CONTRA-ORDENAÇÃO
NULIDADE
DIREITO DE DEFESA
Sumário

A nulidade decorrente da inobservância do comando do art. 50º do DL nº 433/82 fica sanada se, no recurso em que é arguida, o recorrente, além dessa arguição, sustenta que não cometeu a contra-ordenação, pugnado pela sua absolvição.

Texto Integral

Acordam em audiência no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO:

Por decisão de 22 de Dezembro de 2005, foi a ora recorrente, B………., Ldª, condenada na coima de € 2.500, pela prática de uma contra-ordenação ao disposto no art. 28º, nº 1, do DL nº 168/97, de 4 de Julho, sucessivamente alterado.
Inconformada, a arguida interpôs recurso de impugnação judicial para o Tribunal Judicial de Vila nova de Gaia, que veio a ser distribuído ao .º Juízo Criminal e ali correu termos sob o nº …./06.8TBVNG
O recurso foi decidido por sentença que confirmou a decisão administrativa.
Novamente inconformado, o arguido interpôs recurso para esta Relação, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1. Contra-ordenação, é todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima;
2. Ao ilícito de mera ordenação social, é aplicável subsidiariamente as regras do D. Penal e do Processo Penal nos termos dos Arts. 32º e Art. 41º do RGCO, respectivamente;
3. É relevante para a defesa da arguida conhecer todos os factos que lhe são imputados;
4. Bem como toda e qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável;
5. Na comunicação prévia da imputação destinada a assegurar a defesa da arguida;
6. A douta sentença de que agora se recorre faz uma errónea interpretação da alegação da falta do direito de defesa;
7. A entidade administrativa não forneceu à arguida os elementos subjectivos do tipo de infracção de que a arguida vinha acusada;
8. Assim como a correcta indicação das normas segundo as quais foi punida;
9. A sentença recorrida é nula porquanto o tribunal “a quo” não se pronunciou sobre questões que devia apreciar;
10. Tanto o auto como a notificação para o exercício do direito de defesa são omissos, quanto ao elemento subjectivo do tipo;
11. É relevante para a defesa conhecer os pressupostos da punição e a sua intensidade;
12. Na fase administrativa do processo, a imputação dos factos respeitantes a uma contra-ordenação equivale à acusação em processo penal;
13. Sendo nesta, inequívoca a exigência desses elementos;
14. Sob pena de nulidade, nos termos da alínea b) do nº 3 do Art. 283º do Código de Processo Penal (CPP);
15. Foi nesse sentido o douto Acórdão do STJ de 28.11.2002 (publicado in Acs Dout. do STA, 498,1020) decidindo que “O auto de notícia, que anuncia a imputação ao arguido de um tipo de infracção, seguido de uma descrição meramente objectiva dos factos que pretensamente constituiriam a contra - ordenação, sendo absolutamente omisso quanto aos elementos subjectivos do infracção padece do vício de nulidade sanável nos termos do artigo 283º, nº 3, do CPP e art. 41º, nº 1 do RGCO. O arguido fica prejudicado no seu direito de defesa se desconhecer esses factos, pois ficou impossibilitado de exercer, de forma plena e eficaz, aquele direito, relativamente a questões de importância fulcral, designadamente a culpa e o seu grau”.
16. Sendo nulo o auto de notícia, não pode o mesmo valer como acusação;
17. Acarretando a nulidade da decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima;
18. No entanto, a meritíssima Juiz “a quo”, não se pronunciou sobre a arguida nulidade da decisão administrativa;
19. Limitando-se a qualificar juridicamente a invocada arguição com uma qualificação jurídica dos factos;
20. A sanação da erróneo subsunção dos factos ao direito, implicava necessariamente decisão diversa da proferida;
21. A sentença recorrida padece de nulidade, nos termos do Art. 379º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, aplicável “ex vi” Art. 41º do RGCO;
22. Por outro lado, a recorrente no seu recurso de impugnação judicial, refere, expressamente, nos artigos 8º a 22º, a errónea qualificação jurídica dos factos por parte da entidade administrativa.
