I - As situações sobre que incidiram os acórdãos em confronto são diferentes. No acórdão recorrido, pese embora tenha sido referido o art. 380.º, do CPP, a verdade é que, factualmente, a recorrente arguiu nulidades que foram apreciadas pela relação. A nulidade pode importar modificação essencial da decisão impugnada. A nulidade pode ser suprida conforme o art. 379.º, n.º 2, do CPP, a exemplo do que se passa no processo civil, conforme o n.º 2 do art. 617.º do CPC. Sendo suprida pode modificar-se o espectro do acervo a impugnar.
II - A recorrente antes de conhecer a decisão da relação sobre a arguição de nulidade interpôs recurso para o STJ. Nessa altura, em 03-01-2017, o acórdão de 23-11-2016 ainda poderia ser alterado em função de eventual procedência de arguição das nulidades suscitadas pela recorrente. A decisão não estava estabilizada. Apenas ocorrendo a estabilização com o acórdão de 11-01-2017, que indeferiu as nulidades arguidas. Recorreu prematuramente.
III - Diferentemente, no caso do acórdão fundamento, a recorrente pedira correcção de lapsos que não demandavam modificação essencial da decisão, pelo que não tinha de esperar pela decisão da relação. Não havendo suspensão do prazo, teria de recorrer logo. Apenas após notificação do acórdão aclarando da relação, muito para além do prazo então cabido de 20 dias. Recorreu tardiamente.
IV - A situação factual que esteve na base da decisão proferida no acórdão fundamento não é idêntica àquela que estava em apreciação e conduziu à decisão proferida no acórdão recorrido. Sendo diversas as situações não ocorrem asserções antagónicas nos acórdãos em confronto; as soluções não são, não podem ser, conflituantes, porque as questões sobre que incidiu a análise se situavam em margens em que não era possível o contacto. Não se verifica, pois, oposição de julgados.
A recorrente invoca oposição entre a solução deste acórdão e a preconizada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Janeiro de 2011, proferido no âmbito do processo n.º 882/05.0TELSB-I.L1, transitado em julgado, indicado como acórdão fundamento, estando em causa a intempestividade de recurso.
Alega a recorrente existir uma manifesta oposição de julgados quanto à questão de direito essencial que constitui parte do objeto do presente recurso, qual seja a de saber se a apresentação de reclamação suspende ou não o prazo de interposição do recurso, terminando com as seguintes conclusões:
A - O Acórdão proferido nos presentes autos sustenta que o recurso interposto pela assistente foi extemporâneo tendo dado entrada antes do tempo.
B - Considerou o acórdão recorrido que a apresentação de reclamação perante o Tribunal da Relação do … suspendeu o prazo de interposição do recurso.
C - Sendo o Acordão recorrível a invocação de nulidades deve constar do recurso tal como resulta do n.º 2 do artigo 379.º do C.P.Penal e também do artigo 617.º do C.P.C
D - Nestas circunstâncias a invocação de nulidade não suspende o prazo de interposição do recurso
E - O Recurso foi interposto no prazo de 30 dias a contar da notificação do Acórdão do Tribunal da Relação
F - O Tribunal da Relação não se pronunciou sobre as nulidades, ou não as conheceu, considerando que o que aí estava invocado era matéria para recurso.
G- O prazo não se suspendeu, as alegações foram apresentadas em tempo e reagiam ao Acórdão proferido
H - O Tribunal da Relação do … admitiu o recurso por despacho de 25 de Janeiro
I - A decisão da reclamação fora notificada a 11 de Janeiro, pelo que a ter-se suspendido o prazo para recorrer a assistente ainda estava em tempo para o fazer.
J - Com a admissão do recurso interposto do Acórdão da Relação, foi reconhecido que era desse acórdão que estava a ser interposto recurso.
K - O Principio da confiança deixa claro que a assistente não tinha motivos para considerar o seu recurso antes do tempo.
L - A reclamação não é subsumível ao artigo 380º do C.P.Penal, atentos os seus fundamentos, mas mesmo que o fosse não suspenderia o prazo como decorre do Acordão do Tribunal da Relação do … de 29-1-2014 (processo 110/04.5TALDS.P1)
M - O Acórdão fundamento do Supremo Tribunal de Justiça 19-1-2011, proferido no âmbito do processo 882/05.0TAOLH.E1.S1, cujo relator é PIRES DA GRAÇA, diz o seguinte:“ Sendo passível de recurso o Acórdão da Relação, a alegada omissão de pronúncia, constitui nulidade a ser arguida em recurso, que deveria ter sido interposto no prazo de vinte dias a contar do depósito desse acórdão na Secretaria”
N - Assim sendo, tendo o Tribunal da Relação admitido o recurso, sendo o Acórdão recorrível, as nulidades invocadas haveriam de ser conhecidas no âmbito do recurso, pelo que o prazo para interposição era o que o assistente considerou e não outro.
O - Considerar extemporâneo recurso interposto no prazo de trinta dias após a notificação do acórdão recorrido, viola o artigo 32º da CRP
P - Tivesse a assistente interposto recurso após o decurso do prazo contado da notificação da decisão, teria sido julgado extemporâneo à luz do acórdão fundamento mas também á luz daquele da Relação do Porto igualmente invocado.
Q - A citada jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é contraditória sendo necessário uniformizá-la no sentido seguinte:
I - A invocação em reclamação de nulidade que possa e deva ser feita no âmbito de recurso (e no caso dos autos a Relação do Porto defendeu que a matéria da reclamação seria para recurso), não tem o efeito de suspender o prazo para interposição de recurso.
II - A apresentação de reclamação invocando nulidades, à cautela, seguida de apresentação de recurso no prazo de trinta dias a contar da notificação do acórdão, não justifica que se considere que o recurso foi interposto antes do tempo, sobretudo quando o Tribunal recorrido o recebe e o julga apresentado em tempo.
III - A interposição do recurso dentro do prazo e trinta dias a contar da notificação do Acórdão nunca pode ser considerado extemporâneo.
