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SOCIEDADES COMERCIAIS
PRESTAÇÃO DE GARANTIA
LIMITES
JUSTIFICADO INTERESSE
RELAÇÃO DE DOMÍNIO E/OU DE GRUPO
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I- A regra prevista no artº 6 nº 3 do CSC, consiste na limitação da possibilidade das sociedades comerciais de prestarem garantias a dívidas de outras entidades, excepto em caso de justificado interesse próprio da sociedade garante, ou no caso de se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo. II-Não existindo definido na lei o que constitui o justificado interesse próprio da sociedade, terá este de ser definido pela própria sociedade, através dos seus órgãos estatutários e de acordo com os seus objectivos societários. III- Constando de escritura pública de constituição unilateral de hipoteca para garantia de dívidas de terceiros, que existe interesse próprio da sociedade, cabe à sociedade garante que invoca a nulidade, o ónus de prova da ausência de interesse próprio ou da inexistência da relação de grupo, uma vez que, a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, propôs ação declarativa, sob a forma de processo comum sumário, nos termos do disposto no art. 146º, 1, do CIRE, contra:
1) “… - Urbanizações e Construções, SA”,
2) Massa insolvente
3) Credores da massa insolvente,
Peticionando o reconhecimento das seguintes quantias a título de créditos vencidos e da responsabilidade da devedora à data da insolvência:
- € 2.408.855,95 respeitante a IRS, com data de vencimento de 01.10.2008;
- € 1.490.170,68, a juros de mora contados sobre os antecedentes valores de IRS até á declaração de insolvência.
- € 24.708,40 de custas devidas.
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Citada, a R. massa insolvente contestou, alegando em sede de excepção que:
- A dívida é das pessoas singulares e não da empresa, que apenas responde nos termos da garantia hipotecária que prestou, pelas dívidas fiscais do seu administrador e da esposa;
- A insolvente sociedade comercial não tinha qualquer interesse na constituição de hipoteca sobre o seu património, pelo que a garantia prestada é nula.
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Citados os demais RR., não foi deduzida contestação.
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Em sede de resposta à excepção, o Digno Magistrado do M.P. defendeu a validade da garantia decorrente da escritura pública de constituição unilateral de hipoteca, uma vez que a sociedade declarou ser esta constituída no seu interesse.
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Foi realizada audiência prévia, com fixação do objeto do litígio e dos seguintes temas da prova:
“1) – Montante em dívida pela Insolvente à Autoridade Tributária na data da declaração de insolvência
2) – Falta de interesse por parte da sociedade insolvente na constituição da garantia bancária a favor Autoridade Tributária. “
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Após, procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença, em 31/05/18, da qual consta a seguinte:
“IV - DECISÃO:
Pelo exposto, julga-se a ação procedente, porque provada e, em consequência, declara-se reconhecido e verificado o crédito do autor no montante € 3.923.735,03, respeitante a IRS, juros e custas, devidas no processo de execução fiscal n.º 3166200901037080, de natureza garantido.
Custas pela R. – art. 148º do CIRE.
Valor: € 3.923.735,03.
Comunique ao Sr. administrador de insolvência.”
*
Não conformada com esta decisão, pela Massa Insolvente foi interposto recurso, constando do mesmo as seguintes:
“CONCLUSÕES:
A) A Recorrente, com presente recurso, pretende que se determine a quem competia o ónus de alegar e provar o justificado interesse próprio da sociedade na prestação da garantia e, bem assim, se tal prova foi, ou não, conseguida.
B) O Recorrido veio reclamar, em sede de processo de Verificação ulterior de créditos, um crédito de IRS, no montante de € 2.408.855,95, bem como um crédito de € 1.490.170,95, resultantes de dívidas à Fazenda Nacional de JM… e FD…, sem nada mais referir na sua petição inicial.
C) A Recorrente invocou que as dívidas em causa não eram dívidas da insolvente, pelo que não era devedora à Fazenda Nacional dos montantes em causa.
D) A Recorrente, nos termos do art. 6º do Código das Sociedade Comerciais, conjugado com os arts. 280º, nº 1 e 294º ambos do Código Civil, invocou a nulidade da garantia prestada pela insolvente para pagamento daquelas dívidas.
E) Garantia consistente em hipoteca voluntária a favor da Fazenda Nacional sobre o prédio urbano composto de pavilhão fabril constituído por 2 pisos, identificado pelo nº 2 e um anexo constituído por pavilhões industriais identificados pelos nºs 2 A, 2B, 2C, 2D e 2E, sito em São Gabriel, Cascais, inscrito sob o artigo matricial urbano com o nº … (ex-artigo…) da União de Freguesias de Cascais e Estoril e descrito na 1ª Conservatória do Registo predial de Cascais sob a ficha …/….
F) O Recorrido pugnou pela validade da garantia dado existir interesse próprio da insolvente na prestação da mesma.
