CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
DESOBEDIÊNCIA
CAPACIDADE DE DISCERNIMENTO
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
Sumário

Numa situação em que o arguido é portador de uma taxa de álcool no sangue que, em face da experiência comum, lhe retira a plenitude da capacidade de entendimento e autodeterminação, a imputação de um crime de desobediência carece de ser acompanhada da prova de factos que permitam concluir que são de afastar essas precisas regras de experiência comum.

Texto Integral

Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
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I – Relatório:
Em processo sumário, L... foi condenado pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artº 348°, n.º 1, aI. a), do Código Penal, com referência ao art.º 152°, n.º 3, do Código da Estrada, na pena de cem dias de multa, à taxa diária de seis euros, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, prevista no artº 69º/1- a) do CP, pelo período de seis meses.
 O arguido recorreu, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos, que se transcrevem:
«1º Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls ... proferida nos autos supra referidos, que condenou o arguido L...: a) pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art.º 348º, n.º 1, aI. a), do Código Penal, com referência ao art.º 152º, n.º 3, do Código da Estrada, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), perfazendo a multa de € 600 (seiscentos euros).  b) Condenar o arguido, na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, prevista no art.º 69º, n.º 1, aI. a) do Cód. Penal, pelo período de 6 (seis) meses.
Todavia,
2º Não está preenchido o tipo de crime pelo qual o arguido foi condenado.
3º Dos factos dados como provados, conclui-se que o arguido não se recusou a submeter- se às provas de detecção de álcool no sangue, não tendo faltado à obediência de qualquer ordem do agente de autoridade.
4º Não ficou provado que o arguido recusou submeter-se ao teste de alcoolemia.
5º Antes se conclui que o arguido submeteu-se aos testes em analisador quantitativo, não tendo no entanto conseguido expelir ar suficiente.
6º Ora, nesta situação, seria aplicável o disposto no artigo 153º nº 8 do Código da Estrada, conjugado com o artigo 4º nº 1 da Lei 18/2007 de 17 de Maio, submetendo-se o examinando a teste através de análise sanguínea, o que não aconteceu.
7º Deste modo, foram violados os artigos 153º nº 8 do Código da Estrada, 49 nº 1 da lei 18/2007 de 17 de Maio, 348º, nº 1, al, a) e 69º nº 1 al, a), ambos do Código Penal;
Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso, sendo a sentença revogada, não se mostrando preenchidos todos os elementos tipificadores do crime imputado, nas circunstâncias concretas dos factos apurados, sendo o arguido absolvido≫.
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações no sentido da improcedência do recurso.
Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta não emitiu parecer.
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II- Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objeto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), excetuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
As questões colocadas pelo recorrente, arguido, são de contradição dos termos da sentença, porquanto entende que os factos provados não consubstanciam uma recusa à obediência da ordem emitida pelos agentes da GNR e de violação do disposto nos artsº 153º/8, do CE, 4º/1, da Lei 18/2007, 348º/1-a) e 69º/1-a), do CP.
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III- Fundamentação de facto:
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos (agora numerados):
1- No dia 9/6/2012, pelas 5 horas e 45 minutos, na rotunda da Atrozela, (…) o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-...
2- Foi então fiscalizado por um guarda da GNR, (…) que lhe solicitou que procedesse a um teste de deteção de álcool no seu organismo, a que o arguido acedeu, soprando no aparelho de despistagem com vista à realização do teste qualitativo.
3- Esse aparelho mostrou um resultado de 2,79 g/l de álcool no sangue.
4- Seguidamente o arguido foi conduzido ao aparelho para realização do teste de deteção de álcool no sangue, do aparelho quantitativo, tendo-lhe sido explicado pelo sargento (…) como devia soprar no aparelho (…) de forma a obter o resultado quantitativo.
5- O arguido soprou três vezes no referido aparelho mas (…) emitindo um sopro curto e fraco, acusando (…) o 1º talão emitido por este aparelho após os 3 primeiros testes, “amostra incorreta”.
6- Novamente explicado ao arguido de como devia soprar de como devia realizar o teste e advertido que, caso não soprasse de forma a obter a obter um resultado do teste, incorria na prática de um crime de desobediência, o arguido voltou a submeter-se ao teste mas voltou a dar um resultado de “sopro insuficiente” (…) após novas três tentativas (…) devido à falta de vigor que o arguido imprimia ao sopro (…).