Junta: cópia de rosto do acórdão fundamento.
Notificada nos termos do artigo 439.º, n.º 1, do CPP, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal apresentou a resposta de fls. 96 a 100, pronunciando-se no sentido da rejeição do recurso por se não verificar oposição de julgados entre acórdão recorrido e acórdão fundamento.
1 – A Sociedade AA, Ldª. interpôs recurso extraordinário para Fixação de Jurisprudência do Acórdão do STJ, proferido em 27/4/2017, no processo 833/03.6TAVFR.P4.S1-a, porquanto, em seu entender, decidiu, a mesma questão de direito do que a tirada no Ac. deste Venerando Tribunal, de 19/1/2011, p. 882/05.0TAOLH.E1.S1.3ª assentando em soluções opostas.
2 – Em longo arrazoado, algo confuso, alega a recorrente que enquanto o Acórdão recorrido decidiu que o recurso interposto pelo assistente foi extemporâneo, porquanto a apresentação de reclamação perante o Tribunal da Relação do Porto da decisão por este antes proferida suspendeu o prazo de interposição de recurso, o Acórdão Fundamento decidiu que a interposição de reclamação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora não suspende o prazo de interposição de recurso.
…
3 – Do confronto dos dois Acórdãos, Recorrido e Fundamento, não resulta haver oposição de julgados.
3.1 – Os requisitos taxativos, de que depende o prosseguimento do recurso extraordinário de revisão de sentença, constam dos arts. 437.º e 438.º, ambos do CPP.
A jurisprudência pacífica e sedimentada deste Venerando Tribunal é no sentido de que “(…) A lei processual faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência da existência de determinados pressupostos uns de natureza formal e outros de natureza substancial- artsº 437º nºs 1, 2 e 3 e 438º nºs 1 e 2 do CPP. Entre os primeiros a lei enumera:
- a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão recorrido;
- a invocação de acórdão anterior ao recorrido que sirva de fundamento ao recurso;
- a identificação do acórdão-fundamento com o qual o recorrido se encontra em oposição, indicando-se o lugar da sua publicação, se estiver publicado;
- o trânsito em julgado de ambas as decisões.
Entre os segundos conta-se:
- a justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência;
- a verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões.
Segundo a doutrina seguida no STJ, os requisitos substanciais ocorrem quando:
- as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito;
- as decisões em oposição sejam expressas;
- as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, ambas as decisões idênticos. (…)” Ac. do STJ, de 3/10/2013, Pº 5570/10.2TBSTB-A.S1.
3.2 - O recurso foi interposto em tempo e com legitimidade e, de acordo como que dispõe o art. 437.º, n.º 3, do CPP, os acórdãos reputam-se proferidos no domínio da mesma legislação quando durante o intervalo da sua prolação, não tiver intervindo modificação que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão controvertida.
3.3 - A oposição de julgados susceptível de fazer prosseguir o processo para fase mais avançada pressupõe a verificação de uma manifestação explícita de julgamento contraditório sobre a mesma questão.
A oposição há-de respeitar às decisões e não aos fundamentos.
O que importa, agora indagar se o Supremo Tribunal de Justiça, nos dois acórdãos, transitados em julgado, proferiram julgados no domínio da mesma legislação.
4 - Revertendo ao caso concreto, constata-se que a factualidade que subjaz à decisão de direito em cada um dos Acórdão pretensamente em confronto, é diferente, por isso que os fundamentos das respectivas decisões são diferentes, mas chegando à mesma conclusão de direito, a rejeição do recurso por extemporaneidade.
4.1 - O Acórdão fundamento, após um excurso sobre a interpretação e aplicação das normas processuais cíveis eventualmente aplicáveis e as normas processuais penais aplicáveis, decidiu que a reclamação para o Tribunal Superior de Acórdão por este proferido não suspende o prazo de interposição do recurso no caso de terem sido invocados meros lapsos de escrita, erro, obscuridade ou ambiguidade, cuja eliminação não importa modificação essencial da sentença. Por outro lado,
A reclamação suspende o prazo de interposição de recurso no caso de terem sido invocadas nulidades da decisão, por omissão de pronúncia, obscuridade, erro, lapso ou ambiguidade cuja eliminação importa modificação essencial da sentença.
4.1.1 - No caso do Acórdão Fundamento, haviam sido arguidas, em reclamação da decisão, erros e lapsos que não importavam alteração essencial da sentença e, por isso, o prazo de interposição do recurso contava-se a partir da notificação do seu teor.
O ali recorrente só interpôs recurso após notificação da decisão sobre a reclamação apresentada, muito para além do prazo de interposição de 30 dias a contar da notificação da decisão recorrida.
4.1.2 - No caso dos presentes autos, a recorrente reclamou, suscitando a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, cuja decisão do Tribunal reclamado poderia provocar alteração ou modificação essencial do teor da mesma, pelo que a apresentação daquela reclamação suspendeu o prazo de interposição do recurso.
4.2 - Recorrendo a ora Assistente antes de proferida decisão sobre a reclamação da sentença que apresentara, o recurso para este Venerando Tribunal de Justiça foi rejeitado, por intempestivo.
4.3 - As situações de facto não são semelhantes em ambos os Acórdãos, recorrido e fundamento, pelo que alicerçaram decisões de direito adequadas a cada uma das situações concretas diferentes.
5 - Pelo exposto, não se verifica, no caso, oposição de julgados, nos termos e para os efeitos dos arts. 437.º e 438.º do CPP e da Jurisprudência sedimentada deste Venerando Tribunal, pelo que deve ser rejeitado o presente recurso, nos termos do art. 441.º, n.º 1, 1ª parte, do CPP.
No acórdão recorrido foi rejeitado o recurso para o STJ por apresentado antes da decisão sobre as invocadas nulidades.
O acórdão recorrido sustentou a sua decisão no sentido de o recurso ser prematuro.
Nos termos do acórdão fundamento, o pedido de aclaração não suspende o prazo.
Apreciando.
