RECONHECIMENTO IDONEIDADE
USO E PORTE DE ARMA
AUDIÇÃO PRESENCIAL DO ARGUIDO
NULIDADE
ARTº 14º
Nº 5 DO RJAM LEI Nº 5/2006. DE 23.02
Sumário


1- A audição presencial do arguido no pedido de reconhecimento de idoneidade para efeito de uso e porte de arma é obrigatória nos termos do disposto no artigo 14º, nº 5 (nº 3 na redação primitiva e nº 4 na redação da Lei nº 17/2009, de 06/05), do R.J.A.M., aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02.

2- Apesar de a redação atual do artigo 15º (dada pela Lei nº 12/2011, de 21/04) só remeter para os números 2 a 4 do artigo 14º, tem que se entender que também remete para o atual nº 5, o qual impõe que o incidente corra por apenso ao processo criminal.

3 - A omissão da referida audição constitui nulidade por preterição de formalidade essencial com influência na decisão da causa - artº 195º do CP Civil.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. Em incidente de reconhecimento de idoneidade nos termos da Lei nº 5/2006, de 23/02, apenso ao processo comum (tribunal singular) com o nº 9/15.0GAAMR a correr termos no Tribunal Judicial da comarca de Braga – Juízo de Competência Genérica de Amares, foi proferido despacho, datado de 24/05/2018, do seguinte teor (transcrição):

“A fls. 3 a 5 dos presentes autos veio o arguido F. F., ao abrigo do disposto no artigo 14.° n.º 3 do R.J.A. M. Lei n.º 5/2006 de 23/02 com a redacção requerer que lhe seja reconhecida idoneidade para efeitos de uso e porte de arma da classe D e detenção no domicílio.

Dispõe o n.º 1 e 2 do artigo 15° do R.J.A.M., relativamente à respectiva licença para uso de armas de classe C e D utilizadas na prática de actos venatórios, que:

‘Licenças C e D
“1 - As licenças C e D podem ser concedidas a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer da licença para a prática de actos venatórios de caça maior ou menor, para as licenças C ou D, respectivamente, e se encontrem habilitados com carta de caçador com arma de fogo;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico;
e) Sejam portadores do certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo.
2 - A apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo 14º.
3-(...)
4-(...)”

E nos termos do disposto nos nºs 2 ,3 e 4 do artigo 14.°:

“2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 30º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante na alínea c) do número anterior, é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outros, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
3 - No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.”.
4 - A intervenção judicial referida no número anterior não tem efeitos suspensivos sobre o procedimento administrativo de concessão ou renovação da licença em curso.”.

Cumpre apreciar:

Efectuadas as diligências necessárias, constata-se que a avaliação social efectuada ao arguido é positiva, tendo sido considerado pela DGRSP que o mesmo está bem inserido na comunidade local e nada consta em seu desabono no que diz respeito à sua formação moral e cívica.

Contudo, como se infere do teor das decisões de fls. 45 a 51, a P.S.P. de Braga procedeu à cassação das licenças de uso e porte de arma e detenção no domicílio de que o arguido era titular, tendo sido realçada a existência de antecedentes criminais e o comportamento demonstrado pelo arguido e que foi dado como provado nos presentes autos.

De facto, como se extrai das sobreditas decisões da entidade policial, o comportamento do arguido não permite formular um juízo de prognose favorável de que o mesmo não venha a utilizar armas licenciadas para voltar a delinquir, existindo “receio que as armas eventualmente licenciadas possam ser usadas na prática de crimes”.

Conclui-se, portanto, que a personalidade do arguido não se coaduna com a obtenção de licença de uso e porte de arma.
Assim sendo, não deve ser reconhecida ao requerente idoneidade para efeitos de uso e porte de arma e detenção no domicílio, o que se decide.
Notifique.”
*
2 – Não se conformando com a decisão, o requerente interpôs recurso concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

