ARRENDAMENTO RURAL
NEGÓCIO FORMAL
FORMA DE DECLARAÇÃO NEGOCIAL
EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA
CONTRATO DE EXPLORAÇÃO
Sumário

1. A aplicação judiciária do Direito não pode limitar-se á mera subsunção lógica - formal a conceitos legais; mas, partindo do facto, aplica-lhe a norma concretizadora do Direito de que o facto é revelação, como sua emergência social.
2. A decisão assumirá a função concretizadora e criativa do Direito, realizando-o, no momento da sua aplicação.
3 Quando o cultivo e a fruição do sobreiro, da oliveira, do mato e da lenha, e várias instalações agrícolas, continuam a pertencer ao dono da terra, não pode ser qualificado como de arrendamento rural, previsto pelo artigo 1º, n.º1 do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, um contrato em que ele, e outra parte contratante, declaram, expressamente e por escrito, querer acordar na celebração de uma exploração de pastagem nessa terra, por cinco anos, mediante a contrapartida monetária anual de 1.000.000$00, ficando o utilizador da terra autorizado a realizar nela as benfeitorias necessárias à boa qualidade e proliferação das pastagens que constituem o único objecto negocial.
4. Se as partes querem celebrar um contrato de arrendamento rural, porque de um negócio formal se trata, não podem as suas declarações negociais valer com um sentido que não tenha no texto do documento respectivo, o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, pela exigência interpretativa contida no artigo 238º-1, do Código Civil.

Texto Integral

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:

I
Razão da revista

1. "A", divorciada, residente na Avenida ......, Lote ..... - ...., em Lisboa, intentou acção, com processo ordinário, contra B, residente na Avenida ......., ....., 1° andar esquerdo, em Évora, pedindo que:
- se reconheça que é titular do direito de propriedade sobre o prédio rústico denominado "Herdade da Balsa", sito no lugar da Estrada de Portel\Vidigueira, freguesia de Santana, concelho de Portel, inscrito na matriz predial, sob o artigo 4° da Secção H, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Portel, sob o número 397;
- se condene o Réu a restituir-lhe tal prédio, livre e devoluto;
- se condene o Réu a pagar-lhe a quantia de 2.500.000$00 (dois milhões e quinhentos mil escudos), bem como todos os montantes anuais que se vierem a vencer, até à efectiva entrega do prédio.
2. Invoca, para tanto, ser a legítima e única, proprietária do referido prédio, actualmente, e que em 1 de Janeiro de 1995, ainda na qualidade de comproprietária do mesmo, ter celebrado com o Réu um acordo de exploração das pastagens nele existentes.
Como contrapartida, o Réu pagaria anualmente a quantia de 1.000.000$00 (um milhão de escudos).
O termo de tal negócio ocorreria em 31 de Dezembro de 2000.
3. Na sequência do acordado, em 18 de Novembro de 2000, a Autora comunicou ao Réu que a caducidade do aludido acordo se verificaria em 31 de Dezembro desse ano.
A partir dessa ocasião, deveria o Réu deixar o aludido prédio, livre e devoluto. O que não aconteceu.
4. A Autora pede ainda os prejuízos que o descrito comportamento do Réu lhe causou - venda de pastagens, no ano de 2001, por 3.500.000$00 (três milhões e quinhentos mil escudos); e 2.500.000$00 (dois milhões e quinhentos mil escudos), correspondente à diferença entre o valor anual referido e o montante pago pelo Réu.
5. A sentença decidiu assim:
- julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência
declarou que a Autora A é titular do direito de propriedade sobre o prédio rústico denominado "Herdade da Balsa", sito no lugar da Estrada de Portel/Vidigueira, freguesia de Santana, concelho de Portel, inscrito na matriz predial sob o 397;
- condenou o Réu B a restituir tal prédio à Autora, livre e devoluto;
- absolveu o Réu dos restantes pedidos formulados nesta acção pela Autora;
- julgou a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência:
condenou a Autora, A, a pagar ao Réu a quantia a liquidar em execução de sentença, no montante máximo de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos), relativa às despesas que o mesmo suportou com os trabalhos de reparação do telhado, janelas e portas do monte da "Herdade da Balsa";
- absolveu a Autora dos restantes pedidos formulados pelo Réu.
6. Este apelou. E Relação de Évora concedeu provimento à apelação, revogou a sentença na parte em que condenou o Réu a entregar o prédio à autora; e condenou-a a pagar ao réu a indemnização, mantendo o demais decidido (fls.494).
Daí a autora pedir revista.
II
Objecto da revista
Nas suas trinta e uma conclusões - que delimitam o objecto da revista, conforme resulta do disposto nos artigo 683º-2 e 3 e 690º- 1, do Código de Processo Civil - a recorrente defende que estamos em presença de um contrato de venda ou exploração de pastagens, tese defendida pela sentença, contrariamente à posição defendida pela Relação, que reconheceu existir um contrato de arrendamento rural.
Conclui pela revogação do acórdão recorrido, porque violou os artigos 212°, 236° e 405° do Código Civil, devendo lavrar-se acórdão que confirme na integra a sentença do Tribunal de 1ª Instância. (Pontos 5 e 6 anteriores).
III
Matéria de facto

