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MOTIVAÇÃO
FALTA DE MOTIVAÇÃO
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
ADMISSÃO DO RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
CONCLUSÕES
Sumário
I - Uma das inovações mais emblemáticas, se não mesmo a mais emblemática, da reforma processual penal de 1998, traduz-se na introdução da possibilidade de recurso para a relação da decisão final do colectivo na vertente relativa à matéria de facto. II - Se as conclusões finais da motivação do arguido não satisfizerem os requisitos formais do artigo 412.º do CPP, impõe-se que o tribunal o convide a corrigi-las nos pontos considerados afectados, sob pena de interpretação inconstitucional do preceito que leve logo à rejeição do recurso, dada a sua evidente desproporcionalidade. III - É nulo o acórdão da relação que decidiu contra o doutrinado em II.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1. O arguido JRTF, devidamente identificado, foi, juntamente com outros, submetido a julgamento no Tribunal Judicial de Silves, tendo a final sido condenado, como co-autor material de um crime de tráfico agravado, p. e p. nos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. c), do DL n.º 15/93, de 22/1, além do mais, na pena de sete anos de prisão.
Inconformado, recorreu o arguido em causa ao Tribunal da Relação de Évora, que, por seu acórdão de 22/4/03, porque, no entendimento daquele tribunal superior o requerimento de interposição não obedecia às especificações formais do artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal no tocante à impugnação da matéria de facto, decidiu, não só não formular qualquer convite ao recorrente para aperfeiçoá-lo, já que o teve por inadequado ao caso, como, por isso, não tomar conhecimento desta vertente do recurso.
E assim dando por assente ou imodificável a matéria de facto posta em crise pelo recorrente, acabou por conhecer da matéria de direito correspondente aos factos assim tidos por adquiridos e negar provimento ao respectivo recurso.
Quem não se conformou foi o Ministério Público junto do referido Tribunal, que do acórdão interpôs recurso assim culminando a sua motivação:
1.º O acórdão recorrido fez uma interpretação do artigo 412.º do CPP que se traduz em facultar ao tribunal ad quem a liminar rejeição do recurso, quando se traduza em rejeição do recurso interposto da matéria de facto, sem que ao recorrente seja feito o convite para suprir qualquer das especificações previstas nas als. a), b), e c), do n.º 3 do artigo 412.º, com referência ao art.º 414.º, n.º 2, do CPP.
2 .º É inconstitucional, por violação do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º e do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, com referência ao direito de acesso à justiça, consignado no artigo 20.º, todos da Constituição, essa interpretação normativa.
3.º Termos em que deverá proceder o presente recurso, sendo de anular o dito acórdão, o qual deve ser mandado substituir por outro que determine aquele convite, por aplicação subsidiária do disposto no artigo 680.º, n.º 4, do CPC.
Não foi apresentada resposta.
Subidos os autos, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto exarou neles o seu visto.
A única questão a decidir consiste em saber se foi ou não legal a decisão de não conhecer, sem mais, do recurso do arguido relativo à impugnação da matéria de facto, apenas porque, alegadamente, aquele não dera satisfação às exigências formais do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
2. Colhidos os vistos legais em simultâneo cumpre decidir em conferência, uma vez que o caso não se prende com o fundo da causa.
Com alguma frequência este Supremo Tribunal já tem sido confrontado com este tipo de situações, e a todas tem vindo a dar resposta consonante com a tese do MP recorrente, como pode ver-se nomeadamente da leitura do acórdão de 7/11/02, proferido no recurso n.º 3315/03-5, com o mesmo relator.
Além de que a jurisprudência do Supremo Tribunal, se bem que, inicialmente, porventura portadora de algumas naturais hesitações, é, agora, pacífica, quanto à aceitação e consagração positivada, pela Reforma de 98, de um efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de decisão de facto, mesmo que proferida pelo tribunal colectivo.
Não vale a pena perder tempo na indicação dos muitos acórdãos do Supremo Tribunal, que, univocamente, vêm sendo tirados nesse sentido. Basta a consulta dos boletins, nomeadamente do boletim interno cujos sumários são, de resto, objecto de inserção na base de dados do Ministério da Justiça, em www.dgsi.pt.
