REVELIA
SENTENÇA
CONFISSÃO FICTA
NULIDADE
Sumário

I- Muito embora o art. 567º, nº 3 do CPC admita que nas ações não contestadas em que a revelia seja operante a sentença se possa limitar à parte decisória, precedida da fundamentação sumária do julgado, uma tal fundamentação pressupõe sempre que se enunciem os factos provados e não provados, e se indiquem os meios de prova subjacentes ao julgamento dos factos (desde logo a prova por confissão ficta, decorrente da falta de contestação, mas também, eventualmente, a prova documental junta com a petição inicial).
II- Uma sentença proferida nos termos do disposto no art. 567º, nº 3 que não contenha os elementos acima enunciados poderá ser nula, por falta de fundamentação de facto – art. 615º, nº 1, al. b) do CPC.
III- Não obstante, se na sentença recorrida o Tribunal a quo se reporta aos factos que considera provados e menciona outros que entende não provados, verifica-se mera deficiência da fundamentação da decisão sobre matéria de facto – art. 662º, nº 2, al c) do CPC.
Numa tal situação, não podendo o Tribunal da Relação suprir tal insuficiência (nos termos do disposto no art. 661º, nº 1 do CPC), nomeadamente por a mesma decorrer de insuficiente alegação dos factos constitutivos do direito invocado na petição inicial, deve anular a sentença recorrida, determinando a ampliação da matéria de facto, antecedida da prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial (arts. 662º, nº 2, al. c) e 590º, nº 2, al. b) e nº 4, todos do CPC).

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
BM…, contribuinte fiscal n.º … intentou no Juízo Central Cível de Almada a presente ação declarativa com processo comum contra JF… (que também usa JO…), titular do NISS …, pedindo que o réu seja condenado a:
A) Reconhecer o direito de propriedade da A. sobre o prédio urbano (em propriedade total sem andares ou divisões susceptíveis de utilização independente) sito na Rua …, n.º … e …, freguesia da Trafaria, concelho de Almada, descrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal sob o nº …/… e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo … e do qual faz parte integrante o imóvel que se encontra na posse do R.
B) Desocupar o supra identificado imóvel, restituindo-o livre e devoluto de pessoas e bens aos seu legítimo proprietário, aqui A.;
C) Proceder ao pagamento da quantia global em dívida de € € 1.400,00 (mil e quatrocentos e euros) correspondente ao pagamento de € 200,00 (duzentos euros) mensais pela ocupação do imóvel, desde Julho de 2017 até Janeiro de 2018 acrescidos de juros de mora à taxa legal desde julho de 2017 e até efetivo e integral pagamento;
D) Proceder ao pagamento da quantia de € 200,00 (duzentos euros) mensais pela ocupação do imóvel até à sua entrega ao A. o livre e devoluto de pessoas e bens.
E) A proceder ao pagamento ao A., a título de sanção pecuniária compulsória, quantia não inferior a €25,00 (vinte e cinco euros) diários, até à entrega do imóvel.
F) Efetuar o pagamento correspondente às custas, procuradoria condigna e demais encargos legais.
 
Para tanto alega, em síntese, que é proprietário de um determinado prédio urbano; que no logradouro desse prédio se acha implantado um barracão; e que o réu ocupa esse barracão, sem que para tanto disponha de qualquer título; recusando-se a desocupá-lo, mesmo depois de ter sido interpelado.

Citado pessoalmente[1], o réu não contestou, nem constituiu mandatário.

Em consequência, foi proferido o despacho com a refª 379381764, constante de fls. 30, no qual, nomeadamente se consignou o que segue:
“Não tendo o réu apresentado contestação e encontrando-se regularmente citado, nos termos do disposto no art.º 567º/1, consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial.
Cumpra-se o disposto no art.º 567º/2 do CPC.
(…)”

Notificado de tal despacho, o autor apresentou alegações, pugnando pela procedência da ação.

