NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
CASO OMISSO
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
Sumário

I- A notificação ao arguido do despacho que indeferiu o pedido de abertura da audiência para aplicação retroactiva da lei penal mais favorável [art. 371.º-A, do CPP] não constitui um caso omisso na lei, a exigir uma interpretação extensiva do disposto na 2ª parte do n.º 9 do art. 113.º, do CPP.
II- Não integrando as situações de ressalva previstas na lei, é válida e plenamente eficaz a notificação ao arguido desse despacho feita ao respectivo defensor ou advogado.

Texto Integral

PROCESSO Nº 1926/99.8TAMTS.P1
RELATOR: MELO LIMA

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

1. No Processo Comum Colectivo que, sob o número em epígrafe, corre termos 1ºJuízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, os arguidos B…….., C………. e D…….., condenados, cada um deles, por acórdão do STJ de 20 de Novembro de 2008 “pela prática, em co-autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada de que resultou a morte, previsto e punido pelos artigos 143. °, 145.°, n.° l, alínea a) e 147." n." I e 2, com referência ao artigo 132.", n.° 2, alíneas c), e) e h) na versão resultante da Lei n." 59/07, de 4 de Setembro, por ser mais favorável, na pena de quatro anos e seis meses de prisão …, cuja pena se não suspende ..” requereram, ao abrigo do disposto no art." 37I."-A do CPP, a reabertura da audiência para aplicação da lei mais favorável, por força da entrada em vigor da Lei 59/2007 de 4 de Setembro.

2. Sobre esta pretensão incidiu a seguinte decisão judicial:
«Os arguidos B………, C……… e D……… vieram pedir a reabertura da audiência a fls. 2069 e seguintes, ao abrigo do disposto no Artigo 371°-A do C.P.P., para a aplicação da lei mais favorável resultante da entrada em vigor da Lei N° 59/2007, de 4/9.
Resulta do alegado no Artigo 7" desse douto requerimento, que a condenação dos requerentes pelo S.T.J. foi efectuada pelas disposições do Código Penal "na versão resultante da Lei N° 59/2007, por ser mais favorável na pena de quatro anos e seis meses de prisão a cada um dos arguidos, cuja pena não se suspende".
Logo no Artigo seguinte desse douto requerimento (Artigo 8°), vem invocado que "Durante esses 10 anos e 4 meses (...) ocorreram muitíssimas alterações legislativas (...) entre estas alterações legislativas uma delas muito significativa para os aqui suplicantes, por força da Lei N° 59/07, de 4 de Setembro".
No Artigo 10° desse douto requerimento vem concretamente invocada a nova redacção dada ao Artigo 50° do Código Penal, "que prevê a possibilidade de suspensão de penas inferiores a 5 anos, quando anteriormente o limite máximo eram três".
Em suma: os requerentes pretendem que lhes sejam suspensas as penas de prisão em que foram condenados, ao abrigo da nova redacção dada ao Artigo 50° do Código Penal, resultante da Lei N° 59/2007, de 4/9.
O Artigo 371-A do Código P. Penal é absolutamente claro ao estatuir que a reabertura da audiência apenas tem lugar "Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor leipenal mais favorável".
Ora, como resulta dos próprios termos do requerimento em apreço, é manifesto que tal não sucede. Com efeito, o douto acórdão do S.T.J. foi proferido em 20/11/2008 (cfr. fls. 1915) e transitou em julgado em 13/2/2009 (cfr. fls. 1958). Isto é, a lei mais favorável invocada pelos requerentes (Lei N° 59/2007, de 4/9) já se encontrava em vigor quer quando o referido acórdão transitou em julgado quer mesmo quando foi proferido.
Por outro lado, tal como referem os próprios requerentes, o S.T.J. aplicou a referida lei nova, por ser a mais favorável, tal como consta do texto da respectiva decisão (cfr. fls. 1915). Alias, ao declarar expressamente não suspender a execução das penas aplicadas aos requerentes, a decisão só podia ter tido em conta a lei nova, uma vez que anteriormente tal não era admissível, como os requerentes reconhecem.
Por fim, no 4° parágrafo da página 37 do douto acórdão do S.T.J. (fls. 1912 dos autos), vem dito expressamente que a pena de prisão não se suspende, "por a suspensão da execução da pena não se mostrar compatível com as finalidades da punição, nomeadamente as referidas fortes exigências de prevenção geral e mesmo as de prevenção especial, por força da personalidade revelada pelos arguidos e acima posta em destaque, tudo em conformidade com os requisitos materiais exigidos pelo Artigo 50°, n° l, do Código Penal (último segmento)". Ou seja, não só a lei nova em causa (Lei N° 59/2007, de 4/9) foi aplicada pelo S.T.J., como também foi equacionada a hipótese de ã luz da mesma ser suspensa a execução das penas de prisão aplicadas aos requerentes, tendo sido expressamente decidido não o fazer.
Pelo que, para além de não se verificar o requisito específico exigido pelo Artigo 37l°-A do C.P.P., já houve pronúncia judicial expressa sobre a pretensão que os ora requerentes deduzem. E o que estes pretendem é, afinal, a reapreciação dessa questão, ao arrepio dos mais elementares princípios do caso julgado e da hierarquia dos tribunais, pois pretendem a reapreciação por um tribunal de 1a instancia de uma decisão já transitada em julgado proferida pelo S.T.J, no domínio da mesma lei!
Deste modo, a pretensão dos requerentes, mais do que descabida e infundada, representa o exemplo acabado de como não se deve litigar.
Pelo exposto, indefere-se a reabertura da audiência requerida a fls. 2069 e seguintes pelos arguidos B…….., C…….. e D………...
Custas do incidente pelos arguidos requerentes, fixando em 3 UCs a taxa de justiça devida por cada um.»