“1 - O presente recurso tem por objecto a decisão que indeferiu o pedido de reconhecimento de idoneidade do aqui recorrente para efeitos de manutenção/obtenção/renovação de licença uso e porte de arma e licença de detenção no domicílio.
2. A decisão recorrida não explica, nem fundamenta, o porquê de ter formado a convicção contrária ao relatório social da personalidade do arguido, que foi positivo, de que o recorrente não é pessoa idónea para ser detentor de licença de uso e porte de arma e licença de detenção no domicílio.
3. A decisão recorrida fez tábua rasa do alegado e invocado pelo arguido, proferiu decisão de indeferimento, julgando improcedente a tão almejada idoneidade, sem sequer justificar, e rebater os fundamentos invocados pelo arguido.
4. A decisão recorrida é nula, por flagrante omissão de pronúncia (artigo 379º, n.º 1, alínea c), do CPP), na medida em que omitiu por completo qualquer referência a matéria provada ou não provada, ou qualquer menção aos factos que haviam sido invocados pelo Recorrente para fundamentar a sua pretensão, não os tendo, simplesmente, apreciado, em clara violação do formalismo imposto pelo art. 374º do Código de Processo Penal, o que merece a cominação prevista no art. 379º do Código de Processo Penal.
5. Assim, a douta decisão recorrida padece de nulidade, o que para os devidos efeitos se invoca.
6. Acresce que, a douta decisão recorrida omitiu e/ou desconsiderou por completo o pedido de produção de prova apresentado pelo arguido, aqui requerente, nomeadamente o pedido de que fossem tomadas declarações ao próprio, e fossem ouvidas as testemunhas melhor indicadas no requerimento.
7. O tribunal a quo decidiu não ouvir quer o arguido, quer as testemunhas indicadas por este, sem dar qualquer explicação para tal negação.
8. De acordo com o regime estatuído no art. 14.º, n.º5 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actualmente em vigor, aplicável à obtenção e renovação de licença de uso e porte de arma da classe D, é necessária a audição presencial do arguido antes de se decidir ou, ao menos, deve possibilitar-se essa audição presencial.
9. A imediação perante o Juiz e o contraditório inerente, apresenta-se para o legislador como factor relevante na apreciação da pretensão do arguido/Recorrente, por poder contribuir certamente para um melhor conhecimento da personalidade deste e dos reais fins para que pretende a licença. (Ac. do T. Relação de Coimbra, de 08-07-2015, proc. nº 451/10.2GAACB-A.C1).
10. Uma vez que a lei exige a audição presencial do arguido/Recorrente ou pelo menos que tenham sido envidados todos os esforços necessários à sua audição presencial, e no caso tal não aconteceu, a omissão da referida audição prévia integra a nulidade insanável cominada na alínea c) do art. 119.º do C.P.P, o que fulmina a decisão recorrida.
11. Sobre o conceito de idoneidade, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 29-4-2015 proferido no processo 1271/10.0GAFLG-A, que «ser idóneo a ter licença de uso e porte de arma de caça exige que se analise não o perigo de cometer um crime com a mesma, mas o facto de ter condições, qualidades, aptidões e competência para desempenhar a actividade lúdica que o uso de tal arma pressupõe».
12. Tal como demonstra a prova produzida nos autos e mais demonstraria a prova requerida, o aqui Recorrente é claramente detentor de qualidades, aptidões e competências para ser titular de licença de uso e porte de arma de caça e, simultaneamente, titular da licença de detenção no domicílio [Tal como consta do relatório em que o Recorrente foi avaliado positivamente, este está integrado profissional, familiar e socialmente; É casado, vive com a esposa, com quem está casado há mais de 22 anos; Tem dois filhos, com respectivamente de 14 e 18 anos de idade, sendo bom marido e bom pai; Tem como habilitações literárias licenciatura em Administração Pública, sendo funcionário público do Município X há mais de 24 anos, actualmente com a categoria profissional de Técnico Superior; É reconhecido pelos colegas de trabalho e pelos seus superiores hierárquicos como um funcionário organizado, disciplinado, zeloso e cumpridor, tecnicamente muito competente e solidário com os colegas de trabalho; Encontra-se socialmente integrado, sendo reconhecido pelos vizinhos e demais munícipes como uma pessoa respeitadora e responsável, que pauta a sua conduta pela estrita obediência aos valores sociais e jurídicos da comunidade.]
13. No caso em apreço, a idoneidade do arguido, aqui recorrente, foi reconhecida no Douto Acórdão proferido a fls. dos autos pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
14. Com efeito, o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, no Douto Acórdão proferido nos presentes autos em 7.11.2016, considerou, dada a ausência de antecedentes criminais, e a condenação do arguido apenas em pena de multa, não se justificar no caso concreto a aplicação ao arguido da medida de segurança de da licença de detenção, uso e porte de arma, que lhe havia sido aplicada pelo Tribunal recorrido.
15. Como se pode ler no Douto Acórdão, para cujo texto se remete na íntegra, “em face da matéria apurada e alterações que se vão efectuar na sentença recorrida, tudo ponderado, entendemos que não se justifica já a aplicação desta medida, pelo que deverá ser revogada a medida de segurança aplicada.”
16. Como resulta dos autos, a decisão revogatória do Tribunal da Relação de Guimarães não foi impugnada, pelo que há muito transitou em julgado.
17. Salvo melhor opinião, a decisão de improcedência do pedido de reconhecimento de idoneidade viola o CASO JULGADO formado pela anterior decisão do Tribunal da Relação de Guimarães ou, pelo menos, colide com a AUTORIDADE DO CASO JULGADO do anterior Douto Acórdão.
18. Em face do exposto, deve revogar-se a douta decisão recorrida e, consequentemente, proferir-se, em substituição, decisão que conclua pelo reconhecimento de idoneidade do arguido, aqui recorrente, para ser titular de licença de uso e porte de arma, bem como titular de licença de detenção no domicílio.