Com efeito, e para não ir mais longe, vai lembrar-se aqui, parte do texto do acórdão proferido no recurso n.º 3019/01-5, com o mesmo relator, e que, quanto aos pontos ora em equação decidiu assim:
A) quanto à existência legal de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, mesmo das deliberações do colectivo:
"(...) A fixação da matéria de facto, seja em processo civil, seja em processo penal constitui verdadeiramente o alicerce do edifício intelectual que o julgamento eleva. Sobre ela repousará toda a solidez ou, definitivamente, a insegurança da construção.
Daí que não possa ser tida como exagerada a preocupação, quer do legislador, quer do próprio julgador, ao tentar encontrar um caminho escorreito e firme, se possível também expedito, para que uma tal componente, de valia incomensurável no contexto do julgamento, seja edificada mediante um processo que, descarnando o alicerce da verdade dos factos, se preocupe com a salvaguarda do principal ainda que, aqui e ali, com sacrifício do acessório, mormente quando este se traduza em rigorista observância de ritualismos processuais supríveis com pequeno sacrifício, seja de trabalho material, seja mesmo de celeridade processual.
Sobretudo quando tais aspectos de mera forma não encerram, na sua observância, a protecção de valores de igual ou maior valia que aquele objectivo final, infelizmente nem sempre conseguido, de atingir a verdade dos factos.
Perfilhando, decerto, esta visão das coisas, e porque já detectara "a debilitação de garantias, com reduzida aplicação de institutos instrumentais, como são os relativos à renovação da prova, à oralidade e à presença efectiva dos intervenientes processuais" e "a persistente insegurança jurídica em alguns domínios, de que são sintoma os pressupostos da rejeição do recurso", (1) o legislador aprestou-se, além do mais, a "assegurar um recurso efectivo em matéria de facto" (2) (3) - não obstante reconhecer que "as soluções do Código continuam a encontrar, neste domínio alguma resistência" (4).
Daí que, concorde-se ou não, o sistema processual penal vigente absorveu integralmente estas preocupações, designadamente de consagração de «um recurso efectivo em matéria de facto» - item 16, g) da falada Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII.
Correspondentemente, inovou-se no artigo 363.º ao estatuir-se, como princípio geral tal como, significativamente, consta logo na epígrafe, a documentação na acta das declarações orais «quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas bem como nos casos em que a lei expressamente o determinar.
«Acta», que passou a ter um significado que vai para além do simples documento escrito lavrado pelo escrivão no decorrer do julgamento e que já de algum modo se extraía do pensamento de Alberto dos Reis quando ensinava que "acta é o vocábulo próprio para designar a peça em que se descreve e regista o que se passa em qualquer sessão. (5) (6)"
Mais significativamente, porém, "Acta é o relato de tudo o que na assembleia se passou e não o documento certificativo da deliberação" tal como para situação paralela observa Alberto Pimenta. (7) (8)
A ser assim, como se aceita que seja, o suporte da gravação magnetofónica - as "cassetes" - efectuada no decurso da audiência, sempre que para tanto existam os respectivos meios, e devidamente supervisionada pelo juiz, faz parte integrante da acta, melhor, é «acta», no indispensável sentido actualista das coisas.
Por isso mesmo, e desde que se demonstre que o tribunal dispõe daqueles meios de gravação, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, que o Código, de modo inequívoco, visa assegurar, (ultrapassando em muito o regime anterior em que o mero conhecimento dos vícios a que alude o artigo 410.º, n.º 2 aspirava àquele objectivo), impõe, coerentemente, e como princípio geral, obrigatório, a documentação das declarações orais prestadas em tribunal, seja ele singular ou colectivo (...)".
(...) Assim sendo, dúvidas não restam de que, seja ou não o tribunal colectivo, as declarações prestadas em audiência deverão, em princípio, obrigatoriamente, ser objecto de gravação magnetofónica sempre que existir a aparelhagem respectiva, constituindo as respectivas cassetes gravadas com genuinidade devidamente assegurada pela supervisão do tribunal, prolongamento da acta, ou, se se preferir, acta em sentido amplo (...)".