Seguidamente foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto decide-se, na parcial procedência desta acção, declarar o autor BM… titular do direito de propriedade sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o nº …/…, sito na Rua …, n.º … e …, freguesia da Trafaria, concelho de Almada, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …, com a área total de 159,8 m2, tendo a área coberta 110,79m2 e a descoberta com 49,01 m2, composto por r/c e 1º andar, absolvendo o réu JF… dos demais pedidos.
Custas a cargo do autor e réu, na proporção do decaimento. Notifique e registe.”.

Inconformado com tal decisão, veio o autor dela interpor recurso, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
i. O Apelante considerada incorretamente injustificada e incorretamente decidido pelo Tribunal à quo que o alegado pelo Apelante no artigo 2.º da sua P.I de que o réu, ora Apelado, se encontra na detenção de um anexo que faz parte integrante do imóvel que alega ser da sua propriedade encerre, em si, um facto abstracto, e enuncie apenas uma conclusão jurídica abstracto, pelo que não estava onerado o réu com o encargo de o impugnar.
ii. O Apelante alegou um facto que em nada é abstrato.
iii. Alegou de forma clara e objectiva que o Apelado se encontra na detenção de um anexo que faz parte integrante do imóvel que alegou ser da sua propriedade.
iv. Para tanto juntou os documentos que provam a sua propriedade do imóvel no qual está o anexo edificado; a caderneta predial e a certidão predial do imóvel.
v. Juntando, ainda, várias fotografias onde se vê perfeitamente, de vários ângulos, o anexo que se encontra aí edificado.
vi. Nos termos do n.º 1 do artigo 567.º do nCPC, “consideram-se confessados” os factos alegados pelo Autor.
vii. Resulta, assim, desta disposição legal que não tendo o réu contestado – e tendo sido regularmente citado – consideram-se confessados os factos articulados pelo autor e é em seguida proferida sentença, julgando a causa conforme for de direito.
viii. Não tendo a presente acção sido contestada, devem ter-se por confessados os factos que admitam confissão.
ix. Tal revelia, importa a confissão dos factos articulados pelo A, nos termos em que os mesmos se encontram descritos na sua PI.
x. Uma vez que foi junta prova documental bastante no que respeita ao Direito de Propriedade do A.
xi. E da edificação do anexo, ocupado pelo Apelado, que se encontra edificado no seu prédio.
xii. O Apelante alegou que é proprietário do prédio urbano (em propriedade total sem andares ou divisões susceptíveis de utilização independente) sito na Rua …, n.º … e …, freguesia da Trafaria, concelho de Almada, descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o nº…/… e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …. – Cfr. Caderneta predial que se juntou como Doc. 1 e Certidão Predial juntou como Doc.2 da PI.
xiii. Que o Apelado encontra-se na detenção de um anexo que se encontra edificado no logradouro que faz parte integrante do mencionado imóvel (cf. fotografias que se juntou e deu por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais Doc. 3, 4, 5, 6, 7 e 8 da PI).
xiv. Alegando, ainda, que o Apelado até à data ainda não procedeu à entrega desse anexo, pese embora não tenha contrato que legitime a sua posse, recusa-se entregá-lo ao Apelante.
xv. Em resumo, entendemos que deverá o R. (ora Apelado) ser condenado a desocupar o supra identificado imóvel, restituindo-o livre e devoluto de pessoas e bens ao seu legítimo proprietário, aqui Apelante, condenando-se o Apelado no pedido efetuado pelo ora Apelante em sede de primeira instância e,
xvi. Por todo o exposto deverão V. Exas conceder provimento ao presente recurso sendo, por efeito da mesma, substituída a Douta Sentença recorrida por outra nos termos da antecedente motivação.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II- QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, a este Tribunal está vedado apreciar questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[3].
No caso em análise, considerando o teor das alegações de recurso apresentadas pelo recorrente, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
a) Se deve ser alterada a decisão sobre matéria de facto.
b) Se os factos que devam considerar-se provados permitem concluir pela verificação de todos os requisitos de que depende a procedência da presente ação de reivindicação.