7- Dadas três oportunidades, após nova explicação do senhor militar da GNR no sentido de se submeter ao teste e de fazer um sopro continuo e prolongado, o arguido voltou a fazer o mesmo sopro curto e fraco que mais uma vez emitiu “talão de amostra incorreta”.
8- Ao agir da forma descrita o arguido agiu de forma livre e deliberada e conscientemente, visando não ser submetido às provas de deteção do estado de influência do álcool como conseguiu.
9- Sabia que a ordem foi emitida por uma autoridade competente para tanto em conformidade com a lei mas assim decidiu desobedecer, recusando de forma deliberada livre e conscientemente, a realização do referido teste.
10- O arguido estava ciente que esta conduta é proibida e punida por lei.
(…)
Antes da fiscalização referida em primeiro lugar o arguido tinha estado a ingerir cervejas na discoteca (…) tendo conhecimento de que é proibido por lei conduzir depois de estar a ingerir bebidas alcoólicas.
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IV- Fundamentação probatória:
O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
≪Estes factos são considerados provados tendo em conta, por um lado, as declarações do arguido, que admitiu efetivamente ter ingerido bebidas alcoólicas e ter conduzido em seguida; admitiu também ter-se submetido no âmbito da fiscalização, ao teste de despistagem, que não teve qualquer dificuldade, indicando porém que depois não conseguiu fazer os outros testes porque estava com soluços. Referiu ainda (…) ter soprado antes e ter sido condenado por um crime de condução sob estado de embriaguez, não tendo tido dificuldade em soprar nessa altura. (…)
Foram ainda muito relevantes as declarações do senhor militar da GNR (...) que (…) disse ter fiscalizado o arguido (…) submeteu-o ao teste de despistagem que deu (…) o resultado 2,70, entregando-o em seguida (…) a um colega J... de forma a que este procedesse ao teste do aparelho drager, para obter um resultado (…) quantitativo (…) que depois não presenciou.
Por fim o senhor (...) (…) de forma (…) relatou de forma muito detalhada a forma como explicou ao arguido como devia soprar no balão, que não era preciso um sopro muito forte mas sim um sopro contínuo e prolongado e que o arguido apesar dessas advertências e de que incorria na prática de um crime de desobediência, insistiu em fazer sopros curtos e fracos, de forma a que após nove sopros foram emitidos três talões com amostra incorreta ou sopro insuficiente. Explicou ainda que o arguido não aparentava qualquer problema físico ou incapacidade de saúde para fazer o respectivo teste, até porque este teste é necessário precisamente o mesmo tipo de sopro que para o teste de despistagem, que o arguido conseguiu fazer sem qualquer problema, negou que o arguido tivesse qualquer problema de soluços no momento, não revelou qualquer incapacidade (….) e também que dizia constantemente (…) para não lhe estragarem a vida porque tinhas problemas familiares (….) e tinha tido um problema de álcool há algum tempo e que lhe iam estragar a vida.
(…) Comparando toda esta prova testemunhal com a prova documental constante do processo, designadamente (…) os talões dos alcoolímetros emitidos a folhas 5 e 7 (…) o tribunal não tem quaisquer dúvidas que o arguido, de forma livre, deliberada e conscientemente, imprimiu sopro perfeitamente insuficiente, sabendo perfeitamente de que assim inviabilizava a realização deste teste e que foi com esse objetivo que agiu porque é esse precisamente o contexto em que agiu. Visava não ser detetada a taxa de alcoolemia que era efetivamente muito elevada, para não voltar a ter um processo, como já tinha tido, de condução de veículo em estado de embriaguez≫.
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V- Fundamentos de direito:
A- Do vício de contradição insanável entre a fundamentação:
A primeira questão colocada pelo recorrente é a da inadequação da matéria de facto provada à conclusão, retirada na sentença, de que desobedeceu à ordem, emitida pela autoridade policial, de se submeter a exame de pesquisa de álcool por sopro, em aparelho de análise quantitativa. Não enquadra juridicamente a questão, é certo, mas a sua argumentação tem cabimento, notoriamente, na invocação do vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (artº 410º/2-b), do CPP). O referido vício supõe posições antagónicas e inconciliáveis entre si nos factos descritos ou entre essa descrição e a respectiva fundamentação. Verifica-se quando «segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou, quando, seguindo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida, quer porque existe contradição entre os fundamentos e a decisão, quer porque se dá como provado e como não provado o mesmo facto» ([3]). «Existe o vício (…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre facto provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal» ([4] ).