Extrai-se do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 5 de Dezembro de 2012, no processo n.º 105/11.2TBRMZ.E1-A.S1, desta 3.ª Secção:
“O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência constitui uma espécie de recurso classificado como «recurso normativo», por contraposição com o denominado «recurso hierárquico»; no recurso normativo, o objecto é constituído pela determinação do sentido de uma «norma», com força quase obrigatória e, de qualquer modo, geral e abstracta, a benefício directo dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando a interpretação e o sentido de uma norma ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente”.
O recurso para fixação de jurisprudência é um recurso excepcional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objectivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.
Do carácter excepcional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respectiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários.
Como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembro de 1996, proferido no processo n.º 47.750, publicado na CJSTJ 1996, tomo 3, pág. 143, face à natureza excepcional do recurso, a interpretação das normas que o regulam deve fazer-se apertis verbis, ou seja, com o rigor bastante para o conter no seu carácter extraordinário e não o transformar em mais um recurso ordinário na prática.
Ou, como se refere no acórdão deste mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Janeiro de 2003, proferido no processo n.º 1775/02, da 5.ª Secção, que citámos no acórdão de 12 de Março de 2008, no processo n.º 407/08-3.ª Secção, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 253 (5) e no acórdão de 19 de Março de 2009, processo n.º 306/09-3.ª. Secção, sendo o recurso de fixação de jurisprudência um recurso extraordinário e, por isso, excepcional, deve entender-se que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras deste recurso deve fazer-se com as restrições e o rigor inerentes (ou exigidas) por essa excepcionalidade.
Como referia o acórdão de 8 de Março de 2007, proferido no processo n.º 325/07, da 5.ª Secção “Quando se entra no domínio dos recursos extraordinários todos estarão cientes de que o trilho é excepcional, não apenas quanto à sua emergência e tramitação, como no rigor das suas exigências formais para com todos os sujeitos processuais”.
No mesmo sentido pronunciaram-se os acórdãos de 26-04-2007, processo n.º 604/07-5.ª; de 05-09-2007, processo 2566/07-3.ª, por nós relatado; de 14-11-2007, processo n.º 3854/07-3.ª; de 23-01-2008, processo n.º 4722/07-3.ª; de 12-03-2008, no processo n.º 407/08-3.ª, por nó relatado, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 253; de 26-03-2008, processo n.º 804/08-3.ª; de 19-03-2009, por nós relatado no processo n.º 306/09; de 15-09-2010, por nós relatado no processo n.º 279/06.4GGOAZ.P1-A.S1-3.ª; de 30-01-2013, por nós relatado no processo n.º 1935/09.0TAVIS.C1-A.S1-3.ª; de 21-10-2015, por nós relatado no processo n.º 1/12.6GBALQ.L1-A.S1-3.ª; de 20-04-2016, processo n.º 22/03.0TELSB.L1-A.S1-3.ª; de 21-09-2016, processo n.º 2487/10.4TASXL.L1-A.S1-3.ª; de 9-11-2016, processo n.º 196/14.4JELSB - G - L1.S1; de 19-04-2017, por nós relatado no processo n.º 175/14.1GTBRG.G1-A.S1; de 27-04-2017, por nós relatado no processo n.º 559/14.5TABRG.G1-A.S1; de 15-11-2017, por nós relatado no processo n.º 3737/09.5TDLSB.L2.E1-B.S1, da 3.ª Secção.
E de igual modo no recurso de decisão contra jurisprudência fixada, como se pode ver no acórdão de 5 de Janeiro de 2011, proferido no processo n.º 86/08.0TAMFR.L1-A.S1-3.ª, na confluência deste recurso com o previsto no artigo 446.º do CPP, por estar em causa o trânsito em julgado do AUJ e a respectiva eficácia externa emprestada pela publicação no Diário da República, com voto de vencido, afirma-se: “A lei estabeleceu certos e determinados requisitos para a interposição do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. Pelo carácter excepcional deste recurso, que impugna decisões transitadas em julgado, estes requisitos são insusceptíveis de «adaptação», que poderia por em causa interesses protegidos pelo caso julgado, fora das situações expressamente previstas na lei, pelo que se não lhe aplica o vertido no art. 265.º-A, do CPC”). Mais recentemente, no mesmo sentido, o acórdão de 6-04-2016, por nós relatado no processo n.º 521/11.0TASCR.L1-A.S1 e o acórdão de 1-02-2017, por nós relatado no processo n.º 446/07.3ECLSB.L1.S1.
Aliás, idêntico grau de exigência se coloca nos recursos extraordinários de revisão de sentença, como assinalámos nos acórdãos de 8 de Janeiro de 2015, proferido no processo n.º 1594/01.9TALRS.GF.S1, de 12-10-2016, processo n.º 1265/10.5JAPRT-J.S1, de 17-05-2017, processo n.º 53/14.4PTVIS-A.S1, de 7 de Junho de 2017, processo n.º 40/11.4GTPTG-B.S1, de 30-05-2018, processo n.º 442/12.9PAENT-E.S1, de 20-06-2018, processo n.º 1014/11.0PHMTS-B.P1.S1 e de 27-06-2018, processo n.º 1108/12.5PCSNT-A.S1.
Estabelece o artigo 437.º do Código de Processo Penal, na redacção dada pela 15.ª alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, e intocado nas subsequentes alterações:
1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5. O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.
Nos termos do n.º 1 do artigo 438.º do mesmo Código, o recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
O n.º 2 do mesmo preceito contempla a necessidade de observância de determinados requisitos, como o recorrente identificar o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, devendo justificar a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
O “Assento” n.º 9/2000, de 30 de Março de 2000, publicado no Diário da República, I Série - A, de 27 de Maio de 2000, fixou jurisprudência no sentido de que, no requerimento de interposição de recurso deveria constar, sob pena de rejeição, para além dos requisitos exigidos no n.º 2 do artigo 438.º, o sentido em que deveria fixar-se a jurisprudência cuja fixação era pretendida.
O acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 5/2006, de 20 de Abril de 2006, publicado no Diário da República, I Série - A, de 6 de Junho de 2006, que reputou ultrapassada a jurisprudência assim fixada, procedeu ao seu reexame, e fixou-a no sentido de que no requerimento de interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência o recorrente ao pedir a resolução do conflito não tem de indicar o sentido em que deve fixar-se jurisprudência.
Sendo basicamente necessário o confronto de dois acórdãos que relativamente à mesma questão de direito assentem em soluções opostas, o artigo 437.º do Código de Processo Penal faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência da existência de determinados pressupostos e o artigo 438.º identifica o tempo, o modo e o efeito da interposição do recurso.
Vejamos se é tempestivo o recurso.
O acórdão recorrido foi proferido em 27-04-2017, tendo sido objecto de recurso para o Pleno, não admitido, culminando com a decisão sumária do Tribunal Constitucional de 3-10-2017.
Da certidão de fls. 76, colhe-se que a decisão sumária de 3-10-2017 foi notificada ao Ministério Público por termo nos autos em 3-10-2017 e aos restantes sujeitos processuais, na pessoa dos seus mandatários, por via postal registada expedida na mesma data.
De acordo com o n.º 1 do artigo 105.º do Código de Processo Penal (Prazo e seu excesso): “Salvo disposição legal em contrário, é de 10 dias o prazo para a prática de qualquer acto processual”.
Sendo a carta para notificação expedida em 3-10-2017, a recorrente presume-se notificada, nos termos do artigo 113.º, n.º 2, do CPP, na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, em vigor à data (e anterior à redacção dada ao preceito pela Lei n.º 1/2018, de 29 de Janeiro, Diário da República, 1.ª série, n.º 20, de 29-01-2018), no dia 9 de Outubro de 2017 – terceiro dia útil posterior ao do envio –, sendo os três dias úteis os dias 4, 6 e 9 de Outubro (segunda feira), pelo que tal decisão transitou em julgado decorridos 10 dias daquela notificação, ou seja, em 19 de Outubro de 2017.
Tendo o acórdão recorrido transitado em julgado em 19 de Outubro de 2017, isso significa que os 30 dias hábeis para o presente recurso extraordinário perfizeram-se no dia 18 de Novembro de 2017.
O requerimento de interposição do presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência deu entrada no Tribunal, via fax, em 14 de Novembro de 2017, conforme fls. 2, canto superior esquerdo e certidão de fls. 76.
Sendo fundamento do prosseguimento dos autos a interposição nos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado do acórdão recorrido, tal requisito mostra-se preenchido, pois o recurso deu entrada com observância daquele período temporal.
Há que concluir, portanto, que o recurso é tempestivo.
Como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1989, in AJ, n.º 2, «É indispensável para se verificar a oposição de julgados:
a) – que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes (e não apenas contraposição de fundamentos ou de afirmações) para a mesma questão fundamental de direito;
b) – que as decisões em oposição sejam expressas (e não implícitas);
c) – que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.
A expressão “soluções opostas” pressupõe que nos dois acórdãos é idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos».
Segundo o acórdão de 25 de Setembro de 1997, proferido no processo n.º 684/97-3.ª, in Sumários de Acórdãos do STJ, Gabinete de Assessoria, n.º 13, pág. 142, são pressupostos da admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência na oposição de acórdãos da mesma Relação:
- existência de soluções opostas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento;
- relativamente à mesma questão de direito;
- no domínio da mesma legislação;
- identidade das situações de facto contempladas nas decisões em confronto; e
- julgados explícitos ou expressos sobre idênticas situações de facto.
No que respeita aos requisitos legais (decisões opostas proferidas sobre a mesma questão de direito e identidade de lei reguladora - requisitos resultantes directamente da lei), a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de forma uniforme e pacífica, aditou, de há muito e face ao disposto então no artigo 763.º do Código de Processo Civil, a incontornável necessidade de identidade dos factos contemplados nas duas decisões e de decisão expressa, não se restringindo à oposição entre as soluções ou razões de direito.
Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Novembro de 1966, proferido no processo n.º 61.536, publicado no BMJ n.º 161, pág. 354, não há oposição que legitime o recurso para o Tribunal Pleno quando o acórdão invocado em oposição só implicitamente se pronunciou sobre a questão controvertida.
Como se extrai do acórdão de 23 de Maio de 1967, proferido no processo n.º 61.873, in BMJ n.º 167, pág. 454, de entre os requisitos de seguimento de um recurso para o Tribunal Pleno, era “indispensável, ainda, segundo a orientação deste Supremo Tribunal, que sejam idênticos os factos contemplados nos dois acórdãos e que em ambos sejam expressas as decisões”.
Neste sentido, podem ver-se ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 1963, BMJ n.º 124, pág. 633; de 25 de Maio de 1965, BMJ n.º 147, pág. 250; de 08 de Fevereiro de 1966, BMJ n.º 154, pág. 263 e de 21 de Fevereiro de 1969, BMJ n.º 184, pág. 249.
Como se diz no acórdão deste STJ de 13-01-2000, processo n.º 1129/99, “Para haver oposição de acórdãos, é indispensável que sejam idênticos os factos neles contemplados e que em ambos a decisão seja expressa, isto é, a questão fundamental de direito resolvida pelos arestos em sentido contrário deve ter sido por eles directamente examinada e decidida, não sendo suficiente que num acórdão possa ver-se aceitação tácita de doutrina contrária à enunciada no outro”.
Como se extrai do acórdão de 10-10-2001, proferido no processo n.º 1070/01- 3.ª Secção, as expressões normativas soluções opostas relativas à mesma questão de direito constantes do artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, exigem que essa mesma questão integre o objecto concreto e directo das duas decisões, objecto naturalmente fundado em circunstancialismo fáctico essencialmente idêntico do ponto de vista dos seus efeitos jurídicos.