3. Este despacho, datado de 03 de Dezembro de 2009, foi notificado à Exma. Defensora dos Arguidos, via postal registado expedido em 04 de Dezembro de 2009 -fls. 2167.

4. Veio, então, o arguido B…….. deduzir o seguinte requerimento, remetido via fax em 17 de Dezembro:
«1º O arguido não desconhece o teor dos despachos e das decisões que antecedem.
2º Contudo, à luz do que vem sendo seguido de forma quase uniforme pela Jurisprudência, entende que o Tribunal competente para se decidir acerca da aplicação da lei mais favorável ao arguido, deverá ser sempre o Tribunal de primeira instância, por ser o que se encontra em melhores condições para avaliar, ou mandar avaliar as condições de vida dos arguidos, à data da decisão, requisito sempre essencial para de forma fundamentada e informada, se decidir pela eventual suspensão da execução da pena.
3º Tal facto foi já explanado no requerimento que antecede.
4. Inclusivamente, tendo como fonte a citação de jurisprudência do S.T.J., segundo q qual (é referido que deve ser o Tribunal de primeira Instância quem se deve pronunciar acerca da aplicação da lei mais favorável, aliás, devendo caber a este a reabertura da audiência.
5. Foi precisamente neste sentido que o arguido pugnou
6. Pois entende, com o devido respeito, que é o Tribunal de primeira instância o competente para proceder à aplicação da lei mais favorável, cabendo a este a reabertura da audiência e que não deveria ser o Supremo Tribunal de Justiça a fazê-lo.
Pelo que deve o despacho a que se alude ser reformado, sendo substituído por outro em que seja ordenada a reabertura da audiência, seguindo-se os demais termos.»

