar que relativamente a eles nenhuma prova se fez.
Por isso, não ocorre no caso a apontada nulidade do acórdão por falta de fundamentação, cominada no artº 379º, 1, a) do CP ou violação da garantia constitucional do artº 32º, 1, da CRP.
Ainda que se admita a eventual ocorrência de lapso, por não referência aos depoimentos das testemunhas apresentadas pela defesa, ficamos sem saber qual o resultado que o recorrente daí pretende extrair: - se, por um lado pretende que essa falta de fundamentação se refere aos factos ‘de abonação’ relativamente a ele dados como assentes, se a outros não dados como assentes e quais.
Por isso não vislumbramos a ocorrência da apontada irregularidade.
c) A questão da pretensa invalidade dos depoimentos para memória futura.
É referida por este recorrente a irrelevância dos depoimentos para memória futura das testemunhas D………. e E………., pois que à data não havia sido ainda constituído arguido.
Mas, relativamente a esta questão devemos atentar em que às concretas questões factuais que respeitam a tais duas testemunhas (cujos depoimentos foram, aliás, lidos em audiência), a convicção do tribunal recorrido não se cingiu apenas aos seus dois depoimentos, tomando também em atenção os depoimentos de outras testemunhas, deles confirmativos ou, pelo menos, corroborantes; basta ler atentamente a fundamentação de facto do acórdão. Ou seja, esses dois depoimentos prestados para memória futura não foram, só por si, determinantes da convicção do tribunal, tendo-se esta formado através da conjugação das diversas provas que refere.
Mas, e não obstante, este recorrente põe também em questão a validade desses depoimentos já que foram produzidos antes da sua constituição como arguido, ‘vetando-lhe’, assim, a faculdade de contraditório que a lei lhe concede. Dispõe a norma do artº 32º, 5, da CRP que «o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório». Deste dispositivo constam, assim, dois segmentos a que importa dar tratamento autónomo: - por um lado, a audiência de julgamento está sempre subordinada ao princípio do contraditório, também o estando os actos instrutórios «que a lei determinar». Ou seja, poderão existir, e existem, actos instrutórios em que não seja observado esse princípio constitucional.
Assim sendo, há que interpretar a norma do artº 271º, respeitante às declarações para memória futura, da qual resulta, sem margem para dúvidas, que nelas há que observar o referido princípio constitucional, até porque, nos termos do disposto nas disposições conjugadas dos artºs 355º, 1 e 2 e 356º, 2, a), do CPP, a prova desse modo obtida vale em julgamento. Acresce que no julgamento se procedeu à leitura dessas declarações.
O princípio do contraditório traduz-se na configuração da audiência de julgamento e dos actos instrutórios que a lei determinar em termos de um debate ou discussão entre a acusação e a defesa; quer uma quer a outra podem explanar as sua razões de facto e de direito, indicar provas, sindicar as provas carreadas pela outra, alegar sobre o valor que a cada uma deve ou não ser atribuído. O art.º 327º n.º 2 do Código Processo Penal é expresso: os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal. Daí que, de modo claro, o art.º 355º do CPP proiba a valoração de quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
De tais premissas é licito extrair uma primeira conclusão: a de que, em caso algum, esses depoimentos prestados para memória futura podem ser excluídos, na fase do julgamento, dessa apreciação contraditória; cada um dos sujeitos processuais pode, e o tribunal deve, através de outros meios de prova produzidos na audiência, procurar obter confirmação/infirmação dessas provas antecipadas, por confronto, análise crítica, descredibilização, corroboração, etc.. Deste jogo dialéctico entre os diversos agentes processuais com os plúrimos meios de prova produzida (pessoal, pericial, documental, de exame, etc.) se há-de, em termos de conclusão do silogismo, atribuir ou retirar valor probatório à prova pessoal antecipadamente produzida. E, nesse aspecto, o acórdão recorrido é exemplar, já que demonstrou o raciocínio produzido a tal propósito na ocasião própria do aresto, ou seja, na indicação fáctica, fundamentação, nos termos já referidos.
Dispõe o art.º 271º n.º 1 do Código Processo Penal que em caso de (...) deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento (...) o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, (...) pode proceder à sua inquirição, no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
A data e o local da prestação desse depoimento antecipado é levada ao conhecimento de diversos sujeitos processuais, entre os quais o arguido e o seu defensor, «para que possam estar presentes, se o desejarem» (artº 271º, 2).