Ficou definitivamente fixada a seguinte matéria de facto relevante para conhecimento do objecto da revista, tal com atrás ficou enunciado.
a) A autora é titular do registo de inscrição do prédio misto denominado "Herdade da Balsa", confrontando a norte com a "Herdade dos Jejuns" e "Herdade do Monte da Vinha", a nascente com a "Herdade da Quinta do Derramado" e "Herdade do Panasco" e a sul e poente com "Herdade do Vale das Dúvidas", constituído por montado de azinho, montado de sobro, cultura arvense, olival, pinhal, solo subjacente - cultura arvense, solo estéril, 3.1966 hectares de cultura arvense de regadio, 0,3500 hectares de leito de curso de água, dependências agrícolas e habitação, constituída por casas com altos e baixos, cavalariças, cocheiras, celeiro e lagar de fabricar azeite, com a área de 452,6750 hectares, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portel, sob o número 00397/040796, inscrito na matriz da freguesia de Santana sob os artigos 40 - H (rústico) e 220° (urbano).
b) Entre a Autora e outros, e o Réu, foi celebrado, em 1 de Janeiro de 1995, o acordo escrito constante de fls. 26 dos autos, no qual os primeiros declararam que, sendo donos do prédio acabado de referir, cediam ao Réu a exploração das pastagens do mesmo pelo período compreendido entre 1 de Janeiro de 1995 e 31 de Dezembro de 2000, mediante a contrapartida monetária de 1.000.000$00 (um milhão de escudos) e ficando o mesmo autorizado a realizar no prédio as benfeitorias necessárias à boa qualidade e proliferação das pastagens, as quais reverterão a favor dos primeiros, não podendo pedir qualquer indemnização ou alegar direito de retenção.
c) O Réu efectua sementeiras de aveia no prédio referido na alínea a), e no ano de 1997, aí semeou trigo, numa extensão de trinta hectares.
d) No monte do prédio referido na alínea a), têm vivido pessoas que trabalham para o Réu.
Aí viveu, entre 1993 e 1999, um tractorista que trabalhava para o Réu. Este indivíduo levava a cabo os trabalhos de preparação das terras desse prédio e das terras da "Herdade do Outeiro", onde o Réu tem sediada a sua actividade agrícola.
e) O Réu despendeu a importância de 450.000$00 (quatrocentos e cinquenta mil escudos) por quilómetro na colocação de vedação no prédio.
E na desmatação da terra, o Réu despendeu a quantia de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos).
E na compra de semente de aveia e na respectiva operação de semear, despendeu o Réu a importância de 1.000.000$00 (um milhão de escudos).
f) Com o trabalho de tractor (desmatação contratada com .......) na terra do prédio referido na alínea a), o Réu despendeu 692.308$00 (seiscentos e noventa e dois mil trezentos e oito escudos).
g) Em alguns trabalhos de reparação do telhado, janelas e portas do monte, o Réu despendeu quantia cujo montante não foi possível determinar.
h) Estas obras nunca foram autorizadas ou consentidas pela Autora, a qual sempre continuou a explorar a cortiça do prédio referido na alínea a) e dele também retira azeitona e lenha.
i) Em 18 de Novembro de 2000, a Autora comunicou que, nos termos do contrato, este cessava os seus efeitos, em 31 de Dezembro de 2000, e que, nesta data, deveria entregar o prédio livre de pessoas e bens.
j) Após 31 de Dezembro de 2000, o Réu não entregou à Autora o prédio referido na alínea a).
l) A recusa do Réu em entregar o prédio, poderia causar um prejuízo no montante de 3.375.000$00 (três milhões trezentos e setenta e cinco mil escudos), caso a Autora vendesse as pastagens nele existentes.
IV
Questão a resolver e direito que se lhe aplica

