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EXECUÇÃO
CESSÃO DE CRÉDITOS
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Sumário
I - O instituto da cessão de créditos traduz a modificação subjetiva operada na relação creditícia, mediante acordo causal, através de um contrato típico ou atípico, notificado ao devedor de modo a que, a partir da notificação da cessão, bem como da sua aceitação ou conhecimento, a titularidade do crédito ingressa na esfera do cessionário e só perante ele o devedor se desobriga da prestação. II - A casa de morada de família goza de proteção especial, suportada por diversos instrumentos legais destinados a preservar os interesses dos ex-cônjuges e filhos consigo conviventes, mas a sua atribuição temporária e cautelar até à partilha tem uma natureza obrigacional. III - Tal atribuição não tem, pois, o efeito de obstar à entrega ao exequente adjudicatário do imóvel onde está estabelecida a morada de família.
Texto Integral
Processo n.º 1363/08.5TBMCN-C.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo de Execução de Lousada – J1
Acórdão Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
Na execução comum que a B..., com sede na Rua ..., ..., em Lisboa, move a C... e D..., residentes em ..., ..., Marco de Canaveses, foi penhorado o prédio urbano descrito na Conservatória do registo predial de Marco de Canaveses sob o n.º 300/19920720, inscrito na matriz predial sob o artigo 1650º da freguesia de .... Em 19/02/2018, considerando que o processo de inventário não é oponível à exequente, foi proferido despacho que ordenou a entrega do imóvel à cessionária E....
Inconformada, apelou a executada, alegando em conclusão:
“1. A exequente E... carece de qualquer legitimidade no plano processual e substantiva para a pretensão que deduz por não possuir qualquer título idóneo e específico para tal fim, uma vez que o imóvel continua registado a favor da B... que já requereu o cancelamento de todos os ónus, como resulta do documento do registo predial, datado do dia de hoje, questão suscitada como prévia;
2. A Recorrente foi vítima da degradação da vida económica do casal e da sua própria vida familiar;
3. Em consequência do divórcio decretado, foi acordado atribuir à Recorrente o direito à casa de morada de família até à partilha dos bens do casal;
4. Na falta de acordo, a Recorrente requereu inventário judicial para partilha de tais bens;
5. Tal inventário foi requerido em 24/02/2011 e ainda está na fase da reclamação da relação de bens;
6. A Recorrente espera obter em tal partilha os meios económicos e financeiros para poder recomeçar a sua vida, já que actualmente subsiste graças ao Rendimentos Social de Inserção, de montante inferior a Euros 150,00/mensais;
7. A decisão que homologou a atribuição à Recorrente do direito à casa de morada de família transitou em julgado, extinguindo-se tal direito apenas com a partilha dos bens;
8. Existe conexão indissociável entre tal direito e a própria execução, dada a sua natureza real, comprovada pela posse efectivamente exercida pela Recorrente e, por isso, oponível à exequente, independentemente de registo, dada a sua natureza possessória e temporária;
9. O exercício temporal de tal direito depende do Estado no exercício soberano da actividade judicial, a quem compete solucionar em tempo útil o inventário em curso;
10. A executada está a ser vítima da actividade judiciária do Estado contra a qual nada pode fazer, decorridos mais de sete anos e sem quaisquer resultados à vista;
11. A Constituição, face à situação limite em causa, tutela directamente o direito da Recorrente, valorando e privilegiando a eminência da dignidade humana nas vertentes da defesa da habitação e tutela jurisdicional efectiva, valores a prevalecer, embora temporariamente, quanto aos interesses da exequente;
12. A interpretação do Tribunal a quo quanto ao artigo 828.º do Código de Processo Civil é inconstitucional por violar os princípios da observância da força do trânsito em julgado e tutela jurisdicional efectiva consagrados no artigo 20.º, n.º 5, da Constituição;
13. O Tribunal a quo não valorou correctamente a matéria de facto em apreço e, por outro lado, a aliás douta decisão proferida padece também de erro de interpretação dos preceitos constitucionais e do direito comum aplicáveis;
14. O Tribunal a quo na interpretação acolhida quanto ao artigo 828.º do Código de Processo Civil violou o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva devendo conhecer-se de tal inconstitucionalidade;
15. O Tribunal a quo não considerou o princípio da verdade material que resulta do disposto nos artigos 2.º e 6.º do Código de Processo Civil e 2.º e 20.º da Constituição;
16. Violou também a aliás douta decisão o disposto nos artigos 1484.º, 1485.º, 1490.º do Código Civil, 1.º, 18.º e 65.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.”