5. Sobre tal pretensão incidiu novo despacho de indeferimento, datado de 06 de Janeiro de 2010 e notificado à Exma. Advogada, via postal registado, no dia seguinte, 07 de Janeiro de 2009
6. Inconformados, por requerimento de 17 de Fevereiro de 2010, os arguidos interpõem recurso da decisão referida em 2, rematando com as seguintes CONCLUSÕES a respectiva Motivação:
…………..
…………..
…………..
7. Quando da interposição do recurso, os mesmos Arguidos juntaram no mesmo dia, via fax um requerimento a pedir a substituição da pena de prisão efectiva por prisão domiciliária com vigilância electrónica e a sustação da emissão dos mandados de detenção para o cumprimento de pena.
8. Mereceu tal requerimento do Exmo. Juiz titular do processo a seguinte decisão:
«Pretende interpor-se recurso do despacho proferido pelo Exm°. Sr. Juiz de Circulo a fls. 2163 dos autos. A questão põe-se, a nosso ver, na tempestividade de tal recurso.
A decisão, proferida por despacho, é recorrível (cfr. art°s. 399° e 400° do PP).O prazo de interposição de recurso é de 20 dias (cfr. art°. 411°, n°.1, al.a), doCPP).
A contagem deste prazo inicia-se com a notificação da decisão recorrida, sendo que havendo vários arguidos o acto pode ser praticado até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar (cfr. art°. 113°, n°.12, do CPP).
Um dos arguidos e ora recorrente ainda não foi pessoalmente notificado da decisão de indeferimento de reabertura de audiência. Teria o mesmo que ser notificado pessoalmente ou basta a notificação ao defensor ou advogado constituído ?
O CPP é omisso quanto a tal questão (cfr. art°s. 113° e 371 °-A do CPP). O despacho em que se traduz o deferimento ou indeferimento de reabertura de audiência é um acto jurisdicional do maior alcance, atentos os efeitos que se podem desencadear (no que se prescinde de os enumerar, por demais conhecidos), na situação jurídica de um arguido. Para este trata-se de um acto da maior importância, equivalente à acusação, à decisão instrutória e ao despacho que designa data para julgamento; é até tão importante quanto a própria sentença, uma vez que desta audiência reaberta pode resultar a modificabilidade da própria sentença. Por isso, cremos existir uma verdadeira identidade de razão entre o despacho que admite, ou não, a reabertura de audiência e os casos previstos no art°. 113°, n°.9, do CPP, designadamente no tange á obrigatoriedade de notificação pessoal ao arguido de tal despacho.
Consequentemente, estamos em crer que ainda está em prazo a possibilidade de recurso do despacho de fls. 2163 dos autos, uma vez que um dos arguidos não foi, ainda, pessoalmente notificado desse despacho, como deveria ter sido. Assim sendo na perspectiva de admissibilidade de recurso, solicite ao OPC a imediata devolução dos mandados emitidos, sem cumprimento»

9. Após o que, por despacho de 13.04.2010 profere despacho “a admitir o recurso de fls. 2224 e ss., o qual é ordinário, com subida imediata e nos próprios autos ao Tribunal da Relação do Porto, com efeito devolutivo. Subam os autos.” Sic
10. Respondeu o Exmo. Procurador da República, junto do Tribunal recorrido:
10.1 Suscita a questão prévia da tempestividade do recurso, entendendo que este não deve ser admitido;
10.2 A sê-lo, deve, de todo o modo ser rejeitado pelas razões que constam do próprio despacho recorrido.
11. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral da República emitiu Parecer pugnando já no sentido da intempestividade do recurso já, de todo o modo, com referência ao mérito, pela rejeição do mesmo face à manifesta falta de fundamento legal.

12. Observada a notificação a que alude o artº 417º/2 do C.P.Penal, colhidos os Vistos, realizada a Conferência, cumpre decidir.

II Fundamentação

Questão prévia: da intempestividade do recurso interposto.

i. O recurso interposto pelos arguidos B………, C……. e D……… diz respeito ao despacho que indeferiu a pretensão de reabertura da audiência nos termos do Artigo 371-A do C.P.Penal.
São factos processualmente adquiridos relevantes para o conhecimento desta questão prévia suscitada pelo MºP - assim na instância recorrida, assim nesta instância de recurso-, os que acima ficam descritos em I. 1 (Requerimento para Reabertura da Audiência), 2 (Decisão judicial de indeferimento), 3 (Notificação desta decisão), 4 (Requerimento no propósito de reformulação daquela decisão de indeferimento) e 5 (Indeferimento de pedido de reformulação e sua notificação).
Em termos práticos e lendo aqueles cronologicamente temos que:
● Em 3 de Dezembro de 2009, foi proferida decisão de indeferimento do pedido de Reabertura da audiência [371º-A do CPP],
● Esta decisão foi notificada à Exma. Defensora Oficiosa dos Arguidos via postal registado expedido em 4 de Dezembro de 2009.
● Via fax, de 17 de Dezembro de 2009, o arguido B………. pede a reformulação daquela decisão no sentido de que seja proferida decisão de reabertura.
● O novo indeferimento, datado de 06 de Janeiro de 2010, é notificado à Exma. Advogada, via postal registado, no dia seguinte, 07 de Janeiro de 2009
● Por requerimento de 17 de Fevereiro de 2010, os arguidos interpõem recurso da decisão de indeferimento proferida em 03.12.2009

ii. Nos termos do Artigo 411º do Código de Processo Penal:

1. O prazo para interposição do recurso é de 20 dias e conta-se:
a) A partir da notificação da decisão;
2. ……
3. …
4. Se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, os prazos estabelecidos nos nº 1 e 3 são elevados para 30 dias.»