Ora, na sentença recorrida, foi considerado que:
- (i) O arguido, condutor de um veículo ligeiro de passageiros, submetido ao teste de despistagem de alcoolemia através de ar expirado, acusou uma TAS de 2,70 g/l;
-(ii) Tendo-lhe sido ordenado que efetuasse novo teste em aparelho de pesquisa por ar expirado, desta feita pelo método quantitativo, efetuou nove sopros, que foram insuficientes para a pesquisa visada, porquanto o aparelho acusou, sucessivamente, “amostra incorreta”, “sopro insuficiente” e “amostra incorreta”;
-(iii) Fez tais sopros sempre mediante ordens do agente policial, que lhe  explicou, pelo menos por três vezes, como efetuar o sopro de modo a obter resultados e que o advertiu de que, caso não soprasse de forma a obter a obter esse resultado, incorria na prática de um crime de desobediência;
- (iv) Sabendo que a ordem de sopro tinha emitida por uma autoridade competente para tanto, em conformidade com a lei, decidiu desobedecer, recusando a realização do referido teste;
- (v) Ao agir da forma descrita, livre e deliberada e conscientemente, visou não ser submetido às provas de deteção do estado de influência do álcool o que conseguiu;
- (vi) Antes da fiscalização o arguido tinha estado a ingerir cervejas tendo conhecimento de que é proibido por lei conduzir depois de estar a ingerir bebidas alcoólicas.
Em face do exposto se percebe que a sentença recorrida confundiu (i) proibição de conduzir com taxa de álcool superior a 1,20g/l e proibição de conduzir após ingestão de bebidas alcoólica, por um lado – pois aí se afirmou erradamente que é “proibido por lei conduzir depois de estar a ingerir bebidas alcoólicas”, o que não tem correspondência com o texto penal - e (ii) recusa de submissão ao teste com recusa de produção de um sopro apto a ser medido pelo aparelho em causa, por outro – pois tanto se afirmou que o arguido soprou por nove vezes, em obediência à ordem que lhe estava a ser dada pelo agente da GNR, como afirmou que se recusou a realizar o teste e que conseguiu não ser submetido à prova de deteção do estado de alcoolemia.
Ora, em face da segunda referida confusão, impõe-se a constatação de que há contradição insanável entre a fundamentação porque, face dos termos dos factos provados não se pode sustentar, logicamente, que o arguido tenha recusado a realização do teste e, ao mesmo tempo, dizer que se submeteu a ele por nove vezes - sendo certo que em face desses precisos termos o elemento subjetivo do crime não reflete uma recusa de um sopro de acordo com as ordens emitidas. Tanto se afirma (e só se afirma) que soprou como se afirma que recusou a realização do teste. Um crime de desobediência por recusa de execução de uma ordem implica a constatação dessa recusa, sendo que recusa alguma de realização do teste se pode concluir da sua… realização.
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B- Do vício de erro notório na apreciação da prova:
Se atentarmos na fundamentação da aquisição probatória encontramos também um vício de erro notório na apreciação da prova.
O referido vício tem a ver com a aptidão da fundamentação da aquisição probatória à consideração sobre se determinados factos se encontram provados, ou não. Existe erro notório na apreciação da prova quando, considerado o texto da decisão recorrida, por si, ou conjugado com as regras de experiência comum, se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal. Ocorre o vício, quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica normal, revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados entre si, ou entre os provados e os não provados, ou traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta ([5]). O vício ocorre ≪sempre que, para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulada no art.127º do CPP, quando afirma que a prova é apreciada segundo as regras da experiência≫ ([6]). Este vício prende-se com os limites a que está sujeito o princípio da livre apreciação da prova, p. no artigo 127º/CP, que «não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável: Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão» ([7]).
