CONTRATO DE ALD
APREENSÃO DE VEÍCULO
PERICULUM IN MORA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Sumário

I – No procedimento cautelar comum, o “periculum in mora” tem que ser analisado e apreciado relativamente ao direito que é invocado pelo requerente, e não já em relação a qualquer outro direito que daquele seja sucedâneo ou substitutivo, como o direito à indemnização pelos prejuízos daí decorrentes.
II – Apresentando o requerimento inicial insuficiente explicitação dos factos que interessam à procedência do procedimento cautelar, nomeadamente por o seu conteúdo estar em grande parte preenchido por meras conclusões ou conceitos de direito, será sempre aconselhável que o juiz faça uso, se bem que a isso não esteja obrigado, dos princípios da cooperação e da justa composição da lide, definidos no art. 266º, nº/s 1 e 2, do CPC, para, em despacho de aperfeiçoamento, convidar o requerente a suprir essas insuficiências alegatórias.

Texto Integral

Rel. 74
Apelação nº4481/09.9TBMAI.P1

Relator (por vencimento) – Teixeira Ribeiro
Adjuntos – Desembgdrs: Drª Deolinda Varão e
Drª Maria Catarina Gonçalves



Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – B………., AS, requereu, sem audiência da parte contrária, procedimento cautelar comum na Comarca da Maia, aí averbado sob o número em epígrafe ao .º Juízo Cível,
contra
C………., Ldª, pedindo fosse decretada a apreensão imediata do veículo de marca Smart, modelo …………, com a matrícula ..-AU-.., alegando, em síntese, que:
- Celebrou com a Requerida um contrato de aluguer de longa duração, tendo por objecto o referido automóvel (de sua propriedade); que a Requerida não pagou os alugueres nºs 37, 38, 39, 40 e 41, motivo pelo qual lhe enviou uma carta registada, datada de 20/03/2009, interpelando-a para o cumprimento das obrigações contratuais assumidas e concedendo-lhe o prazo de oito dias para a regularização dos valores em dívida, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo e de o contrato se considerar automática e imediatamente rescindido, com as consequências daí decorrentes (que lhe indicou), designadamente a obrigação de proceder à imediata devolução do veículo; que a Requerida não procedeu à regularização do débito nem à entrega do veículo e continua a usar e a fruir da viatura locada, sendo público e notório que, por um lado, a utilização a deprecia e, por outro, o mero decurso do tempo determina também a sua desvalorização, acarretando à Requerente prejuízos irreparáveis na medida em que não pode descontar quilómetros à viatura, nem tão pouco rejuvenescê-la ou obstar de alguma forma à sua desvalorização, ou mesmo à sua deslocação para fora do país; por outro lado, existe ainda o risco de o veículo se encontrar em circulação, poder a Requerente vir a ser responsável pelo risco em qualquer acidente do qual resulte responsabilidade civil.

De seguida, foi proferida decisão que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar, fundamentalmente por não estarem alegados factos concretos capazes de revelarem “um fundado e justificado receio de perda da garantia patrimonial do crédito por parte da Requerente”.

*

Inconformada, a requerente veio apelar, formulando as seguintes conclusões alegatórias:

“1. A Recorrente deveria ter sido chamada a corrigir e aperfeiçoar o seu requerimento inicial da providência cautelar não especificada intentada antes de ser proferido o despacho de indeferimento liminar, pelo que a decisão recorrida viola o art. 508º do CPC.

2. O propósito da providência cautelar requerida encontra-se expresso em diversos artigos do requerimento inicial salientando-se os artigos 10, 12, 13, 15, 16, 17, 18 e 19. A intenção da Requerente retira-se, por outro lado, dos artigos 20, 31, 34, 35 e 40 alínea a) e b).

3. A Recorrente alegou a existência de periculum in mora que justifica o decretamento da providência cautelar intentada, tendo sobretudo em consideração a lesão que impende sobre o seu direito de propriedade, nos termos do nº1 do artº 381º do CPC, e que apenas à Requerida pode ser imputada.