B) quanto ao ponto aflorado pelo MP junto da Relação, a respeito da correcção dos eventuais vícios formais da alegação do (s) recorrente (s):
"(...) Valem estes considerandos para dizer que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não é uma miragem longínqua e eternamente diferida, antes, direito positivado e agora vigente no nosso ordenamento jurídico.
Daí que, entroncando naquele objectivo indeclinável de perseguir a verdade material não devam os tribunais criar obstáculos nesse caminho e, ao contrário, podem e devem colaborar na sua eventual remoção.
Daí que, designadamente, tratando-se de recurso do arguido, «faltando as conclusões, em recurso sobre a matéria de facto, ou sendo as mesmas deficientes ou obscuras, poderá [deverá] o tribunal convidar o recorrente a apresentá-las, completá-las ou esclarecê-las, sob pena de não se conhecer do recurso (n.º 3 do artigo 690.º, do CPC).
A mesma solução deve ser adoptada se o recurso versar sobre matéria de direito, apesar de a lei falar em rejeição do recurso (art.º 412.º, n.º 2). É que essa sanção (rejeição) deve ser considerada desproporcionada num domínio como o penal, em que o direito de defesa compreende o direito ao recurso». (9)
E parece mesmo que a solução encontrada [...], quando, por mera deficiência na formulação das conclusões, sanciona o arguido/recorrente com o não conhecimento do recurso, sem lhe dar, sequer, a possibilidade de corrigir o eventual lapso, se reveste de duvidoso recorte constitucional.
Demos a palavra ao Tribunal Constitucional: (Acórdão n.º 288/00 de 17 de Maio de 2000, Proc. n.º 395/99 3ª Secção, daquele Tribunal):
"(...)No que se refere à existência de preceitos, como é o caso do artigo 412º do Código de Processo Penal, que exigem que as alegações de recurso terminem com a formulação de conclusões - com determinado conteúdo obrigatório e elaboradas de determinada forma - este Tribunal afirmou já (cfr., designadamente, os acórdãos n.º 715/96, 38/97 Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., p. 235 e 36º vol., p. 209, respectivamente), que a sua simples existência não afecta, só por si, o princípio da plenitude das garantias de defesa consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucionais.
O problema não reside, porém, neste aspecto, mas antes, no quadro de um procedimento que ao arguido tem de assegurar todas as garantias de defesa (cfr. art. 32º, n.º 1 da Constituição), na circunstância de à falta de cumprimento dos ónus estabelecidos no n.º 2 do artigo 412º do Código de Processo Penal se associar um efeito preclusivo tão duro quanto a rejeição liminar do recurso.
A questão de constitucionalidade que agora vem colocada à consideração do Tribunal Constitucional pode, assim, enunciar-se nos seguintes termos:
É inconstitucional a interpretação normativa do art. 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal que atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado ?
O Tribunal Constitucional considerou já inconstitucionais - por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição - os artigos 412.º n.º 1 e 420.º n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido da falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem a formulação de convite ao aperfeiçoamento dessas conclusões (cfr., nesse sentido, os Acórdãos n.ºs 193/97 - inédito -, 43/99, Diário da República, II série, de 26 de Março de 1999; e 417/99 - inédito -).
Ponderou, então, o Tribunal Constitucional, logo no primeiro daqueles Acórdãos:
"A plenitude das garantias de defesa, emergente do artigo 32.º n.º 1 do texto constitucional, significa o assegurar em toda a extensão racionalmente justificada de "mecanismos" possibilitadores de efectivo exercício desse direito de defesa em processo criminal incluindo o direito ao recurso (o duplo grau de jurisdição) no caso de sentenças condenatórias (v. os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 40/84, 55/85 e 17/86, respectivamente nos ATC, Vol. 3, p.241 e Vol. 5, p. 461 e DR-II de 24/4/86).