1. A recorrente não põe em causa as despesas que lhe foram pedidas em reconvenção (pontos 5 e 6 Parte I), conformando-se com a sentença que pretende ver repristinada (conclusão, in fine, do objecto da revista - Parte II).
Dito isto, é fácil de perceber que a questão fundamental que fica para solucionar, consiste em saber, se estamos em presença de um contrato de exploração de pastagens, como concluiu a sentença; ou se estamos perante um típico contrato de arrendamento rural, como concluiu a decisão recorrida.
É de acordo com este método interrogativo que o tema da revista, assim circunscrito, vai ser trabalhado.

2. A decisão recorrida socorreu-se de um exercício judicativo clássico e linear. E, indo por aí, discorreu assim (fls. 442):
Deu como verificados objectivamente os três elementos essenciais do género de contrato locação de imóveis, considerando-os subsumíveis à espécie de contrato arrendamento rural, segundo o conceito deste fornecido pelo artigo 1º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro.
Vamos começar por transcrever os segmentos mais significativos do discurso decisório da Segunda Instância:
« Fazendo o confronto com o contrato em causa, constatamos que a autora proporcionou ao R. a exploração das pastagens existentes no prédio por um prazo que vai de 1 de Janeiro de 1995, a 31 de Dezembro de 2000, mediante uma retribuição mensal de 1.000.000$00».
«Temos de reconhecer que, no contrato em apreço, constam os elementos essenciais do contrato de locação, como é o caso da autora se obrigar a proporcionar ao R a exploração das pastagens do prédio rústico, mediante a retribuição anual de 1.000.000$00 pelo período que vai de 1 de Janeiro de 1995 a 31 de Dezembro de 2000 (artigo 1022º do CC) e, por conseguinte, e de acordo com o critério de qualificação, que adoptamos (recurso aos elementos essenciais do contrato), o contrato deve antes ser qualificado como um contrato de arrendamento rural, em conformidade com o artigo 1º, n.º1, do DL 385/88, de 25/10».
«Efectivamente, sendo o preço um dos elementos essenciais do contrato de compra e venda, no contrato aqui em causa fala-se antes, em retribuição anual, para exploração de pastagens, ou seja, uma prestação periódica típica dos contratos de locação».(Sublinhámos).
« Ora, contendo o contrato em apreço, os elementos essenciais do contrato de locação (obrigação da A proporcionar ao R a exploração das pastagens do prédio rústico; a retribuição anual de 1.000.000$00 e o período de vigência do contrato - 1 de Janeiro de 1995 a 31 de Dezembro de 2000), dúvidas não existem, em qualificá-lo como contrato de arrendamento rural e, por conseguinte, sujeito ao respectivo regime, nomeadamente, no que toca ao respectivo termo». (Idem quanto ao sublinhado).
«... sendo um contrato de arrendamento rural, e não tendo sido denunciado nos termos prescritos pela lei (artigo 5º, n.º 3 do citado DL 385/88), temos que o mesmo se renovou em conformidade com citada disposição».

3. Com o devido respeito, a decisão não beneficia do nosso sufrágio (tal como, aliás, aconteceu com o voto de vencido, que a não subscreveu - fls.494).
A decisão socorre-se de uma metodologia de aplicação judiciária do Direito que está distante de ser pacífica, pela sua falta de modernidade.
E pode ocasionar uma distorção da vida, ou até, conduzir a alguma incompreensão da sua realidade, tal como as partes aparentemente a terão desejado, pelo menos, na ocasião de celebrarem o negócio que subscreveram e devidamente formalizaram por escrito.
Vamos explicar tudo isto.