4. Lesão essa grave e dificilmente reparável, uma vez que impede a Recorrente de gozar, fruir e dispor do direito de propriedade que lhe pertence, justificando-se o decretamento da providência conservatória solicitada pela Requerente.

5. Ao que acresce o facto de o prejuízo para a Recorrente com o não decretamento da providência cautelar ser consideravelmente superior ao prejuízo da Requerida.

6. A providência cautelar não especificada é a única que pode ser utilizada pela Requerente o que corresponde, aliás, à concretização do nº2 do artº 2º do CPC, preceito que foi violado pelo tribunal a quo.

7. Admitir que a Recorrente, titular do direito de propriedade do veículo cuja apreensão se requereu, terá que continuar a sofrer a lesão do seu direito na pendência de uma acção principal, contentando-se, depois, com uma indemnização correspondente ao valor atribuído aos danos é conceder um benefício injustificado ao requerido.

8. Assim, concluímos que a violação do direito de propriedade da Recorrente se encontra irreparavelmente limitado enquanto o veículo se encontrar na posse da Requerida, pelo que se conclui, necessariamente, pela existência de uma lesão grave e dificilmente reparável.

9. Deste modo, a decisão recorrida violou o nº1 do art. 381º do CPC ao não decretar a providência cautelar não especificada requerida

Termos em que,

Se requer …...provimento ao recurso...e, em consequência, ser ordenada a prossecução dos autos ….com produção de prova, sem audiência prévia da Recorrida.

Caso assim não se entenda, deverão os autos prosseguir para prolação de despacho de aperfeiçoamento, nos termos do art. 508º do CPC.”

Não foram oferecidas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir, cingindo-se o objecto do recurso – traçado pelas conclusões alegatórias (Artºs 684º, nºs 1 e 3, e 685º-A, nº1, do Cod. Proc. Civil) – a saber:
a) – Se foram alegados factos que caracterizem o periculum in mora;
b) – e se, caso assim se não entenda, se devia ter proferido despacho de aperfeiçoamento nos termos do artº 508º do CPC.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – Os factos que relevam para o conhecimento do objecto do recurso são os que ficaram expostos no ponto I.

II. 2 – Fundamentação Jurídica. O Direito Aplicável.

a) – Da suficiência da matéria de facto alegada quanto ao “periculum in mora”

Os procedimentos cautelares são, genericamente, expedientes processuais, de tramitação simplificada e célere, destinados a prevenir a lesão, pela natural demora da intervenção judiciária comum e definitiva, de um direito que já existe ou está em vias de ser reconhecido. Por isso, bastam-se com a prova sumária da probabilidade séria da existência do direito (sumaria cognitio) e do fundado receio da sua lesão – Artºs 387º, nº1 e 392º, nº1, ambos do Cod. Proc. Civil (diploma a que pertencem as demais disposições que doravante se citarem sem menção de origem).
Salvo os procedimentos nominados e com a sua regulação processual especificada em atenção à natureza dos direitos substantivos em causa, todas as demais providências cautelares podem ser requeridas segundo a disciplina que se designa de procedimento cautelar comum (naturalmente não especificadas), regulado nos Artºs 381º a 392º, como a que temos em apreço, que não encontra no direito adjectivo tramitação específica para o direito que pretende acautelar.
Segundo essa disciplina, o decretamento de uma providência cautelar comum depende da verificação dos seguintes requisitos:
a) – probabilidade séria da existência de um direito;
b) – fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável nesse direito;
c) – inadequação ao caso concreto de qualquer uma das providências cautelares previstas nos artºs 393º e segts.