23. A recorrente arguiu a nulidade da decisão administrativa com base na errónea qualificação jurídica dos factos;
24. Tanto o auto como a notificação para o exercício do direito de defesa, como a decisão administrativa que aplicou a coima, fazem uma errada qualificação jurídica dos factos;
25. No entanto, a meritíssimo Juiz “a quo”, ao ser confrontada com a matéria de facto dada como provada, em sede administrativa, implicava uma decisão diversa;
26. Sob pena, como sucedeu, de ser contraditória com aquela.
27. Menciona a decisão administrativa que “o comportamento da arguida foi negligente ...”.
28. Os factos de que a arguida vem acusada, estão sujeitos aos limites previstos no nº 2 do Art. 40º da mencionada legislação.
29. Ao contrário do que resulta do auto de notícia, da notificação para o exercício de defesa e da decisão recorrida;
30. Ao aplicar o nº 5 do seu Art. 38º.
31. A decisão administrativa refere expressamente que os factos de que a arguida vem acusada constituem contra ordenação “... punida com coima a graduar de € 2.500 a € 30.000 conforme dispõe o Art. 38º, nº 1, al. g) e nº 5 do mesmo preceito legal”.
32. Quando deviam ser punidos com coima a graduar de € 1.250 a € 15.000 conforme dispõe o Art. 38º, nº 1, al g) e nº 5 e 40º, nº 2, do mesmo preceito legal;
33. A sanação de tal vício, obrigava a meritíssima “juiz a quo” a proferir decisão diversa;
34. Como tal, é nula a sentença de que agora se recorre;
35. A decisão administrativa, violou o exercício do direito de defesa previsto no Art. 50º do RGCO e o Art. 32º, nº 10, da Constituição da República;
36. Tanto o auto como a notificação para o exercício do direito de defesa como a decisão sob recurso não forneceram à arguida, todos os elementos de que esta necessitava, para assegurar plenamente o seu direito de defesa;
37. É no exercício do seu direito de defesa, que a arguida, antes de ser proferida a decisão final, pode colocar em crise a decisão administrativa;
38. Produzindo a prova que entenda oportuna e requerendo tudo o que tiver por conveniente exercendo o contraditório;
39. O princípio do contraditório tem consagração constitucional nos termos do Art. 18º, nº 1 e 2 da Constituição da Republica Portuguesa (CRP);
40. O pleno exercício do direito de audiência e defesa, tem consagração constitucional no Art. 32º da CRP;
41. Extensível ao processo contra-ordenacional por aplicação do seu nº 10;
42. Tais garantias, consagrados constitucionalmente, só se podem tornar efectivas, tornando nulo, de forma insanável, o acto em que esses direitos não tenham sido respeitadas;
43. Como resulta do douto Acórdão da Relação do Porto, de 1 de Abril de 1998, colectânea de jurisprudência, nº 2, pag. 98 a 243 cujo sumário se transcreve: “A aplicação de uma coima sem que ao arguido tenha sido assegurado plenamente o direito de audiência e de defesa constitui nulidade insanável equivalente à ausência do arguido em processo penal”;
44. Pelo que, para todos os efeitos, a recorrente, não teve possibilidade de se defender, considerando-se uma violação do Art. 50º do RGCO;
45. A ausência da arguida em relação à sua defesa, não é só a sua ausência física mas também a ausência processual, no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa;
46. O processo contra-ordenacional assegura a aplicação a título subsidiário do direito processual penal, nos termos do Art. 41º, nº 1, do RGCO;
47. Foi cometida a nulidade prevista no Art. 119º, alínea c), do CPP;
48. Tendo como consequência a invalidade do acto praticado, bem como os que dele dependerem, nos termos do Art. 122º, nº 1, também do CPP;
49. O processo de contra-ordenação, está ferido de nulidade insanável, nos termos do Art. 119º, alínea c), do CPP, tornando nulos todos os actos processuais que lhe sucederem;
Nestes termos e nos melhores de direito que Vª Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser admitido, declarando nula a sentença recorrida.
Mais se requer que não seja a arguida condenada em custas, assim se fazendo a costumada Justiça!