TERMOS EM QUE, E SEMPRE COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V.ªS EXªS, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO MERECER PROVIMENTO, E, EM CONSEQUÊNCIA:

A – DECLARAR-SE A NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA, POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO E/OU FALTA DE PRODUÇÃO DA PROVA REQUERIDA PELO ARGUIDO/REQUERENTE;

SEM PRESCINDIR,

B - REVOGAR-SE A DOUTA DECISÃO RECORRIDA QUE DETERMINOU A FALTA DE IDONEIDADE DO RECORRENTE, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE RECONHEÇA IDONEIDADE AO RECORRENTE PARA SER TITULAR DE LICENÇA DE USO DE PORTE DE ARMA DE CAÇA (TIPO D) E, AINDA, PARA SER TITULAR LICENÇA DE DETENÇÃO NO DOMICÍLIO,
FAZENDO-SE ASSIM A HABITUAL JUSTIÇA!”
*
3 – A Exma. Procuradora-Adjunta respondeu ao recurso, concluindo pela total improcedência do mesmo e pela consequente manutenção integral da decisão recorrida.
4 – Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso, “declarando-se nulo o despacho recorrido, que deve ser substituído por um outro que dê cumprimento ao disposto no artigo 14°, n° 5, da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro, com designação de data para audição do recorrente”..
5 – No âmbito do disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta.
7 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, do Código de Processo Penal.

***
II – Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação (art. 412º, nº 1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas (artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal) – cfr. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48.

2 - As questões invocadas pelo recorrente são as seguintes:

- Nulidade do despacho por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia;
- Nulidade insanável do despacho por falta de audição do recorrente e da demais prova requerida;
- Violação do caso julgado.
*
III - Apreciação do recurso

O recorrente invoca duas diversas formas de nulidade da decisão, bem como a violação do caso julgado.

Dar-se-á primazia à análise da alegada nulidade insanável do despacho por falta de audição do recorrente e da demais prova requerida, já que os reflexos da sua eventual procedência se repercutirão na apreciação dos demais motivos recursivos.

Preceituava o artigo 14º do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção primitiva, os seguintes requisitos e procedimentos para obtenção de licença de uso e porte de arma da classe B1 (sublinhado nosso):

“1 – A licença B1 pode ser concedida a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:

a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico;
e) Sejam portadores do certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo.
2 – Sem prejuízo do disposto no artigo 30.° da Constituição e do número seguinte, para efeitos da apreciação do requisito constante na alínea c) do número anterior, é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão da licença o facto de ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime.
3 No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode ser-lhe reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, peto tribunal da última condenação, mediante parecer fundamentado homologado pelo juiz, elaborado pelo magistrado do Ministério Público que para o efeito procede à audição do requerente, e determina, se necessário, a recolha de outros elementos tidos por pertinentes para a sua formulação.
4 - Os pedidos de concessão de licenças de uso e porte de arma da classe B1 são formulados através de requerimento do qual conste o nome completo do requerente, número do bilhete de identidade, data e local de emissão, data de nascimento, profissão, estado civil, naturalidade, nacionalidade e domicílio, bem como a justificação da pretensão.
5 – O requerimento referido no número anterior deve ser acompanhado do certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo da classe B1.”.