Não se encontra junta aos autos a resposta da exequente.
II.Âmbito do recurso
São as conclusões da alegação da Recorrente que delimitam o objeto do recurso, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do Código de Processo Civil, doravante denominado “CPC”). Importa, pois, decidir se verificam circunstâncias que obstem à entrega do imóvel adjudicado à exequente.
III. Iter processual relevante
1. Na execução comum que a B... move a C... e D..., em 26/05/2009 foi penhorado o prédio urbano descrito na Conservatória do registo predial de Marco de Canaveses sob o n.º 300/19920720, inscrito na matriz predial sob o artigo 1650º da freguesia ....
2. Na abertura de propostas de 25/06/2013, a exequente, B..., apresentou a proposta única de aquisição do prédio penhorado pelo valor de 130.000,00€, a qual foi aceita.
3. Por decisão transitada em julgado foi o imóvel penhorado adjudicado à exequente em 25/06/2013. Por via disso, a propriedade do imóvel está registada a favor da exequente pela ap. 2520, de 2013/07/26.
4. O imóvel foi adjudicado à exequente em 25/06/2013.
5. A exequente requereu a entrega do prédio adjudicado em 04/12/2013, 23/01/2014 e 19/06/2014.
6. Em 25/03/2015 requereu a exequente, de novo, a entrega do prédio que lhe foi adjudicado.
7. Requerimento que mereceu despacho datado de 04/04/2016, deferindo a entrega do prédio à exequente e autorizando a intervenção de força pública, caso a executada não desocupasse o prédio em 10 dias.
8. A executada opôs que o prédio em causa constitui a casa de morada de família, mas integra os bens comuns do casal que constituiu com o executado C..., cujo casamento foi dissolvido por divórcio, encontrando-se pendente o inventário para partilha dos bens comuns. Defendendo ser titular de um direito real de habitação que se não extinguiu com a adjudicação do imóvel à exequente, requereu a suspensão da entrega do mesmo imóvel até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no processo de inventário.
9. Em 29/04/2016 a exequente requereu, mais uma vez, a entrega do imóvel e o recurso à força pública.
10. Em 19/05/2016 foi proferido despacho que solicitou informação sobre o estado do processo de inventário e determinou a suspensão das diligências para a entrega do imóvel.
11. Em 16/03/2017 a E... deduziu incidente de habilitação, invocando o contrato de cessão de créditos, designado por contrato de compra e venda de créditos, outorgado, em 29 de novembro de 2016, com a B..., mediante o qual esta lhecedeu os créditos que detinha sobre os Executados com todas as garantias acessórias a ele inerentes.
12. Por decisão de 27/04/2017, transitada em julgado, foi habilitada como cessionária a E... com fundamento na cessão de créditos da exequente, incluindo do crédito exequendo.
13. Em 19/02/2018, considerando que o processo de inventário não é oponível à exequente, foi proferido despacho que ordenou a entrega do imóvel à cessionária E....
14. A executada a D... interpôs recurso desse despacho, que não foi admitido na consideração de estar em causa um despacho de mero expediente e de a adjudicação já ter sido decidida há muito tempo e não ter sido impugnada.
15. Face a tal decisão, a executada deduziu reclamação, que foi atendida.
16. No processo de divórcio litigioso que C... moveu a D..., acordaram os cônjuges a sua conversão em divórcio por mútuo consentimento e, nesse âmbito, acordaram na atribuição da casa de morada de família à Ré e até à partilha. Acordo que foi homologado por sentença datada de 21/06/2010, transitada em julgado.
IV. Fundamentação de direito
Na presente execução, por decisão transitada em julgado foi o imóvel penhorado adjudicado à exequente em 25/06/2013. Por via disso, a propriedade do imóvel está registada a favor da exequente pela ap. 2520, de 2013/07/26. Entretanto, por sentença de 27/04/2017, transitada em julgado, foi habilitada como cessionária a E... com fundamento na cessão de créditos da exequente, incluindo do crédito exequendo. Cessão cujos efeitos a Recorrente contesta, contrapondo que não lhe pode ser deferida a entrega do imóvel, por não estar registado a seu favor.