Na sua resposta, o M.P. pugnou pela improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu douto parecer pronunciando-se pelo parcial provimento do recurso, ainda que por razões diversas das invocadas pela recorrente.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a audiência.

Segundo a jurisprudência corrente dos tribunais superiores, o âmbito do recurso afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido.
No caso vertente, as questões a decidir são as seguintes:
- Nulidade do auto de notícia, por falta de referência à forma negligente da contra-ordenação;
- Nulidade da sentença recorrida, por não ter conhecido das questões suscitadas na impugnação judicial.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na decisão recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
- No dia 26 de Março de 2004, cerca das 15.30 horas, a arguida “B………., Ldª”, mantinha aberto e em funcionamento o estabelecimento “C……….”, sua propriedade, sito na Rua ………., nº …, ………., Vila Nova de Gaia, sem que para o efeito possuísse a necessária licença de utilização para os citados serviços.
- À arguida não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais, sendo que tal estabelecimento se mantém em funcionamento sem possuir a referida e necessária licença.
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O presente recurso - que é restrito à matéria de direito, visto o disposto nos arts. 75º, nº 1 e 41º, nº 1, ambos do DL nº 433//82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado (adiante designado por RGCO), salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do CPP - decorre da condenação da arguida “B………., Ldª” numa coima no montante de € 2.500, pela prática de uma contra-ordenação ao disposto no art. 28º, nº 1, do DL nº 168/97, de 4 de Julho.

Como é sabido, as contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social. Estas normas, ditas de mera ordenação social, têm a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.
A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa) mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, nº 10, da CRP e art. 50º do RGCO).
Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCO.
Retenha-se, desde já, que contrariamente ao que muitas vezes se pretende fazer crer, não são aplicáveis ao processo de contra-ordenação todas as normas processuais penais que regulam matérias não especificamente reguladas no âmbito deste último domínio, mas apenas e tão só os preceitos reguladores do processo criminal (que até poderão não ser do Código de Processo Penal) que não colidam com o que resulta do RGCO. Isto é, que não colidam com as normas deste diploma nem com os princípios que lhe estão subjacentes. É esta a leitura ajustada do nº 1 do art. 41º do RGCO, em cujos termos, “sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”.
Trata-se, por outro lado, de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.

Sustenta a recorrente a nulidade do auto de notícia por dele não constar referência à forma negligente da contra-ordenação, entendendo ter assim ficado prejudicada nas suas possibilidades de defesa. Contudo, não lhe assiste razão, como resulta da própria letra da norma aplicável ao caso. Os requisitos do auto de notícia são, por força do disposto no art. 41º, nº 1, do RGCO, os previstos no art. 243º, nº 1, do CPP. Dele terão que constar os factos que constituem contra-ordenação, o dia, hora, local e circunstâncias em que a infracção foi cometida e ainda tudo o que for possível averiguar acerca da identificação dos agentes e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos. E nada mais!
Ou seja, no que respeita à matéria de facto, o que o auto de notícia tem que conter obrigatoriamente é uma descrição fáctica, não sendo, sequer, obrigatória a menção das normas violadas. E sendo assim, é manifesto que do auto de notícia não tinha que constar referência à imputação da contra-ordenação a título de dolo ou de negligência.

