RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
INDEMNIZAÇÃO
ACTUALIZAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO
JUROS DE MORA
Sumário

Sempre que a indemnização tenha sido objecto de correcção monetária, ao abrigo do n. 2, do artigo 566, Cód Civil, deve o n. 3, do artigo 805º, do mesmo Código, ser interpretado restritivamente, pois o papel indemnizatório atribuído aos juros moratórios já se encontra, nesse caso, desempenhado pelo mecanismo daquele n. 2, do artigo 566.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Por sentença do Tribunal Judicial de Tondela, que julgou parcialmente procedente a presente acção destinada a exigir a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, a ré Companhia de Seguros A foi condenada a pagar ao autor B, a quantia de 14307478 escudos e 60, centavos acrescida de juros de mora legais desde 3/12/96., correspondente à soma das seguintes parcelas:
--47478 escudos e 60 centavos de danos emergentes;
--2360000 escudos de lucros cessantes;
--10400000 escudos pelos danos derivados da IPP (já sofridos e ainda a sofrer);
--1500000 escudos pelos danos não patrimoniais.
A Relação de Coimbra alterou esta sentença quanto à parcela dos danos derivados da IPP, fixando a correspondente indemnização em 13000000 escudos.
Recorre agora, de revista, a ré seguradora, formulando as seguintes conclusões:
1. O douto acórdão recorrido fez incorrecta valoração dos factos e errada aplicação da lei, nomeadamente dos artigos 564 e 566 do C. Civil;
2. Entendeu-se no douto acórdão ora recorrido fixar em 100000 escudos/mês para efeitos de cálculo da indemnização devida por força da IPP, o montante do salário auferido pelo recorrido;
3. Relativamente ao montante auferido pelo recorrido resultou provado em audiência de discussão e julgamento que, aquando do embate, o recorrido estava a prestar serviço para C, construtor civil, em regime experimental, desde 10 de Maio de 1994, com a categoria de trolha, auferindo por dia a quantia de 5000 escudos;
4. Não se apurou nem quantos dias por mês o recorrido trabalhava, nem tampouco durante quantos meses por ano o fazia;
5. O recorrido havia iniciado o trabalho a 10 de Maio de 1994, ou seja, 15 dias antes de acontecer o acidente dos autos;
6. Tomando em consideração os documentos juntos aos autos com a petição inicial, os docs. ns. 3 e 4, verifica-se que antes de 10 de Maio de 1994 o recorrido esteve desempregado durante cerca de 9 meses, sendo certo que havia sido contratado a termo pela sua anterior entidade patronal;
7. Não resultou minimamente provado, ou sequer indiciado, que o recorrido trabalhasse 5 ou 6 dias por semana;
8. É patente a precariedade do tipo de trabalho que o recorrido prestava na altura do acidente, precariedade essa que resulta do facto de os contratos para os trabalhadores da construção civil serem, em regra, contratos de trabalho a termo, além da dependência da actividade de construção civil às condições atmosféricas, como se refere na sentença proferida pela 1ª instância;
9. O valor fixado no douto acórdão ora recorrido, além de não ter qualquer suporte na matéria de facto dada como provada, não tomou em consideração determinados elementos constantes do processo, os quais, a terem-no sido, levariam a determinar uma remuneração média mensal diferente, para efeitos de cálculo da indemnização pela IPP;
10. Com base no recurso à equidade, à matéria de facto dada como provada em audiência de discussão e julgamento e aos demais elementos constantes do processo, entende a recorrida que, para efeitos de cálculo da indemnização devida pela IPP, a remuneração mensal do autor não deverá ultrapassar 70000 escudos;
11. A indemnização devida a título de IPP não deverá ser superior a 65000000 escudos;
12. Refira-se que mesmo tendo como assente que o autor auferiria 100000 escudos/mês - o que não se concede - o montante fixado com base em tal valor não poderia nunca ultrapassar o acima referido, tendo em conta as tabelas usualmente utilizadas para fixar o «quantum» indemnizatório destinado a ressarcir tal dano;
13. Na fixação do valor atribuído a título de dano não patrimonial deveria ter sido tomado em conta tal valor tendo em atenção a data da sentença proferida pela 1ª instância e não a data da citação da recorrente, pois é a própria lei, nomeadamente no artigo 566, nº 2 do C.Civil, que manda ter em conta, na fixação do montante indemnizatório, a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, ou seja, a data do encerramento da discussão na 1ª instância.