Segundo o acórdão de 13 de Fevereiro de 2008, processo n.º 4368/07-5.ª Secção, a exigência de soluções antagónicas pressupõe identidade de situações de facto, pois não sendo elas idênticas, as soluções de direito não podem ser as mesmas.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem sido constante neste sentido ao longo do tempo - cfr. acórdãos de 11-07-1991, processo n.º 42.043; de 26-02-1997, processo n.º 1173, SASTJ, n.º 8, pág. 102; de 06-03-2003, processo n.º 4501/02-3.ª, in CJSTJ 2003, tomo 1, pág. 228; de 28-09-2005, processo n.º 642/05-3.ª, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 178; de 18-10-2006, processo n.º 3503/06-3.ª; de 23-11-2006, processo n.º 3032/06-5.ª; de 10-01-2007, processo n.º 4042/06-3.ª; de 06-02-2008, processo n.º 4195/07-3.ª; de 27-02-2008, processo n.º 436/08-3.ª; de 27-03-2008, processo n.º 670/08-5.ª; de 03-04-2008, processo n.º 4272/07-5.ª, in CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 194; de 16-09-2008, processo n.º 2187/08-3.ª; de 02-10-2008, processo n.º 2484/08-5.ª; de 08-10-2008, processo n.º 2807/08-5.ª; de 12-11-2008, processo n.º 3541/08-3.ª, CJSTJ 2008, tomo 3, pág. 221; de 12-02-2009, processo n.º 3542/08-5.ª; de 15-04-2009, processo n.º 3263/08-3.ª; de 01-10-2009, processo n.º 107/07.3GASPS-B.C1-A.S1-3.ª; de 10-02-2010, processo n.º 583/02.0TALRS.L1-A.S1-3.ª, de 18-02-2010, processo n.º 12.323/03.2TDLSB.L1-A.S1-5.ª; de 03-03-2010, processo n.º 6965/07.4TDLSB.L1-A.S1-3.ª; de 24-10-2013, processo n.º 1/03.7PILSB.CS1-5.ª; de 13-02-2014, processo n.º 1527/08.1GBABF.E1-A.S1-5.ª (Necessário que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos. Sempre que as decisões, recorrida e fundamento, partam de diferentes realidades de facto não têm como efeito fixar soluções diferentes para a mesma questão de direito) e n.º 1006/09.PAESP.P1.-B.S1-5.ª (Não se pode defender que a mesma factualidade tenha de corresponder a uma identidade absoluta).
Explicitam os citados acórdãos de 03-04-2008, de 02-10-2008, de 08-10-2008 e de 12-02-2009, todos do mesmo Relator, que a expressão “soluções opostas” «pressupõe que nos dois acórdãos seja idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos; se nas decisões em confronto se consideraram idênticos factores, mas é diferente a situação de facto de cada caso, não se pode afirmar a existência de oposição de acórdãos para os efeitos do n.º 1 do art. 437.º do CPP».
Segundo o acórdão de 13 de Fevereiro de 2008, proferido no processo n.º 4368/07-5.ª, a exigência de soluções antagónicas pressupõe identidade de situações de facto, pois não sendo elas idênticas, as soluções de direito não podem ser as mesmas.
E de acordo com o acórdão de 10 de Julho de 2008, processo n.º 669/08-5.ª e de 25 de Março de 2009, processo n.º 477/09-5.ª, o recurso para fixação de jurisprudência tem de assentar em julgados explícitos ou expressos sobre situações de facto idênticas, sendo necessário, como requisito prévio, que tenha havido decisões jurídicas fundamentadas e expressas sobre o mesmo ponto de direito, por dois tribunais superiores e em sentido oposto, sendo necessário, na explicitação do acórdão de 3 de Julho de 2008, processo n.º 1955/08-5.ª, que ambos se debrucem especificamente sobre a questão jurídica que esteve na base da decisão diferente.
Podem ver-se ainda os acórdãos de 12-03-2009, processo n.º 576/09-5.ª (perfilada uma questão de direito, importa que se enunciem “soluções” para ela, que se venham a revelar opostas; os dois acórdãos têm que assentar em soluções opostas. A oposição deve ser expressa e não tácita; tem que haver uma tomada de posição explícita divergente quanto à mesma questão de direito; interessa pois que a situação fáctica tenha os mesmos contornos, no que releva para desencadear a aplicação das mesmas normas); de 15-04-2009, processo n.º 3263/08-3.ª; de 10-09-2009, processo n.º 458/08.0GAVGS.C1-A.S1-5.ª (interessa que a situação fáctica se apresente com contornos equivalentes, para o que releva no desencadeamento da aplicação das mesmas normas) e de 10-09-2009, processo n.º 183/07.9GTGRD.C1.S1-3.ª, onde se refere: «Situação de facto idêntica para efeitos de recurso de fixação de jurisprudência é apenas a que consta dos acórdãos legitimados à fixação, no caso a matéria de facto fixada respectivamente em cada acórdão da Relação. (…).
Se a matéria de facto provada nos acórdãos da Relação é diferente, implicando consequência jurídica também diferente, é óbvio que não pode dizer-se que houve soluções divergentes que conduziram a soluções opostas relativamente a mesma questão jurídica. (…) Somente após a fixação da matéria de facto provada se pode definir e decidir o direito, pois que é sobre a matéria de facto, definitivamente estabelecida, que incide depois o direito constante da lei aplicável.
É a matéria de facto que gera a questão de direito e convoca à aplicação da lei e não o contrário.
E somente depois de fixada a questão de facto é que surge a questão de direito.
Por isso se compreende que somente perante situações jurídicas decididas de forma oposta perante matéria de facto idêntica é que pode configurar-se recurso de fixação de jurisprudência, verificados os demais pressupostos».
No mesmo sentido ainda os acórdãos de 28-10-2009, processo n.º 326/05.7IDVCT-B-3.ª e processo n.º 536/09.8YFLSB-A.S1-3.ª, de 05-05-2010, processo n.º 61/10.4YFLSB-3.ª Secção.