G) Alegou ainda o Recorrido que a justificação do interesse próprio da insolvente se encontrava lavrada na escritura pública de hipoteca unilateral, que juntou desacompanhada das atas que instruem a mesma, bem como na ata nº 22 da reunião da Assembleia Geral onde, diz, estaria confirmado o interesse próprio na prestação da garantia.
H) A Recorrente, em sede de audiência de discussão e julgamento, juntou certidão da ata nº 76 do Conselho de Administração e da ata nº 30 do Conselho Fiscal ficando, assim, a escritura de constituição de hipoteca unilateral integralmente junta aos autos.
I) Na escritura de constituição de hipoteca unilateral refere-se “Que a sociedade sua representada tem justificado interesse próprio na constituição da presente hipoteca, tendo a mesma obtido o parecer favorável do Conselho de Administração, conforme acta atrás referida, e do Conselho de Fiscal da sociedade, conforme acta número trinta, da reunião do mesmo órgão realizada em quinze de Julho corrente, de que arquivo fotocópia”.
J) Em face do conteúdo da escritura resulta que não corresponde à verdade o afirmado pela Recorrido dado que na mesma não se encontra lavrada a justificação do interesse próprio da insolvente na prestação da garantia.
K) Na escritura encontra-se apenas invocado genericamente um suposto interesse próprio na constituição da hipoteca.
L) Da ata nº 76 do Conselho de Administração, datada de 15/07/2009, arquivada com a escritura de constituição de hipoteca resulta que “Dando-se início aos trabalhos, o Conselho de Administração apreciou um pedido do presidente do Conselho de Administração, Snr. JM…, para que a sociedade … – Urbanização e Construções, S.A., preste garantia a favor da Fazenda Pública, até ao montante de cinco milhões de euros, no âmbito do processo de execução fiscal nº …, através da penhora do prédio urbano, sito no lugar da Aldeia de Juzo, São Gabriel, freguesia e concelho de Cascais, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o número …, e inscrito na matriz número …, da citada freguesia e concelho de Cascais. Analisado o pedido, os Administradores Snr. JM… e Eng. HJ… deliberaram aprovar aquele pedido de prestação daquela garantia a favor da Fazenda Nacional, através de penhora do citado prédio.”(o negrito e o sublinhado são nossos).
M) Por sua vez da ata nº 30 do Conselho fiscal, datada de 15/07/2009, arquivada com a escritura de constituição de hipoteca resulta que “Aberta a sessão, o Conselho apreciou um pedido do presidente do Conselho de Administração, Snr. JM…, para que a sociedade … – Urbanização e Construções, S.A., preste garantia a favor da Fazenda Pública, até ao montante de cinco milhões de euros, no âmbito do processo de execução fiscal nº …, através da penhora do prédio urbano, sito no lugar da Aldeia de Juzo, São Gabriel, freguesia e concelho de Cascais, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o número …, e inscrito na matriz número …, da citada freguesia e concelho de Cascais.
N) A escritura está eivada de falsidade, pois refere-se na mesma que foi obtido parecer favorável do Conselho de Administração, ata nº 72, e do Conselho Fiscal, ata nº 30, para a hipoteca ai constituída quando tal não corresponde à verdade, porquanto o que foi genericamente autorizado nestas atas, conforme acima transcrito, foi a constituição de penhora sobre o imóvel ai identificado.
O) A justificação do interesse próprio da insolvente na constituição da garantia também não consta, nem foi confirmada, através da ata nº 22 em reunião da Assembleia Geral onde apenas se refere que “Aberta a sessão o Presidente do Conselho de Administração, Snr. JM…, tomou a palavra para solicitar que a empresa lhe preste uma garantia a favor da Fazenda Pública, nos autos de execução fiscal, referente ao processo nº …”.
P) O facto de ter ficado provado que “Foi consignado na escritura que a sociedade garante tem justificado interesse próprio na constituição da hipoteca, nos termos do parecer favorável do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal, constante da ata arquivada no cartório notarial.” em nada releva, pois esta declaração não tem a força probatória plena do documento autêntico.
Q) Demonstrou-se, de forma cabal, que parte do que se fez consignar da escritura é falso, pois inexiste nas atas que servem de base à mesma qualquer parecer favorável à constituição de hipoteca, assim como inexiste qualquer justificação ou, sequer, invocação do interesse próprio da insolvente na prestação da garantia.
R) O Meritíssimo Juiz “a quo” conclui, dos documentos juntos, pela “existência de deliberação válida (não impugnada no tempo e modo próprios) e a indicação de interesse na constituição da garantia”.
S) Este pressuposto parte de duas premissas incorretas, ou seja, por um lado, era ao Recorrido que cabia provar o justificado interesse e, por outro lado, a declaração feita na escritura pela insolvente não se encontra abrangida por força probatória plena do documento autêntico.
T) Assim, verifica-se a falta de capacidade da insolvente para prestar garantias a favor de terceiros, constante da 1ª parte do nº 3 do art. 6º do Código das Sociedades Comerciais, que apenas poderia ser afastada, no caso concreto, se existisse justificado interesse próprio desta na constituição da garantia.
