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SERVIDÃO
EXTINÇÃO
Sumário
Para a extinção da servidão legal ou constituída por usucapião por desnecessidade, importa apenas saber se existe uma situação de desnecessidade objectiva, efectiva e actual.
Texto Integral
1 - A, residente em Igreja, instaurou no Tribunal dessa comarca contra B e mulher C, residente no Porto, acção especial de arbitramento, na qual pediu se declarasse extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem que onera um seu prédio rústico, sobre o qual se encontra constituída a favor de um prédio dos RR inscrito na matriz predial da mesma freguesia.
Isto com o encargo para o A. de suportar o custo das obras que se mostrassem necessárias à abertura de novo acesso ao prédio dos RR.
2 - Por sentença de 12-03-98, o Ex.mo Juiz Presidente do Círculo de Barcelos decretou a extinção da servidão e impôs ao A. o encargo de suportar o custo da obra necessária à abertura do acesso ao prédio dos RR.
3 - Inconformados com tal decisão, dela apelaram os RR. para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por acórdão de 17-11-98, negou provimento ao recurso.
4 - Ainda inconformados, desta feita com tal aresto, dele vieram os RR recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões:
" A) As obras a que se refere o art. 1057 do CPC, na redacção anterior à reforma, são aquelas que, verificada uma situação actual e objectiva de desnecessidade da servidão para o prédio dominante, são necessárias à remoção dos "sinais" do exercício da servidão;
B) No caso em apreço, a remoção do portão "tosco em rede" referido no n. 6 dos factos considerados assentes, bem como a tapagem do buraco no muro de divisão dos dois prédios em causa, que decorreria da remoção daquele;
C) Ali (art. 1057 do CPC) não se prevendo obras a efectuar no prédio dominante, efectivantes de uma situação de desnecessidade condicionante da extinção da servidão;
D) As obras que a decisão recorrida entende constituírem a alteração superveniente e objectiva do prédio dominante geradoras da desnecessidade da servidão - alargamento do muro e edificação de uma rampa no lote dos RR - alterando a topografia do prédio dos RR. e privando-os de uma área de 15 m2 onde passaria a existir uma rampa -, implicam uma óbvia desvalorização do respectivo prédio;
E) A imposição aos RR. de obras a realizar no seu prédio a fim de efectivar uma situação de desnecessidade que permita a declaração judicial de extinção da servidão, obras essas não desejadas nem consentidas pelos proprietários do prédio dominante, traduz-se numa restrição forçada do seu direito de propriedade;
F) De acordo com o princípio da tipicidade ou "numerus clausus" dos direitos reais, não são admissíveis restrições a estes que não estejam expressamente previstas na lei;
G) A decisão sob revista, impondo uma restrição forçada e não prevista na lei ao direito de propriedade dos RR., viola o princípio da tipicidade consagrado nos arts 1305, 1306 e 1308 do CCIV.;
H) Por outro lado, o art. 1569 n. 2 do CCIV, na interpretação que lhe é feita pelo acórdão sob revista, no sentido de que a desnecessidade pode ser decorrente de uma alteração objectiva no prédio dominante ainda não verificada mas emergente de determinadas obras que a sentença pode determinar no prédio dominante contra a vontade do respectivo proprietário, viola o disposto no art. 62 da Constituição da República Portuguesa;
I) A "ratio" do art. 1569 n. 2 tem subjacente a ideia de que a terra deve ser libertada, mas dos encargos que a oneram e que deixaram de justificar a tutela que a lei lhes conferia em virtude de uma mudança já ocorrida que lhes retirou a sua utilidade;
J) Daí falar a lei em "declarar" a extinção em virtude da necessidade e não em "decretar" a extinção provocando as alterações que determinem essa situação de desnecessidade;
K) A desnecessidade, nos termos e para os efeitos do art. 1569 n. 2 do CPC, tem de ser objectiva, efectiva e actual, decorrente de alterações verificadas no prédio dominante em momento posterior à constituição da servidão e não provocadas em função de obras determinadas pela sentença que declara extinta a servidão consubstanciadoras da alteração objectiva;
L) As alterações objectivas determinantes da desnecessidade, sendo pressuposto da acção de declaração de extinção não podem, simultaneamente, ser consequência desta;