Recentemente, no Acórdão n.º 575/96, ainda inédito, teve este Tribunal oportunidade de se pronunciar a este respeito, a propósito do artigo 192º do Código das Custas Judiciais, entendendo-o inconstitucional - por ofensa dos artigos 18º n.º 2 e 32º n.º 1 da Constituição - "na medida em que prevê que a falta de pagamento, no tribunal a quo, no prazo de sete dias, da taxa de justiça devida pela interposição de recurso de sentença penal condenatória pelo arguido determina irremediavelmente que aquele fique sem efeito, sem que se proceda à prévia advertência dessa cominação ao arguido-recorrente". Com interesse para a presente situação aí se escreveu:"... ao ditar irremediavelmente a imediata deserção do recurso, pelo simples não cumprimento do ónus de pagamento da taxa (...) em determinado prazo, sem que ocorra qualquer formalidade de aviso ou comunicação ao arguido sobre as consequências desse não pagamento, a norma em apreço (trata-se, como se referiu, do artigo 192º do CCJ) procede a uma intolerável limitação do direito ao recurso e, consequentemente, ao direito de defesa em processo penal." (sublinhado do texto).
O argumento da celeridade conatural ao processo penal, como impossibilitando aqui a adopção de um sistema semelhante ao do processo civil (onde à deficiência e/ou obscuridade das conclusões corresponde um convite para aperfeiçoamento - artigo 690 n.º 3 do Código de Processo Civil), argumento decisivo na decisão recorrida, não colhe. A concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa é aqui possível e, mais que isso, é exigida pelo artigo 18º n.º 2 da Constituição, sendo certo que no caso contrário se estará a promover desproporcionadamente o valor celeridade à custa das garantias de defesa do arguido.
Os artigos 412.º n.º 1 e 420.º n.º 2 contêm suficiente espaço de interpretação para possibilitar um entendimento que, face a conclusões de recurso tidas por não concisas (onde não se resuma as razões do pedido), não deixe de permitir-se uma possibilidade de aperfeiçoamento das mesmas, configurando uma interpretação constitucionalmente conforme.
As normas em causa, na concreta interpretação que delas fez a decisão recorrida mostram-se, assim, violadoras do artigo 32º n.º 1 da Lei Fundamental".
Por sua vez, nos acórdãos n.º 43/99 e 417/99, pode ler-se, no mesmo sentido:
"Ora, uma interpretação normativa dos preceitos que regulam a motivação do recurso penal e as respectivas conclusões (artigos 412º e 420º do CPP) de forma que faça derivar da prolixidade ou de falta de concisão das conclusões um efeito cominatório, irremediavelmente preclusivo do recurso, que não permita um prévio convite ao aperfeiçoamento da deficiência detectada, constitui uma limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo penal, restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça".
Por outro lado, agora no âmbito do processo contra-ordenacional, considerou já o Tribunal Constitucional ser incompatível com a Constituição uma interpretação normativa dos artigos 59º, n º3 e 63º, n º1, ambos do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que conduzisse à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido quando se verifique "falta de indicação das razões do pedido nas conclusões da motivação" (cfr. Acórdão n.º 303/99, Diário da República, II Série, de 16 de Julho de 1999) ou quando tal recurso seja apresentado "sem conclusões" (cfr. acórdão n.º 319/99, Diário da República, II Série, de 22 de Outubro de 1999).
No acórdão n.º 303/99, ponderou o Tribunal:
"Com efeito, sendo dado adquirido que a recorrente apresentou "em sede de conclusões uma única conclusão em que se limita a negar a prática da contra-ordenarão, que lhe é imputada e por que foi sancionada", a lógica da "concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa" impõe, na óptica do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, que se faça apelo ao sistema processual civil, em que pode funcionar um convite para aperfeiçoar as conclusões (artigo 690º, 4, do Código de Processo Civil). Tanto mais que in casu há uma conclusão, embora seja única (aliás, antecedida por considerações acerca da matéria de facto e da aplicação do direito a essa matéria), e não era necessário "chegar ao extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem o valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do arguido", na linguagem do acórdão n.º 193/97".
Tanto basta para concluir que a interpretação e a aplicação que foi feita das normas referidas, afectando desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), revelam-se violadoras das normas conjugadas dos artigos 32º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição".
