DIREITO A PENSÃO
CADUCIDADE
UNIÃO DE FACTO
Sumário

I - O reconhecimento legal da união de facto em termos de equiparação ao casamento acompanha a evolução dos valores sociais, morais, éticos e políticos dominantes à época, consagrando, ao longo do tempo, as actualizações legislativas que o legislador teve como adequadas.
II - No âmbito de vigência da Lei n.º 2 127, de 3 de Agosto de 1965, a união de facto por parte da viúva, beneficiária legal do direito à pensão decorrente de acidente de trabalho (ocorrido antes de 01.01.2000) que vitimou o então cônjuge, não determina a caducidade do direito a essa pensão.
III - Apesar do crescente nível de equiparação da união de facto ao casamento, o certo é que consubstanciam realidades jurídicas distintas, mormente no que concerne ao dever de assistência mútua entre os seus membros.

Texto Integral

Procº nº 212/1997.P1- Agravo
TT Bragança
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. 348)
Adjuntos: Des. António ramos
Des. Machado da Silva (reg. nº 1464)


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório:

Por sentença de 12.10.2006, foi a Companhia de Seguros B………., SA condenada, a título subsidiário, a pagar à A., C………., na qualidade de viúva do sinistrado D………., e com efeitos a partir de 20.06.1997, a pensão anual e vitalícia de 376.824$00 (€1.879,59) (actualizável) por virtude de acidente de trabalho mortal de este foi vítima aos 19.06.1997.
Aos 02.07.2009, veio a referida Seguradora requerer que seja declarada a caducidade da pensão anual e vitalícia atribuída à mencionada beneficiária, alegando, para tanto que esta se encontra a viver em união de facto, tendo dois filhos dessa união, desde pelo menos 2006, ou seja, há mais de dois anos.
Ouvida a referida beneficiária, a mesma prestou, perante a Mmª Juíza, as declarações constantes do “Auto de Audição da Beneficiária” que consta de fls. 14, no qual refere que, desde Outubro de 2008, se encontra a viver com E………. em comunhão de mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratasse.
Veio, após, a Seguradora juntar declaração, subscrita pela referida beneficiária, que consta de fls. 18, na qual é por ela referido que “(…) A partir de Janeiro de 2007 como se aproximava então o nascimento da F………. passamos então a viver em conjunto (…).” e, a fls. 26 a 35, informar que o valor actualizado da pensão em 2008 era de €2.400,07, que o triplo da pensão é de €7.200,21 e juntar documentos informáticos, segundo diz, demonstrativos dos pagamentos da pensão para além de 01.01.2008 (data da união de facto) no valor de €4.863,28 e cópia de cheque, emitido à ordem da referida beneficiária, no montante de €2.336,93.
O Digno Magistrado do Ministério Público, em promoção de fls. 36, refere que: a seguradora deduziu ao triplo da pensão devida por via da união de facto da beneficiária/viúva, €4.863,28, considerando que a união ocorreu em 01.01.2008, quando, de acordo com as declarações da beneficiária, tal só ocorreu em Outubro de 2008; assim, ao terem sido deduzidas mais prestações do que são devidas, necessariamente que a quantia comprovada pela Seguradora como a devida à requerida se mostra incorrecta, apenas podendo ser descontadas quatro prestações, das catorze que são devidas anualmente (€685,73). Termina promovendo que se notifique a Seguradora para comprovar o pagamento do valor correcto devido pela união de facto ocorrida em Outubro de 2004.
Foi, então, proferido o despacho de fls. 37 a 39, julgando improcedente o incidente de caducidade e indeferindo a pretensão da Requerente Seguradora.
Inconformada, veio a Seguradora recorrer do referido despacho, formulando, a final das duas alegações, as seguintes conclusões:
1º A beneficiária que passa a viver em união de facto com outro homem, tem direito desde o início dessa união de facto ao montante do nº 3 da Base XIX da Lei 2127.
2º Assim. De acordo com a Base XIX nº 3 da Lei 2127 a viúva que casar em segundas núpcias, receberá de uma só vez triplo da pensão anual.
3º A lei 2127 não prevê a situação da viúva passar a viver em união de facto…
4º A lei ao não prever a união de facto tem uma lacuna que deverá ser preenchida com recurso à analogia com a Lei 100/97.
5º A douta sentença viola o art. 13º da Constituição da República Portuguesa.
6º A equiparação prevista na Lei nº 135/99 de 28 de Agosto, para efeito de atribuição das prestações por morte do cônjuge ao unido de facto terá de se estender também às condições de exercício dos direitos sob pena de violação do princípio da igualdade, dado que, se se decidisse de modo contrário seria tratar mais favoravelmente os beneficiários em união de facto do que aqueles que se casam.
7º A douta sentença violou o art. 13º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve ser alterada a douta sentença recorrida, por outra que declare caducado o direito da pensão e atribua à viúva três vezes a pensão anual nos termos da Base XIX nº 3 da Lei nº 2127.
(…)