Surgindo a providência cautelar como expediente provisório, preliminar ou incidentalmente dependente de uma causa ulterior e final em que verdadeiramente se reconhece ou exerce o direito material, ela tem natureza instrumental e exige, para ser decretada, que o seu requerente demonstre sumariamente a existência do direito ameaçado (que pode ser um qualquer direito subjectivo, como o direito de propriedade, ou um interesse juridicamente tutelado, mais ou menos difuso), de molde a preservar-se a eficácia e utilidade daquela providência ulterior (assegurada pela causa final e principal), sabido como é que a preparação e formação, a maior partes das vezes lenta e demorada, da decisão definitiva poderá expor o presumido titular do direito a riscos sérios de dano jurídico, somente evitáveis através da providência cautelar – cfr, entre outros, José Alberto dos Réis, in “Código de Processo Civil”, Anotado, 3ª Edição, Reimpressão, pag. 623-627; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2ª Edição, pag. 23-25, e António Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Volume, Procedimento Cautelar Comum, pag.56-78.
No caso sub judice, a titularidade do direito de propriedade da Requerente sobre a viatura ..-AU-.. parece inquestionável. Foi invocado por ela e resulta dos documentos que juntou, de fls. 18 e 19, relativos à sua aquisição e registo a seu favor na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, sendo no âmbito do respectivo yus utendi que dela dispôs ao celebrar com a Requerida o contrato de aluguer de longa duração referenciado nos autos. Se como primeiro pressuposto do procedimento cautelar comum basta a aparência de um direito, ou seja, que através de uma apreciação perfunctória dos factos invocados o tribunal possa emitir um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança (um bonus fumus iuris) da existência do direito lesado, esse pressuposto está, no caso, mais que assegurado.