Por sua vez, no acórdão n.º 319/99, pode ler-se:
"Quanto à falta de concisão ou prolixidade das alegações, o Tribunal já decidiu que a rejeição do recurso pelo facto de as conclusões estarem afectadas daquelas deficiências, sem que o recorrente tenha sido previamente convidado para as corrigir, afecta desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), garantido pelo artigo 32º, n.º 1, da Constituição (cf. Acórdãos n.º 193/97 e 43/99, ainda inéditos).
Não se vê razão para concluir diferentemente se a falta for das próprias conclusões. Com efeito, se a rejeição do recurso só ocorre faltando a motivação, a extensão desta ‘sanção’ à falta das conclusões consiste num alargamento do âmbito da norma, ou seja, na criação de um outro fundamento de rejeição. Por outro lado, o dever de convidar o recorrente a apresentar as conclusões antes de rejeitar o recurso corresponde à exigência de um processo equitativo, porquanto o essencial do próprio recurso - as alegações ou a motivação - já se encontram nos autos, apenas faltando a fase conclusiva.
Tem, por isso de se concluir que, no caso de um recurso em processo de contra-ordenarão - em que valem também as garantias constitucionais do direito de audiência e do direito de defesa - a rejeição do recurso que não contiver as respectivas alegações sem que o recorrente seja convidado a apresentá-las previamente a essa rejeição, afecta desproporcionadamente o direito de defesa do recorrente na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, pelo que a interpretação da norma constante dos artigos 59º, n.º 3 e 63º, n.º 1, ambos do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, feita na decisão recorrida, é inconstitucional.
Pois bem, o que antecede permite desde já concluir que, também na situação que é agora é objecto dos autos o Supremo Tribunal de Justiça terá utilizado uma interpretação normativa do artigo 412.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que afecta desproporcionadamente o direito de defesa do recorrente na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição.
Vale aqui, evidentemente, um argumento de maioria de razão relativamente ao anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional, designadamente no já citado acórdão n.º 319/99. Como, bem, nota o Ministério Público na sua alegação, "se a (pura e simples) não apresentação de conclusões em processo contra-ordenacional deve determinar - sob pena de inconstitucionalidade - o convite ao suprimento de tal vício, é manifesto que o vício formal menos grave (mera insuficiência, e não inexistência de conclusões) em processo (penal) - em que vigoram maiores e mais amplas garantias de defesa - não pode deixar de levar a idêntico juízo de inconstitucionalidade.
Assim, é efectivamente inconstitucional, designadamente por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1 da Constituição, a interpretação normativa do art. 412.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado.
Em face do exposto, decidiu-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1 da Constituição, a interpretação normativa do art. 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal, que atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado; (...)"
Esta avaliação de desconformidade constitucional da norma em causa, de resto, tem sido reiterada, nomeadamente por acórdãos de 26/9/2001, (Acórdão n.º 388/2001, Proc. n.º 333/01), publicado no DR, II Série n.º 258, de 7 de Novembro de 2001, e, também, de 26 de Setembro de 2001 (Acórdão n.º 401/2001, proc. n.º 746/00), publicado igualmente no DR, II Série n.º 258, da mesma data, neste último se reafirmando nomeadamente que, "...tal como a interpretação do n.º 2 do artigo 412.º e do artigo 420.º, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição do recurso interposto pelo arguido, ou a interpretação dos artigos 63.º, n.º 1, e 59.º, n.º 3, do regime geral das contra-ordenações, no sentido da falta de indicação das razões do pedido nas conclusões da motivação ou a falta das próprias conclusões levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem que tenha havido prévio convite para proceder a tal indicação, também a solução normativa ora em questão - equivalente à última referida, aplicada ao processo penal - introduz um efeito cominatório irremediavelmente preclusivo do recurso, sem permitir um prévio convite para aperfeiçoamento da deficiência formal detectada.
Esta consequência imediata não pode deixar de ser considerada como limitação desproporcionada das garantias de defesa, e em particular do direito ao recurso, do arguido em processo penal, consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Tal imediato efeito preclusivo não se afigura, nem necessariamente imposto pelo preceito legal aplicável (que apenas se refere a um efeito preclusivo, sem excluir a concessão de oportunidade para suprir a falta detectada pelo órgão judicial), nem - o que é decisivo - justificado por qualquer outro interesse constitucionalmente atendível.