Obviamente que estando em causa a notificação de um despacho e não tendo o recurso por objecto qualquer reapreciação de prova gravada, o prazo aplicável in casu é de 20 dias.
A contar a partir da notificação.

iii. Acautelando a tempestividade do recurso, os Recorrentes logo encimaram o requerimento da interposição com a original invocação de um esquecimento por parte do Legislador.
Nos seguintes termos:
«Tal despacho [dizer: despacho que indeferiu a reabertura da audiência para aplicação da lei mais favorável] por conter matéria decisória relativa a direitos liberdades e garantias deve ser obrigatoriamente notificado aos arguidos, nos termos tal como as demais matérias constantes do art.º 113e n.º 9 do CPP.
Apenas não constam expressamente do aludido artigo uma vez que por o artigo 3719 - A do CPP se tratar de inovação legislativa relativamente recente o legislador se ter esquecido de adaptar o art.º 113e à aludida alteração, sendo no entanto obvio que o teria feito se se tivesse lembrado, uma vez que por maioria de razão tal matéria justifica expressamente a notificação pessoal aos arguidos, já que refere à liberdade dos mesmos.»
A partir deste esquecimento, conjugado com a “falta de notificação do arguido D……..” concluem, então, que «o prazo para todos os arguidos para interpor o presente recurso ainda nem sequer se iniciou, pelo que estão os mesmos perfeitamente dentro de prazo, devendo este ser admitido.» (SIC!)

iv Certo é que ao Exmo. Juiz titular do processo também se suscitaram dúvidas, acabando por denunciar a existência de uma omissão, que, todavia, logo cuidou de suprir:
«Um dos arguidos e ora recorrente ainda não foi pessoalmente notificado da decisão de indeferimento de reabertura de audiência. Teria o mesmo que ser notificado pessoalmente ou basta a notificação ao defensor ou advogado constituído?
O CPP é omisso quanto a tal questão (cfr. art°s. 113° e 371 °-A do CPP). O despacho em que se traduz o deferimento ou indeferimento de reabertura de audiência é um acto jurisdicional do maior alcance, atentos os efeitos que se podem desencadear (no que se prescinde de os enumerar, por demais conhecidos), na situação jurídica de um arguido. Para este trata-se de um acto da maior importância, equivalente à acusação, à decisão instrutória e ao despacho que designa data para julgamento; é, até, tão importante quanto a própria sentença, uma vez que desta audiência reaberta pode resultar a modificabilidade da própria sentença. Por isso, cremos existir uma verdadeira identidade de razão entre o despacho que admite, ou não, a reabertura de audiência e os casos previstos no art°. 113°, n°.9, do CPP, designadamente no tange á obrigatoriedade de notificação pessoal ao arguido de tal despacho.»

V. Verificar-se-á, então, uma “omissão” ou um “esquecimento” do Legislador que importará suprir?

1. O Artigo 113º do CPP define os critérios da notificação das decisões aos advogados, assinalando:
i. Ora que as decisões relativas à acusação, decisão instrutória, designação da data para julgamento, sentença, medidas de coação e de garantia patrimonial, pedido de indemnização civil devem ser notificadas aos sujeitos processuais por elas visados e aos respectivos advogados (valendo, aqui, a data da última notificação como termo inicial do prazo)
ii. Ora que todas as demais decisões que visem arguido, assistente ou parte civil representada por advogado [princípio da equidade/igualdade de armas/processo devido] devem ser notificadas aos advogados dos sujeitos processuais por elas visados.
Poderá falar-se, então, numa “omissão” do Legislador, tal como diz o Exmo. Juiz?
Obviamente, não. Não há omissão.
De forma cristalina o legislador diferenciou entre a regra geral e o regime especial ou excepcional: integrou neste, os casos específicos da notificação da acusação, decisão instrutória, designação da data para julgamento, sentença, medidas de coação e de garantia patrimonial, pedido de indemnização civil
Levou àquela todas as demais notificações. ([1])
De sorte que: estando em causa a notificação de um despacho que indeferiu o requerimento para reabertura da audiência, obviamente que, não integrando a respectiva notificação nenhuma das situações prevenidas no regime especial/excepcional, fica sujeita ao regime geral, dizer, à notificação na pessoa do “respectivo defensor ou advogado”.