Ainda de acordo com o acórdão de 13-01-2010, processo n.º 611/09.9YFLSB.S1-3.ª, a oposição tem de ser expressa, e não meramente tácita, e incidir sobre a decisão, e não apenas sobre os seus fundamentos, e pressupõe igualmente uma identidade essencial da situação de facto de ambos os acórdãos em confronto.
Para o acórdão de 14-03-2013, proferido no processo n.º 4201/08.5TDLSB.L1-A.S1, da 5.ª Secção, “não basta, para o efeito da determinação relevante da oposição de julgados, referida no art. 437.º do CPP, que uma das decisões seja equivalente, na prática, à que resultaria da questão jurídica, dita em oposição, ter sido decidida num determinado sentido, pois torna-se necessário que expressamente a decida, num sentido ou noutro, de preferência, de forma fundamentada.
Na verdade, o recurso para uniformização de jurisprudência não é um recurso ordinário, de que o sujeito processual lance a mão para retificar um determinado erro de julgamento. Daí que tenha requisitos muito limitativos e um deles é que as questões de direito em oposição tenham sido abordadas e decididas de forma expressa e não de forma meramente implícita”.
Para o acórdão de 19-06-2013, processo n.º 11197/10.1TDLSB.L1-A.S1-3.ª “A expressão “soluções opostas” pressupõe que em ambas as decisões seja idêntica a situação de facto, com expressa resolução da questão de direito e que a oposição respeite às decisões e não aos fundamentos”.
Segundo o acórdão de 30-04-2014, processo n.º 1721/09.8JAPRT.P1.S2-A-5.ª “Se duas diferentes situações de facto justificam soluções de direito distintas, não existe oposição de julgados entre acórdãos em conflito, relevante para efeitos de recurso para fixação de jurisprudência”.
Para o acórdão de 24-09-2014, processo n.º 625/11.9TATNV.C2-A.S1-3.ª “Atenta a natureza extraordinária do recurso para fixação de jurisprudência o legislador subtrai a sua disciplina substantiva e adjectiva à estruturação dos recursos ordinários, concentrando os requisitos materiais na norma excepcional do art. 438.º, n.º 2, do CPP. A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito, ou seja, esse pressuposto não abdica de uma identidade factual emérita de julgados de direito opostos. Não se justifica a intervenção de uniformização do STJ quando questões distintas no plano factual receberam diversas soluções de direito”.
Podem ver-se ainda, i. a., os acórdãos de 23-04-2014, processo n.º 828/11.6IDLSB-A.S1-3.ª; de 30-04-2014, processo n.º 14/09.5TARGR.L1-A.S1-3.ª; de 11-12-2014, processo n.º 356/11.0IDBRG.G1-A.S1-5.ª (só perante a identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos em conflito é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que quanto à mesma questão de direito existem soluções opostas); de 28-01-2015, processo n.º 118/08.1PALRS.L1-A.S1-3.ª; de 24-06-2015, processo n.º 536/14.6SLSB.L1-A.S1-3.ª; de 1-07-2015, processo n.º 735/09.2TAOAZ.P1-A.S1-3.ª; de 27-01-2016, processo n.º 1433/06.4SILSB.L1-A.S1-3.ª; de 21-09-2016, processo n.º 2487/10.4TASXL.L1-A.S1-3.ª; de 19-04-2017, processo n.º 175/14.1GTBRG.G1-A.S1-3.ª; de 15-11-2017, processo n.º 3737/09.5TDLSB.L2.E1.-B.S1. - 3.ª ; de 11-04-2018, processo n.º 324/14.0TELSB.-V.L1-A.S1- 3.ª Secção.
Revertendo ao caso concreto.
A recorrente funda o presente recurso na oposição entre o acórdão recorrido deste Supremo Tribunal de Justiça de 27-04-2017 e o acórdão, igualmente deste Supremo Tribunal de 19-01-2011, apresentado como acórdão fundamento.
Postos em confronto os dois acórdãos deste Supremo Tribunal, desde logo ressalta estarmos perante dois tipos de intervenção muito diferentes, debruçando-se os acórdãos sobre situações diversas, desde logo resultantes das diferentes opções assumidas pelas recorrentes num caso e noutro, uma não esperando pela decisão de apreciação de nulidades por si invocadas, outra só interpondo recurso após ter sido notificada de decisão a corrigir lapsos.
Vejamos como emergiu a situação analisada no acórdão recorrido.
No âmbito do processo comum singular n.º 833/03.6TAVFR, da Comarca de Aveiro, Instância Local de Santa Maria da Feira, Secção Criminal, em que a ora recorrente DC – Portugal Cortiças, Lda. foi constituída assistente e deduziu pedido cível, foram os arguidos CC e BB condenados por insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 2, do Código Penal, nas penas de 200 e de 120 dias de multa, sendo integralmente absolvidos do pedido indemnizatório contra si formulado pela demandante ora recorrente.
Interpuseram recurso o arguido BB, o Ministério Público e a assistente/demandante AA, Lda..
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23 de Novembro de 2016, foi provido o recurso do arguido, sendo declarado prescrito o procedimento criminal instaurado pelo crime de falência dolosa, com a consequente extinção do procedimento criminal, não provido o recurso interposto pela assistente/demandante, absolvendo os arguidos do pedido e julgando prejudicado o recurso do Ministério Público.
Notificada deste acórdão, a assistente/demandante, em requerimento que denominou de reclamação, arguiu várias nulidades.
Por acórdão da Relação do Porto de 11 de Janeiro de 2017 foram indeferidas as nulidades arguidas, sendo o acórdão notificado à assistente por via postal registada no dia seguinte.
A assistente/demandante interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, através de requerimento que deu entrada em 3 de Janeiro de 2017.
Por despacho de 25 de Janeiro de 2017, o Desembargador Relator admitiu o recurso.
Por acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Abril de 2017, ora acórdão recorrido, foi rejeitado o recurso, por ter sido interposto fora de tempo.
A assistente recorreu deste acórdão para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça.
Por despacho do Exmo. Conselheiro Relator de 24 de Maio de 2017, não sendo susceptível de recurso ordinário o acórdão ora impugnado, não foi admitido o recurso interposto pela demandante.
