Sumário

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - "A", intentou acção de divórcio litigioso contra seu marido B.

Alegou que o marido, alcoólico dependente, a maltrata fisicamente e a injuria com frequência, além de que não contribui para o sustento e manutenção da filha de ambos.

Contestando, o réu impugna os factos invocados e sustenta que a mulher deixou de viver e partilhar a vida em comum.

O processo prosseguiu termos, tendo tido lugar audiência de discussão e julgamento, sendo proferida sentença que decretou a dissolução do casamento por divórcio e declarou o réu único culpado, condenando-o ainda como litigante de má fé.

Apelou o réu.

O Tribunal da Relação confirmou o decidido.

Inconformado, recorre o réu para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:
- As respostas dadas aos quesitos 2º, 3º, 4º e 5º contêm matéria conclusiva e/ou opinativa;
- Não foram dados factos provados que permitissem concretizar no tempo, que tenha ocorrido nos dois anos antes da propositura da acção;
- Não se provou a culpa do réu, no desencadear desses factos;
- A autora deixou de partilhar a vida em comum com o réu, deixou de dormir na mesma cama, no mesmo quarto, manter trato sexual, deixou de confeccionar e tomar refeições com o réu;
- O réu não litigou de má fé;
- Por erro de interpretação e/ou aplicação, não foram correctamente observados e aplicados os comandos legais previstos nos artigos 1779º, 1780, alínea a) e 1786º do CC e artigo 456º do CPC.

Contra-alegando a autora defende a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.




II - Vem dado como provado:

Autora e réu contraíram entre si casamento católico, com convenção antenupcial em que adoptaram o regime de comunhão geral de bens, no dia 15.08.81;

Desse casamento existe uma filha, de nome C, nascida em 25.09.82;

Após contraírem entre si matrimónio, autora e réu foram residir para o lugar de Lameira, para uma parte da casa pertença dos pais da autora;

Após o casamento autora e réu começaram a desentender-se;

Pois o réu começou a embriagar-se com muita frequência;

E a causar mau viver entre ambos;

Durante vários anos a autora sofreu o mau viver referido;

O réu maltratou fisicamente a autora, tendo-lhe apertado o pescoço;

Pelo menos uma vez, a autora refugiou-se em casa de uma vizinha, depois de o réu a ter maltratado fisicamente e de lhe ter derramado óleo ou azeite pela cabeça;

Por mais de uma vez o réu chamou "puta" à autora;

Pelo menos uma vez o réu disse que a autora tinha um amante, pretendendo com isso significar que a autora mantinha relações sexuais com outro homem;

Os factos praticados pelo réu comprometem irremediavelmente a vida em comum;

Face aos comportamentos do réu, a autora decidiu divorciar-se do mesmo, razão pela qual a partir de 24.01.00, deixou de partilhar a vida em comum com o réu, deixou de dormir na mesma cama e quarto de casal, deixou de manter trato sexual com o réu e deixou de confeccionar ou tomar refeições com o réu.

III - Instaurada acção de divórcio litigioso, foi o mesmo decretado, considerando-se o réu único culpado e sendo ainda condenado como litigante de má fé.

Daí o recurso.

O recorrente suscita as seguintes questões:

As respostas dadas aos quesitos 2º, 3º, 4º e 5º contêm matéria conclusiva ou opinativa;

Operou a caducidade;

Não se provou a culpa do réu;

Não há litigância de má fé.

Importa começar por recordar que o Supremo, sendo um Tribunal de revista, está vinculado aos factos fixados pelo Tribunal recorrido, só lhe competindo, em princípio, decidir de direito e não julgar matéria de facto.

É às instâncias que cabe apurar a factualidade relevante, sendo a intervenção do Supremo residual e destinada a averiguar da observância das regras de direito probatório material ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto (artigos 722º nº 1 e 729º nº 3 do C. Processo Civil).

A possibilidade de sindicância por este tribunal não poderá de qualquer forma ultrapassar a perspectiva formal e processual - Ac. STJ de 01.04.98, "Sumários" nº 17, pág. 13.

Dentro destes parâmetros vejamos a problemática levantada.

As respostas aos quesitos que o recorrente põe em causa dizem o seguinte: Após o casamento, autora e réu começaram a desentender-se pois o réu começou a embriagar-se com muita frequência e a causar mau viver entre ambos; a autora durante vários anos sofreu este mau viver.

Como correctamente se assinala no acórdão recorrido, o facto essencial é que o réu se embriagava com muita frequência. E isso é, obviamente, pura factualidade.

As restantes afirmações que têm, efectivamente, um carácter vago e geral acabam por ser irrelevantes. Não só porque através de presunções se pode chegar às mesmas, como principalmente porque as respostas dadas aos quesitos 8º a 17º dispensavam essas ilações. Ficou provado que o réu maltratou fisicamente a autora, tendo-lhe apertado o pescoço, provado que lhe chamou "puta" e que afirmou publicamente que a mesma tinha amantes.

