Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
PERDA DE BENS
FASE DE INQUÉRITO
COMPETÊNCIA MATERIAL DO MP
Sumário
I) Como titular do inquérito, o Ministério Público pode praticar todos os actos e diligências necessários à investigação da notícia do crime, segundo uma estratégia que delinear, com excepção, claro está, dos actos materialmente jurisdicionais e dos que contendem com os direitos fundamentais, que são da competência do juiz de instrução, enquanto “juiz das garantias”.
II) A declaração de perda constituiu uma competência materialmente jurisdicional, na medida em que está em causa um ato que implica uma real e efectiva quebra do vínculo estabelecido entre o titular originário e os bens e valores, desse modo extinguindo o respectivo direito, mas já a determinação do destino final dos bens e valores constitui um ato de natureza administrativa que não contende com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
III) Materialmente, a determinação do destino dos bens – uma “nota” - trata-se de um ato de decisão de inquérito e que, por isso, compete ao Magistrado do Ministério Público titular dessa fase.
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.
I. Relatório
1.
Nos autos de inquérito nº639/18.8JFLSB a correr termos no DIAP de Esposende, na sequência do despacho de arquivamento, veio o Ministério Público remeter os autos ao Mmo Juiz de Instrução Criminal a quem promoveu que fosse declarada perdida a favor do Estado a nota apreendida à ordem dos auto, por ter servido para a prática de factos ilícitos típicos e oferecer sério risco de ser utilizada para o cometimento de novos crimes, tudo nos termos dos artigos 109º,nº1 e 2 do C.Penal e 186º,nº2, do C.P.P.)
Apresentados os autos à Mma Juiz de Instrução Criminal veio a ser proferido o seguinte despacho:
“Nos termos do disposto nos arts.11º da Convenção de Genebra para a Repressão da Moeda Falsa, de 20 de abril de 1929(cuja ratificação foi publicada no Diário do Governo de 20 de outubro de 1930), 268º,nº1,e), do Código de Processo Penal, e 109º do Código Penal, declara-se perdida a favor do Estado a nota falsa de 20€, junta a fls. 16 e à qual se reporta o exame de fls. 17, mais se ordenando a respectiva destruição”.
2.
Não se conformando com essa decisão veio o Ministério Público recorrer da mesma, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
“1- De acordo com o art.262,nº1, do Código de Processo Penal, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação. 2- Nos termos do art.263º,nº1, do Código de Processo Penal, a sua direcção cabe ao Ministério Público. 3- Em casos excepcionais previstos na lei e que se prendem com a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, haverá lugar à intervenção de um juiz na fase de inquérito. 4- Dispõe o art. 268º,nº1,e), do Código de Processo Penal, que compete exclusivamente ao Juiz de Instrução Criminal “declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, com expressa menção das disposições legais aplicadas, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos arts. 277º, 280º e 282. 5- A decisão sobre o destino dos objectos apreendidos é distinta da decisão de perda a favor do Estado dos mesmos objectos. 6- Se quanto à perda do bem, o mesmo compreende a extinção do direito de propriedade do respectivo dono, já no que concerne ao seu destino, o mesmo nãos e intromete com quaisquer direitos de terceiros, nomeadamente o de propriedade. 7- Na fase de inquérito, a autoridade competente para decidir sobre o destino dos objectos declarados perdidos a favor do Estado é o Ministério Público no exercício das suas funções de direcção de inquérito. 8 - Foram violados os arts. 109º,nº3, do Código Penal, e o art. 268º,nº1,al.e), do Código de Processo Penal
Termos em que se conclui no sentido supra exposto, julgando-se o presente recurso procedente e proferindo-se douto acórdão que revogue o despacho sindicado”.
3.
Neste Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, concluindo pela procedência do recurso.
4.
Foi cumprido o art.417º,n2, do C.P.P..
5.
Colhidos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser ai julgado, de harmonia com o preceituado n art.419º,nº3,al.c), do diploma citado
II. Fundamentação
A) Delimitação do Objeto de Recurso.
Dispõe o art. 412º,nº1, do Código de Processo Penal ( diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer referência) que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
O objeto do processo define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º- naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, VolIII, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).
O âmbito do recurso é dado, assim, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem, as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam.
No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir é a seguinte:
Saber a quem compete dar destino final à nota apreendida em sede de inquérito, se ao Juiz de Instrução, se ao Ministério Público.