A demandante reclamou deste despacho, mas, por despacho do Vice-Presidente deste Supremo Tribunal, datado de 16 de Junho de 2017, foi tal reclamação rejeitada.
Deste despacho foi interposto recurso de constitucionalidade.
Por despacho de 7-07-2017, do Vice-Presidente deste Supremo Tribunal, invocando o disposto no artigo 76.º, n.º 1, da LTC, foram os autos apresentados ao Conselheiro Relator “para se assim o entender, se pronunciar sobre o requerimento de interposição de recurso”.
O recurso foi admitido por despacho de 13-07-2017.
Por decisão sumária do Tribunal Constitucional de 3 de Outubro de 2017, constante de fls. 87 a 92, foi decidido não tomar conhecimento do recurso.
O acórdão recorrido justificou a rejeição, após enunciar o texto da alínea b) do n.º 1 do artigo 420.º e do n.º 2 do artigo 414.º do CPP, nestes termos:
“O recurso é interposto fora de tempo quando apresentado fora do período de tempo que a lei estabelece para o exercício do correspondente direito, ou seja, fora do prazo legal, quando interposto prematura ou tardiamente.
Conforme preceito da alínea a) do n.° 1 do artigo 411°, o prazo para interposição de recurso é de 30 [dias] e conta-se a partir da notificação da decisão, obviamente da decisão recorrida.
Certo é, no entanto, que no caso de pedido de correcção da decisão, instituto previsto e regulado no artigo 380° (instituto que, grosso modo, abarca os institutos da rectificação, esclarecimento e reforma do direito adjectivo civil), o prazo para dela recorrer só começa a correr depois de notificada a decisão que sobre aquele pedido se pronuncia. Com efeito, só após o conhecimento do pedido de correcção a decisão está em condições de ser objecto de recurso, visto que só então a decisão se pode considerar estabilizada, consabido que a decisão que conhece o pedido de correcção integra o conteúdo da decisão corrigenda.
Tem sido este o entendimento assumido por este Supremo Tribunal, como decorre dos acórdãos de 90.02.22, 91.06.20, 95.05.25, 03.02.26 e 12.05.09, proferidos nos processos n.°s 079775, 041952, 043378, 208/03 e 418/08.0PAMAL.S1, entendimento expressamente defendido pelo ora relator em anotação e comentário ao artigo 380°, no Código de Processo Penal Comentado (2ª edição-2016), página 1139 (3).
No caso vertente verifica-se que a assistente AA, Lda., ora recorrente, após ter sido notificada do acórdão recorrido, mediante requerimento dirigido ao Tribunal da Relação (fls.3200 e sgs.), que denominou de reclamação, arguiu várias nulidades, pugnando pela reforma do acórdão.
Mais se verifica que o requerimento através do qual a assistente interpôs o recurso ora em apreciação foi por ela apresentado antes do Tribunal da Relação ter decidido o incidente de arguição de nulidades por aquela deduzido. Com efeito, o acórdão do Tribunal da Relação que se pronunciou sobre as nulidades arguidas foi prolatado em 11 de Janeiro do ano corrente, tendo sido notificado à assistente, por via postal registada, no dia imediato (12 de Janeiro), sendo que o requerimento através do qual a assistente interpôs o presente recurso deu entrada em juízo no dia 3 de Janeiro.
Daqui resulta que o recurso da assistente foi interposto fora de tempo, pelo que terá de ser rejeitado.
Termos em que se acorda rejeitar o recurso.”
Vejamos como emergiu a situação analisada no acórdão fundamento.
No processo comum colectivo n.º 882/05.0TAOLH, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Olhão, foi absolvido o arguido AA da prática, em autoria material, de um crime de burla agravada e qualificada por apropriação ilegítima de bens do sector cooperativo, p. e p. pelos artigos 313.º e 314.º, alínea c) e 332.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, tendo sido julgado improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pela CCAM do Algarve contra o arguido.
A assistente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, que por acórdão de 26 de Janeiro de 2010, decidiu rejeitar o conhecimento do recurso respeitante aos acórdãos proferidos no âmbito dos pedidos de esclarecimento indeferidos e declarar improcedente o recurso interposto do acórdão absolutório.
Esse acórdão foi objecto de aclaração pedida em 9-02-2010, tendo o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 16 de Março de 2010, decidido indeferir a pretensão de reclamação com exclusão de lapsos apontados.
A demandante civil interpôs recurso para Supremo Tribunal de Justiça em 20 de Abril de 2010.
No caso, a recorrente efectuara requerimento de “correcção de lapsos” entre os quais incluiu “omissão de pronúncia” “sobre a segunda das questões que o próprio Acórdão aceita e assume como constituindo ou estando integrada no seu próprio objecto”.
O acórdão começa por afirmar que, diversamente do que ocorre com a correcção prevista no artigo 380.º do CPP, a omissão de pronúncia não é um lapso e o seu conhecimento pode eventualmente importar modificação essencial, constituindo nulidade da decisão a ser arguida ou conhecida em recurso, conforme artigo 379.º, n.º 1, c) e 2, do CPP.
De seguida, coloca a questão de saber qual a decisão que motiva a contagem do prazo: o acórdão de 26 de Janeiro ou o acórdão aclarando de 16 de Março, ambos de 2010.
Após enunciar normas de processo civil eventualmente aplicáveis convoca o acórdão n.º 16/2010 do Tribunal Constitucional, de 12-01-2010, processo n.º 142/2009, da 2.ª Secção, in Diário da República, II Série, n.º 36, de 22-02-2010, transcrevendo parte da respectiva fundamentação, de fls. 9 a 16 do acórdão, o qual decidiu “Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a interpretação do artigo 380.º, em conjugação com o artigo 411.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, segundo a qual o pedido de correcção de uma decisão, formulado pelo arguido, não suspende o prazo para este interpor recurso dessa mesma decisão”.