III- OS FACTOS
A sentença recorrida começa por referir na sua pág. 4 que “não tendo a presente acção sido contestada, de acordo com o disposto no art.º 567º/1 do nCPC, devem ter-se por confessados os factos que admitam confissão e que não se provem exclusivamente por documentos”.
Contudo, sustenta que os factos alegados pelo autor são insuficientes para concluir que é proprietário do anexo implantado no logradouro do prédio, por entender que os arts. 4, 5, e 6 da petição inicial enunciam apenas uma conclusão jurídica abstrata, não contendo factos concretos.
A ré insurge-se contra tal entendimento, considerando que tais artigos da petição inicial contêm factos suficientemente concretos.
A situação descrita coloca o Tribunal da Relação perante a dificuldade de definir, ao certo, quais os factos que o Tribunal a quo considerou provados e não provados, dado que a sentença recorrida não contém um elenco de factos provados e não provados.
Na verdade, se é certo que o art. 567º, nº 1 do CPC dispõe que sendo o réu regularmente citado na sua pessoa e não contestar se consideram confessados os factos alegados pelo autor na petição inicial, acrescentando o nº 3 do mesmo preceito que se a resolução da causa se revestir de manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado, julgando-se a causa conforme for de direito (nº 2), a verdade é que a jurisprudência dos tribunais superiores vem entendendo que esta forma aligeirada da sentença não dispensa um mínimo de fundamentação de facto e de direito, e que, no tocante aos factos, não fica o juiz dispensado de indicar com clareza e de forma discriminada quais os factos que considera provados e não provados, e a respetiva motivação, como resulta do disposto no art. 607º, nº 4 do CPC – vd., entre outros, os acs. RC de 20-05-2004 (Fernandes da Silva), p. 697/04, e RG 03-07-2014 (Amílcar Andrade), p. 4215/13.3TBRRG.G1[4].
Nos citados arestos chega mesmo a concluir-se que quando não contenha a indicação dos factos considerados provados e não provados, a sentença é nula, nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, al. b) do CPC.
Não obstante, será importante ter presente que a figura da nulidade da sentença por falta de fundamentação constitui uma figura de muito rara verificação, na medida em que a doutrina e a jurisprudência têm salientado com insistência que o mesmo só se verifica em situações de falta absoluta de indicação das razões de facto e de direito que justificam a decisão e não também quando tais razões constem da sentença, mas de tal forma que pela sua insuficiência ou laconismo, se deva considerar a fundamentação deficiente.
Com efeito, já ALBERTO DOS REIS[5], ensinava que «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.»
Por outro lado, como bem salientou TOMÉ GOMES [6], «(…) a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão7.»
No mesmo sentido se pronunciou o ac. STJ de 26-04-1995 (Raul Mateus), p. 86771, CJ 1995 – II, pp. 58 ss. [7], “ (...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância.”
Esse mesmo entendimento foi reafirmado no ac. STJ 15-12-2011 (Pereira Rodrigues), p. 2/08.9TTLMG.P1, onde o Supremo reafirmou que o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação não ocorre em situações de escassez, deficiência, ou implausibilidade das razões de facto e/ou direito indicadas para justificar a decisão, mas apenas quando se verifique uma total falta de motivação que impossibilite o escrutínio das razões que conduziram à decisão proferida a final .
No fundo, como lapidarmente sintetizou no sumário do ac. STJ 02-06-2016 (Fernanda Isabel Pereira), p. 781/11.6TBMTJ.L1.S1, “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.”.
E porque assim é, concluímos, como fez o ac. RL 17-05-2012 (Gilberto Jorge), p. 91/09.9T2MFR.L1-6, em cujo sumário se pode ler que “A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (…)”.

À luz destas considerações entendemos que no caso vertente não ocorre aquele vício de nulidade por falta de fundamentação de facto (o qual em nosso entender é de conhecimento oficioso - vd. acs. RL 27-10-2009 (Maria José Simões), p. 3084/08.0YXLSB-A.L1-1, e RC de 19-02-2013 (Virgílio Mateus), p. 618/12.9), na medida em que na sentença recorrida a Mmª Juíza a quo tece considerações acerca dos factos que considera provados e aprecia criticamente proposições constantes dos articulados que entende não configurarem verdadeiros factos, por terem natureza vaga e conclusiva.
Por outro lado, o autor impugna a decisão sobre matéria de facto, considerando que todos os factos alegados na petição inicial devem ser considerados provados.
Acresce que no contexto de uma ação não contestada em que a revelia do réu seja operante, os factos que devem considerar-se provados serão os que se devem ter por assentes com base em confissão ficta do réu, nos termos do já referido art. 567º, nº 1 do CPC, ou tendo em conta a prova documental junta aos autos com a petição inicial.
Finalmente, temos presentes os poderes de reapreciação da matéria de facto pelo tribunal da Relação, seja no contexto da impugnação da decisão recorrida (art. 640º do CPC), seja a título oficioso (art. 662º, nºs 1 e 2 do CPC).

