CENTRO NACIONAL DE PENSÕES
PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
HERANÇA
UNIÃO DE FACTO
ALIMENTOS
SEGURANÇA SOCIAL
DIVÓRCIO
CÔNJUGE CULPADO
Sumário

I - Para acesso às prestações por morte, pela pessoa que se encontre na situação de união de facto, e no caso de a herança do companheiro falecido não ter capacidade para satisfação do direito a alimentos, só há que propor, contra a instituição de segurança social, a acção declarativa prevista no n. 2 do artigo 3 do Decreto Regulamentar 1/94, de 18 de Janeiro (artigo 8 do DL 322/90, de 18 de Outubro).
II - Nessa acção, o autor terá de fazer a prova, além do mais, da impossibilidade de obter alimentos das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do artigo 2009 do C.Civ. (seu artigo 2020, n. 1).
III - Tal prova deve ter-se como feita, em relação a ex-cônjuge, se, alegado o divórcio, tiver sido junta certidão da sentença que o decretou ou com fundamento em separação de facto, por culpa exclusiva do autor da acção (artigo 2016, n. 1, alínea a), do C.Civ.).
IV - Na referida acção não deve fixar-se o montante da prestação por morte, o que é da competência do Centro Nacional de Pensões (artigo 4 do DL 96/92, de 23 de Maio).

Texto Integral

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:
I - A intentou a presente acção de processo comum, na forma ordinária, contra o Centro Nacional de Pensões, pedindo se declare que vivia há mais de 2 anos com B em condições análogas às dos cônjuges, que carece de alimentos no montante de 40000 escudos mensais e que não tem direito a alimentos da herança da B, por insuficiência de bens, e se lhe reconheça a qualidade de titular da pensão de sobrevivência por morte daquela B.
O réu contestou, por impugnação, e procedeu-se a julgamento.
Pela sentença de fls. 82 e segs julgou-se a acção procedente, reconhecendo-se "ao autor o direito de obter alimentos da herança aberta por óbito de B..." e condenando-se "a ré a reconhecer que o autor fica com a qualidade de titular da pensão de sobrevivência e, devido à inexistência efectiva de património da referida herança, ... a pagar-lhe, mensalmente, a quantia de 40000 escudos".
Em recurso de apelação interposto pelo réu, o acórdão de fls 115 e segs revogou aquela sentença e absolveu o réu do pedido.

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Neste recurso de revista, o autor pretende a revogação daquele acórdão e a procedência parcial da acção com base, em resumo, nas seguintes conclusões:
- não houve condenação além do pedido, porque a acção destina-se a obter a declaração da existência de um direito e a condenação proferida significa essa declaração;
- a admitir-se essa nulidade, sempre seria de considerar verificados todos os pressupostos para a concessão da pensão de sobrevivência;
- a matéria de facto provada é suficiente para esse efeito;
- os tribunais comuns são os competentes para a presente acção;
- não tem qualquer contacto com os filhos e o ex-cônjuge, não detendo este qualquer possibilidade de contribuir para as suas despesas, como a não têm os seus irmãos;
- foi violado o disposto nos artos 2009º e 2020º do Cód. Civil, 66º do Cód. P. Civil, 8º nºs 1 e 2 do Dec-Lei nº 322/90, de 18-10, e 2º a 4º do Dec. Reg. nº 1/94, de 18-1.
O réu, por sua vez, sustenta a improcedência do recurso, designadamente porque "o A. não alegou, como lhe competia, que a sua ex-cônjuge não lhe podia prestar alimentos".
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II - Factos dados como provados:
O autor viveu com B desde 1976.
Desde essa data dedicou-se-lhe inteiramente, partilhando a mesma cama, tomando as refeições em conjunto, contribuindo ambos para as despesas domésticas, passeando e saindo juntos.
Auxiliavam-se mutuamente nos eventos do dia a dia, amparando-se e protegendo-se um ao outro.
Assistiam-se mutuamente na doença, nomeadamente quando ela ficou acamada.
O autor atribuiu durante 18 anos à B carinhos próprios de uma verdadeira esposa.