Tratando-se das licenças C e D, em conformidade com o estatuído no n° 2 do artigo 15.° da mesma Lei, ainda na redacção originária, a apreciação da idoneidade do requerente para obtenção da licença era feita nos termos do disposto nos n°s 2 e 3 do artigo 14° (sublinhado nosso).

O citado Regime jurídico das Armas e Munições tem sido objeto de sucessivas alterações, de que se destaca, no que ao caso importa, a redacção introduzida nos números 3 e 4 do artigo 14º pela Lei nº 17/2009, de 6 de Maio, onde se passou a prescrever:

3 – No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.
4 – O incidente corre por apenso ao processo principal, sendo instruído com requerimento fundamentado do requerente, que é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo, que decide, produzida a necessária prova e após parecer do Ministério Público.”.

Este nº 4, após as alterações introduzidas pela Lei n° 12/2011, de 27 de Abril, no citado regime jurídico, passou a corresponder ao n° 5.
Porém, o n° 2 do art.15° continuou a preceituar que para a obtenção das licenças C e D: “A apreciação da Idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto nos n°s 2, 3 e 4 do artigo 14º.”.

Como se refere no Acórdão de 08/07/2015 do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo 451/10.2GAACB-A.C1 (disponível no site da DGSI):

““Pese embora o n° 2 do art.15° da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actualmente em vigor, não remeta para o actual n° 5 do art.14° do mesmo diploma, cremos que não pode deixar de continuar a entender-se que corre por apenso, ao processo principal de condenação criminal, o pedido de reconhecimento de idoneidade do condenado para renovação de licença de armas de fogo, nomeadamente da classe D.

Ou seja, o incidente corre apenso ao processo principal e é instruído com requerimento fundamentado do requerente e nele ”é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo” que, produzida a necessária prova e após parecer do Ministério Público, decide da idoneidade do requerente para a obtenção ou renovação da licença de arma de fogo.
(…)
O requerimento para reconhecimento da idoneidade, como requisito para obtenção da licença de armas das classes C e D, tem de ser formulado pelo arguido que pretende a reabilitação judicial, pelo que dúvidas não parece haver que quando a lei estabelece que o requerente é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo exige que este seja ouvido presencialmente, perante o Juiz.
A imediação perante o Juiz e o contraditório inerente, apresenta-se para o legislador como factor relevante na apreciação da pretensão do arguido/requerente, por poder contribuir certamente para um melhor conhecimento da personalidade deste e dos reais fins para que pretende a licença.”
Não tendo o arguido sido ouvido presencialmente ou, pelo menos, envidados todos os esforços necessários à sua audição presencial, antes de ser proferida a decisão de indeferimento do pedido de reconhecimento de idoneidade para renovação da licença de uso e porte de arma, foi violada uma norma processual fixada na Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Estabelecida a obrigatoriedade de audição presencial do arguido perante o juiz no decurso do incidente de reconhecimento de idoneidade, importa determinar a consequência da omissão de tal diligência quando tal não ocorra.

Neste concreto ponto, a jurisprudência – sendo convergente quanto à solução final: a nulidade insanável da decisão por violação do princípio do contraditório - tem-se dividido quanto ao meio de a atingir.

Uma corrente tem-se estribado nos artigos 61, nº 1, al. b), 119º, al. c) e 122º, nº 1, todos do Código de Processo Penal, com assento no estatuto de arguido, como ocorre com o supra citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.

Todavia, não concordamos com esta solução, principalmente quando - como é o caso em apreço - o processo criminal se encontra findo e a pena cumprida, como se alcança do certificado de registo criminal de fls. 57 dos autos.

É que não definindo a lei, de forma expressa, o termo final do estatuto de arguido, mas apenas o inicial, não deixa de consignar no artº 57º, nº 2, do CPP que tal qualidade “… conserva-se durante todo o decurso do processo”, o que permite concluir, ”a contrario sensu”, que cessa com o fim dele.

Mesmo no que toca às medidas de coacção – umbilicalmente ligadas à qualidade de arguido – estipula o artigo 214º, nº 1, do CPP que se extinguem de imediato: não havendo acusação ou pronúncia, sendo rejeitada a acusação, com a absolvição ou com o trânsito em julgado da condenação, salvo, neste último caso, o termo de identidade e residência, que perdura até à declaração de extinção da pena.