O Tribunal a quo considerou confessados os factos alegados na petição inicial, mas ressalvou não considerar provadas as afirmações feitas naquele articulado que se revistam de pendor conclusivo ou configurem matéria de direito.
Não tendo enunciado de modo discriminado quais os factos que considerou provados e não provados, aplicando o referido critério decisório, registamos aqui tal elenco.
 Assim, os factos provados serão os seguintes:
1. O prédio urbano sito na rua …, nº … e …, Trafaria acha-se registado na Conservatória de Registo Predial de Almada sob o nº …/…, e com a seguinte descrição: “Edifício de R/Ch e 1º andar”.
2. O mesmo prédio referido em 1. encontra-se inscrito na matriz sob o art. … da União das Freguesias de Caparica e Trafaria (antigo artigo … da extinta Freguesia de Trafaria).
3. A aquisição do prédio identificado em 1. acha-se registada a favor do autor, BM…, desde 04-10-2012.
4. Em 21-08-2018 a ilustre mandatária do autor enviou ao réu a carta cuja cópia se acha a fls. 14, na qual lhe transmite o que segue:
“Exmo. Senhor,
Solicita-me o meu constituinte, o Exmo. Sr. BX…, legítimo dono e proprietário do imóvel sito na Rua … n.º … e …, R/C, no sentido de vir exigir judicialmente a entrega por parte de V. Exª do imóvel devoluto de pessoas e bens porquanto está a ser ocupado ilegítima e abusivamente por V. Exª, sem qualquer título, contra a vontade e com violação do seu direito de propriedade.
Neste sentido aguardarei oito dias a entrega do mesmo conforme supra exposto,
Findo tal prazo, caso V. Exª não proceda à entrega do supra referido imóvel devoluto de pessoas e bens farei distribuir, de imediato e sem qualquer outro pré-aviso, a competente ação judicial para esse fim.
Atentamente,
A advogada,”

Factos não provados:
a) Que o prédio referido em 1. tenha um logradouro;
b) Que no logradouro referido em a) tenha sido edificado um anexo;

A demonstração dos factos provados emerge dos seguintes meios de prova:
Pontos 1. a 3.: Certidão de registo predial que constitui o doc. 1 com a petição inicial, e caderneta predial do prédio em apreço que constitui o doc. nº 2 junto com a petição inicial, e constante de fls. 9.
Pontos 4. e 5.: Confissão ficta dos factos constantes do art. 8. da petição inicial e documento nº 10 junto com a petição inicial, constante de fls. 14.