2. Mais que um caso de omissão, poderá, todavia, subentender-se na motivação do Exmo. Juiz, a inelutável necessidade de uma criativa interpretação extensiva. ([2])
Maxime, no apelo à «verdadeira identidade de razão entre o despacho que admite, ou não, a reabertura de audiência e os casos previstos no art°. 113°, n°.9, do CPP, designadamente no que tange á obrigatoriedade de notificação pessoal ao arguido».
Dizer, então: consabidamente, na prática da iuris dictio o intérprete pode deparar-se com o caso de “as palavras da lei não serem indeterminadas nem equívocas, mas determinadas e inequívocas e contudo não corresponderem perfeitamente ao pensamento da lei.”
Dizer, de outro modo: “pode acontecer que as palavras de que o legislador se serviu tenham atraiçoado o seu pensamento, levando-o a dizer menos do que aquilo que de facto ele queria dizer.” (Minus dixit quam voluit)
Sobra, nessa altura para o aplicador/intérprete, um verdadeiro estado de alma, no mínimo perturbado: “tendo-se averiguado qual a ratio legis duma lei, o princípio superior e geral de direito, o valor ou valoração que a inspiram, resultaria absurdo ou injusto não estender a sua aplicação a um caso que, embora não abrangido na sua letra, está manifestamente abrangido no seu espírito. (ubi eadem est ratio legis eadem este ius dispositio)”
Numa tal situação, em que, na sua interpretação lógica, o intérprete/aplicador chega a esta conclusão, como deve ele proceder?
Muito simplesmente: “Quando isto se dá, para respeitar a vontade da lei, é necessário então suprir a deficiência das palavras empregadas pelo legislador até ao ponto de fazer compreender nelas aquilo que ele queria dizer mas, de facto, não chegou a dizer
Eis, exactamente, a interpretação extensiva, no preciso sentido de que, através dela “se estendem as palavras da lei até as fazer coincidir com o seu espírito” ([3])
É este grito de absurdo e/ou de injusto que, se bem se interpreta, subjaz ao despacho judicial sob análise.
3. Recurso à extensão das palavras da lei, justificado então?

Acto prévio à resposta, não se deve olvidar que o Exmo. Juiz para além de invocar a “identidade de razão” suportou a atitude jusprocessualmente assumida na preservação das garantias da defesa: ([4])
«O despacho em que se traduz o deferimento ou indeferimento de reabertura de audiência é um acto jurisdicional do maior alcance, atentos os efeitos que se podem desencadear (….), na situação jurídica de um arguido.» [Supra iv]
O que necessariamente e de igual modo faz ter presente que da concreta conformação jurídico-constitucional do direito processual penal – dizer, o direito processual penal é verdadeiro direito constitucional aplicado (H.HENKEL) – resultam, entre outras, as exigências:
“(…)de uma estrita e minuciosa regulamentação legal de qualquer indispensável intromissão no decurso do processo, na esfera dos direitos do cidadão constitucionalmente garantidos; de que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial de tais direitos, mesmo quando a Constituição conceda àquela lei liberdade para os regulamentar; (……..); (……) de que a interpretação e aplicação dos preceitos legais se perspective a partir da Constituição e se leve a cabo de acordo com esta.” ([5])

Interpretação extensiva, assim mais justificada?

4. Diz-se: “No que respeita à interpretação das normas processuais penais não há nenhuma especialidade a assinalar” ([6]) ([7])
Donde, não ocorrerá, de princípio, impedimento ao recurso à interpretação extensiva.
Mesmo que esta diga respeito a normas excepcionais.
Como flui do Artigo 11º do Código Civil: «As normas excepcionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva”. ([8])

Mas se, como se disse, “o problema da interpretação da lei não ganha, em direito processual penal, autonomia”, Figueiredo Dias não deixava, todavia, de “relembrar dois pontos”importantes: “é o primeiro o da relevância que, para uma interpretação axiológica e teleológica nos domínios da nossa disciplina (leia-se processo penal), assume a consideração do fim do processo; é o segundo o da necessidade de, por ser o direito processual penal verdadeiro «direito constitucional aplicado», se tomar na devida conta o princípio da interpretação conforme à Constituição.”