U) O justificado interesse próprio da insolvente na constituição da garantia, enquanto condição de validade da garantia prestada, teria que ser demonstrado pelo Recorrido enquanto beneficiário da mesma, o que nos presentes autos não aconteceu.
V) Ou seja, cabia ao Recorrido, nos termos do nº 1 do art. 342º do Código Civil, cabia ao Recorrido, que invocou o justificado interesse próprio da insolvente na prestação da garantia, provar a existência de tal interesse.
W) O facto de a insolvente ter declarado na escritura, documento autêntico, que existia justificado interesse na constituição da garantia, só por si não faz prova plena de que tal seja verdade, pois o Notário apenas atesta que perante si foi feita tal declaração.
X) No caso em concreto fundamenta-se a declaração de justificado interesse próprio da insolvente com o conteúdo das atas do Conselho de Administração, ata nº 72, e do Conselho Fiscal, ata nº 30, arquivadas com a escritura, o que não corresponde à verdade;
Y) Deveria a Sra. Notária ter verificado o conteúdo das referidas atas para que escritura não contivesse, como contém, falsas declarações e não estivesse, como está, eivada de falsidade nos termos do art. 372º do Código Civil, o que sempre afastaria a força probatória plena da mesma.
Z) A declaração de falsidade da escritura, em face do conteúdo das supra citadas atas, deve ser declarada pelo tribunal, mesmo que oficiosamente, cfr. nº 3 do art. 372º do Código Civil.
AA) Além de que, não tendo o Recorrido, como lhe competia, provado o justificado interesse próprio da insolvente na prestação da garantia, veja-se a matéria de facto dada como assente, esta tem que ser considerada nula e, consequentemente, a ação improceder.
BB) O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 16/11/2017, Proc. 1721/14.6T8VNG-E.P1.S1, relator Graça Amaral, disponível para consulta em www.dgsi.pt, em situação análoga, decidiu da forma acima descrita.
CC) A decisão recorrida viola, entre outros, o art. 6º do Código das Sociedades Comerciais, bem como os arts. 342º e 372º do Código Civil.
TERMOS EM QUE a douta sentença recorrida deve ser revogada e ser substituída por outra em que se considere a invocada exceção de nulidade da garantia procedente, com as legais consequências dai decorrentes, com o que se fará
JUSTIÇA!”
*
Pelo M.P foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso em apreço, por incumbir ao apelante provar a ausência de interesse da sociedade, o que não logrou, resultando este interesse da escritura, não impugnada esta.
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QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]
Nestes termos, a única questão a decidir, consiste em apurar:
a) se a hipoteca constituída unilateralmente pela sociedade insolvente a favor do Fazenda Pública, para garantia de dívidas fiscais do seu administrador (e esposa), é válida face ao disposto no artº 6 nº3 do CSC, ou se, ao invés, é nula, sendo ainda a escritura falsa por das actas que lhe serviram de suporte não constar a autorização para constituição de hipoteca;
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto a considerar, para além da transcrita em relatório acima elaborado e com relevo para esta questão, é a seguinte:
1. A Sociedade … – Urbanizações e Construções, S.A. foi declarada insolvente por sentença proferida em 09/06/2014 no âmbito do processo principal.
2. JM…, NIF … e FD…, NIF … possuem dívida perante da Fazenda Nacional emergente de IRS com data de vencimento de 01.10.2008, no valor de € 2.408.855,95 e de € 1.490.170,68, proveniente de juros de mora sobre tal quantia, vencidos até à data da declaração de insolvência.
3. Em 20.07.2009 a insolvente constituiu hipoteca voluntária a favor da Fazenda Nacional sobre o prédio urbano composto por pavilhão fabril constituído por 2 pisos, identificado pelo nº 2 e um anexo constituído por pavilhões industriais identificados pelos nºs 2ª, 2B, 2C, 2D e 2E, sito em São Gabriel, Cascais, inscrito sob o artigo matricial urbano com o nº … (ex-artigo…) da União de Freguesias de Cascais e Estoril e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha …/….
4. A garantia foi prestada para pagamento das quantias devidas no processo de execução fiscal n.º …, e até ao montante de cinco milhões de euros.
5. Foi consignado na escritura que a sociedade garante tem justificado interesse próprio na constituição da hipoteca, nos termos do parecer favorável do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal, constante da ata arquivada no cartório notarial.
6. A hipoteca mostra-se registada na CRP a favor da Fazenda Nacional pela ap. 2021 de 20.07.2009.
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- Factos não provados:
Com interesse, não se provou que:
a) Não existe qualquer justificado interesse na concessão da referida garantia.
b) A insolvente não retirou qualquer vantagem por ter prestado tal garantia. * Mais se adita oficiosamente, por constarem de documentos anexos a escritura pública e não impugnados nos autos, com relevo para a decisão a proferir os seguintes factos (artº 662 nº1 do C.P.C.):
7-À escritura referida em 5, foram anexas as actas nº 76 do Conselho de Adminstração e nº 30 do Conselho Fiscal, da … – Urbanizações e Construções, S.A..