Tal ligação era notória e pública, porque conhecida de toda a gente, sendo considerados por vizinhos e outras pessoas como se fossem marido e mulher.
Essa ligação, que se iniciou em 1976, perdurou ininterruptamente sem qualquer hiato até 3-8-94, altura em que faleceu a B.
O autor, por morte da sua companheira, ficou numa situação de elevada carência económica já que, desempregado, não dispõe de quaisquer meios para fazer face às despesas de renda de casa, luz, água e alimentação, vestuário e saúde, que, dada a idade do autor, 61 anos, são de elevado montante.
Assim tem de pagar a renda de casa de 1600 escudos, 3500 escudos de electricidade e água, 30000 escudos com a sua alimentação e uma média de 20000 escudos de vestuário, calçado e medicamentos.
À data da sua morte a B auferia a pensão mensal de 26930 escudos e ainda parte da reforma do seu falecido marido na ordem dos 50000 escudos, quantias estas que garantiam o sustento de ambos, e fez ainda despesas com o funeral.
Os três filhos e dois irmãos do autor nunca o ajudaram a suportar as despesas, embora o devessem fazer.
O autor esteve ausente do país durante dois anos, em Moçambique, no ano de 1979, e por um período de dois anos não viu os seus filhos.
Quando regressou ao país foi confrontado com o pedido de divórcio por parte da sua ex-mulher, tendo os seus filhos ficado à guarda desta. Desconhece o actual paradeiro dos filhos.
Também os seus irmãos o não podem ajudar: a sua irmã é viúva e tem dois filhos e dois netos a seu cargo, o seu irmão tem igualmente dois filhos e um neto a sustentar, não possuindo ambos rendimentos suficientes que lhes permitam suportar qualquer prestação de alimentos ao seu irmão, o aqui autor.
A falecida deixou apenas bens de reduzido valor económico, a maioria dos quais bens de uso pessoal, sendo a sua herança composta apenas de roupas muito usadas e velhas, calçado, objectos de uso pessoal e algumas mobílias, excepção feita a algumas peças de ouro que a B foi entregando a uma sua irmã bem como uma importância em dinheiro cujo valor o autor desconhece.
III- Quanto ao mérito do recurso:
Pelo Dec-Lei nº 322/90, de 18-10, que "define e regulamenta a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social" (artº 1º nº 1), protecção que abrange "a atribuição das prestações pecuniárias denominadas pensões de sobrevivência e subsídio por morte" (artº 3º nº 1), o direito a essas prestações é extensivo "às pessoas que se encontrem na situação prevista no nº 1 do artº 2020º do Cód. Civil" (artº 8 nº 1), ficando remetido para diploma regulamentar "o processo de prova das situações a que se refere o nº 1, bem como a definição das condições de atribuição das prestações..." (artº 8 nº 2).
Esse diploma é o Dec. Reg. nº 1/94, de 18-1, onde se determina que a atribuição daquelas prestações "fica dependente de sentença judicial que ... reconheça o direito a alimentos da herança do falecido, nos termos do disposto no artº 2020º do Cód. Civil" (artº 3 nº 1), que, "no caso de não ser reconhecido tal direito, com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações depende do reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante acção declarativa interposta, com essa finalidade, contra a instituição de segurança social ..." (artº 3º nº 2), e que "o requerimento das prestações ... deve ser acompanhado de certidão da sentença judicial que fixe o direito a alimentos ou declare a qualidade de titular das prestações por morte" (artº 5º).
Anota-se ainda que, pelo artº 4º nº 2 do Dec-Lei nº 96/92, de 23-5, "cabe aos órgãos e serviços do CNP deferir e assegurar o cálculo ... de pensões e outras prestações...".
Do conjunto destas disposições resulta que o direito às prestações por morte de beneficiário, pela pessoa que com ele vivia em situação de união de facto, não depende apenas da prova dessa situação, exigindo-se a prova de todos os requisitos previstos no artº 2020º nº 1 do Cód. Civil: a vivência de duas pessoas de sexo diferente, em condições análogas às dos cônjuges; verificação dessa situação na altura do falecimento do beneficiário das prestações sociais e desde há mais de 2 anos; ser essa pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens; e não poder a pessoa sobreviva obter alimentos do seu cônjuge ou ex-cônjuge, descendente, ascendente ou irmãos, para além do requisito geral da carência ou necessidade dos alimentos.