Ora, no caso dos autos e apesar do incidente correr por apenso ao processo principal, entendemos que tal não constitui razão suficiente para concluir que este não findou e que se mantém a qualidade de arguido, com o consequente conjunto de direitos e deveres inerentes. É que, na verdade, o único elemento justificativo da manutenção de tal qualidade é a inscrição no registo criminal, a aguardar o cancelamento, o que não constitui razão para tal solução.
Mais recentemente, uma outra corrente (cfr. Acórdão desta Relação de Guimarães de 02/07/2018, proc. 69/13.8GFPRT-A.G1, disponível na DGSI, que seguimos de perto) sustenta que o “”princípio do contraditório” é estruturante de todos os direitos processuais e procedimentos judiciais”, fundamentando a decisão encontrada nas normas do processo civil.

Ora, o artº 3º do Cód. Processo Civil, sob a epígrafe “’Necessidade do pedido e da contradição”, estabelece que “Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida” e “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenha tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

A omissão de uma formalidade que a lei prescreva produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (cfr. art. 195° do CPC), nulidade que depende de arguição, por se tratar de omissão de diligência reputada de essencial para a descoberta da verdade, como é o caso do respeito pelo princípio do contraditório, inclusive proibindo o juiz de decidir qualquer questão sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, salvo em caso de manifesta desnecessidade.

A referida nulidade deve ser arguida no prazo de dez dias após a notificação da decisão, sob pena de sanação.

Citando o mencionado Acórdão desta Relação, “vem sendo entendido que o direito de defesa, num estado de direito, é um princípio natural de qualquer tipo de processo, ainda que de natureza meramente civil. Na verdade, mesmo no âmbito processual civil, sendo usual afirmar-se que a verificação de alguma nulidade processual deve ser objecto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre a mesma incidir, tem sido observado que tal solução, ajustando-se à generalidade das nulidades processuais, revela-se, contudo, inadequada nas situações em que é o próprio juiz que, ao proferir uma decisão, omitiu uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a audiência prévia a fim de assegurar o contraditório; em tais situações a parte é confrontada com uma decisão, sem que lhe tenha sido proporcionada a oportunidade de exercer o contraditório e sem que tenha disposto da possibilidade de arguir qualquer nulidade processual por omissão de um acto legalmente devido, sendo a interposição de recurso o mecanismo apropriado para a sua impugnação. Em tais circunstâncias, deparamos com uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, com óbvia influência na decisão da acusa (art. 195° do CPC), mas que se comunica à própria decisão proferida, de modo que a reacção da parte com ela prejudicada passa pela interposição de recurso em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia (art. 615°, n° 1, al. d), “in fine”, do CPC)”. E, mais adiante: “Trata-se de assegurar o princípio do contraditório e da audição prévia, segundo o qual assiste a quem exerce uma pretensão e a quem se lhe opõe o direito de contestar e impugnar não só os factos iniciais já conhecidos mas quaisquer outros ou questões que surjam e que o tribunal pretenda levar em consideração, de modo a que não seja proferida qualquer decisão-surpresa contra qualquer deles, por factos dos quais o mesmo não teve oportunidade de se defender.”.

Em conclusão, no caso dos autos, o recorrente, após ter exposto os fundamentos do pedido formulado no requerimento inicial e arrolado prova – que não foi produzida, sem que se apresentasse qualquer razão para o facto - não foi ouvido pessoalmente pelo Juiz, como impõe o art. 14º, nº 5, do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006 - pese embora, a deficiente “técnica legislativa” já evidenciada.

Mas o recorrente também não foi notificado da posição expressa nos autos pelo Ministério Público (cfr. fls. 59 a 61 dos autos), que antecedeu a decisão recorrida e com esta conforme. E devê-lo-ia ter sido, concedendo-lhe uma oportunidade de se pronunciar não só sobre a projectada decisão, mas também sobre a omissão de alguma formalidade legal.

Nestes termos e considerando que a audição presencial do requerente pelo juiz é um ato obrigatório, não tendo esta sido feita antes da tomada da decisão que veio a afetar a sua esfera pessoal, conclui-se não terem sido asseguradas as garantias de defesa estabelecidas pelo ordenamento jurídico vigente.
O recurso tem, assim, que proceder.
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IV – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso, declarando nulo o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que dê cumprimento ao disposto no art. 14º, nº 5, do R.J.A.M., aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02, na redacção vigente, com designação de data para audição do requerente.
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Ficam prejudicadas as demais questões suscitadas.
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Sem custas.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Guimarães, 17 de Dezembro de 218

(Mário Silva)
(Maria Teresa Coimbra)