8-A acta nº 76 tem a seguinte redacção:
“No dia 15 do mês de Julho de dois mil e nove (…), reuniu o Conselho de Administração da …- Urbanizações e Construções S.A.” (…).
Aberta a sessão verificou-se a presença do seu Presidente, SR. JM… e dos administradores, Sr. JM… e Eng. HJ….
Dando-se início aos trabalhos, O Conselho de Administração apreciou um pedido do presidente do Conselho de Administração, Snr. JM…, para que a sociedade (…) preste garantia a favor da Fazenda Pública, até ao montante de cinco milhões de euros, no âmbito do processo de execução fiscal nº …, através da penhora do prédio urbano (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº …, e inscrito na matriz número …, da citada freguesia e concelho de Cascais.
Analisado o pedido, os Administradores (…) deliberaram aprovar aquele pedido de prestação daquela garantia a favor da Fazenda Pública, através da penhora do citado prédio (…).
Deliberam ainda, mandatar o presidente do Conselho de Administração (…) para a outorga da escritura voluntária a favor da Fazenda Pública.”
9-A acta nº 30 tem a seguinte redacção:
“Aos 15 dias do mês de Julho de dois mil e nove (…), reuniu o Conselho Fiscal da …- Urbanizações e Construções S.A.” (…).
Aberta a sessão, o Conselho apreciou um pedido do Presidente do Conselho de Administração, Snr. JM…, para que a sociedade (…) preste garantia a favor da Fazenda Pública, até ao montante de cinco milhões de euros, no âmbito do processo de execução fiscal nº …, através da penhora do prédio urbano (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº …, e inscrito na matriz número …, da citada freguesia e concelho de Cascais.
Analisado o pedido, o Conselho Fiscal deliberou por unanimidade dar parecer favorável à prestação daquela garantia a favor da Fazenda Pública (…).”
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nos presentes autos está em causa, primacialmente, apurar se o tribunal recorrido poderia considerar estes créditos, como créditos de que é devedor a insolvente, com base na constituição de hipoteca voluntária pelas dívidas de terceiros a favor das Finanças, considerando válida esta garantia, por da mesma resultar que teria sido prestada com base em interesse próprio da sociedade, ou se, pelo contrário, esta garantia enferma de nulidade, por falta da verificação do requisito de interesse próprio da sociedade garante.
Para o efeito, cumpre previamente dilucidar se incumbia ao requerente beneficiário da garantia, em acção de verificação ulterior de créditos, alegar e demonstrar os factos que conduzem à verificação do interesse próprio da sociedade ou se, pelo contrário, é à sociedade garante que incumbe alegar e demonstrar a nulidade desta garantia, por falta de verificação dos requisitos contidos no artº 6 nº3 do CSC. Decidindo
Nos autos em apreço, está em causa a prestação de uma garantia real, unilateral, por parte da sociedade insolvente a favor das Finanças, por dívidas (fiscais) do seu então administrador (e respectiva esposa), constando da respectiva escritura de constituição de hipoteca que a “a sociedade sua representada tem justificado interesse próprio na constituição da presente hipoteca, tendo a mesma obtido o parecer favorável do Conselho de Administração (…) e do Conselho Fiscal da Sociedade(…)” actas estas, anexas à escritura e que foram juntas aos autos e acima reproduzidas, das quais constam, em síntese, que davam o seu acordo, à constituição de uma garantia pela sociedade a favor da Fazenda Pública, até ao montante de cinco milhões de euros, através da penhora deste prédio (objecto de hipoteca e posterior penhora).
Em causa está, em primeiro lugar, a aferição da capacidade de gozo das sociedades comerciais, face ao teor do artº 6 nº3 do CSC, sendo ainda alegado, mas apenas em sede de recurso, a falsidade da própria escritura, nos termos do artº 372 do C.C., por das actas apresentadas e anexas à escritura (conclusões N) e Y) a Z), referir-se que “foi obtido parecer favorável do Conselho de Administração, ata nº 72, e do Conselho Fiscal, ata nº 30, para a hipoteca ai constituída quando tal não corresponde à verdade, porquanto o que foi genericamente autorizado nestas atas, conforme acima transcrito, foi a constituição de penhora sobre o imóvel ai identificado.”
A questão da prestação de garantias por parte de pessoas colectivas, a dívidas de outras entidades, incluindo sociedades coligadas, colocava-se já face à redacção do artigo 160 do CC, debatendo-se então se as sociedades comerciais eram ou não juridicamente capazes de prestar garantias, ou seja se estas eram necessárias ou convenientes à prossecução dos fins de uma sociedade comercial.