Contudo, na medida em que ao arguido são reconhecidos os direitos de audiência e de defesa, na notificação para o exercício desses direitos (quando a autoridade administrativa opte, no termo da fase instrutória do processo contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido) têm que constar todos os elementos de facto e de direito necessários para a integral elucidação da arguida relativamente a todos os aspectos relevantes para a decisão, como resulta do art. 101º, nº 2, do Código de Procedimento Administrativo. Serão os aspectos referidos nessa notificação que definirão o âmbito do procedimento contra-ordenacional, relativamente às quais a arguida poderá pronunciar-se e requerer a produção de prova.
Registe-se, já agora, que não assiste razão à recorrente quando afirma, na conclusão 12ª, que na fase administrativa do processo a imputação dos factos respeitantes a uma contra-ordenação equivale à acusação em processo penal. Nem o auto de notícia, nem a posterior notificação para apresentação da defesa, no domínio da fase administrativa do processo de contra-ordenação equivalem à acusação em processo crime. Expressamente dispõe o art. 62º, nº 1, parte final, do RGCO, que é a apresentação pelo M.P. ao juiz dos autos provenientes da autoridade administrativa que equivale à acusação.

Como se vê pela cópia da notificação constante de fls. 6 dos autos, a autoridade administrativa facultou à arguida a defesa por escrito ou mediante prestação de declarações, remetendo-lhe para o efeito cópia da participação com que se iniciaram os autos, ou seja, cópia do auto de notícia.
Do auto de notícia não consta referência à forma negligente do cometimento da contra-ordenação, mas constam as normas que a punem a título de dolo, pelo que outra conclusão não haveria que retirar da notificação, nos termos em que foi efectuada, senão a de que a autoridade administrativa, ao dar por concluída a actividade instrutória (art. 54º do RGCO), bem ou mal, imputou à arguida a prática da contra-ordenação a título doloso. Mas, exercido pela arguida o direito de resposta nos termos constantes de fls. 9 e ponderado o que resultava dos autos, a autoridade administrativa decidiu-se pela punição a título de negligência.
É certo, com bem observou o Exmº Procurador Geral Adjunto no douto parecer que fez juntar aos autos, que a alteração da qualificação jurídica para uma infracção que representa um minus relativamente à que lhe havia sido imputada não prejudica o direito de defesa da arguida. Esta teve a possibilidade de se defender, conhecendo todos os elementos integradores da infracção mais grave que lhe era imputada e foi-lhe facultada a possibilidade de os contraditar. A alteração efectuada relativamente à imputação inicial de uma forma dolosa da infracção, que levou à sua condenação por mera negligência, beneficiou a arguida. E tratando-se de condenação por infracção ao mesmo ilícito, mas com imputação a título diverso, mais favorável, de modo algum ficou prejudicado o seu direito de defesa. O que já seria de todo inadmissível, por contender com o direito de defesa, seria a condenação a título mais gravoso (por exemplo, condenação pela mesma infracção, mas agravada ou qualificada por circunstâncias que não tivessem sido levadas ao conhecimento da arguida) ou a condenação por um aliud, por uma infracção que nada tivesse a ver com a que lhe havia sido imputada e relativamente à qual não lhe tivesse sido facultada a possibilidade de se defender.
O que se discute, porém, é a questão de saber se a mera indicação da norma aplicável na vertente dolosa da infracção era, só por si, suficiente para se ter por cumprida a exigência da transmissão ao interessado de todos os elementos relevantes para a sua defesa, ou se necessário seria, ainda assim, dar-lhe conhecimento da factualização do elemento subjectivo, com expressa indicação da actuação deliberada, livre e consciente (no caso da imputação a título de dolo), ou da actuação sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, o agente estava obrigado e de que era capaz, actuando sem se conformar com a realização do facto, apesar de o ter representado como possível, ou não chegando sequer a representar a possibilidade da sua realização (na imputação a título de negligência).
Relativamente a esta questão veio a prevalecer a tese mais restritiva, com consagração no assento nº 1/2003 [1], que fixou jurisprudência nos seguintes termos:

Quando, em cumprimento do disposto no art. 50º do Regime Geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa.