A Recorrida contra-alegou, pugnando pelo não provimento do recurso.

A Mmª Juíza sustentou o despacho agravado.

Colheram-se os vistos legais.

*
II. Matéria de Facto Provada

Encontra-se provada a matéria de facto descrita no precedente relatório.
*
III. Do Direito

1. Nos termos do disposto nos artºs 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, do CPC (na redacção anterior à introduzida pelo DL 303/2007, aplicáveis ex vi do disposto nos artºs 1º, nº 2, al. a), e 83º do CPT de 1981[1] as conclusões do recurso delimitam o seu objecto, sem prejuízo, porém, das matérias de conhecimento oficioso.
E, dai, que a questão a apreciar consista em saber se, no âmbito da vigência da Lei 2.127, de 03.08.65, a posterior união de facto por parte da viúva, beneficiária legal do direito à pensão decorrente de acidente de trabalho que vitimou o então cônjuge, determina a caducidade do direito a essa pensão.

2. Na decisão agravada refere-se o seguinte:
“(…)
Em face das declarações produzidas livremente pela beneficiária perante este Tribunal, é de considerar demonstrado, por confissão, que a beneficiária C………. vive em união de facto com E………. desde Outubro de 2008.
A lei aplicável ao caso em apreço é a Lei 2127 de 3/8/65, designadamente a Base XIX n° 3, atenta a data do acidente que constitui objecto dos presentes autos e não a lei 100/97 de 13/9, que, nos termos do art. 41° n° 1 al. a), é apenas aplicável aos acidentes de trabalho ocorridos após a sua entrada em vigor, o que ocorreu em 1/1/2000 (D.L. 382-A/99). Também não é aplicável à situação dos autos o D.L. 248/99 de 2/7, invocado pela requerente em sustento da sua pretensão, uma vez que tal diploma legal regula a reparação das doenças profissionais e é aplicável apenas às situações de doença ocorridas, manifestadas ou diagnosticadas após a sua entrada em vigor, nos termos do já citado art. 41° da lei 100/97.
Segundo o n° 3 da Base XIX da Lei 2127 de 3/8/1965, o cônjuge sobrevivo que contraia casamento receberá de uma só vez o triplo da pensão anual. Não contempla a lei a hipótese de união de facto, pelo que há que averiguar se é admissivel uma interpretação extensiva ou analógica de tal preceito, de forma a abranger na sua previsão as situações em que o beneficiário contrai união de facto.
Por força do art. 3° al. g) da lei 135/99 de 29/08, quem viva em união de facto passou a ter direito à prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional. Contudo, tal diploma limitou-se a atribuir o direito à pensão, remetendo para a lei dos acidentes de trabalho a definição dos termos e condições de exercício e extinção de tal direito. Ora, nem a teleologia da norma prevista no no 3 da Base XIX da Lei 2127, nem a unidade da ordem jurídica permitem que se equipare a união de facto ao casamento para efeitos de caducidade do direito a pensão. Com efeito, existindo um dever legal de assistência mútua entre os cônjuges, concretizado nos deveres de prestar alimentos e de contribuir para os encargos da vida familiar, consagrados nos arts. 1672° e 1675° do Código Civil, é compreensível que cesse o direito do cônjuge sobrevivo à pensão por morte quando contrai novo casamento, pois passa a poder exercer sobre o novo cônjuge os direitos patrimoniais que lhe assistem por força do casamento. O mesmo não sucede na união de facto, em que os eventuais deveres de assistência mútua entre os membros do casal dependem exclusivamente da vontade de ambos, inexistindo qualquer obrigação legal de prestar alimentos e de contribuição para as despesas domésticas. Não, há, pois, neste aspecto, qualquer paralelismo entre o casamento e a união de facto a justificar identidade de regime em matéria de cessação do direito à pensão por morte (cf neste sentido Ac. STJ de 7/11/2007, in www.dgsi.pt, Documento n° SJ2007110070015164 e Ac. RC de 15/01/2004, CJ, n° 172, Tomo 1/2004).
Não está, pois, preenchido o pressuposto previsto na Base XIX n° 3 da Lei 2127 de 3/8/1965 para que seja declarada a caducidade do direito da beneficiária viúva à pensão que lhe foi atribuída nestes autos.
(…)”.