O instituto da cessão de créditos, que emerge do artigo 577º do Código Civil, traduz a modificação subjetiva operada na relação creditícia, mediante acordo causal, através de um contrato típico ou atípico, notificado ao devedor de modo a que, a partir da notificação da cessão, bem como da sua aceitação ou conhecimento, a titularidade do crédito ingressa na esfera do cessionário e só perante ele o devedor se desobriga da prestação.
Com efeito, estatui aquela norma que o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, produzindo efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite ou conheça (artigo 583º/ 1 do Código Civil). Vale por dizer que com a cessão de créditos se verifica a substituição de credor originário por outra pessoa – modificação subjetiva da obrigação –, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional[1]. Nessa medida, como a cessão representa uma simples transferência da relação obrigacional pelo lado ativo, o devedor cedido pode valer-se, em face do novo credor (cessionário), dos meios direitos de defesa que lhe era lícito opor ao antigo credor (cedente), exceto dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (artigo 585º do Código Civil). Ela representa somente uma modificação da relação jurídica, passando a titularidade do direito de crédito da esfera do cedente para a do cessionário e, notificada, aceita ou conhecida a cessão pelo devedor, o cumprimento da correspetiva obrigação deve ser feito perante o cessionário (artigo 583º do Código Civil).
Na realidade, a cessão de créditos não é, em si, um contrato; antes representa o efeito de um negócio jurídico causal de contornos e de âmbito variável. Por isso se afirma que “(...) o direito de crédito transmite-se no direito português, por efeito de um contrato translativo que tenha esse direito como objecto. A notificação é exterior à transmissão e serve o intuito exclusivo de dar conhecimento ao devedor como forma de lhe retirar a protecção que, em virtude de não poder intervir na transmissão, lhe é conferida pela lei”.[2]Finalidade aqui plenamente alcançada com a notificação da devedora para o incidente de habilitação, operando, por essa via, os efeitos legais correspondentes.
Esta proposição em nada é afetada com o facto de o crédito cedido já estar reconhecido em título executivo e de estar pendente execução para a sua realização coativa, sendo oponível ao devedor a cessão efetuada no decurso da execução[3]. Donde a asserção de que competem à cessionária os mesmos direitos que cabiam à exequente originária, assumindo aquela, na execução, o papel de exequente.
A Recorrente objeta que o crédito se não encontra individualizado no contrato de cessão de créditos, mas a mesma foi notificada para os termos do incidente e não deduziu qualquer oposição. É, portanto, insustentada a sua tese de que a cessionária carece de legitimidade para pedir a entrega.
Ignoramos se a cessionária já registou o seu direito de propriedade sobre o imóvel com base na cessão, por a certidão registral junta aos autos não se encontrar atualizada. De qualquer modo, a omissão do registo não a impede de exercitar os direitos que lhe são reconhecidos pela via da cessão de créditos, a qual a investiu no papel processual da exequente originária, sendo, por isso, tida como adquirente do imóvel.
Na cessão de créditos o devedor tem um papel puramente passivo e, depois da cessão lhe ter sido notificada ou de ele a ter aceite ou conhecido, o cessionário é, para todos os efeitos, o único credor[4]. E na situação de solidariedade passiva, como no caso dos executados, notificados os dois condevedores, ambos ficam submetidos à obrigação de realizar a prestação perante o cessionário.
O adquirente, com base no título de transmissão, pode requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens (artigo 828º do CPC), o que reconduz a entrega dos bens ao adjudicatário como um ato da tramitação processual especificamente prevista na lei. Nesta medida, embora a requerente da entrega não seja a adjudicatária, mas a cessionária dos créditos da exequente sobre os executados, continua esta legitimada a exigir a entrega do imóvel adjudicado. Por isso, foi proferido o impugnado despacho que determinou a entrega do imóvel adjudicado à cessionária, por lhe ser inoponível o processo de inventário que pende para partilha dos bens dos executados na sequência de divórcio e que abrange o imóvel adjudicado à exequente.