Ou seja, no caso presente, o contraditório exerce-se mediante a mera notificação, já que a presença no acto é facultativa.
Por outro lado, a norma processual, como todas as normas de cariz adjectivo, é elaborada para a normalidade das situações, ou seja, no caso concreto, do conteúdo da norma em causa resulta que ela foi pensada para aqueles casos em que existe já arguido constituído. Dada a natureza excepcional da norma em questão, (por confronto com a demais prova pessoal produzida em inquérito, que não é valorada na audiência em termos principais, só o podendo ser incidentalmente, nos casos contados em que a lei o prevê), logo se constata que o que determina a possibilidade dessa valoração é a ocorrência de um ‘periculum in mora’ que poderá levar à perda dessa prova – doença incapacitante ou ausência que se prevê se prolongue até ao julgamento. Nesses casos, e verificados esses pressupostos, deve avançar-se para a produção dessas provas, com a garantia da sua jurisdicionalização através da obrigatória intervenção do juiz de instrução.
A urgência que subjaz à norma pode levar a que a prova antecipada tenha lugar numa ocasião em que não existe ainda arguido constituído, seja porque ocorre incompatibilidade temporal e de oportunidade, dada a eminência da ausência ou dos efeitos da doença, seja porque o agente é pura e simplesmente desconhecido, seja porque o agente, sendo embora conhecido, não é localizavel.
No caso presente a investigação estava ainda no seu início e havia que acautelar a prova, pois que como consta da resposta do MP ao recurso, porque as testemunhas eram de nacionalidade marroquina «tinham entrado ilegalmente no nosso país, estavam na situação de indigência e não tinham possibilidades de se legalizar em Portugal», pelo que a todo o momento se podiam ausentar, inviabilizando, por completo, a prova dos factos respectivos em julgamento. Daí a oportunidade da tomada dos depoimentos antecipados.
De todo o exposto parece resultar que não é condição ‘sine qua non’ da produção de prova antecipada a prévia constituição de arguido, pelas razões já atrás referidas. Por isso, cremos que a exigência legal se satisfez mediante a presença da defensora nomeada para o co-arguido, já então detentor dessa qualidade, pois que, deste modo, esta poderia observar e pugnar pela observância das garantias de defesa e da legalidade, o que estatutariamente lhe está acometido. As considerações probatórias feitas pelo recorrente (a propósito dos depoimentos das testemunhas F………. e G………. e da sua potencialidade para confirmar os depoimentos para memória futura) são perfeitamente anódinas, já que desgarradas da consideração conjunta da prova, ao contrário do que fez o tribunal recorrido, que o fez analisando-a criticamente. Relativamente a cada uma dessas testemunhas, a fundamentação do acórdão é exuberante na referência sumária aos pormenores dos mesmos que foram considerados. Os depoimentos das duas testemunhas D………. e E………. não foram considerados isoladamente, ao contrário do que afirma o recorrente, antes conjugados com outras provas, designadamente os depoimentos das testemunhas F………. e G………. e ainda com o objecto da apreensão.
Por tal ordem de razões, não ocorre qualquer invalidade das declarações para memória futura em referência.
d) A questão do erro notório na apreciação da prova.
Dispõe o artº 127º do CPP que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»
Consagrando esta norma o princípio da livre apreciação da prova, desde já devemos acrescentar que o poder/dever que daí resulta não é arbitrário mas, antes, vinculado a um fim que é o do processo penal, ou seja, a descoberta da verdade. Por isso, mostrando-se devidamente fundamentado, o exercício desse princípio torna-se insindicável, desde que não demonstre raciocínios inadmissíveis, ilógicos ou contraditórios, face às regras da experiência comum, da normalidade e do bom senso, que é o senso comum.
Ora, analisando a fundamentação de facto do acórdão recorrido, e confrontada com as provas produzidas na fase de julgamento, logo se vislumbra que aí é feita suficiente referência aos meios de prova que foram atendidos, fazendo-se ainda demonstração dos raciocínios básicos efectuados na formação da convicção do tribunal, por referência aos diversos meios de prova pessoal, de reconhecimento, documental e pericial. O juízo crítico final resultou do confronto entre os diversos meios de prova produzidos e bem assim da valoração intrínseca que, de acordo com as regras processuais aplicáveis e àquele poder de livre apreciação, o tribunal colectivo entendeu ser o que decorria de um processo racional e lógico de formação da convicção, no qual tiveram interferência cambiantes de normalidade, razoabilidade e de senso comum. E não se vislumbra que a conclusão do silogismo judiciário haja sido tirada ao arrepio dessas regras e bem assim do artº 127º, do CPP, antes se afigurando que a convicção se mostra formada assente em elementos objectivos e ‘para além de qualquer dúvida razoável’.