Pois bem.
Prescreve o Artigo 20º/3 da Constituição da República (Pós revisão de 1997): “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo

Do que decorre que o direito à tutela jurisdicional cumpre-se sob dupla dimensão: i. De um direito de defesa ante os tribunais e contra actos dos poderes públicos; ii. De um direito de protecção do particular através de tribunais do Estado no sentido de este o proteger perante a violação dos seus direitos por terceiros (dever de protecção do Estado e direito do particular a exigir essa protecção).
Sob esta dupla dimensão se deve, então e também, conformar o processo penal.
De sorte que, não podem estar unilateral e/ou unívocamente em causa as garantias da defesa: antes, conjugadamente, sem prejuízo destas, há-de preservar-se a realização da justiça no caso concreto e em tempo, no que esta pressupõe quanto à tutela de bens jurídicos, estabilização das normas, paz jurídica dos cidadãos.
Dizer, por isso: garantias da defesa, seguramente; mas, sem olvido de que “.. ao demandante de uma protecção jurídica deve ser reconhecida a possibilidade de, em tempo útil («adequação temporal», «justiça temporalmente adequada»), obter uma sentença executória com força de caso julgado - «a justiça tardia equivale a uma denegação da justiça»”([9])

Diz, então, a este propósito o Legislador:
«O processo penal tem por fim a realização de justiça no caso, por meios processualmente admissíveis e de forma a assegurar a paz jurídica dos cidadãos ([10])
E prosseguindo no propósito de superação da tensão dialéctica entre o possível e o desejável, logo dá conta:
“Sabe-se, porém, como estas três referências valem no processo penal como polarizadores autónomos de universo de valores e geradores de princípios de implicações inevitavelmente antitéticas. Afastada está pois, à partida, a possibilidade de se pôr de pé um sistema processual que dê satisfação integral às exigências decorrentes de cada uma daquelas três referências. Por maioria de razão deve, aliás, afastar-se, sem mais, toda a pretensão de absolutizar unilateralmente qualquer delassob pena de se abrir a porta às formas mais intoleráveis de tirania, ou de se advogar soluções do mais inócuo ritualismo processual. O possível, e também – importa acentuá-lo – o desejável, é, assim, um modelo processual preordenado à concordância prática das três teleologias antinómicas, na busca da maximização alcançável e admissível das respectivas implicações.
No estado actual do conhecimento, e tendo presente o lastro da experiência histórica, seria ociosa qualquer demonstração das antinomias que medeiam entre, por exemplo, a liberdade e dignidade dos arguidos e a procura a todo o transe de uma verdade material; ou entre o acréscimo de eficiência da justiça penal e o respeito das formas ou ritos processuais que se apresentam como baluartes dos direitos fundamentais.” [Item II.5. do Preâmbulo do CPP, aprovado pelo DL 78/87 de 17/02]

Pari passu, deu, ainda, o mesmo Legislador conta de que outra das motivações que esteve na primeira linha dos trabalhos de reforma, foi exactamente “a procura de uma maior celeridade e eficiência na administração da justiça penal”.
Diz-se no Preâmbulo de que se vem fazendo uso – e em formulação feita a partir, seguramente, de um subentendido diálogo “entre a justiça e a eficiência na aplicação da lei penal, entre as exigências de segurança da comunidade e de respeito pelos direitos das pessoas” – que “A rentabilização da realização da justiça é apenas desejada em nome do significado directo da eficiência para a concretização dos fins do processo penal: realização da justiça, tutela de bens jurídicos, estabilização das normas, paz jurídica dos cidadãos.”
Depois, já na concretização de um tal desiderato (aceleração processual/rentabilização da realização da justiça) colocou o mesmo legislador na linha da frente, entre outras medidas adoptadas,
“a simplificação e desburocratização de numerosos actos processuais, nomeadamente as notificações” ([11])