3. Desde já se dirá que estamos de acordo com as doutas considerações tecidas na decisão transcrita, as quais encontram apoio na jurisprudência nela citada, que sufragamos e para a qual, brevitatis causa, remetemos.
De todo o modo, e tendo em conta as conclusões da Recorrente, tecer-se-ão algumas, ainda que breves, considerações complementares.

3.1. E, a primeira, para referir que, salvo melhor opinião, entendemos que não estamos perante uma lacuna da Lei 2.127, como o demonstra a evolução legislativa.
Com efeito:
A Lei 1942, de 27.07.1936, previa a perda do direito á pensão em caso de “se viver em mancebia ou tiver porte escandoloso.”
A redacção do actual nº 3 da Base XIX foi introduzida pela Lei 22/92, de 18.08, sendo que a redacção originária dispunha o seguinte: “Se a viúva passar a segundas núpcias, receberá por uma só vez, o triplo da pensão anual. Se tiver porte escandaloso, perderá o direito à pensão.” [sublinhado nosso].
Na redacção dessa Base XIX, nº 3, introduzida pela citada Lei 22/92, passou a dispor-se que “O cônjuge sobrevivo que contraia casamento tem direito a receber, por uma só vez, o triplo do valor anual da pensão.”.
Entretanto, foi publicada a Lei 100/97, de 13.09, que, no seu art. 20º, a par de atribuir à pessoa em união de facto, o direito a pensão (nº 1), passou a dispor, no nº 3, que “Qualquer das pessoas referidas na alínea a) e b) do nº 1 que contraia casamento ou união de facto receberá, por uma só vez, o triplo do valor da pensão anual, excepto se já tiver ocorrido a remição total da pensão.”, diploma este que, no entanto, apenas entrou em vigor no dia 01.01.2000 e que só é aplicável aos acidentes de trabalho ocorridos após essa data (cfr. arts. 41º da Lei 100/97, 71º do DL 143/99, de 30.04 e DL 382-A/99, de 22.09), salvo no que se reporta ao regime transitório previsto no nº 2 do seu art. 41º.
Por sua vez, a Lei 135/99, de 28.08, que veio adoptar medidas de protecção da união de facto de pessoas (de sexo diferente) que vivam em tal situação há mais de dois anos consagrou, no seu art. 3º, al. g), o direito a “Prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, nos termos da lei.”.
A referida resenha denota uma adaptação da lei em função da evolução dos valores sociais, morais, éticos e políticos dominantes à época, entendendo consagrar, como o fez e quando o fez, as adaptações legislativas que o legislador teve como adequadas.
À data da Lei 2127, mormente da sua alteração de 1992, a situação da união de facto, ainda que não tutelada ou reconhecida nos termos em que o veio a ser posteriormente, não era, no entanto, desconhecida do legislador, pelo que se este a não contemplou nessa alteração foi porque assim o entendeu.
É certo que, a essa data, também a união de facto não estava contemplada na letra do nº 1 da Base XIX, sendo que o direito a pensão por parte da pessoa em tal situação apenas veio a ter expressa consagração legal com a Lei 135/99, de 28.08, a qual, no entanto, remete para os termos da lei. E a lei, a essa data em vigor (Lei 2127), não previa a união de facto como razão determinante da caducidade do direito à pensão.
Por outro lado, a Lei 100/97, reconhecendo expressamente a situação da união de facto em termos da sua equiparação ao casamento, designadamente no que se reporta à caducidade do direito á pensão por virtude da verificação dessa situação, não excepcionou a sua aplicação imediata ou a sua aplicação ao caso de acidentes de trabalho ocorridos antes da sua entrada em vigor (01.01.2000), como aliás o fez em relação às matérias previstas no nº 2 do art. 41º (para as quais estabeleceu um regime transitório) e como o poderia ou deveria ter feito se essa tivesse sido a intenção do legislador, sendo certo que este, a essa data, não era obviamente desconhecedor de tal realidade social, nem, naturalmente, do regime legal constante da Lei 2.127 (tanto não era, que a contemplou no art. 20º).
Não se nos afigura, pois, que a omissão da situação da união de facto na previsão do nº 3 da Base XIX da Lei 2127 consubstancie um caso omisso. Este não se confunde com caso não regulado, sendo que, para que se verifique omissão legislativa, é necessário que não exista disposição legal e também que essa omissão não decorra de intenção do legislador. E só o caso omisso permite a sua integração através da analogia.
Acrescente-se que também não nos parece que a letra da citada norma comporte interpretação extensiva ou actualista da lei, sendo certo que, manifestamente, o casamento e a união de facto, correspondem, do ponto de vista jurídico, a situações completamente diferentes. Tanto assim é, que o legislador as distingue. E, faz aqui, todo o sentido a presunção consagrada no art. 9º, nº 3, do Cód. Civil, de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Parece-nos, pois, que o legislador, até determinado momento – até à entrada em vigor da Lei 100/97 (em 01.01.2000)- distinguiu as duas situações e que, só a partir desse momento, e aos acidentes de trabalho ocorridos após esse momento, contemplou ou pretendeu contemplar a união de facto como causa determinante da caducidade do direito á pensão. Podê-lo-ia ter feito antes, mas não o fez.