4. A decisão recorrida parte do conceito abstracto de locação de prédio rústico (artigo 1º indicado e artigo 1022º do Código Civil) e "encaixa" nele o que as partes não quiseram e, consequentemente, não disseram.
Força-se uma subsunção automática da vida à norma, como processo silogístico, há muito ultrapassado. (1)

Daí falar-se há pouco em distorção da vida, remetendo para o alcance de uma vontade formalmente manifestada, por um caminho que não tem repercussão no texto.
O objectivo da hermenêutica jurídica é demonstrar que a investigação do direito não é uma subsunção, de acordo com as regras lógico-formais fixadas em lei, mas sim um processo criativo, construtivo e concretizador da norma aplicável ao caso, que parte da compreensão de que a lei não é unívoca e completa, que a sua aplicação não é mera reprodução mecânica. Para a moderna hermenêutica jurídica as normas positivas são estruturas linguísticas abertas, cujo significado não se deixa colher completamente senão em relação ao caso a decidir e, portanto, por meio de um processo de transformação da norma em regra concreta de decisão. (2)
O juiz tem de construir a solução do caso, a partir da ideia de que, a cada caso se aplica todo o direito, por inteiro, como expressão da sua emergência social. (3)

5. O que tem isto a ver com o nosso problema, pergunta-se ?
Tem a ver pelo seguinte: Estamos em presença de um negócio jurídico a que as partes deram forma, acautelando razões que justificam a exigência excepcional de forma para os negócios jurídicos. (4)
O negócio jurídico é o instrumento e a expressão da autonomia e liberdade negocial das partes, estabilizado no consenso, quando fecharam o negócio, que não veio a sofrer qualquer modificação posterior, comumente aceite (artigo 406º do Código Civil).
Vale por dizer que, o caso judicando, antes de qualquer subsunção normativista ou formatada, reclama a verificação do facto, a interpretação do exacto consenso negocial a que se chegou, no conteúdo fixado, nos efeitos previstos e previsíveis pelas partes, ao tempo da formulação escrita das vontades correspectivas.
Não pode dizer-se, como diz a decisão recorrida que « nos devemos socorrer dos elementos essenciais do contrato de locação e não de outros factores casuísticos, como é o caso daqueles que a sentença recorrida aponta ». (Fls. 493).
A nosso ver, e voltando a ressalvar o merecido respeito, o juízo judicativo funciona ao contrário. Necessariamente!

6. Importante são os factos O mais importante são os factos.
Vamos ponderá-los, " espiolhando-os": (5)
O acordo refere expressamente, o negócio de exploração de pastagens.
Como descreveu a sentença (fls. 421) «a exploração de pastagens, nesta zona do País onde a criação de gado assume particular relevo, significa o tratamento da terra com vista à produção de alimentação para os animais e que estes possam nela ser colocados para, percorrendo-a, se alimentarem».
A desmatação do terreno, a realização da sementeira de aveia para a alimentação do gado e a colocação de vedações são actividades adequadas e necessárias à boa execução do contrato.
São aspectos da execução do negócio, destinados a dar-lhe eficácia produtiva, economicamente rentável, no que respeita à exploração do objecto negocial - as pastagens, especialmente, a aveia.
A viabilização económica da exploração da pastagem através de meios operativos de optimização de custos/resultados não muda, como parece pretender a decisão recorrida (fls.493), a natureza negocial originária, querida e subscrita formalmente pelas partes.
O conteúdo negocial ou seus efeitos, acima indicados não se transformaram, por forma que tivesse à partida nascido a vontade e a declaração formal de celebração de um contrato de exploração de pastagens para gado, e que, depois, pelo caminho, se houvesse transvertido, pela execução operativa, num contrato de arrendamento rural, que as partes (pelo menos a parte autora) nunca desejaram, ou que a ocasional referência a retribuição anual (em vez de preço), possa relevar de algum significado interessante para contrariar a orientação do discurso em desenvolvimento.
Repare-se que o réu apenas cultivou a pastagem.
A dona da terra continuou a explorar a azeitona, a cortiça, o azinho, não abrangidos pelo contrato de exploração de pastagem, mantendo as instalações correspondentes aos tipos de exploração que reservou.
Dificilmente ficariam de fora num típico contrato de arrendamento rural, num terreno que incorporava, entre o mais (ver alínea a), Parte III - matéria de facto), curso de água, cavalariças, cocheiras, celeiro e lagar para o fabrico do azeite.
Pouco releva que o Réu efectuasse a sementeira de aveia no prédio, e, por uma vez, no ano de 1997, aí tivesse semeado ainda trigo (não se sabendo se a autora consentiu), numa extensão de trinta hectares; que no monte tenham vivido pessoas, incluindo um tractorista, que trabalhavam para o Réu (quer na herdade em causa, quer na do Outeiro de que também toma conta, e onde tem a sede das suas actividades agrícolas); ou que tenha feito obras de vedação, desmatação, e conservação do telhado da casa do monte, tudo sem consentimento da autora.