M) Da instrução da causa resultou provado que, no estado actual dos prédios, a servidão de passagem que onera o prédio do A. a favor dos RR. é indispensável para o acesso de automóvel a este, logo necessária;
N) Não foram alegados, nem sequer provados, factos demonstrativos da verificação de uma alteração objectiva verificada no prédio dominante, que implicasse a desnecessidade da servidão para o prédio dominante; e,
O) Tratando-se de um facto constitutivo do direito do A., competia a este o ónus de tal alegação e prova, o que não aconteceu;
P) Não obstante, ainda que se verificasse a situação do prédio dominante decorrente das obras que se pretende impor aos RR., por si só não se poderia concluir pela desnecessidade da servidão, na medida em que, para tanto, é necessário que a servidão "de nada aproveite ao prédio dominante" (Ac. RP de 07-03-89, loc. cit.); e,
Q) Sempre o prédio dos RR. estaria valorizado com a possibilidade de manter acesso ao mesmo pelo Norte e Sul do lote;
R) Violou a decisão recorrida os art.s 9, 342, 1305, 1306, 1308, 1569 n. 2 do Código Civil, bem como o art. 62 da Constituição da República Portuguesa;
5 - Contra-alegou o A. sustentando a correcção do decidido pela Relação e formulando, por seu turno, as seguintes conclusões:
"1. As duas únicas questões que, em rigor, são objecto de recurso não foram devida e expressamente suscitadas pelos recorrentes na constestação apresentada no processo e daí que este Alto Tribunal não deva sequer apreciá-las - cfr. Ac. STJ de 11-01-79, BMJ n. 283 pág. 200 e art. 704 C. P. Civil.
2. O recorrido demonstrou que a desnecessidade da servidão para o prédio dominante é objectiva, efectiva e actual, que é o quanto basta para que a servidão seja declarada extinta - cfr. n. 2 art. 1569 do CCivil.
3. O direito à extinção da servidão predial que onera a parcela de terreno do recorrido, não contende com o "numerus clausus" do direito de propriedade dos recorridos por não traduzir qualquer restrição a tal direito - cfr. n. 1 do art. 1306 C.C.
4. Os recorrentes lutam de modo oportunista pela manutenção da servidão, pese embora bem saberem que a sua extinção não lhes acarreta o mínimo incómodo, e que a sua continuação representa um encargo inaceitável para o recorrido impedindo-o até de construir a sua casa de habitação, a que se destina a parcela de terreno em causa - cfr. art. 665 do CPC e art. 334 do CC.
5. O Tribunal da Relação não violou as normas jurídicas indicadas pelos recorrentes sob a al. r) das suas alegações, tendo aplicado com perfeição os preceitos legais citados nas conclusões anteriores.
Em conformidade com o exposto, deve negar-se provimento ao recurso de revista confirmando-se inteiramente o douto acórdão do Tribunal da Relação.
6 - Colhidos que foram os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.
7 - Em matéria de facto relevante, o Tribunal da Relação deu como assentes os seguintes pontos:
1- Através da escritura pública celebrada em 26 de Fevereiro de 1993, D e marido E, este por si e na qualidade de procurador de F e marido G, H e I, declararam vender a J, que declarou aceitar, uma parcela de terreno para construção, no lote 3, no sítio do Fanico, descrito na Conservatória do Registo Predial e omisso na matriz.
2- Tal aquisição foi registada a favor do A. na Conservatória do Registo Predial.
3- Os RR. são donos de uma parcela de terreno destinada à construção urbana com a área de 700 m2, sita no Lugar do Rio, que confronta do norte, pelo menos em parte, com o prédio referido sob o n. 1, sul com arruamento, do nascente com terreno do domínio público e do poente com Aldeamento Sozende, inscrito na matriz sob o art. 2537.
4- Os RR. têm implantada sobre a referida parcela de terreno uma casa de habitação pré-fabricada, constituída por dois módulos de madeira.
5- Os RR., há mais de 20 anos que, para acederem à parcela e casa referidas,vêm transitando pela parcela de terreno referida sob o n. 1.
6- Tal trânsito é efectuado em veículo automóvel e processa-se ao longo de uma faixa de terreno com a largura de cerca de 2 metros e numa extensão de cerca de 10 metros, que se inicia na confrontação norte do lote referido sob o n. 1 até à confrontação sul onde existe uma entrada com um portão tosco em rede.