5. Aqui chegados.

Como ensinava Manuel Andrade: “O juiz está livre para acolher esta ou aquela directriz interpretativa; só que para desempenhar a sua função no sentido do bem público, como lhe cumpre, deve orientar-se pelo método de interpretação por via do qual melhor sejam contentados os interesses ou exigências primaciais que a vida põe ao ordenamento jurídico”.
Ciente de que “só com direito certo poderá cada um saber em que lei vive, …, aquilo com que pode contar”, o juiz, numa eventual “carência de dados precisos e concludentes sobre a vontade real do órgão legiferante”, não deverá deixar de considerar o “legislador razoável – no sentido de escrupuloso e capaz”, numa conformação que “abrange tanto a escolha das soluções legais como a sua formulação técnica”, ou, o mesmo é dizer, sob a conformação de um ”legislador que estatuiu as soluções mais justas e oportunas, e ao mesmo tempo um legislador que redigiu acertadamente os textos legais, exteriorizando com fidelidade o seu pensamento”. ([12])

Em síntese.
● Sabe-se:
• Que, pela norma ínsita no artigo 113º/9 do C.P.Penal, o legislador ordinário estabeleceu que as decisões relativas à acusação, decisão instrutória, designação da data para julgamento, sentença, medidas de coação e de garantia patrimonial, pedido de indemnização civil devem ser notificadas aos sujeitos processuais por elas visados e aos respectivos advogados (valendo, aqui, a data da última notificação como termo inicial do prazo) e que todas as demais decisões que visem arguido, assistente ou parte civil representada por advogado devem ser notificadas aos advogados dos sujeitos processuais por elas visados.
• O sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal.
• Naquele normativo, de forma cristalina, o legislador diferenciou entre a regra geral e o regime especial ou excepcional: integrou neste, os casos específicos da notificação da acusação, decisão instrutória, designação da data para julgamento, sentença, medidas de coação e de garantia patrimonial, pedido de indemnização civil; levou àquela todas as demais notificações.
• O recurso a uma interpretação extensiva comportaria, in casu, uma manifesta dessintonia com o sentido literal e/ou sentido objectivo claramente recognoscível da lei.
• Outrossim: se a interpretação gramatical e lógica não consente outra ideia a respeito da mens, da voluntas legis, a resultado idêntico não deixará de conduzir o recurso ao elemento histórico, na atenção ao Preâmbulo do Código de Processo Penal.
• Numa equilibrada ponderação dos valores constitucionalmente assumidos seja com referência ao prazo razoável seja com referência ao processo equitativo, poderá dizer-se que, do mesmo passo que a notificação de um despacho que indefere o pedido de reabertura da audiência (passível de recurso) na pessoa do Defensor ou do Advogado do Arguido não ofende minimamente as garantias de defesa – muito menos as ofende de forma irrazoável e/ou intolerável – não deixa a mesma de constituir um meio expedito de processamento conforme àquele princípio constitucional da realização da justiça em tempo razoável.
• Irrazoável, por via de uma clara violação dos fins do processo – assim, na realização em tempo útil da justiça, na tutela de bens jurídicos, na estabilização das normas, na paz jurídica dos cidadãos - mostrar-se-ia, seguramente, admitir que ainda agora os Arguidos pudessem estar em tempo para recorrer!

● Sabe-se, ainda, com referência ao caso concreto:
• Em 3 de Dezembro de 2009, foi proferida decisão de indeferimento do pedido de Reabertura da audiência [371º-A do CPP],
• Esta decisão foi notificada à Exma. Defensora Oficiosa dos Arguidos via postal registado expedido em 4 de Dezembro de 2009.
• Via fax, de 17 de Dezembro de 2009, o arguido B……… pede a reformulação daquela decisão no sentido de que seja proferida decisão de reabertura.
• O novo indeferimento, datado de 06 de Janeiro de 2010, é notificado à Exma. Advogada, via postal registado, no dia seguinte, 07 de Janeiro de 2009
• Por requerimento de 17 de Fevereiro de 2010, os arguidos interpõem recurso da decisão de indeferimento proferida em 03.12.2009
• Nos termos do Artigo 411º do Código de Processo Penal: O prazo para interposição do recurso é de 20 dias e conta-se a partir da notificação da decisão.
• Quando efectuada por via postal registada, a notificação presume-se feita no 3º dia posterior ao do envio (Artigo 113º/2 CPP)
• O prazo processual é contínuo, suspendendo-se nos dias em que os tribunais estiverem encerrados e durante o período de férias judiciais (Artigos 144º e 143º C.P.Civil ex vi Artigo 104º do C.P.Penal.
• Uma vez realizada a notificação dos arguidos na pessoa da Exma. Defensora Oficiosa a 4 de Dezembro de 2009 – presumidamente feita no 3º dia posterior ao do envio – obviamente que, em 17 de Fevereiro de 2010, quando da interposição do recurso há muito estava vencido o prazo para interposição.
• E assim, mesmo que contado fosse tal prazo – e não o deve ser por não corresponder o requerimento que lhe subjaz a qualquer pedido de correcção (Artigo 380º CPP) – a partir da notificação do 2º indeferimento (07.01.2010)