As demais afirmações constantes da petição inicial têm natureza conclusiva, vaga e abstrata, e/ou configuram matéria de Direito, sendo por isso insuscetíveis de integrar a decisão sobre matéria de facto.
Com efeito, e no que respeita à alegação de que o prédio registado a favor do autor tem um logradouro, e que nesse logradouro foi implantado um anexo, que faz parte integrante do mesmo sendo por isso propriedade do autor (arts. 2. a 6. da petição inicial), como refere a Mmª Juíza a quo, a presunção decorrente do art. 7º do Código de Registo Predial não abrange a área, confrontações e/ou limites dos prédios registados.
E o autor não alega quaisquer factos constitutivos do invocado direito de propriedade sobre um qualquer logradouro, e sobre o mencionado “anexo”.
Relativamente ao alegado pelo autor nos arts. 4., 5. e 6. da petição inicial, concordamos inteiramente com a Mmª Juíza a quo quando sustenta que “pelo seu cariz genérico, não permite alcançar em que termos a alegada, mas não provada, actualização de áreas  teve lugar, qual a que tinha antes e em que facto é que se fundou, nada disto sendo evidente pelo documento junto pelo autor”.
A este propósito tem inteira pertinência a distinção entre factos e direito, devendo considerar-se que as alegações genéricas, abstratas, vagas, imprecisas e conclusivas não podem ser consideradas factos; e que os juízos conclusivos constituem ou podem constituir de matéria de direito.
Como ensinava ANSELMO DE CASTRO[8], “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto, num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes.”
Por outro lado, bem salientou o STJ no acórdão de 29-04-2015 (Fernandes da Silva), p. 306/12.6TTCVL.C1.S1:
“Dispunha o n.º 4 do art. 646.º do C.P.C./1961 (disposição que não foi mantida, ao menos em termos de directa correspondência, na disciplina homóloga da nova Codificação) que se têm por não escritas as respostas do Tribunal sobre questões de direito … assim como as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Não se contempla/va a circunstância de se tratar – …como, em parte, no caso – de matéria (respostas de facto) vaga, genérica e conclusiva.
Foi-se consolidando, porém, na produção jurisprudencial – … por se ter admitido que assume feição de recorte jurídico a operação de escrutinar se determinada proposição de facto tem ou não natureza conclusiva –, o entendimento de que[8] ”…não porque tal preceito contemple expressamente a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas (…) porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos, objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum.
(…)
a proposição será conclusiva (na tríplice perspectiva dilucidada) se exprimir uma valoração jurídico-subsuntiva essencial, devendo ser expurgada, por isso.”
Não obstante, o STJ vem sustentando que do atual nº 4 do art. 607º do CPC2013 se deve extraír uma leitura idêntica à que resultava do art. 646º, nº 4 do CPC1961: vd. tb., entre outros, o ac. STJ de 28-09-2017 (Fernanda Isabel Pereira), p. 809/10.7TBLMG.C1.S1.[9]
À luz deste entendimento consideramos que também têm natureza conclusiva as afirmações “O R. encontra-se na detenção de um anexo” (art. 2. da petição inicial) e “o R. estava a ocupar um anexo” (art. 6. do mesmo articulado). Porque tais afirmações não contêm factos concretos, não pode o Tribunal sobre as mesmas proferir decisão em matéria de facto.
Nesta medida, consideramos que o alegado pelo autor na petição inicial e não vertido no elenco de factos provados e não provados não pode ser alterado nos termos  sustentados pelo autor.

IV - OS FACTOS E O DIREITO
A – Considerações gerais
Estabelece o art. 1311º, nº 1 do Código Civil[10] que “o proprietário pode exigir de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.”
O citado preceito tem por epígrafe “acção de reivindicação”, e rege sobre uma forma de tutela judicial do direito de propriedade com raízes na res vindicatio  do direito romano justinianeu[11].
Como salientam PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA[12] “são dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio) por outro. Só através destas duas finalidades, previstas o n.º 1, se preenche o esquema da acção de reivindicação (…)”.
A fisionomia dos dois pedidos típicos desta ação de tradição milenar traduzem igualmente os contornos da sua causa de pedir: Ela será integrada pelos factos que consubstanciam a titularidade do direito de propriedade, e bem assim pelos factos que traduzem a posse ou detenção da coisa reivindicada pelo réu.