7- O local por onde passam os RR. encontra-se marcado pelo abaixamento do terreno ao longo do respectivo trajecto que mostra as marcas do trânsito de veículos em terra batida, com ausência de vegetação e percurso delimitado.
8- Os RR. circulam pela referida faixa de terreno para acesso ao seu prédio, sempre que o entendem, à vista de toda a gente, convencidos de que não prejudicam ninguém, sem oposição de ninguém e com a intenção de que lhes assiste o direito correspondente aos actos que praticam.
9- A parcela de terreno referida sob o n.3 - o lote dos RR. - confronta com o arruamento do seu lado sul, numa extensão de 17,40 metros, arruamento este que é asfaltado e tem a largura de 9 metros, incluindo os passeios e situa-se 0,95 cms acima desta parcela.
10- Nesta confrontação sul do lote dos RR. com o arruamento existe um muro que tem uma abertura de acesso, para pessoas, com a largura de 0,88 cms.
11- O alargamento desta abertura em medida não inferior a um metro permite o acesso à parcela de terreno dos RR. com veículos automóveis, desde que ali seja construída uma rampa para tal fim.
12- A utilização da faixa de terreno referida em 6 é feita, também na época de Verão, pelas pessoas que se dirigem para o prédio dos RR.
13- O acesso ao prédio dos RR. a partir do arruamento a sul faz-se por aquela abertura dita em 10, através de uma escada em cimento.
Passemos ao direito aplicável.
8 - Questão previa Conhecimento do objecto do recurso
Na respectiva contra-alegação, o A., ora recorrido, suscitou a questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso, considerando que os RR. recorrentes haviam suscitado duas questões novas não objecto de decisão pelo tribunal "a quo" e não de conhecimento oficioso, a saber:
- se é legítimo extrair do n. 2 do art 1569 do CCIV qualquer ideia aí não expressa;
- se a declaração judicial de extinção da servidão traduz uma restrição forçada ao direito de propriedade dos RR. recorrentes.
Não assiste, porém, qualquer razão ao recorrido.
Há que dizer, desde logo, que o mesmo não arguiu qualquer nulidade do acórdão por excesso de pronúncia, o que poderia ter feito ao abrigo do disposto no art. 668 n. 1 al. d) e n. 3 do CPC.
Depois, as pretensas questões novas não passam de meros argumentos, razões ou motivos esgrimidos pelos recorrentes no sentido da sustentação do bom fundamento da sua tese e na tentativa de demonstração do errado julgamento feito na decisão recorrida acerca da "questão", esta sim de natureza principal, da real desnecessidade da subsistência da servidão predial pretendida fazer cessar pelo A.
Confunde pois o contra-alegante "motivos" ou "razões" acerca da boa hermenêutica dos textos legais com "questões" temáticas centrais a dirimir no litígio.
Improcede, pois a suscitada questão prévia.
9 - Âmbito da controvérsia
Começou o aresto "sub-judice" por sintetizar a querela fáctico-jurídica suscitada no processo pela forma seguinte:
- A e RR, são donos de lotes de terreno para construção confinantes, ao menos parcialmente, entre si;
- os RR compraram o seu lote em 1972 e aí implantaram uma casa pré-fabricada, enquanto que o A. adquiriu o seu terreno em 1993, planeando, ao que afirma, destiná-lo a construção urbana;
- o prédio dos RR beneficia de uma servidão de passagem de carro, constituída por usucapião sobre o prédio hoje do A;
- mas, porque aquele prédio tem acesso à via pública a sul através de uma abertura no muro que por ali o delimita, bastando alargar essa abertura em pouco mais de um metro e fazer uma pequena rampa para que seja possível o acesso de automóvel ao prédio dominante, entende o A. que é desnecessária a subsistência da servidão que actualmente onera o seu prédio.
Pretende assim o A. que tal servidão deva ser declarada extinta, ficando ele A. obrigado a suportar o custo das obras necessárias à abertura de novo acesso ao prédio dos RR.
10 - Mérito da revista:
Estatui o art. 1569 do CCIV66, nos seus n.s 2 e 3:
2. As servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.
3. O disposto no número anterior é aplicável às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da constituição ...
Dispunha, por seu turno, o art. 1057 do CPC - na versão de 67 que não na da recente versão de 95/96 - já que a demanda foi instaurada em 15-09-94 -:
1. A sentença que autorize a cessação ou a mudança de servidão não produz efeito sem que estejam concluídas as obras de que dependa a cessação ou a mudança.