Designadamente, não cabe, perante tal afectação das garantias de defesa previstas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, argumentar com a celeridade processual. Para além de tal objectivo não ser incompatível com a concessão ao recorrente de oportunidade para suprir a deficiência detectada, não é admissível que a sua invocação - ou de outros topoi genéricos - baste para fundar soluções normativas que, como a presente, afectam desproporcionadamente as garantias de defesa do recorrente, na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição."
Daí que se tenha decidido, "julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, o artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, das menções contidas nas alíneas a), b), e c), daquele preceito, tem como efeito a rejeição liminar do recurso, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências".
Aliás, se dúvidas sobrassem, elas ter-se-iam de haver por definitivamente dissipadas com a recente publicação do Acórdão n.º 320/2002, do Tribunal Constitucional, no DR- I Série-A, de 07.10.2002, que declarou com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência.
Este longo mas necessário excurso parece deixar poucas dúvidas, por um lado, quanto ao entendimento patenteado pelo Supremo Tribunal quanto à consagração legal positivada de um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, mesmo, ou, sobretudo, das deliberações do tribunal colectivo, mormente a partir da Reforma de 1998.
É ver, para além do exposto, o que claramente emerge do disposto nos artigos 428.º, n.º 1, 430.º, 431.º e 432.º, d), do CPP, devidamente conjugados.
Por outro, quanto à razão que assiste ao MP quando reage contra a omissão, (claramente inconstitucional), pelo tribunal recorrido de qualquer iniciativa no sentido da correcção de eventuais deficiências nas conclusões do arguido, sancionando-as, sem mais com o "não conhecimento" dessa importante vertente do recurso, o que por direitas contas equivale a uma rejeição daquele.
E isto porque as razões que se apontam para a inconstitucionalidade daquela interpretação do n.º 2, do artigo 412.º citado, valem se não por maioria, por identidade de razão, para a que assim se faça, e como fez o acórdão recorrido, do seu n.º 3.
Nesta ordem de ideias que se perfilha, acontece neste ponto, claramente, "omissão... de diligências essenciais para a descoberta da verdade", que, nos termos do artigo 120.º, 2, d), do Código de Processo Penal constitui nulidade dependente de arguição, se não mesmo um caso sui generis de "«ausência» do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência" - artigo 119.º, c), do mesmo Código.
De todo o modo, uma violação insuprível do direito ao recurso na dimensão que hoje, inequivocamente, comporta, de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, e, por essa via, do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República, e, mesmo, dos direitos de defesa, também ali garantidos, a demandar por essa via a correspectiva nulidade dos actos ofensivos.
Arguição que, a entender-se necessária, por se reportar ao acórdão recorrido, pode ser, como foi, movida pela via de recurso (10).
E que motiva a nulidade do julgamento levado a cabo na Relação, acórdão recorrido incluído.
3. Termos em que, pelo exposto, no provimento do recurso anulam o julgamento efectuado no Tribunal da Relação de Évora, para que, no mesmo tribunal superior, outro seja efectuado, agora incluindo decisão de fundo sobre as omitidas questões de facto, depois de - se necessário - ser proferido prévio despacho a convidar o ou os recorrentes respectivos a colmatarem as eventuais deficiências tidas por verificadas nas conclusões da respectiva motivação, seguindo-se os demais termos até final.
Sem tributação.
Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Outubro de 2003
Pereira Madeira
Simas Santos
Santos Carvalho
_________
(1) - Expressões da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII
(2) - Idem
(3) - Sublinhado agora
(4) - Idem.
(5) - Comentário ao Código de Processo Civil, 2.º, 200
(6) - Sublinhado agora
(7) - R.T., 82.º, 200
(8) - O sublinhado é do relator.
(9) - Cfr. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal 4.ª edição, Rei dos Livros, págs. 54.
(10) - Cfr., Ac. STJ de 5 de Junho de 1991, C.J. XVI, tomo 3, 29.