B – O caso dos autos
No caso vertente, o objeto da presente ação de reivindicação é “um anexo” que o autor alegou ter sido edificado no logradouro de um prédio urbano de que é proprietário.
Ora, o autor alegou e provou que é efetivamente proprietário do prédio urbano sito na Rua … nºs … e …, Trafaria, tendo feito a prova desse direito de propriedade através da presunção decorrente do registo, consagrada no art. 7º do Código do Registo Predial.
Contudo, como referido, o autor não alegou factos concretos que permitam concluir que o prédio de que é proprietário integra um logradouro, na medida em que a descrição do mesmo constante do registo predial não contém qualquer referência a um logradouro e muito menos a um qualquer “anexo”.
Daqui decorre que relativamente à eventual existência de um logradouro contíguo ao edifício registado a favor dos autos, este não beneficia da presunção registal, pelo que para demonstrar o invocado direito de propriedade só lhe restava o caminho da invocação de uma qualquer forma de aquisição originária da propriedade, maxime a usucapião.
Sobre esta matéria discorreu, de forma particularmente elucidativa o ac. RL de 15-05-2017 (Ondina Carmo Alves), p. 5484/15.0T8FNC.L1-2:
“a demonstração da titularidade do direito de propriedade deve fazer-se pela prova do facto jurídico constitutivo do mesmo, o que implica a demonstração da aquisição originária desse direito, ou então a prova de factos que a lei reconheça como suficientes para presumir a existência dessa titularidade: – a posse (artigo 1268º, nº 1, do Código Civil ) e o registo (artigoº 7º do C.R.Predial) .
Como regra, é insuficiente a invocação de uma forma de aquisição derivada por não ser constitutiva do direito de propriedade, mas somente translativa desse direito, a menos que se comprove que o direito já existia no transmitente.
A alegação e, consequente prova do direito, deve ser feita pelo autor, não bastando justificar a própria aquisição, sendo portanto necessário provar o dominium auctoris ou usucapião, como forma de aquisição originária.
A usucapião é uma das formas de aquisição originária, nomeadamente do direito de propriedade, cuja verificação depende de dois elementos: a posse (corpus e animus) e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características da posse.
Com efeito, o artigo 1287º do Código Civil estatui que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação.
A usucapião deriva, pois, de dois elementos nucleares, a posse, pública e pacífica e o decurso do tempo, correspondendo a um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica de uma situação possessória duradoura no direito real correspondente.
Posse, segundo o disposto no artigo 1251º do Código Civil, consiste no poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
É caracterizada por via de dois elementos característicos: o “corpus” e o “animus”. O primeiro elemento traduz-se na materialidade de facto: exercício efectivo de poderes materiais sobre a coisa, actuação de facto correspondente ao exercício do direito. O segundo elemento consiste na convicção do detentor de que está a exercer o direito de propriedade, ou seja, a intenção de exercer um direito real sobre a coisa como seu titular.
E, o facto de a lei exigir o “corpus” e o “animus” para efeito de haver posse implica, consequentemente, que o possuidor terá de provar a existência desses dois elementos.
É certo que a prova do dominium auctoris pode não ser necessária quando o autor beneficie da presunção legal de propriedade, como a resultante do registo.
É que, como decorre do preceituado no artigo 7.º do Código do Registo Predial que, “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
As presunções são ilações que a lei ou o julgador retira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido - artigo 349.º do C.C.
A presunção legal decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial é uma presunção do direito e, quem tem a seu favor a presunção de um determinado direito não tem que fazer prova desse direito. Trata-se de uma presunção legal juris tantum, que pode ser ilidida, mediante prova em contrário, uma vez que no caso a lei o permite - artigo 350.º do Código Civil.
Mas, como desde há muito é entendimento unânime na doutrina e na jurisprudência, que a força probatória do registo não se estende à definição das áreas, confrontações ou limites dos imóveis cuja propriedade se encontra inscrita no registo – v. a título meramente exemplificativo, Acs. do STJ 29.10.1992, BMJ 420, 590, de 11.05.1993, C.J./STJ, T. II, 95, de 23.09.2004 (Pº 04B2324) e de 11.02.2016 (Pº 6500/07.4TBBRG.G2.S3), estes últimos acessíveis em www.dgsi.pt.”
No caso em análise, como ressalta da leitura da petição inicial, o autor não alegou factos concretos que demonstrem uma qualquer forma de aquisição originária da propriedade do ”anexo” ali referido, limitando-se a alegar, de modo genérico, que o prédio de que é proprietário e se encontra inscrito no registo predial a seu favor tem um logradouro, e que nesse logradouro há um anexo, que faz parte integrante do mesmo.
Por outro lado, e como também fizemos referência, afirma o autor que o réu detém o referido “anexo”, mas fá-lo sem alegar factos concretos que consubstanciem essa detenção, sendo certo que, como é sabido, a detenção corresponde um conceito de Direito (vd. art. 1253º do CC).
Cremos por isso que se verifica no caso vertente uma situação de insuficiência da alegação factual expressa na petição inicial, que devemos qualificar como causa de pedir insuficiente, por decorrer da utilização de juízos vagos, genéricos e conclusivos, e/ou que se reconduzem a conceitos de Direito.
Na verdade, como salientam PAULO RAMOS DE FARIA / ANA LUÍSA LOUREIRO[13]:
“O relato da relação material controvertida apresentado pela parte é suficiente quando é consequente, isto é, quando permite um raciocínio silogístico que leve à conclusão que apresenta - a condenação no pedido ou a procedência da exceção.
(…)
A utilização de conceitos de direito ou conclusivos nos articulados, mais do que ser um problema de imprecisão na exposição dos factos, é um fator que permite ao leitor perceber que a história compreende algo mais do que aquilo que foi factualmente narrado. É um dos mais fortes indícios da insuficiência (latente) da articulação dos factos[14].”
Do que vem dito concluímos  ser necessária a ampliação factual da causa, nos termos previstos no art. 662º, nº 2, al. c) do CPC, o que significa que a decisão recorrida deve ser anulada, de modo a que as apontadas lacunas factuais sejam supridas mediante a prolação de um despacho convidado o autor a completar a factualidade alegada na petição inicial (art. 590º, º 2, al. b) e nº 4 do CPC).
A tal não obsta a revelia operante do réu – neste sentido cfr. acs. RE 29-04-2004 (Bernardo Domingos), p. 2853/03-2; e RC 19-06-2013 (Carlos Moreira), p. 1132/11.5TBSCD.C1.