O recorrido contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

Temos para resolver duas questões:
1ª--INDEMNIZAÇÃO POR DANOS FUTUROS DECORRENTES DA IPP DE 45% ATRIBUÍDA AO AUTOR;
2ª--CONTAGEM DOS JUROS MORATÓRIOS SOBRE A PARCELA INDEMNIZATÓRIA DE 1500000 escudos FIXADA AO AUTOR A TÍTULO DE DANOS NÃO PATRIMONIAIS.
1ª QUESTÃO

Dos factos dados como provados pela Relação interessam à resposta a esta questão os seguintes;
1º O acidente deu-se em 25 de Maio de 1994;
2º O autor nasceu em 1 de Agosto de 1964;
10º Na data do acidente o autor era uma pessoa saudável e muito trabalhadora;
11º O autor padeceu de incapacidade total para o trabalho durante 661 dias;
12º Ficou com rigidez no joelho esquerdo, com deficiente flexão da articulação do joelho que se situa em cerca de 120 graus e com uma cicatriz viciosa da região posterior do pé (calcanhar) e duas grandes cicatrizes na perna esquerda;
13º Apresenta uma incapacidade permanente parcial de 45%, que o limita na marcha, corrida, subida e descida de escadas e quando tem de levantar ou suportar pesos;
14º Aquando do embate, estava a prestar serviço para C, construtor civil, em regime experimental, desde 10/5/94, com a categoria de trolha, auferindo por dia a quantia de 5000 escudos;
15º O autor agora está desempregado e com muita dificuldade em obter trabalho compatível com a sua capacidade residual;
16º Os filhos do autor encontram-se a seu cargo;
17º A deformação e desvalorização estética que apresenta cria-lhe inibições;
18º Em consequência das lesões sofridas no embate, o autor não pode exercer a sua profissão de trolha, ou outra da sua área de preparação técnica.

Sobre a questão lê-se no acórdão recorrido o seguinte:
«Perante os elementos de facto provados, entendeu-se na sentença fixar em 100 contos/mês o salário auferido pelo autor para efeitos de cálculo da indemnização devida por força da IPP. A ré insurge-se no seu recurso contra isto, argumentando designadamente, que não resultou sequer indiciado que o autor trabalhasse cinco ou seis dias por semana durante todo o ano, sendo certo por outro lado, que o tipo de trabalho por ele prestado na altura do acidente era precário. A partir daqui, defende que este segmento da indemnização não deverá exceder os já indicados 6.500 contos. Neste particular, contudo, pensamos que a sentença não merece qualquer censura, visto o facto nº 14: ficcionando um salário mensal de 100 contos (note-se que o acidente ocorreu em 1994), não se afastando daquilo que é normal e corrente no mercado do trabalho na área da construção civil.
Assim, tudo sopesado, e tendo sobretudo em linha de conta os factos 1, 2, 10, 12 a 16 e 18, atrás mencionados, entende-se que é equitativo alterar a parcela indemnizatória de 10400 contos estabelecida pela 1ª instância, fixando-a agora em 13000 contos.».

A recorrente volta a insistir, agora na revista, no argumento de que o valor de 100000 escudos fixado (ficcionado) pelas instâncias, para efeitos de cálculo da indemnização em análise, como sendo o do salário médio mensal normalmente auferido pelo recorrido, não tem qualquer suporte na matéria de facto dada como provada, além de que não terão sido tomados em conta os documentos juntos com a petição inicial, nomeadamente os nºs 3 e 4, pelos quais se verifica que «antes de 10 de Maio de 1994 o recorrido esteve desempregado durante cerca de 9 meses, sendo certo que havia sido contratado a termo pela sua anterior entidade patronal.».

Esquece, porém, a recorrente que estamos no âmbito da pura matéria de facto, cuja fixação é da competência exclusiva das instâncias, não podendo o Supremo censurar tal actividade (mesmo que haja erro na apreciação das provas e na fixação dos factos) fora das situações excepcionais - que in casu não se verificam - previstas no nº 2 do artigo 722 e no nº 3 do artigo 729, ambos do Código de Processo Civil.

De qualquer forma, a ilação extraída pelas instâncias para chegarem àquele valor de 100000 escudos, como salário médio mensal que caberia ao autor, assentou em factos provados (o de que o recorrido auferia como trolha 5000 escudos/dia) e no que é normal e corrente no mercado de trabalho na área da construção civil.

Foi, portanto, utilizado uma meio de prova perfeitamente legal - o das presunções judiciais, nos termos dos artigos 349 e 351 do Código Civil --, sendo certo que, mais do que isso, «...a Relação pode extrair ilações da matéria de facto dada como provada na 1ª instância, não para alterar as respostas do colectivo, mas para completar o julgamento da matéria de facto contido na decisão impugnada e até para corrigir ou rectificar a resposta que, com base nos factos apurados (seja na especificação, seja nas respostas ao questionário, seja na sentença, em relação às provas, nomeadamente à prova documental, de que cumpre conhecer ao autor da decisão final), tenha sido dada a qualquer questão de direito.». (A.. Varela, RLJ, 122º-224).

E é sem dúvida ao critério da normalidade das coisas da vida que o julgador deve atender para -- com equidade, como manda a lei no nº 3 do artigo 566 do Código Civil - efectuar a sempre custosa e pungente tarefa de calcular a indemnização pelos previsíveis danos patrimoniais futuros (nº 2 do artigo 564 do mesmo Código) decorrentes de incapacidades físicas permanentes, parciais ou totais.