Prosseguindo a análise aos factos invocados no caso que nos ocupa, mais problemática se nos afigura, porém, a resposta que se poderá dar ao segundo dos enunciados requisitos – o da verificação de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável nesse direito. É que, como nos lembram os autores atrás citados, a ênfase que o legislador deu a este requisito, usando as expressões “lesão grave” e “dificilmente reparável” apontam para que concretamente se tenha que revelar excessivo o periculum in mora; terá que haver um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer acção; deverá tratar-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito enquanto espera a apreciação desse direito na acção judicial normal – José Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil”, anotado, Volume 2º, 2ª Edição, pag.6-7 (além da doutrina e jurisprudência aí citadas).
Supondo esta doutrina como a melhor interpretação dos pressupostos da providência requerida nos autos (de urgente apreensão da viatura em poder da Requerida, por ter sido resolvido o contrato de aluguer de longa duração), vemos que a Requerente alegou, quanto à gravidade da possível lesão do seu direito pela demora (periculum in mora), que aquela continua a usar e a fruir tal veículo, depreciando-o e desvalorizando-o, causando-lhe prejuízos irreparáveis (na medida em que não pode descontar-lhe quaisquer quilómetros, rejuvenescê-lo ou obstar à sua desvalorização), e sendo notório que esse prejuízo se não “compadecerá com a delonga da acção principal, deixando de ser um seu efectivo activo, para passar a consistir num custo”, não só por via de despesas efectivas como por causa de eventual responsabilidade civil em caso de acidente – artigos 23º, 24º, 26º, 27º, 29º, 32º e 33º, do requerimento inicial.
Esta alegação, se bem que não completamente exangue de afirmações conclusivas ou de conceitos de direito e carecida de maior explanação concreta da realidade que poderia assumir para deixar de merecer completamente os reparos feitos na decisão recorrida, parece-nos, ressalvada a máxima consideração por opinião adversa, que é, pelo menos, bastante para que, ao contrário do que alí se sustentou, fazer prosseguir a tramitação dos autos com vista ao sumário apuramento dos factos alegados (com audição das testemunhas arroladas pela Requerente), ou para tomar a opção da prolação do despacho de aperfeiçoamento nos termos do disposto no Artº 508º, nºs 1, b) e 3, que, no caso, não chegou a ocorrer.
Não que se dispense a prova do periculum in mora por o legislador presumir que a demora da acção principal causa prejuízo grave e de difícil reparação, como acontece nas situações legalmente previstas de apreensão de veículos automóveis sequente à sua alienação com reserva de propriedade (nos termos dos Artºs 15º, nºs 1 e 2, 16º, do Dl. Nº54/75, de 12 de Fevereiro) ou que foram objecto de locação financeira (nos termos do Artº 21º, nºs 1,2 3 e 4, do Dl. Nº149/95, de 24 de Junho), mas porque – estando alegado que a Requerida mantém em seu poder e está a utilizar a viatura, apesar da resolução do contrato (quando devia proceder à sua entrega), completamente fora da álea do contrato que celebrara, sem qualquer controlo e contrapartida para a Requerente – não poderá essa conduta deixar de ser considerada lesão grave e de difícil reparação ao direito de propriedade sobre a viatura cuja entrega está a ser pedida por aquela. Com efeito, o periculum in mora tem que ser analisado e apreciado relativamente ao direito que é invocado pelo requerente, e não já em relação a qualquer outro direito que daquele seja sucedâneo ou substitutivo, como o direito à indemnização pelos prejuízos daí decorrentes.
Na verdade, estando em causa um bem móvel, cuja utilização implica, de forma notória, a sua depreciação e que, a curto prazo, poderá mesmo conduzir à sua total inutilização ou destruição, entendemos que a utilização do veículo por parte da Requerida até à decisão da acção determina, só por si, e independentemente do apuramento de qualquer outro facto que ainda esteja por fazer (dos alegados), o risco de a Requerente ficar privada, total e definitivamente, do seu direito de propriedade e das utilidades que ao mesmo são inerentes.
Como bem se explanou no Acórdão desta Relação, de 18 de Junho de 2008 (procº nº 0833386), in www.dgsi.pt/jtrp) – cuja orientação seguimos de perto, por com ela concordarmos – “inexistindo motivo para a Requerida continuar na detenção do veículo, tem a Requerente direito à sua restituição como coisa íntegra, útil e utilizável, e não como coisa imprestável, inutilizável ou como mera sucata (risco que corre se apenas em virtude da decisão definitiva vier a ser apreendido e entregue à Recorrente, sem que esta tenha tido qualquer proveito com a sua utilização indevida).
Não se trata apenas de um direito à restituição do veículo que à Recorrente cabe, cuja demora pode dar lugar à obrigação de indemnizar a cargo da Requerida, nem de acautelar o pagamento dos alugueres, mas também o direito de não ver inutilizada a sua propriedade, cujos direitos de uso, fruição e disposição lhe pertencem em exclusivo e, por consequência, poder frui-la. Direitos que são, de todo, inutilizados, se a requerida continuar a deter e utilizar a viatura contra a vontade da requerente”.
Ao pressuposto de se exigir ao decretamento da providência a verificação do requisito do fundado receio de que a demora da decisão definitiva cause lesão grave irreparável ou de difícil reparação ao direito do requerente não obsta o facto de a lesão poder ser minorada (ou “reparada”) pela entrega de uma quantia em dinheiro (conforme Artºs 1043º e 1044 do Código Civil), pois, a ser assim, raras seriam as situações de lesão (grave) que não pudessem ser reparadas (dado que até a perda do direito à vida é, no nosso sistema jurídico, “compensável”...!).
O que a Requerente pretende (lê-se no supra citado Aresto) com o procedimento cautelar – e é esse o seu direito – “é a entrega do veículo para, além do mais, salvaguardar a sua integridade (como máquina adequada a determinados fins), e não uma indemnização pela sua inutilização ou deterioração ou por dele não poder dispor, nomeadamente na celebração de novo contrato de aluguer”.

Tem-se entendido que os contratos de aluguer de longa duração de veículos automóveis são uma das modalidades do contrato de locação especificamente regulado no Artº 1022º e segts do Código Civil, a que também é aplicável a disciplina relativa aos contratos de aluguer de veículo sem condutor estabelecida no Dl. Nº 354/86, de 23 de Outubro, que entre as suas normas contém a do Artº 17, nº4, a dispor que “É lícito à empresa de aluguer...retirar ao locatário o veículo alugado no termo do contrato, bem como rescindir o contrato nos termos da lei, com fundamento em incumprimento das cláusulas contratuais” (sublinhado nosso) – Acórdãos do S. T. J., de 05/12/1995 e 25/09/2003, in Colectânea de Jurisprudência (do STJ), in, respectivamente, Ano III, Tomo 3, pag. 135, e Ano XI, Tomo 3, pag.54.
A contundência com que é usado o termo “retirar”, se por si só não encerra a presunção de que a privação da utilização da viatura por parte da locadora constitua uma lesão grave ou de difícil reparação do seu direito, reforça, todavia – assim nos parece – a ideia de que numa actividade como esta (a da locação de veículos automóveis, com ou sem condutor e por períodos mais ou menos longos) a sua dinâmica pressupõe e faz sobrelevar o direito de a locadora continuar a dispor imediatamente do objecto locado, logo que, por qualquer motivo (nomeadamente por resolução contratual) finde o contrato, pois que, a não se entender assim, o direito à restituição da viatura locada já constituia um efeito típico do contrato de aluguer, genericamente regulado e previsto nos Artºs 1038º, i) e 1043º, nº1, do Código, sem necessidade de contemplação em legislação especial.