7. Vistos estes factos, consideremos agora o aspecto da forma negocial.
As partes quiseram o que quiseram!
Por isso, disseram que, por escrito (e não teriam que fazê-lo) que entre elas foi celebrado, em 1 de Janeiro de 1995, o acordo escrito constante de fls. 26 dos autos, no qual os primeiros declararam que, « sendo donos do prédio acabado de referir, (a Herdade da Balsa) cediam ao Réu a exploração das pastagens do mesmo prédio, pelo período compreendido entre 1 de Janeiro de 1995 e 31 de Dezembro de 2000, mediante a contrapartida monetária de 1.000.000$00 (um milhão de escudos) e ficando o mesmo autorizado a realizar no prédio as benfeitorias necessárias à boa qualidade e proliferação das pastagens, as quais reverterão a favor dos primeiros, não podendo pedir qualquer indemnização ou alegar direito de retenção».
A forma do negócio jurídico, além de outras razões, permite a formulação mais precisa e completa da vontade das partes.
Nos negócios formais não pode a declaração de vontade valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º-1, do Código Civil) - doutrina que se identifica com a regra geral de interpretação da lei como dispõe o artigo 9º-2 e com a interpretação do testamento, conforme ao artigo 2187º-2.
Percebe-se porquê. As partes deram formulação à sua vontade; querem que esta valha de acordo com a sua manifestação (e não com o sentido objectivo da teoria da impressão do destinatário), desde que minimamente reflectido no texto, para que se precise bem, e se saiba comprovadamente, o que querem.
Em sitio algum do documento (fls. 26/26 verso), as partes mencionaram no texto ou em epígrafe, a sua vontade de celebrarem um contrato de arrendamento rural.
Em homenagem à liberdade e à autonomia das suas vontades, é razoável concluir que, se tanto quisessem, o teriam dito com clareza.
Como pela mesma homenagem se pode concluir que nenhuma delas, ou só alguma delas, se a sua vontade declarada pudesse alguma vez ser interpretada - fora de texto e de contexto - como desejando ambas, ou alguma delas, um verdadeiro arrendamento rural, então, ou não teriam feito qualquer negócio, ou teriam negociado em condições essencialmente diversas.
A celebração de um contrato de exploração de pastagens num terreno onde a dona cultiva a oliveira, o sobreiro e o mato, não é, ou não tem que ser, inevitavelmente um contrato de arrendamento rural, como pretende a decisão recorrida. A exploração das utilidades fundamentais da terra continuam na esfera jurídica da autora, que dela (da terra) não se desapossou, apenas cedendo a contida utilização para explorar a pastagem, não cedendo a coisa, propriamente dita, por inteiro, em regime de locação técnica.
8. Retomemos o problema da formulação da vontade, suscitando três observações:
A primeira é a de que, é doutrina e jurisprudência assentes, que as partes não qualificam juridicamente o contrato.
Pois não! Mas as partes têm a noção vulgar e distintiva do que é um arrendamento rural; e do que é uma exploração de pastagens, semeadas, tratadas e recolhidas da terra para alimentar animais, deixando de fora a benefício da autora, o cultivo e a fruição da oliveira, do sobreiro, do mato, da lenha e das instalações. Não existiu uma autêntica "alocação da coisa", mas a sua cedência para uso limitado e circunscrito, através da exploração do pasto, no dizer escrito de ambas as partes.
O gozo da coisa pelo locador não ficou prejudicado (artigo 1.037º-1 do CC) - privação que caracterizaria essencialmente a locação, o que declarativamente e na ocasião, as partes não quiseram – insista-se.
Esta vontade, à luz da nossa análise, é a certeza judiciária que encontramos no processo. Outra não temos!
Quando as partes num negócio jurídico declaram que o destino do negócio é a habitação, o comércio ou a indústria, sabem o que querem e o que estão a declarar. E não é o direito que lhes vai modelar depois, (porventura de surpresa, para uma ou ambas as partes - no mínimo para uma) o conteúdo negocial querido e declarado. Era para habitar, para comerciar, para exercer uma indústria determinada... era para explorar uma pastagem de aveia por certo tempo, por certo preço ou retribuição em dinheiro e não em géneros...
Não há que alterar a vontade ou declaração, porque não houve divergência entre uma e outra, nem está provado (sequer invocado) que as partes, ou alguma delas, maxime a declarante/autora quisessem iludir a lei declarando "explorar a pastagem" para evitar dizer: "arrendar o terreno rústico para exploração agrícola ou pecuária, nas condições de uma regular utilização", defraudando assim ao regime da nulidade de certas clausulas negociais do contrato de arrendamento rústico (artigo 4º).
Não ocorre nenhuma qualificação jurídica especial, com nomes ou designações comuns que não estejam ao alcance do entendimento corrente das pessoas, sobretudo das pessoas do meio local e profissional agrícola em que o negócio surge e se cumpre, porque a sua vulgaridade subtrai-as ao monopólio da pretensa exclusividade da ciência dos juristas. (6)
As partes não mencionaram nunca, (sequer em título) quererem celebrar e darem execução a um arrendamento rural.
Souberam bem, e bem quiseram, o que declararam, na altura do compromisso negocial recíproco que, entre si, assumiram.
Mencionaram com clareza que «celebravam um acordo escrito, em que a autora cedia ao Réu a exploração de pastagens na "Herdade da Balsa", pelo período compreendido entre 1 de Janeiro de 1995 e 31 de Dezembro de 2000, mediante uma a contrapartida monetária de 1.000.000$00 (um milhão de escudos) e ficando o mesmo autorizado a realizar no prédio as benfeitorias necessárias à boa qualidade e proliferação das pastagens, as quais reverterão a favor dos primeiros, não podendo pedir qualquer indemnização ou alegar direito de retenção».
A segunda observação, na medida em que não esteja absorvida pelo que acaba de dizer-se, respeita à intenção das partes.
Trata-se de aspecto que é considerado factual - matéria de facto.
Mas o Tribunal não está impedido de sobre ele se pronunciar, se tiver no processo elementos de acesso judiciariamente permitido, realizando a seguinte ponderação:
No âmbito da matéria de facto, o que vem apurado, é que as partes celebraram um acordo que declararam destinado a exploração de pastagens.
Ora, socorrendo-nos deste facto conhecido, e suportados pelas regras comuns da experiência do quotidiano, é legítimo concluir que a intenção comum das partes, não foi, pelo menos na ocasião, celebrar um contrato de arrendamento rural, mas um contrato menos oneroso da terra, de exploração de pastagem.
Pensamos que é um aspecto por delimitação negativa que está bem aclarado como propósito das partes, quando subscreveram o contrato – circunstância o Tribunal não pode ignorar.
Enfim, esta linguagem (declaram que o fim do contrato é a exploração de pastos, por cinco anos...) a nosso ver revela uma intenção, de não submissão às regras do típico arrendamento rural, por quem bem conhece o comezinho do trato e da experiência de vida agrícola e das regras mais elementares do seu funcionamento, com expressões verbais que não têm especial valoração jurídica, divergente da linguagem agrícola vulgarmente empregue.
É por isso que, quando, num contrato, as partes dizem que o destino do imóvel é para habitação, para o comércio, ou para a indústria, é para isso mesmo!
Ou só para roçar mato, para colocar umas colmeias, para plantar uma couves, para semear um alfobre...
É também, e só, isso mesmo que querem!
São expressões verbais que não envolvem qualquer valoração jurídica especial - diga-se, de novo -.
Da realidade que, no caso em apreço, cerca o declarante e o declaratário, nas circunstâncias concretas de negociação desenvolvida entre si, percebe-se que disseram exactamente o que queriam, relativamente ao fim prático-jurídico do seu recíproco compromisso.
Pelo menos quando celebraram o negócio !
Finalmente, uma terceira observação.
A declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (artigo 238º-1, do Código Civil).
Pode dizer-se que este regime só se aplica aos negócios formais, ou seja, aos que estão sujeitos por lei, a forma negocial (7).
Sem pretendermos discutir agora, este aspecto das coisas, e pondo na afirmação algumas reservas sobre a dita exclusividade, excluindo os negócios que obedecem a forma voluntariamente querida pelas partes, afastando a regra geral da consensualidade (artigo 219º), ou relativamente a convenções determinativas da forma de vinculação futura (artigo 223º), a verdade é que, aceitando o menor denominador comum entre os três tipos enunciados, não podemos negar ao negócio em causa neste processo, a evidência probatória que decorre da sua linguagem (que nem a prova testemunhal poderia invalidar - artigo 394º do CC).
E não podemos negar, tendo em consideração: o texto declarativo, o contexto de elaboração, o descrito objecto negocial, o teor condicionante das estipulações, os objectivos visados pelas duas partes, a altura da celebração, etc.