Na fundamentação da aquisição probatória da sentença recorrida refere-se que a aquisição dos factos relativos à pretensa recusa (não de sopro mas de produção de um sopro apto a ser medido pelo aparelho) se fundamentou no depoimento da testemunha Gomes que, de forma credível, terá asseverado que o arguido ≪ insistiu em fazer sopros curtos e fracos≫ e que, não obstante, ≪não aparentava qualquer problema físico ou incapacidade de saúde para fazer o respectivo teste, até porque este teste é necessário precisamente o mesmo tipo de sopro que para o teste de despistagem, que o arguido conseguiu fazer sem qualquer problema≫. Ora, estando em causa o sopro de um indivíduo que, no teste mais impreciso, acusou uma TAS de 2,70 g/l, não se compreende como se pode aceitar, acriticamente, que o embriagado não aparentava qualquer problema físico ou incapacidade de saúde apta a interferir na capacidade de bem fazer o teste, sendo que a sentença recorrida aceitou a tese, sem a cotejar com o resultado da experiência comum e sem produção de prova que a permita acolher.
A capacidade de entendimento e de controlo do comportamento é, como se sabe, seriamente afetada pelo consumo do álcool, sendo que a partir de 3,5g/l há forte contingência de uma situação de coma alcoólico e até de morte. É genericamente reconhecido que um dos principais efeitos do álcool é a falta de coordenação motora que, segundo a maioria dos estudos publicados, mesmo sem grande profundidade científica, começa a fazer notar-se a partir de uma concentração de 0,9 g/l, que já pode determinar também situações com perda de equilíbrio. Considera-se que, com uma concentração de álcool acima de 2,00 g/l, um homem normal suporta importante diminuição da capacidade de resposta aos estímulos, importante incoordenação motora, incapacidade de deambular ou coordenar os movimentos e prejuízo da consciência, com sonolência ou estado estupor, ou seja, um estado de consciência ou sensibilidade apenas parcial ou de insensibilidade acompanhada por pronunciada diminuição da faculdade de exibir reações motoras.
Por outro lado, como se sabe a produção de efeitos do álcool não é algo estável. Tem um ciclo inicialmente ascendente e depois descendente. O tempo de reação em cada ciclo varia em função de uma série de fatores, que o vão desde o tipo de bebida, às circunstâncias da ingestão (de tempo e outras) e à idiossincrasia de cada indivíduo (a idade, condição física, hipersensibilidade, habitualidade), etc.
No caso, desconhece-se em que fase do ciclo estava o arguido, esto é, se quando efetuou os sopros insuficientes estava com maior ou menor toxicidade do que quanto efetuou o primeiro sopro.
Entre a lucidez total e o coma (ou a morte) há gradações no estado de consciência do indivíduo que, no caso, não obstante não terem sido cientificamente medidas, não podem deixar de se considerar como resultado da experiência comum. Isto quer dizer que a imputação dolosa de um sopro insuficiente para a obtenção de uma medição adequada, numa situação como aquela de que cuidamos, não se pode colher do simples facto de esse sopro não ter resultado, porque há que reconhecer que havia fortes indícios de que arguido estava em alcoolização profunda, com a inerente (necessariamente) falta de domínio das suas capacidades intelectuais e motoras, ou seja, estava fortemente limitado na sua auto-determinação e na adequação da sua atitude a essa auto-determinação.
É certo que a entidade policial o advertiu sobre a forma adequada de realizar o sopro.
Mas há que perceber que não é, necessariamente, pelo facto de lhe terem sido dadas instruções que se pode ter por adquirido que delas o alcoolizado tenha tido a necessária consciência ou compreensão e/ou que sempre se tenha mantido no perfeito controlo das suas faculdades intelectuais e motoras, de forma a dispor delas para a produção de um sopro, adequadamente forte e contínuo, suscetível de ser objeto de medição naquela precisa máquina.
Se a punição da condução sob o efeito do álcool tem precisamente por pressuposto a falta de controlo das plenas capacidades cognitivas e reativas, que o estado decorrente da ingestão de bebidas determina, assumir que, num mesmo momento, é pressuposto que o agente não disponha dessas capacidades, para efeitos punitivos pelo crime de condução sob embriaguez, mas disponha para quaisquer outros efeitos, ainda que penais, pode representar um contra-senso que só se evita se o julgador se rodear das cautelas adequadas a perceber, em termos de facto, qual a verdadeira dimensão da sua capacidade de entendimento e de auto-determinação, indispensáveis para a fixação dos factos pertinentes ao elemento subjetivo (e até objetivo) do crime e fundamente, adequadamente, essa convicção.