b) – Do despacho de aperfeiçoamento do requerimento inicial

Na linha de tudo o que antes ficou dito, o requerimento inicial da providência não é completamente desprovido de factos concretos relevantes (que, até agora, estão apenas alegados) para o conhecimento do respectivo pedido, de modo a poder afirmar-se que é inepto por falta absoluta de causa de pedir ou manifestamente improcedente.
O Mmº Juiz da 1ª Instância chega a reconhecer isso, quando na decisão recorrida escreveu - “Os factos alegados pela requerente são manifestamente insuficientes para que possamos dizer estar perante um fundado e justificado receio de perda da garantia patrimonial do crédito por parte da requerente...”. (sublinhados nossos).
Se assim é, se o factos estão menos bem explicitados e são insuficientes para, uma vez apurados (ainda que sumariamente), ditar a procedência da providência cautelar, bem poderia então, antes ou depois de ouvir a Requerida (conforme dispensasse ou não a sua audição), ter convidado a Requerente a aperfeiçoar o seu requerimento inicial, visando suprir essas insuficiências, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs 234º, nº4, b), 234º-A, nº1, e 508º, nºs1, b), 2 e 3. Tudo aconselhava a que, dentro do salutar princípio da cooperação e da justa composição da lide (Artº 266º, nºs 1 e 2) a que assim procedesse, sendo, no entanto, duvidoso que assim tivesse que actuar vinculadamente, como vem sendo defendido tanto pela doutrina como pela jurisprudência mais seguidas sobre esta matéria - cfr., entre outros, José Lebre de Freitas, ob. Citada, pag. 23 e 353 a 355; Lopes do Rego, in “Comentários Ao Código de Processo Civil”, 2ª Edição, Volume I, pag. 220;e Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Volume, 3ª edição, pag.183-187, e os Acórdãos, desta Relação, de 29/06/2006 (procº nº0633389), in www.dgsi.pt/jtrp, e da Relação de Lisboa, de 20/05/2008 (proc.nº 4024/2008-1), in www.dgsi.pt/jtrl.

De todo o modo, e pelas razões já expostas, o requerimento inicial continha suficiente fundamento para que a instrução do procedimento requerido tivesse prosseguido, com ou sem despacho de aperfeiçoamento, para a audição das testemunhas indicadas pela Requerente, motivo pelo qual o agravo vai merecer provimento.

Em conclusão (Artº 713º, nº7):
I – No procedimento cautelar comum, o periculum in mora tem que ser analisado e apreciado relativamente ao direito que é invocado pelo requerente, e não já em relação a qualquer outro direito que daquele seja sucedâneo ou substitutivo, como o direito à indemnização pelos prejuízos daí decorrentes.
II – Apresentando o requerimento inicial insuficiente explicitação dos factos que interessam à procedência do procedimento cautelar, nomeadamente por o seu conteúdo estar em grande parte preenchido por meras conclusões ou conceitos de direito, será sempre aconselhável que o Juiz faça uso, se bem que a isso não esteja obrigado, dos princípios da cooperação e da justa composição da lide, definidos no Artº 266º, nºs 1 e 2, do CPC, para, em despacho de aperfeiçoamento, convidar o requerente a suprir essas insuficiêncais alegatórias.