2. As dúvidas que se levantem sobre o facto de estarem ou não feitas as obras nos termos fixados são resolvidas pelo juiz, ouvidas as partes e precedendo as diligências que forem desnecessárias.
Como interpretar pois o requisito legal "desnecessidade para o prédio dominante" imposto como condição para o decretamento da extinção da questionada servidão legal de passagem?
Algumas dúvidas ressaltam de imediato: bastará a desnecessidade ao tempo da propositura da acção de extinção?; tal desnecessidade já deverá existir aquando da constituição da servidão ou surgir supervenientemente a tal constituição? Ou deverá tal desnecessidade resultar sempre de alterações supervenientemente operadas no prédio dominante?
Para os recorrentes, a desnecessidade da servidão para os efeitos do art. 1569 n. 2 do CCIV tem de ser "objectiva, típica, efectiva e actual, verificada num momento posterior ao da constituição da servidão e resultar de uma alteração objectiva verificada no prédio dominante". Ademais, a imposição aos RR da realização de obras a realizar no seu prédio a fim de efectivar a situação de desnecessidade que permita a declaração judicial de extinção da servidão, traduz-se numa restrição forçada ao seu direito de propriedade, assim violando o princípio da tipicidade ou do "numerus clausus" de tais restrições.
Já para o recorrido - e também para o aresto sob análise - tal inciso normativo deve ser interpretado "nos seus precisos termos, não interessando pois averiguar se a desnecessidade resulta ou não de alterações ocorridas no prédio dominante em momento posterior ao da constituição da servidão; o que importa é saber se existe uma situação de desnecessidade objectiva, efectiva e actual (no sentido de coeva da instauração da acção ou da introdução de inovações consideradas ou determinadas por via judicial). E não faria qualquer sentido que a lei, por um lado reconhecesse ao proprietário do prédio serviente o direito à extinção da servidão e, por outro, impedisse o respectivo exercício, por tal poder configurar uma restrição ao direito de propriedade ... Quid iure?
Chama o aresto revidendo a atenção para a história pregressa do n. 2 do actual art. 1569, cuja redacção se manteve inalterada desde o primeiro projecto da autoria do Prof. Pires de Lima, com a única excepção de passar a figurar no texto o termo "usucapião" em substituição do termo "prescrição" adoptado antes da revisão ministerial.
E não deixa de ser elucidativo que, na respectiva exposição de motivos - conf. BMJ n. 64, pág. 33 - o Prof. Pires de Lima haja confessado haver ter omitido a enumeração da parte final do § único do art. 2279 do CCIV 867 - (ou por terem cessado as correspondentes necessidade desse prédio, ou por ser impossível já satisfazê-las por via daquelas servidões ou porque o proprietário dominante pode fazê-lo por qualquer outro meio igualmente cómodo) - por duas ordens de razões: como enumeração taxativa parecia-lhe a especificação perigosa; como enumeração exemplificativa deixaria de ter interesse, sendo preferível que os tribunais gozassem da maior liberdade de apreciação.
Com a suspressão de tal "espartilho", pretendeu-se pois claramente fazer apelo ao prudente arbítrio do julgador, face às específicas circunstâncias de cada caso (apreciação casuística).
De notar que o n. 2 do preceito em apreço, é unicamente aplicável às servidões constituídas por usucapião (o n. 3 estende o regime às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição por se ter entendido, com o autor do Projecto e com os votos desfavoráveis de dois elementos da Comissão Revisora, que a extinção por desnecessidade se não aplicava às servidões constituídas por destinação do pai de família nem às voluntárias).
A "ratio essendi" de tais incisos legais reside precisamente na necessidade de assegurar o pleno exercício do direito de propriedade, desonerando-o e liberando-o de peias, limitações ou constrangimentos comprovadamente inúteis, cuja subsistência se venha a revelar incompatível com a função social e económica daquele direito. A compressão do cerne de qualquer direito, v.g. de um direito real de gozo, só deverá em princípio considarar-se como legítima até onde o "sacrifício", ónus ou encargo imposto sobre a coisa se revele necessário para assegurar a terceiro uma fruição "normal" do seu próprio direito; não assim se tal sacrifício se revelar exorbitante ou anómalo, face ao quadro objectivo de circunstâncias que em dado momento se verifique.