Na verdade, a pendência do inventário para partilha dos bens comuns do casal dissolvido por divórcio não surtirá qualquer efeito na execução nem na adjudicação. Sendo os dois cônjuges executados neste processo, ainda que o imóvel venha a ser adjudicado à Executada requerente, a execução seguirá os seus normais termos. Logo, a partilha não terá qualquer efeito sobre a pedida entrega do bem adjudicado.
A Recorrente argumenta que o imóvel constitui a sua casa de morada de família, que lhe foi atribuída no processo de divórcio e, tratando-se de um direito real de habitação, é oponível à exequente/cessionária.
O artigo 1775º/1, d), do Código Civil, impõe, em caso de divórcio por mútuo consentimento, a apresentação de acordos, além do mais, sobre “o destino da casa de morada de família”, como expressão da tutela legal conferida à unidade e preservação da vida familiar, da qual é essência a estabilidade da casa de morada da família. Donde, compreensivelmente, seja legalmente imposto que, na constância do casamento, dependa do consentimento de ambos os cônjuges a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família, seja qual for o regime de bens do casamento ou a esfera patrimonial a que o imóvel pertença (artigo 1682º-A, 2, do Código Civil). No fundo, o imóvel afeto à casa de morada de família adquire um estatuto próprio, que se revela independente da sua natureza de bem próprio de um dos cônjuges ou de bem comum do casal e que pode ser submetido a arrendamento. Especificidade de estatuto que, dissolvido o casamento, lhe mantém a vocação de casa de morada de família, que não fica na livre e inteira disponibilidade das partes, restando ao juiz ou ao conservador a ponderação do acordado em prol dos interesses dos cônjuges e dos filhos.
Não obstante essa tutela de ordem pública, cremos que esse acordo tem uma natureza negocial, que resulta da conjugação das vontades dos cônjuges, embora sujeita ao controlo do juiz ou do conservador do registo civil. De todo o modo, essa aceitação/homologação não deixa de assentar sobre a vontade real dos cônjuges e não lhe retira, portanto, a sua natureza puramente negocial. In casu, o regime jurídico específico da casa de morada de família só pode ser de natureza obrigacional/pessoal e não de natureza real, porque está em causa o destino da casa de morada da família e a sua atribuição à ex-cônjuge mulher até à partilha. Trata-se de uma utilização cautelar e provisória, sem aptidão para produzir a constituição ou a transferência de direitos reais, designadamente do direito real de habitação a que apela a Recorrente. Admitimos que a questão poderá ser controvertida nos casos em que a utilização do bem é definitiva para o período posterior ao divórcio. Apesar de o acordo realizado entre os cônjuges manter a natureza de negócio jurídico, será necessário interpretar os seus termos e a medida da vinculação estabelecida.
A propósito, o artigo 1484º do Código Civil dispõe que o direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respetivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família. E quando esse direito se refere a casa de morada, chama-se direito de habitação. Por seu turno, o artigo 1485º estabelece que os direitos de uso e de habitação se constituem e extinguem pelos mesmos modos que o usufruto, sem prejuízo do disposto na alínea a) do artigo 1293º do Código Civil, e são igualmente regulados pelo seu título constitutivo; na falta ou insuficiência deste, observar-se-ão as subsequentes disposições. Tudo melhor explicitado pelo teor do artigo 1490º do Código Civil, ao estatuir que se aplicam aos direitos de uso e de habitação as disposições que regulam o usufruto, quando conformes à natureza daqueles direitos. Normas que, colocando o contrato como fonte do direto real de habitação (artigo 1440º do Código Civil) transportam para um acordo desse jaez a transferência de um direito real de habitação, “que obteve a chancela do tribunal que decretou o divórcio, pois o acordo dos cônjuges a seu respeito ficou necessariamente incluído na homologação que teve lugar na sentença, homologação essa que o magistrado poderia recusar se concluísse que os interesses de um dos cônjuges ou dos filhos não ficavam devidamente acautelados (artºs 1775º, nº 3, e 1778º)”[5].
Só que na situação vertente, iteramos, a medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família “é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer numa atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso, fundada em razões de equidade e justiça, estabelecida por analogia com o regime que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família”[6].