A 9 de Março de 1968 surge a Primeira Directiva 68/151/CEE do Conselho da Comunidades Europeias (in JOCE nº L-65, de 14/03/68), com o objectivo nela declarado, de harmonizar as garantias que são exigidas às sociedades, para protecção dos interesses dos sócios e de terceiros.
Refere-se no seu preâmbulo a necessidade de coordenação no território europeu no que toca às disposições nacionais respeitantes à publicidade, à validade das obrigações contraídas por estas sociedades e à nulidade destas, designadamente para acautelar a protecção de terceiros, considerando que “para garantir a segurança jurídica tanto nas relações entre a sociedade e terceiros, como entre os sócios, é necessário limitar os casos de nulidade, assim como o efeito retroactivo da declaração de nulidade (…).”
Nesta medida dispunha-se no seu artº 9 que “1 . A sociedade vincula-se perante terceiros pelos actos realizados pelos seus órgãos, mesmo se tais actos forem alheios ao seu objecto social, a não ser que esses actos excedam os poderes que a lei atribui ou permite atribuir a esses órgãos. Todavia, os Estados-membros podem prever que a sociedade não fica vinculada , quando aqueles actos ultrapassem os limites do objecto social, se ela provar que o terceiro sabia , ou não o podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto ultrapassava esse objecto; a simples publicação dos estatutos não constitui, para este efeito, prova bastante. 2. As limitações aos poderes dos órgãos da sociedade que resultem dos estatutos ou de uma resolução dos órgãos competentes, são sempre inoponíveis a terceiros, mesmo que tenham sido publicadas. 3 . Quando a legislação nacional preveja que o poder de representar a sociedade é atribuído por cláusula estatutária, derrogatória da norma legal sobre a matéria, a uma só pessoa ou a várias pessoas agindo conjuntamente, essa legislação pode prever a oponibilidade de tal cláusula a terceiros, desde que ela seja referente ao poder geral de representação; a oponibilidade a terceiros de uma tal disposição estatutária é regulada pelas disposições do artigo 3.°”
Após sucessivas alterações com o mesmo espírito, a Directiva 2009/101/CEE, de 16 de Setembro de 2009, revogou a Primeira Directiva por critérios de clareza e racionalidade, repetindo no artº 10º do capítulo III, relativo à validade das obrigações contraídas pela sociedade o antigo artigo 9.º da Primeira Directiva
Em consonância com esta directiva, fez o nosso legislador constar do preâmbulo do DL 262/86, de 02/09, que aprovou o Código das Sociedades Comerciais, sob o nº 23, o seguinte:
"Quanto à vinculação da sociedade pelos gerentes, adopta-se uma alteração importante ao regime vigente, que decorre da 1.ª Directiva da CEE. Os actos praticados pelos gerentes em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios. A sociedade pode opor a terceiros limitações de poderes resultantes do objecto social se provar que o terceiro tinha conhecimento de que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, ela não tiver assumido o acto, por deliberação expressa ou tácita dos sócios, mas tal conhecimento não pode ser provado apenas pela publicidade dada ao contrato de sociedade (artigo 260.º). Obviamente, o gerente que desrespeitar limitações resultantes do contrato ou de deliberações dos sócios é responsável para com a sociedade pelos danos causados (artigo 72.º)."
Em consonância, estipula o artº 6 nº1 e 3 do C.S.C. que 1 - A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular. 3 - Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.”
Assim, da redacção introduzida a este preceito e dos considerandos acima elencados, resulta, em primeira linha, como contrário ao fim da sociedade e, portanto, nulas, quaisquer garantias reais ou pessoais a terceiros, salvo em caso de interesse próprio da sociedade garante, subsumindo-se a questão primacial debatida neste recurso, por aferir a quem incumbe o ónus de prova da (falta de) existência de interesse próprio da garante.
É que estando a capacidade da sociedade limitada pela prossecução do seu fim, conforme se refere in Ac. do S.T.J. de 16/11/17, relatado por Graça Amaral, 1721/14.6T8VNG-E.P1.S1, (citado pelo recorrente), “Sendo o lucro o fim da sociedade comercial (cfr. artigo 980.º, do Código Civil) e uma vez que a lei, imperativamente, faz aferir e limitar a capacidade da mesma pelo fim lucrativo que lhe é inerente a prática de um acto fora das condições legalmente prescritas (que não seja necessário nem conveniente à prossecução do seu fim) mostra-se ferido de nulidade, nos termos do artigo 294.º, do Código Civil.
Por conseguinte, como expressamente refere o n.º3 do artigo 6.º da CSC, a prestação de uma garantia real a dívidas de outras entidades não se assume, à partida, no âmbito do escopo lucrativo; como tal, constitui acto contrário ao seu fim.
Todavia, salvaguarda o referido preceito, que cairá fora do âmbito dos actos contrários ao fim da sociedade a prestação de garantia no caso de existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou tratando-se de sociedades em relação de domínio ou de grupo.”