Essa prova é exigida em qualquer das acções aludidas no cit. artº 3º do Dec. Reg. nº 1/94,como se conclui da referência feita no cit. artº 8º nº 1 do Dec-Lei nº 322/90 à "situação prevista no nº 1 do artº 2020º ...." e do nº 2 do mesmo artº 3º, uma vez que o não reconhecimento do direito a alimentos "com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança" pressupõe a existência dos demais requisitos ou fundamentos desse direito a alimentos, o que,. aliás, tem sido defendido em diversas decisões deste tribunal (cfr. acórdãos de 29-6-95, na Col. S.T.J., III, 2º, p. 147, e de 25-6-96, no Bol. 458, p. 335).
Assim, a distinção entre as duas acções previstas no cit. art. 3º reside apenas em que na do nº 1, intentada contra a herança do companheiro de facto, deve pedir-se o reconhecimento do direito a alimentos e o pagamento da respectiva pensão, o que depende da prova de capacidade financeira dessa herança, e, na do nº 2, proposta contra a instituição de segurança social, deve alegar-se e provar-se a incapacidade da herança para a prestação de alimentos, limitando-se a sentença à declaração da qualidade do autor como titular das prestações por morte de que era beneficiário o companheiro de facto.
Segundo o acórdão recorrido, a acção contra o Centro Nacional de Pensões só poderia ser intentada depois de julgada improcedente, por inexistência ou insuficiência de bens da herança, uma outra acção proposta contra essa herança.
Sem prejuízo de a redacção do cit. artº 3º do Dec. Reg. nº 1/94 se prestar a alguma confusão, entende-se que essa solução não se apresenta como a mais rigorosa: obrigava-se o interessado a excessivo e inútil formalismo; na acção intentada contra a herança, seria contraditória a formulação do pedido de reconhecimento do direito a alimentos e a alegação da insuficiência de bens da mesma herança; o artº 5º do cit. Dec. Reg. manda juntar ao requerimento das prestações apenas certidão de uma sentença, a que fixe o direito a alimentos ou que declare a qualidade de titular; e assim têm entendido diversas decisões, como o acórdão da Relação de Lisboa de 14-5-98, na Col., XXIII, 3º, p. 100.
De qualquer modo, esta questão não tinha sido suscitada no recurso de apelação nem foi determinante para a decisão recorrida, como não vem mencionada nas alegações deste recurso, pelo que se deve ter como excluída do seu objecto.
Alega o recorrente que são os tribunais comuns e não os tribunais administrativos os competentes para a presente acção, mas esta é uma falsa questão.
A Relação não declarou a incompetência do tribunal comum para a acção mas apenas que não lhe cabe "fixar o montante da quantia a prestar", e isso resulta, expressamente, do disposto no artº 4º nº 2 do cit. Dec-Lei nº 96/92, onde se atribui ao Centro Nacional de Pensões o poder de "deferir e assegurar o cálculo..." das pensões, não tendo de se apreciar aqui a competência para os litígios porventura resultantes desse cálculo ou fixação das pensões.
Não merece censura o acórdão recorrido, na parte em que julgou procedente a nulidade da sentença, por condenação além do pedido, prevista no artº 668 nº 1e) do Cód. Proc. Civil.
Na verdade, essa sentença condenou o réu a pagar ao autor, mensalmente, a quantia de 40000 escudos, e, na petição inicial, não se formulou esse pedido de condenação e só o de declaração de que "o A. carece de alimentos no montante de 40000 escudos mensais".
Tal pedido de declaração não se pode confundir com o de condenação e, de resto, como resulta do acima exposto, nunca se poderia fixar aqui o montante da prestação devida ao autor.