Dos considerandos tecidos extraímos, pois, a conclusão de que direito de utilização da casa de morada de família, de cariz transitório e cautelar, não tem natureza real e não goza da proteção de inoponibilidade à credora, como defende a Recorrente. De todo o modo, sempre adiantamos que, ainda que assim fosse, não era seguro que esse direito fosse oponível à credora.
Do que vem alegado parece estar em causa a habitação principal da executada. E, no que respeita à entrega dos bens adjudicados, determina o predito artigo 828º do CPC que sejam observados os termos prescritos no artigo 861º, devidamente adaptados, a significar que, tratando-se da casa de habitação principal do executado, é convocado o estabelecido no artigo 863º/3 a 5 do CPC e, caso se suscitem dúvidas sérias quanto ao realojamento do executado, cabe ao agente de execução comunicar antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais (artigo 861º/4 do CPC).
A executada pugna pela suspensão da execução até à partilhe definitiva, a qual, a esta luz, só seria possível se a executada demonstrasse estar em causa a sua casa de habitação principal e padecer de doença aguda qualquer pessoa que se encontre no local e que a realização da diligência a coloque em risco de vida, tudo comprovado com a apresentação de atestado médico que indique a doença e, fundamentadamente, o prazo durante o qual se deve suspender a execução[7]. A executada não prosseguiu esta via e não há fundamento para a pedida suspensão da entrega.
Apela também a Recorrente à proteção constitucional do direito à habitação e à inconstitucionalidade da interpretação acolhida pela decisão impugnada.
A consagração de uma proteção legal à casa da morada da família data das alterações introduzidas ao Código Civil pelo decreto-lei n.º 496/77, de 25 de novembro, em vigor desde 01/04/1978 (artigo 176º desse diploma legal). Com tal amplitude que permitiu, em caso de divórcio, a constituição, por decisão judicial, de uma relação de arrendamento da casa de morada da família a favor de um dos ex-cônjuges, quando o imóvel seja um bem próprio do outro cônjuge e contra a vontade deste. Norma que tem sido sufragada de constitucional, por se entender que a mesma não tem efeito ablativo do direito de propriedade, de modo a que possa atribuir-se-lhe efeito expropriativo. O direito de propriedade do ex-cônjuge é mantido na sua titularidade, vendo-se apenas privado do seu jus utendi, que tem por contrapartida o pagamento da renda, imposta ao outro cônjuge pela cedência do gozo da coisa[8].
Nessa mesma linha de pensamento, tem continuado a decidir o Tribunal Constitucional ao formular juízo de constitucionalidade sobre o artigo 1793º/1 do Código Civil, na parte em que permite ao tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, seja comum ou própria do outro. Apesar de se verificar a ingerência estadual do direito de propriedade de um dos cônjuges, por ato de autoridade e sem o consentimento do seu titular, pela sua submissão a um contrato de arrendamento, entendeu haver fundamento para cedência deste direito de fruição perante outros valores constitucionalmente protegidos designadamente para proteção da família, enquanto elemento fundamental da sociedade [artigo 67º da Constituição da República Portuguesa (CRP)][9]. Portanto, há uma nítida proteção do direito à habitação, com particular acuidade no domínio da proteção à família.
A Recorrente invoca ainda a inconstitucionalidade decorrente da violação do artigo 20º/5 da CRP, por entender que a decisão tomada atenta contra o trânsito em julgado da decisão que lhe deferiu a ocupação do imóvel durante a pendência da partilha de bens comuns na sequência de divórcio.
Estatui a norma evocada que, para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos. É o acesso ao direito e à justiça, o direito a um processo equitativo e a uma decisão em prazo razoável. Direito constitucional, mas também um direito consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que constitui um direito inalienável de qualquer cidadão. Não intuímos, contudo, que a Recorrente tenha visto frustrado o seu direito à justiça, pois foi deduzindo as suas pretensões, que mereceram resposta em tempo útil e sem que a insuficiência económica que refere tenha obstado ao pleno exercício desse mesmo direito, gozando da necessária proteção jurídica.
Os atrasos que imputa ao processo de inventário não podem ser valorados em sede deste processo de execução e, neste, não sinaliza a Recorrente que a justiça foi temporalmente inadequada e que o tribunal não se pronunciou sobre a causa num prazo razoável.