Tais factos são mais que suficientes para ser decretado o divórcio, face à violação do dever de respeito, que pela sua gravidade compromete a possibilidade da vida em comum, devendo o réu ser declarado único culpado já que o divórcio lhe é imputável, não se tendo apurado que a autora tenha praticado qualquer acto culposo que ponha em causa a vida conjugal (artigos 1672º, 1779º e 1787º, todos do C. Civil).

Os direitos de personalidade são direitos absolutos que se impõem ao respeito de todos. Constitucionalmente protegidos, implicam um dever geral de abstenção.

Cada cônjuge tem a obrigação de respeitar os direitos individuais do outro, não só nos termos gerais que vinculam "erga omnes", mas também de uma forma especial, já que tal lhe é imposto pelos deveres conjugais, pelos laços do casamento.

O dever de respeito traduz-se especialmente pela obrigação de ambos os cônjuges de abstenção ou prática de actos que ofendam os direitos pessoais, absolutos do outro - Prof. Antunes Varela - "Direito de Família", 2ª ed., pág. 345 e segs.

Dúvidas não podem subsistir, face à factualidade apurada, de que o réu violou com a sua conduta, de forma grave, o dever de respeito.

Coloca, contudo, o recorrente uma questão que aparentemente é pertinente.

Defende que não foram dados como provados factos que permitam concluir pela localização temporal dos motivos do divórcio.

Na realidade, os factos não estão datados, mas isso não é motivo para se concluir que operou a caducidade.

O artigo 1786º nº1 do C. Civil determina que o direito ao divórcio caduca no prazo de dois anos, a contar da data em que o cônjuge ofendido ou o seu representante legal teve conhecimento do facto susceptível de fundamentar o pedido.

A caducidade do direito ao divórcio extingue assim esse direito, não podendo o divórcio ser requerido com base nas faltas sobre as quais operou a caducidade.

É ao cônjuge réu que incumbe provar que o autor teve conhecimento dos factos invocados como fundamento de divórcio - Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira - "Curso de Direito da Família", 2ª ed., 2001, vol. I, pág. 645/646.

Tal entendimento resulta, aliás, da regra geral, contida nos artigos 342º nº 2 e 343º nº 2 do C. Civil.

É certo que a caducidade é aqui apreciada oficiosamente pelo Tribunal (artigo 333º nº 1 do C. Civil), mas também é certo que não foram trazidos aos autos elementos que permitam tal apreciação, sendo de salientar que o réu só em sede de recurso se socorre da caducidade.

Na decisão recorrida apreciou-se, pois, correctamente a excepção referida.

Importa por fim apreciar a questão da litigância de má fé.

Na 1ª instância considerou-se que o réu impugnou factos pessoais que vieram a resultar provados e, para além disso, alegou factos pessoais falsos. Por esse motivo foi o réu condenado em multa por litigância de má fé. O Tribunal da Relação confirmou o decidido.

Tem-se entendido e defendido (entre vários e com o mesmo relator o Ac. de 20.10.98, Revista nº 819/98 e Ac. de 27.04.99, Revista nº 232/99, "Sumários" nº 24, pág. 29) que a problemática da má fé não pode ser vista com linearidade, merecendo especiais cuidados, sob pena de se limitar o direito das partes, designadamente, o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil e tem foros de garantia constitucional.

A condenação por litigância de má fé ultrapassa o aspecto processual, podendo ter implicações pessoais, sociológicas e profissionais.

A actual redacção do artigo 456º nº 2 do C. Processo Civil veio consagrar a tese, já largamente dominante, de que só o dolo ou a negligência grave são relevantes para efeitos de má fé. Ao alargamento do conceito, abrangendo expressamente a negligência grave, parece estar subjacente a ideia de moralização da lide.

Não se diz o que é "grave", cabendo à jurisprudência a clarificação do conceito.

Tal apreciação, do dolo ou da negligência grave, não cabem no processo civil em estereótipos rígidos, impondo-se uma cautelosa apreciação casuística.

Está-se numa acção de divórcio e, como justamente salienta o recorrente, a vivência e a história do casal não terão sido tão lineares como resulta da factualidade apurada.

O réu defendeu-se dentro de uma certa razoabilidade, sem recorrer a ataques despropositados e muitas vezes carregados de injúrias, que infelizmente são habituais neste tipo de processo.

O réu tem provado o que alegou não pode ser, sem mais, motivo para condenação por litigância de má fé sob pena, repete-se, de se limitar grandemente a possibilidade de defesa.

A verdade processualmente apurada nem sempre corresponde (pelo menos na integra) à verdade real. Princípio que, mesmo que eventualmente não se aplique ao caso concreto, não pode deixar de ser em abstracto considerado.

De harmonia com este critério, entende-se suprimir a condenação por litigância de má fé, mantendo-se o restante.

Pelo exposto, concede-se parcial provimento à revista.

Custas pelo recorrente, tendo-se em conta o apoio concedido.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2003.

Pinto Monteiro

Lemos Triunfante

Reis Figueira