III – DECIDINDO

Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que faça prosseguir os autos nos termos supra-indicados.
Sem custas.

Porto, 24/09/2009
Manuel de Sousa Teixeira Ribeiro (relator por vencimento)
Maria Catarina Ramalho Gonçalves
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão (vencida) (conforme declaração que segue)

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Teria confirmado a decisão recorrida pelas seguintes razões:
No caso de um contrato de aluguer de longa duração que tem por objecto um veículo automóvel (como o celebrado entre a requerente e a requerida), a existência do justo receio de lesão grave e dificilmente reparável não se retira, sem mais, do incumprimento contratual da requerida por falta de pagamento dos alugueres acordados, da detenção do veículo pela requerida e da constatação de um veículo automóvel ser um bem perecível e deteriorável, quer pelo uso, quer pelo decurso do tempo.
Por um lado, decorre precisamente deste último facto que a falta de pagamento dos alugueres não aumenta o risco de deterioração física e de desvalorização comercial do veículo.
Por outro lado, a detenção do veículo pela requerida não é susceptível de causar à requerente lesão grave e dificilmente reparável porque esta continua a ter direito aos alugueres não pagos até à restituição, seja a título de prestação contratual devida até à resolução (cfr. artºs 406º e 1038º, al. a) do CC), seja a título de indemnização pelo atraso na restituição, desde a resolução até à efectiva entrega (cfr. artº 1045º do mesmo Diploma).
Quanto à eventual deterioração culposa das viaturas locadas, está acautelada nos termos gerais (artºs 1043º e 1044º do CC), sendo certo que tal risco existe, desde o início do contrato e com a natural circulação do veículo[1].
Importa ainda referir que, como se escreveu no Ac. da RL de 04.07.06[2], se é certo que a natureza perecível do automóvel foi reconhecida pelo legislador nos DL’s 54/75 de 24.02 e 149/95 de 24.06, que, em ambos os Diplomas, previu e regulou providências que visam assegurar o não perecimento do direito de propriedade sobre automóveis, e que, inclusive, dispensam a prova do periculum in mora, por o legislador presumir que a demora da acção principal causa prejuízo grave e de difícil reparação, não menos correcto será também concluir que, quer a providência cautelar de apreensão de veículo prevenida pelo DL 54/75, quer a prevenida pelo DL 149/95, contêm normas excepcionais que não permitem aplicação analógica nos termos do artº 11º do CC e, por isso, quando naqueles Diplomas se faz referência aos “contratos de alienação” e de “locação financeira”, não se poderá entender como abarcando outras realidades contratuais, v.g., o contrato de aluguer de longa duração (não se podendo efectuar aqui uma interpretação extensiva), sob pena de se subverter o sistema instituído que está feito, em termos racionais e teleológicos, para abarcar situações particulares, sem embargo de se poder constatar que novas realidades se impuseram no comércio jurídico e que não se coadunam com o sistema em vigor. Mas aqui, trata-se de um problema de jure constituendo, alheio aos Tribunais, que não têm por missão a criação de Leis (a não ser que se imponha por inexistência da Lei aplicável ao caso, nos termos do artº 10º, nº 3 do CC, o que não acontece no caso sub judicio).
Assim, no caso dos autos, a requerente não estaria dispensada de alegar os factos constitutivos do periculum in mora, que não se podem retirar, sem mais, das circunstâncias acima mencionadas, maxime, do risco de deterioração e desvalorização do veículo pela circulação e pelo decurso do tempo[3].
Ora, a requerente limitou-se precisamente a invocar a deterioração e desvalorização do veículo (cfr. artºs 23º, 24º, 26º e 27º).
Quanto ao risco de ocorrer um acidente de viação, resulta ele da utilização do veículo pela requerida, não sendo agravado pela resolução do contrato nem pela falta de pagamento de alugueres, tal como já vimos que não são agravados os riscos de deterioração e desvalorização.
Além disso, estando o contrato em vigor, a requerida é responsável pelo pagamento dos prémios do contrato de seguro de responsabilidade civil e a requerente tem direito de regresso sobre a requerida no caso de ser responsabilizada por danos causados a terceiros pelo veículo (cfr. cláusulas 8ª e 9ª do contrato).
E no caso de se considerar o contrato resolvido, a detenção do veículo pela requerida passa a ser ilícita, pelo que requerente não tem a direcção efectiva do veículo, o que significa que não pode responsabilizada por danos causados a terceiros pelo veículo, ainda que este não dispunha de seguro válido e eficaz (cfr. artºs 503º, nº 1 do CC e 62º, nº 1 do DL 291/07 de 21.08).
Finalmente, estando em causa apenas prejuízos de natureza material, ressarcíveis através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva, impunha-se que a requerente alegasse factos tendentes a demonstrar as suas condições económicas e as do requerido, bem como a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos efectivamente causados[4]. O que também não fez.