≪Como deve resultar evidente, a circunstância de ser elemento típico do próprio crime (de condução sob o efeito do álcool) em estudo a presença de determinada taxa de álcool no sangue, implica, vistos os efeitos que aquela substância pode ter sobre o organismo do indivíduo e nomeadamente no que respeita à capacidade de autodeterminação, certas especificidades relativas à aferição da sua liberdade no momento da prática do facto. Numa palavra suscitar-se-ão amiúde dúvidas sobre a culpa do agente.Com efeito, ao exigir que no momento da prática do facto o agente esteja capaz de avaliar a ilicitude daquele ou de se determinar de acordo com tal avaliação, consagra a nossa lei (artigo 20.º, n.º 1 do CP) o postulado da coincidência ou princípio da simultaneidade entre facto (ilícito típico) e culpa. Daqui decorre, com as ressalvas que adiante se referirão, que quedará impune o agente se no momento em que leva a efeito a acção típica (in casu, a condução de veículo motorizado em via pública com uma TAS igual ou superior a 1,2 g/l) e por força do álcool ingerido não se encontrar capaz de avaliar a ilicitude de tal conduta ou de determinar-se de acordo com a avaliação feita. O facto ilícito típico que venha a praticar em tais condições será, quando menos, uma actio non libera in se. No entanto, importará ainda indagar se esse estado foi por ele provocado de modo negligente ou doloso e neste último caso se obrou com dolo directo, necessário ou eventual. Concluindo-se que o agente agiu, no que se reporta à criação do aludido estado de inimputabilidade, em violação de um dever objectivo e subjectivo de cuidado (artigo 15.º do CP) ou, mais do que isso, querendo ou prevendo aquele estado como consequência necessária da sua conduta ou ainda conformando-se com o mesmo (artigo 14.º do CP), abrem-se então várias hipóteses: Nas primeira (actuação negligente), terceira e quarta (actuação com dolo necessário ou eventual) , trata-se de situações que eventualmente serão conformadoras da estrutura típica da actio libera in causa, mas que não serão punidas nos termos do n.º 4 do artigo 20.º do CP, antes integrando, autonomamente, o crime de embriaguez e intoxicação (artigo 295.º do CP). Na segunda, se o agente agir ainda com dolo directo ou intencional em relação ao crime de condução em estado de embriaguez, no momento em que também com a mesma atitude subjectiva criar o estado de inimputabilidade então será punido nos termos do artigo 20.º, n.º 4 do CP pela prática daquele crime. Trata-se, com a distinta qualificação jurídico-penal do comportamento do agente, de questão sem grande alcance prático no plano das consequências jurídicas do facto uma vez que nunca poderá aquele ser punido com pena superior à cominada para o crime de condução em estado de embriaguez (n.º 2 do artigo 295.º do CP)≫ ([8])
Nesta sentença não se cuidou, como acima referimos, de sujeitar a opinião do agente, de que o arguido agiu em pleno domínio das suas faculdades físicas e mentais, ao crivo daquelas regras de experiência comum acima, muito genericamente, enunciadas.
E, essa omissão leva, necessariamente, à firme noção de que o Tribunal a quo fez uma apreciação incorreta da prova produzida, na medida em que deu por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica normal, se traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, incorreta e insustentável, em face dos demais dados de facto do processo.
O princípio da livre apreciação da prova «não deve traduzir-se em mais que não aprisionar o juiz em critérios preestabelecidos pela lei para formar a sua convicção, mas não para o isentar de obediência às regras da experiência e aos critérios da lógica. Neste sentido, um elemento de legalidade entra de novo no problema da apreciação da prova. Ainda que não fixadas pela lei, ele implica, na verdade, que certas regras de direito (nas quais podem transformar-se as leis da lógica e da experiência) presidam à avaliação da prova pelo juiz, mesmo onde falamos de livre convicção. Ideia que implica, por um lado, a possibilidade de apreciar em via de recurso a violação de tais leis na apreciação da prova e, por outro lado, (…) conduz à necessidade de motivar as decisões em matéria de facto» ([9]).