B) Apreciação do Recurso
De acordo com o disposto no art. 263º,nº1, a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal.
O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação, cfr. n.º 1 do artigo 262º.
Como titular do inquérito, o Ministério Público pode praticar todos os actos e diligências necessários à investigação da notícia do crime, segundo uma estratégia que delinear, com excepção, claro está, dos actos materialmente jurisdicionais e dos que contendem com os direitos fundamentais, que são da competência do juiz de instrução, enquanto “juiz das garantias”.
A intervenção do juiz de instrução no inquérito, como refere Paulo Dá Mesquita, in Direcção de Inquérito Penal e Garantia Judiciária, p. 174, é ocasional, provocada e tipificada.
O art. 268º diz respeito aos atos a praticar pelo juiz de instrução e o art. 269º aos atos a ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução.
Ou seja, a intervenção do juiz na fase de inquérito preliminar apenas se impõe para acautelar a defesa dos direitos fundamentais dos sujeitos processuais ou de terceiros, relativamente àqueles atos processuais que possam pôr em causa essa mesma defesa.
O art.268º enumera os atos, ainda que de forma não exaustiva, como se depreende da alínea f), do nº1, cuja prática, na fase de inquérito, é da competência exclusiva do juiz de instrução e, entre esses atos, encontra-se prevista na alínea e), a “declaração de perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º”.
Em tal elenco e, designadamente nesta alínea onde se inclui a declaração de perda, não incluiu o legislador o destino dessa mesma coisa.
E cremos que tal ocorreu porque o legislador entendeu que tal competência não deveria ser atribuída em exclusivo ao Juiz de Instrução.
Se fosse essa a sua intenção não se vislumbra, de facto, porque não o faria de forma expressa como o fez em relação à declaração de perda.
E percebe-se porquê.
Com efeito, estão em causa actos de natureza bem distinta.
Ora, a declaração de perda constituiu uma competência materialmente jurisdicional, na medida em que está em causa um ato que implica uma real e efectiva quebra do vínculo estabelecido entre o titular originário e os bens e valores, desse modo extinguindo o respectivo direito.
Já a determinação do destino final dos bens e valores constitui um ato de natureza administrativa que não contende com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Materialmente trata-se de um ato de decisão de inquérito e que, por isso, compete ao Magistrado do Ministério Público titular dessa fase.
A declaração de perda e a declaração do respectivo destino configuram-se como momentos processuais distintos, sendo certo que a representação do Estado – titular dos bens e valores por força da decisão jurisdicional de perda – incumbe ao Ministério Público, não carecendo de qualquer intermediação jurisdicional para o efeito – Acórdão da Relação de Coimbra de 15/7/2009, no âmbito do proc.318/08.4GAACB-A –C1.
Assim, sendo o inquérito uma fase processual em que a regra é a competência do Ministério Público na sua direcção, não estando em causa matéria reservada ao juiz de instrução nos termos do citado artigo 268.º, temos que a decisão sobre o destino dos objectos apreendidos é tomada pelo Ministério Público na fase de inquérito, assim como o será pelo juiz de instrução na fase de instrução e pelo juiz presidente na fase de julgamento.
Neste sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque – Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e de Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição, página 503.
Na senda em que propendemos, vai também a jurisprudência dominante, podendo trazer-se à liça, para além do acórdão já citado da Relação de Coimbra, os acórdãos da Relação do Porto de 9/6/2010, Proc.º 321/07.1EAPRT-A.P1, de 16/3/2011, Proc.º 551/08.9GBVLG-A.P1, de 14/9/2011, Proc.º 271/11.7TASTS-A.P1 e de 7/11/2012, Proc.º 22/08.3FBPVZ-A.P1; da Relação de Lisboa de 26/9/2006, Proc.º 6187/2006-5 e de 28/11/2006, Proc.º 6205/2006-5, todos disponíveis em www.dgsi.pt..
Concluindo-se então que, na fase de inquérito, a autoridade competente para decidir sobre o destino dos objectos declarados perdidos a favor do Estado é o Ministério Público no exercício das suas funções de direção do inquérito, impõe-se a procedência do recurso.
III- Dispositivo
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, na parte em que pronunciando-se sobre o destino da nota ordenou a sua destruição, a qual deverá ser substituída por outra que considere pertencer ao Ministério Público a competência para se pronunciar sobre tal destino.
Sem tributação.
(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)