Parafraseando o acórdão deste Supremo, de 6/7/2000, CJSTJ, ano VIII, TII, página 145:
«O julgamento de equidade, como processo de acomodação dos valores legais às características do caso concreto, não pode prescindir, aqui, do que é normal acontecer (do id quodplerumque accidit), no que se refere à duração da vida (a expectativa de vida do cidadão masculino médio), à progressão profissional do trabalhador jovem e, finalmente, à flutuação do valor do dinheiro quando perspectivado um período correspondente ao da vida provável de um jovem adulto, como era o caso do autor.
Pretendendo-se, como se pretende, uma indemnização em dinheiro, o critério da sua atribuição, tendo em conta o principio que dimana do artº 562º, CC, deverá ser o que, desde há muito, foi jurisprudencialmente consagrado e se exprime da seguinte maneira: a indemnização em dinheiro do dano futuro de incapacidade permanente corresponde a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir, mas que (capital) se extinga no final do período provável de vida.
Só assim, com efeito, se alcança «reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» (cfr. citado artº 562º)».

Ora, como acertadamente se salienta no acórdão recorrido, o que sobretudo impressiona no caso presente, é o facto de o lesado-recorrido ser um jovem de 30 anos que, afectado por uma incapacidade permanente parcial de 45%, não mais poderá exercer a sua profissão de trolha, ou outra da sua área de preparação técnica, o que lhe determinará certamente no futuro uma situação larvar de desemprego, com as consequentes dificuldades de sobrevivência facilmente adivinháveis.

Assim, atendendo ao tempo provável de vida do recorrido (40 anos, tendo como referência os expectáveis 70 do comum homem português), ao rendimento anual de 1400000 escudos (100000 escudos X 14 meses), à previsivelmente estabilizada taxa de juro de 5%/ano, chega-se ao montante de 28000000 escudos como sendo o capital necessário para se conseguir aquele rendimento anual perdido.
Para evitar uma situação de enriquecimento injustificado do lesado, com o recebimento dos juros e a concomitante manutenção do capital intacto, este capital há-de sofrer um desconto, que, considerando o nível de vida do país e a previsivelmente discreta inflação a longo prazo, poderá ser de ¼, ou seja, de 7000000 escudos (cfr. o estudo sobre a matéria da autoria do Conselheiro Sousa Dinis, publicado na CJSTJ, ano IX, Tomo I, páginas 5-12, que vimos seguindo de perto).
Temos assim um montante final de 21000000 escudos (28000000 escudos - 7000000 escudos) como indemnização a atribuir, no caso de incapacidade permanente total e de 9450000 escudos (21000000 escudos X 45%), no caso de a IPP se reflectir em igual percentagem na capacidade de trabalho do lesado.

Ora, reduzindo estas operações aritméticas à sua real valia de meros parâmetros coadjutores do julgador e privilegiando a equidade, como manda a lei, temos de concluir que se mostra justa e equilibrada a quantia de 13000000 escudos fixada no acórdão recorrido como indemnização pelos danos em análise, uma vez que, não podendo o recorrido jamais exercer a sua profissão de trolha ou outra equiparável, a sua incapacidade parcial quase que equivale, na prática, a uma incapacidade total.

Improcede, assim, a 1ª questão.
2ª QUESTÃO

A recorrente restringe o âmbito desta questão da contagem dos juros moratórios à parcela indemnizatória pelos danos não patrimoniais, que as instâncias fixaram em 1500000 escudos, com juros moratórios contados desde a citação.

Segundo o acórdão recorrido, a actualização da indemnização à data da sentença é perfeitamente compatível com a obrigação de pagar juros de mora a partir da citação.

Em contrapartida defende a recorrente que, tendo havido, como houve, essa actualização nos termos do artigo 566, nº 2 do Código Civil, a contagem dos juros deve fazer-se a partir da data da sentença proferida em 1ª instância e não desde a data da citação.

Desde há muito que temos vindo a perfilhar este segundo entendimento, ou seja, o de que sempre que a indemnização tenha sido objecto de correcção monetária, ao abrigo daquele normativo (artigo 566, nº 2 do CC), deve o nº 3 do artigo 805 do Código Civil ser interpretado restritivamente, pois que, como se lê no citado acórdão do STJ, de 6/7/2000, «o papel indemnizatório atribuído aos juros moratórios (destinados a cobrir, em abstracto, todos os prejuízos resultantes da mora, aí incluídos os provenientes da desvalorização da moeda) já se encontra, em tais hipóteses, desempenhado pelo mecanismo do nº 2 do artº 566º, CC.».

E continuamos a perfilhá-lo, tanto mais que ele acaba de ser sufragado neste Supremo, com confortável maioria, pelo acórdão uniformizador de jurisprudência, proferido em 9/5/2002 na revista ampliada nº 1508/01, com a seguinte norma interpretativa:
«Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805, nº 3 (interpretado restritivamente) e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.».

Procede, portanto, a 2ª questão.
DECISÃO
Pelo exposto concede-se em parte a revista e altera-se o acórdão recorrido por forma a que os juros de mora relativos à indemnização por danos não patrimoniais, fixada em 1500000 escudos, sejam contados a partir de 15/5/2001(dia seguinte ao da prolação da sentença em 1ª instância).
Custas pela recorrente e pelo recorrido na proporção do respectivo decaimento.8

Lisboa, 28 de Maio de 2002.
Ferreira Girão,
Eduardo Baptista,
Moitinho de Almeida.