Nesta conformidade e uma vez que a decisão que admita o recurso não vincula o tribunal superior (Artigo 414º/3 C.P.P) impõe-se concluir pela preclusão/extinção do respectivo direito de recorrer, na referida data de 17 de Fevereiro de 2010.

III Decisão

Nestes termos, na procedência da questão prévia suscitada pelo Ministério Público, decide-se
a) Por ter sido interposto fora de tempo, rejeitar o recurso [Artigos 414º/2, 417º/6 al.b), 420º/1 al. b) todos do C.P.Penal]
b) Condenar cada um dos recorrentes ao pagamento da sanção pecuniária de 3UC (Artigo 420º nº3 C.P.Penal), acrescida de igual valor [3UC] a título de taxa de justiça (Artigos 513º/1 e 514º nºs 1 e 2 do C:P:Penal; 87º/1 al. b) do CCJ)

Porto, 14 de Julho de 2010
Joaquim Maria Melo Sousa Lima
Élia Costa de Mendonça São Pedro
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[1] Dir-se-ia que, in casu, de forma explícita, a lei não se limitou a estabelecer uma determinada disposição para os casos excepcionais (“Ressalvam-se…”) e a pressupor, a contrario sensu, uma disposição contrária para os casos não excepcionais ou comuns (inclusio unius, exceptio alterius; qui dicit de uno, negat de altero), antes optou por dizê-la expressamente vertendo-a em norma positiva:”As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado”.
[2] Sobre a “decantada função «criadora» da jurisprudência”, vide: FIGUEIREDO DIAS, ob. cit. §1. III. 4 al.b)
[3] CABRAL DE MONCADA, Lições de Direito Civil, 4ªEd. Almedina, Coimbra 1995- Pág.153 (Aqui, seguido de perto)
[4] “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa” – Artigo 32º/1 Constituição da República
[5] FIGUEIREDO DIAS, ob. cit. §2., III., 1
[6] GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, I, Editorial Verbo, 1994 -§4º, II, 21, I
Também no sentido de que “Nas suas linhas essenciais, …, o problema da interpretação da lei não ganha, em direito processual penal, autonomia” FIGUEIREDO DIAS, ob. cit. §3., II., 2
[7] Importará não confundir a interpretação extensiva com a analogia (Artº 4º C.P.Penal). Enquanto esta pressupõe a existência de uma lacuna na lei (determinada situação não está compreendida nem na letra nem no espírito da lei), naquela, o legislador quis determinada disposição embora não exprimisse convenientemente a sua vontade.
Por isso que “a interpretação extensiva pertence à interpretação; a analogia ao estudo das fontes do direito”
[8] Já Luís Osório da Gama e Castro de Oliveira Batista diziam que a interpretação extensiva era geralmente admitida no processo penal (Comentário ao Código Processo Penal Português, vol. 1, Coimbra Editora, 1932, fls.44)
[9] GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª Edição, Almedina. Capítulo 6., III., 1 e IV. 3
[10] Item II.5. do Preâmbulo do CPP, aprovado pelo DL 78/87 de 17/02, II.
Com igual sentido de que “O processo penal longe de servir apenas o exercício de direitos assegurados pelo direito penal, visa a comprovação e realização, a definição e declaração do direito do caso concreto, hic et nunc válido e aplicável” Figueiredo Dias, ob. cit. §1, III, 4
[11] Paradigmaticamente caracterizador deste desiderato, o Artigo 112º/1 do CPP: “A convocação de uma pessoa para comparecer a acto processual pode ser feita por qualquer meio destinado a dar-lhe conhecimento do facto, inclusivamente por via telefónica…”
[12] Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora Lda, 1993 – Págs. 28-30