Quanto à questão do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial:
Não se mostrando alegados os factos necessários à concretização do periculum in mora, estar-se-ia perante uma situação de falta de causa de pedir, que acarretaria a ineptidão da petição inicial (artº 193º, nº 2, al. a do CPC).
A consequência da ineptidão da petição inicial é a nulidade de todo o processado, que constitui uma excepção dilatória de conhecimento oficioso geradora da absolvição da instância (artºs 193º, nº 1, 493º, nºs 1 e 2, 494º, al. b) e 495º, todos do CPC).
Quando falta a causa de pedir, não pode ser proferido o despacho previsto no artº 508º do CPC: não há que suprir a falta de pressupostos processuais nem que aperfeiçoar a petição inicial, pois que nem a nulidade decorrente da ineptidão é suprível nem a petição inepta por falta de causa de pedir carece de ser aperfeiçoada (não se pode aperfeiçoar o que não existe).
Como refere Lebre de Freitas, reportando-se àquele preceito[5], fora da sua previsão estão os casos em que a causa de pedir ou a excepção não se apresentem identificadas, mediante a alegação de elementos de facto suficientes para o efeito, casos esses que são de ineptidão da petição inicial (…) ou de nulidade da excepção, nomeadamente por exclusiva utilização de expressões de conteúdo técnico/jurídico.
Naqueles casos, tem de ser proferido imediatamente despacho saneador que absolva o réu da instância pela verificação da excepção dilatória de nulidade de todo o processado ou despacho de indeferimento liminar, se a forma do processo o admitir – como é o caso dos procedimentos cautelares (artº 234º, nº 4, al. b) e 234º-a, nº 1, ambos do CPC).
Se o autor indica os factos constitutivos do seu direito, mas os mesmos não são suficientes para assegurar a procedência da acção, pode então o juiz convidá-lo a completar a causa de pedir, ao abrigo do disposto no artº 508º, nº 1, al. b) e nº 3 do CPC; se o autor não corresponder satisfatoriamente ao convite do juiz, tem este de proferir decisão sobre o mérito da causa, julgando a acção improcedente[6].
Assim, no caso, a petição inicial, sendo inepta, não podia ser objecto de aperfeiçoamento, acarretando o indeferimento liminar do procedimento cautelar nos termos do artº 234º-A, nº 1 do CPC, restando à requerente prevalecer-se do disposto no artº 476º do mesmo Diploma.
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Porto, 17 de Setembro de 2009
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão

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[1] Cfr. Ac. desta Relação de 11.09.08.
[2] www.dgsi.pt
[3] Neste sentido, ver os Acs. desta Relação de 21.12.04 e 11.09.08 e da RL de 04.07.06, acima citados, e ainda os Acs. desta Relação de 13.10.03, CJ-03-IV-177 e de 14.10.03, 27.11.03, 10.02.04, 01.07.04, 08.11.05 e 19.04.07, todos em www.dgsi.pt.
[4] Sobre esta matéria, ver Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III, 3ª ed., pág. 101.
[5] CPC Anotado, 2º, págs. 383 e 384.
[6] Neste sentido, ver os Acs. desta Relação de 16.06.98, 03.05.01 e 24.05.01, da RC de 19.04.05 e da RL de 06.11.03, todos em www.dgsi.pt.