Constituem afloramentos desta ideia do exercício tendencialmente pleno do direito real de propriedade dos direitos potestativos conferidos pela lei ao titular do prédio serviente nos arts. 1551, 1555 e 1558 do CCIV (aquisição de prédio encravado, direito de preferência na alienação do prédio encravado e direito de requerer a mudança de servidão, respectivamente).
Reportando-se ao supra-citado art. 2279 do CCIV867, o Prof. Oliveira Ascensão in "Separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1964, "-" Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais", escrevia já que tal norma tinha em vista libertar os prédios de servidões desnecessárias ... que desvalorizam os prédios servientes, sem que valorizem os prédios dominantes.
Tal como bem sintetiza o acórdão sob análise, ressaltam do mencionado art. 1569 n. 2 os seguintes requisitos para que, sob a sua previsão, possa ser decretada a extinção de uma servidão:
a) - prova da existência da servidão;
b) - constituição por usucapião;
c) - propriedade dos prédios serviente e dominante por parte do requerente e do requerido respectivamente;
d) - desnessidade da subsistência da servidão para o prédio dominante; e
e) - requerimento do proprietário do prédio serviente.
Todavia, e tal como acima se deixou transcrito, atento o disposto no n. 1 do art. 1057 do CPC - vigente ao tempo da propositura da acção -, é ainda condição de eficácia da sentença declaratória da extinção e conclusão das obras de que depende a cessação da servidão, judicialmente verificada (conf. n. 2 respectivo). Trata-se aliás de um dos raros casos em que a lei consagra a provisoriedade da eficácia de uma sentença, tornando-a dependente da produção de um evento futuro e incerto.
Dos enunciados pressupostos legais, apenas o da alínea d) - desnecessidade da susbsistência da servidão - é objecto de controvérsia no seio da presente revista.
Na jurisprudência das Relações - citada pelo aresto sub-judice - era generalizada a ideia de exigência de uma alteração ou modificação objectiva superveniente das circunstâncias no prédio dominante.
Será esta, na prática, a situação normal, porque múltiplos serão também os factores que, pelo decurso do tempo, podem alterar o quadro circunstancial existente ao tempo da constituição da servidão. Este último "dies a quo" é todavia praticamente impossível de determinar no caso das servidões constituídas por usucapião.
Mas - tal como bem obtempera o acórdão sob apreciação -, a interpretação restringente (necessidade de prova da superveniência da causa decorrente de alterações no prédio dominante) não encontra suficiente respaldo nem no espírito nem na letra da lei, suposto que o legislor soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas - art. 9, n. 3, do CCIV. Seria uma violência concluir-se, sem mais qualquer indagação adicional, pela improcedência da acção apenas porque não se alegou e provou que nada no prédio dominante sofreu alteração a partir da data (que pode ser completamente aleatória ou assertórica) da constituição da servidão.
O que a lei exige é a prova da desnecessidade da continuidade ou permanência da servidão, aferida essa desnecessidade (subentende-se) pelo momento da introdução da acção em juízo; não que seja necessária a prova de uma superveniência absoluta dessa desnessidade (após a constituição da servidão) traduzida por ex. na feitura de obras inovatórias no prédio dominante.
A alteração das circunstâncias, sempre poderia - de resto - resultar não só da actuação do proprietário do prédio dominante como de evento a ele alheio, como por exemplo da circunstância de "o prédio"ab initio" encravado ter deixado de o ser, porque por hipótese se abriu uma via pública que lhe dá acesso", exemplo de escola também acolhido, v. g. por A. dos Reis, in "Processos Especiais" vol. II, pág. 9.
O próprio texto da lei, ao utilizar a expressão se "mostrem" desnecessárias, em vez de se "tornem" desnecessárias, parece surgir que essa necessidade/desnecessidade pode e deve - a requerimento do interessado - ser reavaliada e sopesada - quer seja originária quer seja superveniente - à luz da realidade objectiva actual.
O que a lei no fundo pretende é uma ponderação actualizada da necessidade de manter o encargo sobre o prédio, deixando ao prudente alvidrio do julgador avaliar, se no momento considerado - e segundo uma prognose de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo - haverá ou não outra "alternativa" que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio encravado, possa ser eliminado o encargo incidente sobre o prédio serviente.