Temos então, por assente, que a presente sentença padece, também, do vício de erro notório na apreciação da prova.
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C- Da inutilidade do reenvio para sanação dos vícios:
A ocorrência dos supra referidos vícios determina, por regra, a necessidade de proceder à reabertura do julgamento, para que o Tribunal a quo proceda à produção de prova que entenda adequada e conveniente para suprir as deficiências da matéria de facto apurada e adquira factos que lhe permitam elaborar uma sentença isenta de vícios.  Contudo, no caso do autos, depara-se-nos uma acusação manifestamente infudada, que por ser contraditória nos seus termo jamais levaria a uma condenação e que, portanto, nem com recurso ao expediente dos artºs 358º e 359º viabilizaria uma condenação.
Preceitua o artº 311º/1 do CPP que, recebidos os autos, o Tribunal rejeita a acusação se manifestamente infundada, sendo que essa condição se verifica quando, nos termos do n° 2 a) e n° 3 b ), os factos não constituem crime, o que ocorre sempre que os factos constantes da acusação não preencham os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal acusado, ou seja, os factos enunciados como constitutivos do crime imputado ao arguido, jamais poderão ser assim entendidos, de forma inequívoca e incontroversa.
No caso em apreço, independentemente da técnica acusatória usada (de remessa para os factos descritos nos autos que se juntam em anexo) o certo é que, em aditamento a essa remissão se diz que ≪o arguido apesar de ter sido advertido de que incorreria na prática de um crime de desobediência, ainda assim recusou submeter-se à realização do teste de pesquisa de álcool no sangue≫.
Sendo que os factos “constantes dos autos” foram entendidos como os constantes do auto de denúncia, cujo conteúdo é semelhante aos factos considerados provados, fica claro que mediante aqueles jamais se poderia defender a conclusão que legitimou a imputação do crime de desobediência, de que o arguido se recusou a submeter-se à realização do teste.
Por outro lado, os factos acusados, de que mediante nove sopros o aparelho acusou sopro insuficiente ou amostra incorreta, só por si, não são suficientes à configuração de qualquer delito criminal e muito menos da prática de um crime de desobediência, previsto pelo nº 3 do artº 152º do CE.
Verificando-se que a imputação fática deduzida na acusação é insuscetível de preencher os elementos típicos do crime acusado, bem como de qualquer outro, está necessariamente prejudicada a hipótese de, em julgamento, de converter uma não acusação numa sentença de condenação.
Isto significa que o reenvio, no caso, se encontra prejudicado pois que em face da impossibilidade de alguma vez se vir a obter uma condenação em face dos concretos termos da acusação, redundaria em ato inútil e como tal proibido por lei
Face ao exposto resta determinar a absolvição do arguido.
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Sumário: Numa situação em que o arguido é portador de uma taxa de álcool no sangue que, em face da experiência comum, lhe retira a plenitude da capacidade de entendimento e autodeterminação, a imputação de um crime de desobediência carece de ser acompanhada da prova de factos que permitam concluir que são de afastar essas precisas regras de experiência comum.
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VI- Decisão:
Acorda-se, pois, concedendo provimento ao recurso, em revogar a decisão recorrida decretando a absolvição do arguido.
Sem custas.
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Lisboa, 13/02/2013
Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
                                                                                             
Maria da Graça M. P. dos Santos Silva
Ana Paula Grandvaux Barbosa

[1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em  B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em  B.M.J. 477º-271.
[2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.
[3]  Cf. Ac. do STJ, de 10.12.1996, em www.dgsi.pt.
[4]  Cf. Ac. do STJ de 13.10.1999, in CJSTJ, ano XXIV, III, pág.184.
[5] Cf. Ac. do STJ, de 24.03.2004, proferido no processo nº.03P4043, em www.dgsi.pt.
[6] Cf. Maria João Antunes, na “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 4 (1994), a pág.120.
[7] Cf. Ac. TC nº 1165/96 e 464/97.
[8] Cf. ≪ Condução em Estado de Embriaguez≫, aspetos processuais e substantivos, Pedro Soares Albergaria, Pedro Mendes Lima, em www.verbojuridico.com
[9] Cf. Eduardo Correia, em «Les Preuves en Droit Penal Portugais», RDES, XIV, Janeiro-Junho/1967, 1-2, 29.