Não obstante, a decisão do Supremo que acabamos de referir, dá nota, na sua fundamentação, de um aspecto fundamental e com plena aplicação no caso vertente, no que concerne à sanação da nulidade. Transcreve-se da parte final da fundamentação do citado acórdão de fixação de jurisprudência o texto que se segue em itálico:
“(…) Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade (negrito nosso), o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121º, nºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122, nº 1, do Código de Processo Penal e 41º, nº 1, do regime geral das contra-ordenações]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41º, nº 1, do regime geral das contra-ordenações]. (…)”.
Tal é o caso da impugnação judicial deduzida pela arguida, em que esta não se limitou a arguir a nulidade cometida na fase administrativa, tendo aproveitado a oportunidade para discutir a relevância da sua conduta, desde logo, nos artigos 15º a 19º e 24º da impugnação apresentada em primeira instância, em que refere “(…) que a eventual conduta da recorrente não é subsumível ao conteúdo da norma invocada”, extravasando assim o âmbito da mera arguição da nulidade para entrar no domínio da valoração da decisão arguida de nula. Ao fazê-lo, aproveitou a impugnação para exercer o seu direito de defesa, dele se prevalecendo, enjeitando a prática dolosa da contra-ordenação, sanando, com essa actuação, o vício de que padeciam a notificação e a decisão administrativa, ao abrigo do disposto no art. 121º, nº 1, c), do CPP, ex vi art. 41º, nº 1, do RGCO.
Ou seja e em conclusão, no que a este particular aspecto concerne, a nulidade invocada pela recorrente, ainda que efectivamente verificada, deve considerar-se sanada.

Contudo, o facto de estar sanada a nulidade da decisão administrativa não tem a virtualidade de sanar o vício em que ulteriormente incorreu o tribunal de primeira instância e que parece decorrer já de um erro de direito cometido na decisão administrativa. Dele pode conhecer esta Relação, na medida em que, ao abrigo do previsto no nº 2 do art. 75º do RGCO a decisão do recurso poderá alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, salvo o disposto no art. 72º-A (proibição da reformatio in pejus), ou anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido.
Na verdade, a decisão administrativa, invocando a imputação da contra-ordenação à arguida a título de negligência, omitiu qualquer referência às normas referentes à negligência ou à moldura legal do ilícito negligente e fixou a coima em montante correspondente ao mínimo previsto para a actuação dolosa, transmitindo assim a clara impressão de ter considerado, na concretização da coima, a moldura prevista para o ilícito doloso. Por seu turno, o tribunal recorrido, dando conta do cometimento da infracção a título negligente e da moldura legal adequada, faz a seguinte consideração, na determinação da medida concreta da coima: “Tendo sido aplicada à arguida a coima de 2.500 Euros, bastante próxima do mínimo legal e considerando que o estabelecimento ainda hoje se mantém aberto sem a necessária licença, sendo que não foi alegada e provada qualquer circunstância de facto ou de direito que importe a redução do montante da coima, decide-se manter a mesma por inexistirem fundamentos que importem a sua redução”. Ou seja, o tribunal recorrido diz manter, na concretização da sanção aplicável a título negligente, a medida da coima erradamente determinada a partir da medida prevista para a infracção dolosa, o que se vem a traduzir em manifesto prejuízo para o arguido. Com efeito, tivesse a decisão da autoridade administrativa partido da moldura adequada e a coima encontrada teria sido inferior; e em caso de impugnação judicial, fruto da proibição da reformatio in pejus, o tribunal não a poderia ter agravado.
A razão está, pois, com o Exmº Procurador Geral Adjunto, quando refere que o recurso merece parcial provimento, ainda que por razões diversas das invocadas.
Assim, visto o disposto no art. 75º, nº 2, al. a), do RGCO, decide-se alterar a decisão da 1ª instância no que concerne ao montante da coima, fixando-a em € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).
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III - DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, concede-se parcial provimento ao recurso, ainda que por razões diversas das invocadas e, consequentemente, decide-se reduzir a coima imposta à recorrente, fixando-a em € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).
Por ter decaído parcialmente no recurso interposto, pagará a recorrente a taxa de justiça de 3 UC.
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Porto, 21/11/2007
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Artur Manuel da Silva Oliveira
Maria Elisa da Silva Marques Matos Silva
Arlindo Manuel Teixeira Pinto

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[1] - Publicado no Diário da República, nº 21, Série I - A, de 25 de Janeiro de 2003.