Ora, a referida garantia, hipoteca voluntária a favor da Fazenda Pública, foi constituída por escritura pública, dela se fazendo constar que a sociedade “tinha justificado interesse próprio na constituição da presente hipoteca”, tendo obtido, previamente, o parecer favorável do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal, de acordo com actas que se anexaram á referida escritura.
Constituindo esta escritura documento autêntico, previsto no artº 369 do C.C., a sua força probatória, no entanto, apenas abrange os factos que nela se referem como praticados pela autoridade ou oficial público, assim como dos factos que nela são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, conforme dispõe o artº 371 do C.C., estando afastados da fé pública do documento, o que neles foi declarado pelos outorgantes, mormente a existência de interesse próprio da sociedade.
Assim, a questão da existência do requisito do interesse próprio da sociedade, declarado na escritura e não abrangido tal facto pela prova plena conferida aos documentos autênticos, depende de, em primeiro lugar, se apreciar a quem incumbe o ónus de alegação e prova da existência ou inexistência desse interesse.
Face a esta questão, considerou a decisão recorrida que incumbia à R. insolvente o ónus de prova da falta de interesse “na constituição da garantia bancária a favor da Autoridade Tributária”, como aliás decorreu dos temas de prova elaborados e que não mereceu então a oposição do recorrente.
Efectivamente, a questão da atribuição do ónus de prova do interesse próprio da sociedade na prestação de garantias a favor de terceiros, tem sido objecto de discordância jurisprudencial, considerando uma parte da nossa jurisprudência (minoritária) que o ónus de alegação e prova da existência de interesse próprio da sociedade garante, incumbe ao credor que se pretenda aproveitar da garantia, sendo no entanto jurisprudência e doutrina maioritária (e actualmente praticamente unânime), a tese oposta, ou seja, que o ónus da prova de que tal interesse, apesar de declarado, não existe, incumbe à sociedade que emitiu a referida garantia.
Para a primeira tese, de que é exemplo máximo o Ac. do S.T.J. de 16/11/17[3], citado pelo recorrido, “A nulidade de que tais actos, à partida, se revestem, faz impender sobre o Banco Mutuante, beneficiário da garantia e autor em acção de verificação ulterior de créditos, o ónus de alegar e provar o justificado interesse da sociedade na prestação das garantias reais aos mutuários, por tal situação se configurar numa excepção à referida regra da nulidade e, como tal, constituir um elemento constitutivo do seu direito (artigo 342.º, n.º1, do CC).”, considerando que a “reclamação do crédito enquanto crédito garantido, (invocando as hipotecas constituídas a seu favor pela sociedade insolvente), atenta a nulidade de que os actos, à partida, se revestem, impunha ao Banco aqui Recorrente, o ónus de alegar e provar a excepção à referida regra, isto é, de que, no caso, existiu justificado interesse da sociedade na prestação das referidas garantias reais.
O justificado interesse da sociedade na prestação das garantias surge, por isso, como facto constitutivo da validade das garantias e do direito do Banco reclamante ver o seu crédito reconhecido como privilegiado. Por consequência, o ónus de provar tal circunstância teria de recair sobre o beneficiário da garantia, in casu a credor reclamante ora Recorrente – artigo 342.º, n.º1, do Código Civil.”
Cita ainda em abono da sua posição, Soveral Martins para quem “Se é invocado um justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação da garantia, quem tem o ónus de alegar e provar que aquele interesse existe é aquele que tem interesse em afirmar a validade da garantia. Para que a garantia deva ser considerada nula, basta que não se prove que existe esse justificado interesse próprio da sociedade garante. Não é, por isso, necessário que o terceiro soubesse ou não pudesse ignorar que esse justificado interesse próprio não existia. Esta conclusão parece inequívoca atendendo ao que se lê no art. 6.º, 3: aí se estabelece, logo à partida, que «Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias». É certo que, muitas vezes, a própria sociedade declara, ao prestar a garantia, que existe um justificado interesse próprio. Só por si, isso não significa que a invocação posterior, pela sociedade, da inexistência desse mesmo interesse constitua um abuso de direito. Em muitos casos, nenhuma expectativa de terceiros existe que deva ser tutelada. Os terceiros estão obrigados a conhecer a lei e os limites que esta fixa para a capacidade das sociedades comerciais. Os terceiros estão obrigados a saber que as sociedades comerciais existem para buscar o lucro (…). E se a sociedade presta a garantia a dívida de outrem alega que tem um justificado interesse próprio, o terceiro ou controla se isso é verdade, ou arrisca e sujeita-se às consequências, ou recusa a garantia”, in Código das Sociedades Comerciais em comentário, Volume I, Almedina, 1ª edição, 2010, 1998, p.110-111.[4]
Em sentido contrário e formando posição maioritária e dominante na doutrina e jurisprudência, a imputação do ónus de prova, tratando-se de um facto impeditivo do interesse do direito invocado pelo credor, incumbe à sociedade garante[5], nomeadamente por a “entender-se que é a sociedade garantida que tem que provar a existência de interesse próprio por parte da sociedade garante, estar-se-ia perante uma prova que na prática seria muito difícil ou impossível de fazer, salvo, obviamente, se existissem prévias cautelas à prestação da garantia. Tirando casos limite, não se vê como é que uma sociedade pode provar que os actos praticados por outra foram no interesse próprio desta, tanto mais que por um lado a lei não diz o que entender por tal interesse e, por outro, este teria que ser avaliado com referência à globalidade da actividade social da sociedade e não apreciado o acto de forma isolada.” (citado ac. do STJ de 13/05/2003).[6]
Desde já se adianta que se adere na íntegra a esta posição.