Segue-se uma referência a um voto de vencido - págs. 16/7 do acórdão fundamento - com entendimento de que se justifica um maior rigor na declaração de inconstitucionalidade, importando efectuar a distinção entre os dois grupos de situações reguladas na alínea b) do n.º 1 do artigo 380.º do CPP, onde estão contemplados quer os casos de erro ou lapso material da decisão penal, por um lado, quer os casos de obscuridade e ambiguidade dessa decisão, por outro.
Quando se está perante um mero erro ou lapso da decisão, cuja eliminação não importe a sua modificação substancial, a sua existência e possibilidade de rectificação não levantam dificuldades de maior à posição do arguido. Diversamente, no caso de obscuridade ou ambiguidade da decisão o que inviabiliza a definição pelo arguido do objecto da sua contra argumentação nas alegações de recurso. Nestes casos, adianta o voto de vencido, a exigência que o arguido opte pela interposição do recurso, apresentando as razões de discordância da decisão, sem que entretanto tenha sido elucidado sobre o conteúdo integral desta, põe em causa um efectivo direito ao recurso do arguido.
Conclui o acórdão fundamento:
“Do exposto verifica-se que a reclamação efectuada do acórdão de 26 de Janeiro de 2010 era irrelevante para o exercício do direito ao recurso, que podia ter sido interposto em condições de total conhecimento dos seus pressupostos, constantes do acórdão recorrido, e não afectava a posição do arguido.
A leitura integrada da decisão recorrida era fácil e bastante para a recorrente formular e conformar o direito ao recurso. Não se fundava numa incerteza sobre o conteúdo decidido.
A decisão recorrida não era ambígua ou obscura. A reclamação do acórdão recorrido e a subsequente decisão não se apresentavam como necessárias ao conhecimento, quer da fundamentação, quer do dispositivo da decisão recorrida reclamada, e não prejudicavam nem colidiam com o efectivo exercício do direito ao recurso da mesma, não configurando essa reclamação necessidade concreta de conformar esse recurso.
Por sua vez, a correcção dos lapsos não afectava o mérito e sentido do acórdão recorrido nem lhe trazia modificação essencial ou constituía nova decisão que implicasse com o direito ao recurso nos termos do decidido pelo acórdão recorrido”. (…)
Após citar o acórdão deste Supremo de 6-01-2010, processo n.º 181/05.7JFLSB.S1-3.ª, conclui:
“Sendo passível de recurso o acórdão da Relação de 26 de Janeiro de 2010, a alegada omissão de pronúncia constituía nulidade a ser arguida em recurso, que deveria ter sido interposto no prazo de 20 dias a contar do depósito desse acórdão na secretaria.
A ora recorrente não o fez, sibi imputat.
Por isso, ocorrendo a decisão recorrida em 26 de Janeiro de 2010, e tendo sido interposto recurso dela em 20 de Abril do mesmo ano, é extemporânea a sua interposição”.
Termina, julgando procedente a questão prévia da não admissibilidade do recurso, por intempestividade do mesmo e consequentemente rejeitado.
Concretizando.
Como já se afirmou, as situações sobre que incidiram os acórdãos em confronto são diferentes.
No acórdão recorrido, em que interveio como Adjunto o Relator do acórdão fundamento, pese embora tenha sido referido o artigo 380.º do CPP, a verdade é que, factualmente, a recorrente arguiu nulidades que foram apreciadas pela Relação.
A nulidade pode importar modificação essencial da decisão impugnada. A nulidade pode ser suprida conforme o artigo 379.º, n.º 2, do CPP, a exemplo do que se passa no processo civil, conforme o n.º 2 do artigo 617.º do CPC. Sendo suprida pode modificar-se o espectro do acervo a impugnar.
Ora, a recorrente antes de conhecer a decisão da Relação sobre a arguição de nulidades interpôs recurso para o STJ. Nessa altura, em 3 de Janeiro de 2017, o acórdão de 23 de Novembro de 2016 ainda poderia ser alterado em função de eventual procedência de arguição das nulidades suscitadas pela recorrente. A decisão não estava estabilizada. Apenas ocorrendo a estabilização com o acórdão de 11 de Janeiro de 2017, que indeferiu as nulidades arguidas.
Recorreu prematuramente.
Diferentemente, no caso do acórdão fundamento, relatado pelo Exmo. Adjunto do acórdão recorrido, em que interviemos como adjunto, a recorrente pedira correcção de lapsos que não demandavam modificação essencial da decisão, pelo que não tinha de esperar pela decisão da Relação. Não havendo suspensão do prazo, teria de recorrer logo. Apenas após notificação do acórdão aclarando da Relação, muito para além do prazo então cabido, de 20 dias.
Recorreu tardiamente.
A situação factual que esteve na base da decisão proferida no acórdão fundamento não é idêntica àquela que estava em apreciação e conduziu à decisão proferida no acórdão recorrido.
Sendo diversas as situações não ocorrem asserções antagónicas nos acórdãos em confronto; as soluções não são, não podem ser, conflituantes, porque as questões sobre que incidiu a análise se situavam em margens em que não era possível o contacto.
Concluindo.
Não se verifica oposição de julgados, pelo que deve o recurso improceder.
Decisão
Pelo exposto, acordam nesta 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em rejeitar o recurso interposto pela recorrente AA, Lda., por inadmissibilidade.
Custas pela recorrente, nos termos dos artigos 513.º, n.º s 1 e 3 e 514.º, n.º 1, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 448.º, como aqueles do Código de Processo Penal, fixando-se a taxa de justiça, de acordo com os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 5.º, 8.º, n.º 5 e 13.º, n.º 1 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Suplemento n.º 252), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril (artigos 1.º e 2.º), pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de Agosto e pela Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro), em 3 (três) UC (unidades de conta), acrescidas de importância de 3 UC, nos termos do n.º 3 do artigo 420.º do CPP.
Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Lisboa, Escadinhas de São Crispim, 12 de Setembro de 2018
Raul Borges (Relator)
Manuel Augusto Matos
___________
(3) - No mesmo sentido se pronuncia Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal (4ª edição-2011), 1136.