Por fim, não tem cabimento a sua alegação de que o despacho impugnado incorreu em violação do trânsito em julgado da decisão que lhe conferiu a utilização da casa de morada de família. Face ao ordenamento jusprocessual civil, tal só sucederia numa situação de caso julgado material, com força obrigatória dentro do processo de divórcio e fora dele. E o caso julgado pressupõe a ocorrência de determinados pressupostos, ou seja, exige que as ações sob cotejo tenham identidade de sujeitos, de objeto e de causa de pedir (artigo 581º do CPC). Não é essa, manifestamente, a situação em causa. Não se trata também de situação em que possamos apelar à autoridade de caso julgado, que visa o efeito positivo de impor ao tribunal a força vinculativa de anterior decisão, transitada em julgado, proferida noutro processo como questão prejudicial ou prévia em face do thema decidendum da posterior acção[10]. A autoridade de caso julgado exige a relação de prejudicialidade entre as duas ações e supõe que o fundamento da decisão transitada condicione a apreciação do objeto da ação posterior e que as partes sejam as mesmas. Ora, uma decisão proferida entre os cônjuges acerca do uso da casa de morada de família não tem a virtualidade de afetar terceiros, em concreto a exequente/cessionária que, na execução, pede a entrega do imóvel que, após penhora, lhe foi adjudicado para realização coativa do seu crédito. Seria anómalo e contrariaria o princípio do contraditório, estruturante do processo civil, admitir a vinculação de um terceiro a uma decisão proferida em processo em que não interveio nem pode nele defender os seus interesses (artigo 3º do CPC). Donde a irrelevância da correlativa questão suscitada pela Apelante.
A Recorrente enquadra essa questão no domínio da inconstitucionalidade, mas a exceção dilatória de caso julgado material não constitui um obstáculo arbitrário ou desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, justificando-se com a necessidade de segurança jurídica e da coerência das decisões judiciais, valores que contribuem para promover a paz jurídica e social e o respeito dos cidadãos pelos tribunais. De todo o modo, o objeto da inconstitucionalidade é sempre uma norma ou a sua interpretação e não uma decisão judicial.
Aliás, perante uma violação ou ameaça de violação de um direito fundamental, o principal mecanismo de tutela do direito é o acesso aos tribunais. Com efeito, “[o] meio de defesa por excelência dos direitos, liberdades e garantias continua a ser (…) constituído pela garantia, a todas as pessoas, de acesso aos tribunais, para defesa da generalidade dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)[11]. Ora, ao longo da execução a Recorrente expôs ao tribunal e por diversas vezes a sua posição perante a matéria decidida, sem que tenha qualquer fundamento para invocar denegação no acesso ao direito a uma decisão equitativa.
Em suma, inexiste qualquer inconstitucionalidade das normas, tácita ou expressamente, convocadas pela decisão judicial impugnada, nem a sua aplicação no caso concreto representa uma interpretação violadora de princípios constitucionais.
O expendido determina o insucesso da apelação e a confirmação da decisão recorrida.
V. Dispositivo
Na defluência do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação interposta pela executada Carolina Graça Morais Moreira e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
As custas da apelação seriam a cargo da apelante, que delas está dispensada por força do apoio judiciário de que beneficia.
*
Porto, em 09 de outubro de 2018.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4ª ed., págs. 554 e 555.
[2] Assunção Cristas, Transmissão Contratual do Direito de Crédito, Almedina, 2005, pág. 219.
[3] In www.dgsi.pt: Ac. RC de 22/11/2016, processo 3956/16.8T8CBR.C1 (quadro factual similar).
[4] Mário Júlio de Almeida Costa, ibidem, pág. 558.
[5] In www.dgsi.pta: Ac. do STJ de 08/05/2013, processo 1064/11.7TBSYM.P1.S1.
[6] In www.dgsi.pt: Ac. RC de 13/10/2018, processo 135/12.7TBPBL-C.C1.S1.
[7] In www.dgsi.pt.: Ac. RE de 21/02/2013, processo 2055/06; 12/07/2017, processo 422/13.7TBLMG-C.C1.
[8] In www.tribunalconstitucional.pt.: Acórdão n.º 127/13, de 20/03/2013.
[9] In www.tribunalconstitucional.pt: Ac. TC n.º 672/12, de 27/02/2013.
[10] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 2ª e., 1997, pág. 572.
[11] José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, pág. 342.