Com efeito, é certo que a regra constante do artº 6 nº 3 do CSC, consiste na limitação da possibilidade das sociedades comerciais de prestarem garantias a dívidas de outras entidades, restringindo essa possibilidade à verificação de:
a) justificado interesse próprio da sociedade garante;
b) tratar-se de sociedade em relação de domínio ou de grupo;
No entanto, não resultando da lei qualquer definição legal do que constitui o justificado interesse próprio da sociedade, terá este de ser definido pela própria sociedade, através dos seus órgãos estatutários e de acordo com os seus objectivos societários.
Como refere João Marcelo Ferreira Cristóvão (Garantias prestadas por sociedades comerciais e obrigações de sociedades coligadas, FDUNL, 2010/2011, pág.48) não existe “qualquer referência legal expressa que determine o conteúdo e alcance da expressão contida no artigo 6.º n.º 3 acerca do significado de justificado interesse próprio da garante. Analisando o preceito à luz do artigo 64.º, que individualiza um interesse social autónomo, o seu centro de gravidade há-de ter por referência o lucro das sociedades comerciais. Os deveres de cuidado e de lealdade a que se apela, hão-de reconduzir-se à finalidade para que foi criada a sociedade, bem como aos interesses de longo prazo de sócios e outros. Numa palavra: à sua rentabilidade. É esse o desiderato final comum a todos os interesses em jogo. Note-se que o interesse da sociedade nem sempre é convergente com o interesse de cada sócio ou grupo de sócios, mesmo que maioritário. Até a maioria (e para isso, muitas vezes, bastará um sócio) pode tomar em conta outros interesses prejudiciais aos restantes sócios, à sociedade e aos seus credores”.
Defende assim que este interesse terá de se aferir, de acordo com diversos princípios que elenca como os princípios da economicidade “que consiste na existência de um cenário económico e financeiro apto a esclarecer a razão de ser da prestação de garantia’’, a objectividade ‘’a prestação da garantia é justificada pelo interesse próprio da sociedade, quando, através de conhecimentos técnicos aplicáveis, traduz uma vantagem objectiva para a sociedade. A análise do requisito da objectividade pelos órgãos de representação da sociedade deverá utilizar como referente, nos termos do artigo 64.º do CSC, a diligência de um gestor criterioso e ordenado.’’, proporcionalidade, que exige que haja proporcionalidade “da garantia face às obrigações garantidas; segundo, deverá haver um mínimo de correspondência entre a garantia e as vantagens que dela se retira” e por último tempestividade, que leva em consideração que a prestação de garantia decorre em função da informação objectiva que se dispõe no momento em que é prestada (obra cit, pág. 49)
Acrescenta ainda que “Se os órgãos representativos de uma sociedade comercial agirem na suposição de existir um pretenso e justificado interesse próprio da garante, poderão ver-se responsabilizados por terem violado os deveres de cuidado e de protecção a que estão adstritos quando procedem à negociação de um contrato, nos termos do artigo 227.º do CC. A responsabilidade estende-se, objectivamente, à sociedade nos termos do artigo 500.º do CC, ex vi, artigo 6.º n.º 5 do CSC.” (pág. 50)
Assim sendo, deve “entender-se que as ressalvas estabelecidas no mencionado n.º 3 do referido preceito legal implicam a possibilidade de prestação de garantias tanto dowstream como upstream na relação de grupo ou de domínio; e em relação ao “justificado interesse próprio” compete apenas à sociedade determinar o mesmo.” (Ana Perestrelo de Oliveira (Manual de Grupos de Sociedades, 2017, pág. 187).
Temos pois que, celebrada a garantia e declarada em escritura pública que existe interesse próprio da sociedade, cabe à sociedade que invoca a nulidade o ónus da prova da ausência de interesse próprio ou da inexistência da relação de grupo, uma vez que, a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (v. artigo 342° nºs. 1 e 2 do C. Civil).
Ora, o recorrente não logrou provar a falta de interesse da sociedade na prestação desta garantia, nem das deliberações do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal da sociedade se retira que não existia esse interesse (basta atentar no elevado valor da dívida, na sua natureza, dívida fiscal e na eventual existência de interesse da sociedade, perante instituições bancárias ou outras, na inexistência de dívidas fiscais dos seus administradores).
Diga-se ainda, que a invocação desta nulidade constituiria um venire contra factum próprium, que nem o facto de a sociedade entretanto ter entrado em insolvência, afasta.