V- DECISÃO
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art. 662º, nº 2, al c) do CPC, acordam os Juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em anular a sentença recorrida, devendo o Tribunal a quo ampliar a matéria de facto, formulando previamente um convite ao aperfeiçoamento da petição inicial (art. 590º, nº 2, al. b), e nº 4, do CPC), de modo a que o autor complete a factualidade invocada naquele articulado, alegando factos concretos que:
- consubstanciem uma qualquer forma de aquisição originária do direito de propriedade sobre o terreno que qualifica como “logradouro” e sobre o “anexo” que alega estar a ser ocupado pelo réu;
- concretizem o juízo conclusivo de que o réu se “encontra na detenção” e “ocupa” o mesmo anexo.
Custas pela parte vencida a final (art. 527º n.º 1 do CPC).

Lisboa, 20 de dezembro de 2018 [15]

Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa

[1] Vd. aviso de receção com o nº de reg. 17876418, constante de fls. 18.
[2]  Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-116.
[3] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116.
[4] Todos os arestos invocados no presente acórdão sem indicação de proveniência se acham publicados nos endereços http://www.dgsi.pt e/ou https://jurisprudencia.csm.org.pt. A versão digital do presente acórdão contém hiperligações para os arestos nele invocados que constem daquelas bases de dados.
[5] “Código de Processo Civil Anotado”, V Volume, 3ª Ed., Coimbra Editora, p. 140.
[6] “Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[7] Tanto quanto apurámos, este aresto não se acha publicado nas bases de dados de jurisprudência de acesso livre e gratuito.
[8]  “Direito Processual Civil Declaratório”, III, Almedina, 1982, pp. 268-269.
[9] Sobre a mesma matéria, mas fazendo eco de leituras diversas do art. 607º, nº 4 do CPC, vd. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, pp. 720-722.
[10] Adiante designado pela sigla “CC”.
[11] Quando reportada a mais do que uma coisa, rei vindicatio. Para maiores desenvolvimentos acerca da figura da res vindicatio vd. por todos, SANTOS JUSTO, “Direito privado romano – III (Direitos reais)”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Studia Ivridica 26, 2014 (reimpressão), pp. 109 ss.
[12] “Código Civil Anotado”, Volume III, 2ª Ed., Coimbra Editora, 1987, p. 113.
[13] “Primeiras notas ao novo Código de Processo Civil”, Vol. I, 1ª ed., Almedina, 2013, pp. 480 ss.
[14] O sublinhado é nosso, e justifica-se pela relevância da afirmação no contexto do caso dos autos.
[15] Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificado aposto na primeira página.