Não obstante, a questão da ocorrência dos vícios do nº 2 do artº 410º merece uma autónoma análise, por serem estes sempre atendíveis.
Todos os vícios referidos no nº 2 do artº 410º, para serem atendíveis, devem resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum». Ou seja, o vício há-de ressaltar do próprio contexto da sentença, não sendo lícito, neste pormenor, o recurso a elementos externos de onde esse vício se possa evidenciar.
O vício de erro notório na apreciação da prova traduz-se numa falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, se chamado a apreciar a prova produzida e a convicção com base nela formada; esse erro deve ressaltar de modo claro e evidente do texto da própria decisão. O seu contexto logo evidenciará que, face às regras da interpretação lógica, do bom senso e da experiência do homem normal, a conclusão deveria ser outra, face às premissas referidas.
Pretende este recorrente que tal vício ocorre relativamente ao depoimento da testemunha J………. quando, o que demonstra, no seu arrazoado, é coisa bem diversa, não integrável naqueles vícios, designadamente que não está de acordo com a convicção formada pelo tribunal, o que, manifestamente, lhe está vedado, pelas razões adiantadas, já que não pode contrapor àquela a sua convicção, pretendendo ser esta melhor que a do tribunal.
Por isso, este vício não ocorre, não resultando, manifestamente, do texto da decisão recorrida.
e) O pretenso vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
O vício de contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão, verifica-se quando há uma incompatibilidade, que do texto da própria decisão recorrida se revela, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, seja de concluir que a correcta interpretação daquela conduza a uma decisão contrária à adoptada ou quando, nos mesmos termos, seja de concluir que a decisão não é clara, por se excluírem mutuamente os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido na fundamentação de direito e decidido no dispositivo; e há contradição entre os factos quando os provados e/ou os não provados se contradizem entre si ou estão descritos de forma a constituírem negação uns dos outros.
Mais uma vez, o recorrente faz apelo inconsequente a um dos vícios do artº 410º, 2, CPP, sem se dar, sequer, ao trabalho de concretizar a sua alegação; com efeito, e se bem o entendemos, pretende que os factos assentes não permitirão a sua condenação pela prática do artº 271º, CP. Porque esta questão foi já por nós atrás tratada, no âmbito da apreciação do recurso interposto pelo MP, para aí remetemos, apenas concluindo que tal vício não ocorre. A conduta provada do arguido é integrável na previsão do artº 269, 1, CP.
As considerações levadas a efeito pelo recorrente, de seguida, a propósito da comparação entre a reprodução do carimbo do M……., que lhe foi apreendida, e os carimbos que constam nos doc.s de fls. 34, 35, 44 e 45 (e respectivas discrepâncias) são inócuas, pois que vimos já que aquele crime do artº 269º é de perigo, consumando-se com a mera detenção do mesmo, com intenção de o usar, não sendo necessário à sua consumação que a ‘marca’ objecto da protecção legal seja, efectivamente, aposta num qualquer documento. Acontecendo tal, e por estar em causa a defesa de diferente bem jurídico, será o agente objecto de nova incriminação autónoma.
Termos em que se acorda nesta Relação em negar provimento ao recurso do arguido B………. e em conceder parcial provimento ao recurso do MP, absolvendo o mesmo arguido relativamente ao crime da previsão do artº 271º, CP, por que fora condenado, e condenando-o numa pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática de um crime de contrafacção de marcas ou chancelas, p.p. pelo artº 269º, 1, CP, mantendo-se, no mais, o acórdão recorrido. Refazendo o cúmulo jurídico, nos termos atrás referidos, vais este arguido condenado numa pena única de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, cuja execução vai suspensa por um período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses).
O arguido B………. pagará as custas do recurso, com taxa de justiça fixada em 8 UC’s.
O MP e o recorrido estão isentos de custas.
Porto, 23 de Maio de 2007
Manuel Jorge França Moreira
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
José Manuel Baião Papão