9. Aprofundemos este último aspecto, insistindo no desenvolvimento argumentativo pelo lado da forma do contrato de arrendamento rural - este sim, sujeito à forma escrita e à participação fiscal, como dispõe o artigo 3º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 385/88, já mencionado várias vezes.
Vamos fazer o seguinte exercício:
Acompanhemos a tese da Relação!
Se a tivermos como boa, dando ao conteúdo negocial declarado pelas partes o sentido de um negócio locativo rural, então, interroguemo-nos, sobre qual (?) seria a genuína formulação textual das partes para que a decisão recorrida aceitasse que havia sido celebrado efectivamente um contrato de exploração de pastagens? (Ou este negócio não seria viável, conduzindo inevitavelmente, e sempre, à noção de arrendamento rural ?).
Que (?) linguagem afinal haveriam de ter usado as partes, para o prazo, para a renda, para o meio de exploração, para o destino e a aplicação da pastagem?
Naquela tese, se bem a entendemos, todas as palavras - de nome e de conteúdo - que as partes dessem ao negócio objectivamente configurável no artigo 1º do Decreto- Lei n.º 385/88, cairiam sempre no âmbito desta definição e do seu regime, como uma fatalidade!
Tudo seria havido como arrendamento rural. Mesmo quando reconhecidamente as partes o não quereriam, ou se adivinhassem o alcance judicial de semelhante interpretação a posteriori, teriam querido coisa diferente, ou, até, não teriam querido coisa nenhuma!