Em rigor, o único ponto com verdadeira relevância respeita à suficiência da causa de pedir, tendo-se decidido no acórdão recorrido que o autor alegou que sua mulher pediu o divórcio e este foi-lhe concedido mas "não se diz em que termos nem que ao autor ficasse vedado exigir-lhe alimentos ou ela não estivesse em condições de lhos proporcionar ", pelo que se não verifica o requisito da impossibilidade de o autor obter alimentos do seu ex-cônjuge.
Tendo sido suscitada e apreciada nesses termos, a questão só pode ser agora conhecida com essa amplitude, ou seja, com referência ao ex-cônjuge do autor, e desde já se nota que não é de manter, nessa parte, a decisão recorrida.
Cabia ao autor o ónus da prova daquela impossibilidade de obter alimentos do ex-cônjuge e esse facto não foi por ele directamente alegado.
Porém, depois de invocado o divórcio, o autor veio juntar fotocópia autenticada da sentença, de 23-9-91, que decretou o divórcio entre ele e C, da qual consta que o mesmo se baseou no fundamento de separação de facto por seis anos consecutivos, previsto na alínea a) do artº 1781º do Cod. Civil, e que foi declarada a "culpa exclusiva do réu" (docto de fls. 59).
Esse facto pode e deve ser aqui considerado pois, além de constar de documento autêntico, cuja junção foi oportunamente notificada ao réu (fls 62), a sua alegação deve ter-se como feita, em complemento do próprio facto do divórcio, através da junção do respectivo documento, indispensável à sua prova (artºs 659º nº 3 e 664º do Cód. P. Civil).
Assim, em face daquele fundamento do divórcio e da culpa exclusiva do marido, este não goza, em princípio, do direito de alimentos contra a ex-mulher (artº 2016º nº 1 a, do Cód. Civil).
É certo que, pelo nº 2 desse artº 2016º, "excepcionalmente, pode o tribunal, por motivos de equidade, conceder alimentos ao cônjuge que a eles não teria direito...", mas, para o efeito em causa, deve considerar-se o facto normal de inexistência do direito a alimentos, até porque ao autor apenas cabia o ónus da prova desse facto, como constitutivo do direito invocado na acção (artº 342º nº 1 do cit. Cód. Civil).
Deste modo, tendo-se como provada a impossibilidade de o autor obter alimentos também da sua ex-mulher (embora por razões jurídicas diversas das alegadas pelo recorrente), configura-se a causa de pedir invocada e, consequentemente, a acção deve ser julgada procedente quanto ao último pedido formulado pelo autor.
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Em conclusão:
Para acesso às prestações por morte, pela pessoa que se encontre na situação de união de facto, e no caso de a herança do companheiro falecido não ter capacidade para satisfação do direito a alimentos, só há que propor, contra a instituição de segurança social, a acção declarativa prevista no nº 2 do artº 3º do Dec. Reg. nº 1/94, de 18-1 (artº 8º do Dec-Lei nº 322/90, de 18-10).
Nessa acção, o autor terá de fazer a prova, além do mais, da impossibilidade de obter alimentos das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do artº 2009º do Cód. Civil (seu artº 2020º nº 1).
Tal prova deve ter-se como feita, em relação a ex-cônjuge, se, alegado o divórcio, tiver sido junta certidão da sentença que o decretou com fundamento em separação de facto, por culpa exclusiva do autor da acção (artº 2016º nº 1 a) do Cód. Civil).
Na referida acção não deve fixar-se o montante da prestação por morte, o que é da competência do Centro Nacional de Pensões (artº 4º do Dec-Lei nº 96/92, de 23-5).
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Pelo exposto:
Concede-se, em parte, a revista.
Revoga-se o acórdão recorrido e, na procedência parcial da acção, declara-se que o autor A goza da qualidade de titular do direito à pensão de sobrevivência por morte de B, nos termos e para os efeitos dos artos 8º do Dec-Lei 322/90, de 18-10, e 3º nº 2 do Dec. Reg. nº 1/94, de 18-1.
Custas da acção e dos recursos pelo autor, na proporção de metade, sendo o réu isento (artº 2º nº 1 a) do Cód. Custas), com 20000 escudos de honorários ao Exº Advogado oficioso, em relação a este recurso de revista.
Martins da Costa,
Afonso de Melo,
Pais de Sousa.