O Sr. Administrador da Insolvência, representa a sociedade, a garantia foi constituída em 2009 para garantir o pagamento de dívida fiscal, vencida em 2008, a sociedade foi declarada insolvente em 2014, tendo o Sr. AI conhecimento desta garantia hipotecária e forçoso conhecimento das actas e deliberações que levaram à sua constituição (porque lhe incumbe apreender todos os documentos da sociedade), bem como da execução fiscal em causa, não se vendo que tenha intentado a nulidade da referida garantia.
Por outro lado, não estando demonstrado a falta de interesse da sociedade, questão diversa é se a escritura é falsa, nos termos do artº 372 do C.C., por das actas apresentadas e anexas à escritura (conclusões N) e Y) a Z), referir-se que “foi obtido parecer favorável do Conselho de Administração, ata nº 72, e do Conselho Fiscal, ata nº 30, para a hipoteca ai constituída quando tal não corresponde à verdade, porquanto o que foi genericamente autorizado nestas atas, conforme acima transcrito, foi a constituição de penhora sobre o imóvel ai identificado.”
Posto isto, a questão da falsidade da escritura, por nela ter sido atestado com base na percepção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou (nos termos do artº 372 do C.C.), não foi invocada, nem conhecida pelo tribunal recorrido e, assim, está afastada do âmbito deste recurso.
Refira-se que o artigo 405 do CSC, enquanto norma organizatória, estabelece os poderes de gestão que competem ao conselho de administração, de onde ressalta, no artigo 406.º alínea f), o poder de deliberação quanto à prestação de garantias.
Constando a constituição desta garantia de deliberação deste conselho, a sua eventual desconformidade, não constitui falsidade da escritura, mas quanto muito de falta de poderes do administrador para a prática do acto, se se considerar que o que foi autorizado e consta da deliberação é uma coisa e o que foi feito, foi outra.
Mas nem assim se poderia considerar, pois que evidentemente que a penhora se não constitui por escritura pública, incide sobre bens do devedor e não de terceiro, excepto em casos em que o terceiro, esteja obrigado ao cumprimento da obrigação, ou haja constituído garantia para assegurar o pagamento da dívida.
Improcede assim, in totem, a apelação.
*
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Lisboa 11/10/18
Cristina Neves
Manuel Rodrigues
Ana Paula A.A. Carvalho
[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85. [2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, SimasSantos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13. [3] Ac. do STJ de 16/11/17, relatora Graça Amaral, proc. nº 1721/14.6T8VNG-E.P1.S1; no mesmo sentido vidé Ac. do S.T.J. de 28/10/13, Moreira Alves, 03A2485; Ac. R. Porto de 15/09/14, Alberto Ruço, proc. nº 1036-A/2002.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt [4] Neste sentido vidé ainda João Labareda, Direito Societário Português Algumas Questões, 186/192; Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso De Direito Comercial, Volume II, Das Sociedades, 3ª edição, 193/199; Osório de Castro, Da Prestação De Garantias Por Sociedades a Dívidas De Outras Entidades, ROA Ano 56, Agosto 1996, 565/593; Vaz Serra, RLJ 103º, 27. [5] Na doutrina vidé Raul Ventura, no BMJ, Documentação e Direito Comparado, 1980, nº2, pags. 144 e “Sociedades por Quotas”, Vol. III, pags. 169, Pedro de Albuquerque, in Da prestação de garantia por sociedades comerciais a dívidas de outras entidades’’, ROA, VOL I, 1997, pág.127, Cardoso Guedes, na R. D. E. XIII, pags. 155, Prof. Vaz Serra, na RLJ, Ano 103º, pags. 169, nota 1 e pags. 271 e Soveral Martins, in “Os Poderes de Representação dos Administradores das Sociedades Anónimas”, pags. 317; Luís Serpa Oliveira, “Prestação de garantias por sociedades e dívidas de terceiros’’, ROA, VOL I, 1999, pág. 399, Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, Almedina 2007, pág. 337. [6] Neste sentido vidé ainda Acs. do S.T.J. de 21-09-2000, de 13-05-2003, proc. n.º 3425/01, relator Pinto Monteiro; Ac. STJ de 21.09.2000, CJ III, pág. 36; Ac. STJ de 24.04.2001, Revista nº 911/01, desta 1ª Secção, "Sumários", 2001, pág. 133; Ac. do S.T.J. de 05/02/04, relator Abílio Vasconcelos, proc. nº 04S2540; Ac. do S.T.J. de 26-11-2014, proc. n.º 1281/10.7TBAMT-A.P1.S1, relator Tavares de Paiva; Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/09/17, relator Luís Mendonça, proc. nº 16347-15.9T8SNT-F.L1-8; Ac. do T.R. Guimarães de 08/03/18, relatora Anabela Tenreiro, proc. nº 1551/12.0 TBBRG-E.G1, todos , todos disponíveis para consulta in www.dgsi.pt