O que se torna necessário é garantir uma acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente.
Juízo que terá de ser feito previamente "in abstrato" na fase declarativa do arbitramento a que se seguirá a formulação/definição "in concreto" das obras necessárias à consecução de tal desideratum.
Afirma-se, a dado passo no aresto revidendo, que se nos termos do art. 1507 do CPC67 a sentença declaratória da extinção da servidão não produz efeito enquanto não estejam concluídas as obras de que depende a cessação da servidão é porque estas obras podem constituir a tal superveniência da desnecessidade da servidão.
Não se pode acolher tal asserção. É inequívoco que a leitura de tais obras constitui consequência, efeito ou resultado daquele juízo de prognose prévia em sede declarativa, representando como que a sua fase executiva, não podendo por isso ser, ela própria, arvorada em causa superveniente da extinção da servidão.
A tónica da solução do problema deve ser posta pura e simplesmente na necessidade da subsistência da servidão versus a subsistência do encrave absoluto ou relativo, sendo que por "prédio relativamente encravado" se deve entender aquele que só com grande incómodo ou dispêndio poderia obter comunicação com a via pública nos termos do conceito vertido no n. 1 do art. 1550 do CCIV.
Se um prédio pode facilmente, e sem excessivo incómodo ou dispêndio, obter comunicação com a via pública, não se justifica a constituição (e também a manutenção) de servidão por força da lei pela simples razão de que tal prédio não poderá ser considerado encravado.
Este juízo de valor prévio - repete-se - a emitir na fase declarativa da acção de arbitramento face à factualidade provada e cuja eficácia como que fica suspensa até à conclusão das obras judicialmente determinadas e cuja fidelidade de execução será também objecto de verificação judicial aposteriorística.
O que não pode é restringir-se artificialmente a faculdade de requerer a extinção apenas aos casos em que o próprio proprietário do prédio dominante se decidisse a introduzir alterações inovatórias no "satu quo".
Ora, na hipótese sub-specie, a desnecessidade da permanência ou continuação da servidão de passagem surge como evidente e notória: vem provado que o terreno dos recorrentes (prédio dominante) confina com uma rua de alcatrão de cerca de 9 m de largura, incluindo passeios para peões, possuindo para ele uma abertura com 88 cm que permite o trânsito de pessoas do prédio para a rua e vice-versa, as quais apenas terão de subir ou descer alguns degraus de escada em cimento, destinada a vencer o desnível de 95 cm existente entre o arruamento e o prédio dominante.
E, outrossim, que para que o acesso de veículos automóveis se possa fazer entre o arruamento, situado a nível superior, e o prédio dos RR, basta alargar aquela abertura pedonal, existente no muro de vedação, em cerca de um metro e construir uma pequena rampa.
Acrescenta ainda a Relação, em sede factual, que: "as obras necessárias e o respectivo custo, em termos definitivos, só na fase executiva da acção de arbitramento serão determinadas. Mas, pela prova já feita, antevê-se que se trata de obras de pequena monta que não acarretam grande incómodo para os donos do prédio dominante e nenhum dispêndio lhes traz, já que o seu custo é da conta do A. (sic).
E mais ainda, que: "comparando o pouco incómodo para os RR - que até ficam com entrada de carro directamente da rua alcatroada para o seu prédio, em vez de atravessarem alguns metros de terra batida e alheia - com as vantagens colhidas pelo A., que legitimamente pretende ver o seu lote de terreno para a construção liberto da passagem de estranhos, é evidente que o fiel da balança pende fortemente para o lado do A. que, proporcionando cómoda passagem aos RR, fica livre de utilizar como melhor entender o terreno que lhe pertence e é destinado a construção urbana" (igualmente sic).
Que mais exigir, pois, para que se declare como desnecessária a susbsistência da servidão se efectuadas as obras adequadas no prédio dominante à custa do dono do prédio serviente e que o próprio acórdão qualifica como "de pouca monta"?
10 - Não se mostra pois violada pelo acórdão recorrido nenhuma das disposições legais citadas pelos recorrentes.
11 - Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar a revista
- confirmar, em consequência, ainda que parcialmente por diferente fundamentação, o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 27 de Maio de 1999
Ferreira de Almeida,
Moura Cruz,
Abílio Vasconcelos.