3.2. E, por outro lado, não se nos afigura que tal constitua violação de preceito constitucional, mormente do artigo 13º da CRP.
A esta questão são também integralmente aplicáveis as considerações tecidas nos já mencionados acórdãos do STJ, que doutamente expende sobre tal e da Relação de Coimbra, em situação similar.
O art. 13º da CRP, consagrando o princípio da igualdade, proíbe o arbítrio, a discriminação ou a diferenciação subjectiva não fundada, mas não proíbe uma diferenciação de situações que não são iguais.
E, pese embora a subsequente tutela e equiparação da união de facto ao casamento, a verdade é que consubstanciam realidades distintas, como aliás disso dá nota a decisão recorrida, sendo a este propósito oportuno relembrar o que nesta se disse: “(…)existindo um dever legal de assistência mútua entre os cônjuges, concretizado nos deveres de prestar alimentos e de contribuir para os encargos da vida familiar, consagrados nos arts. 1672° e 1675° do Código Civil, é compreensível que cesse o direito do cônjuge sobrevivo à pensão por morte quando contrai novo casamento, pois passa a poder exercer sobre o novo cônjuge os direitos patrimoniais que lhe assistem por força do casamento. O mesmo não sucede na união de facto, em que os eventuais deveres de assistência mútua entre os membros do casal dependem exclusivamente da vontade de ambos, inexistindo qualquer obrigação legal de prestar alimentos e de contribuição para as despesas domésticas. Não, há, pois, neste aspecto, qualquer paralelismo entre o casamento e a união de facto a justificar identidade de regime em matéria de cessação do direito à pensão por morte.(…)”.
E, como também se diz no mencionado Acórdão da Relação de Coimbra, “(…) é a dinâmica da realidade político-social e ética que se vai reflectindo progressivamente nas normas, sendo o legislador quem considera oportuno ou não a contemplação ou tutela desta ou daquela situação ou matéria.”.

3.3. Assim, e concluindo, sendo ao caso aplicável a Base XIX, nº 3, da Lei 2127, não prevendo esta a constrição do direito do beneficiário da pensão em consequência de subsequente união de facto e não tendo o legislador, posteriormente e até à entrada em vigor da Lei 100/07, de 13.09 (o que apenas ocorreu aos 01.01.2000), efectuado tal constrição relativamente aos acidentes de trabalho ocorridos no âmbito de vigência da Lei 2127, o que também e pelas razões expostas, não viola, salvo melhor opinião, o mencionado preceito constitucional, entendemos que nada há a apontar à decisão recorrida, assim improcedendo as conclusões do recurso.
*
IV. Decisão

Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a douta decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Porto, 8.11.2010
Paula Alexandra Pinheiro Gaspar Leal Sotto Mayor de Carvalho
António José da Ascensão Ramos
José Carlos Dinis Machado da Silva

_____________________
[1] O aplicável ao caso, atenta a data de instauração do processo principal e o disposto no art. 3º do DL 480/99, de 09.11 e 6º do DL 295/2009.