10. O discurso judicativo enunciado no número anterior, explica-se, e resulta claro no seu desfecho, no cenário seguinte: admitamos, como concluiu a Relação, que as partes realizaram (ainda que por convolação legal) um negócio jurídico de arrendamento rural de prédio rústico para fim de exploração agrícola, nas condições de uma regular utilização (artigo 1º-1, do DL n.º388/85).
Então, funcionam os argumentos de há pouco (pontos 7 e 8), em raciocínio paralelo, fundamentando aquele desfecho.
E funcionam deste modo:
O contrato de arrendamento rural reveste forma, imposta por exigência legal, como já se antecipou acima.
Ora, se a vontade real das partes só pode valer com um sentido que tenha no documento um mínimo de reflexo literal, é inquestionável que elas (as partes) nunca mencionaram a expressão arrendamento rural (ou só arrendamento) mas a expressão exploração de pastagem - o que no seu âmbito de liberdade, autonomia e limites de vinculação contratual, não será, por certo, coisa idêntica. (Conferir ponto 8 anterior, sobre o uso da linguagem).
E não era idêntica porque, como é bom de ver:
As partes não queriam isso: pela vinculação mais demorada do arrendamento rural, no mínimo de 7 ou 10 anos (artigo 5º); pelas modalidades de renda (artigo 7º); pela actualização, tabelas, redução e fixação de novas rendas (artigos 8º, 9º, 10º e 11º); pelas consequências da mora do arrendatário (artigo 12º); pelo regime de benfeitorias e de indemnização por elas (artigos 14º e 15º); pelo regime da denúncia (artigo 18º), da resolução (artigo 21º), da caducidade, ou da transmissão (artigos 22º e 23º); ou até, pelo regime da preferência (artigo 28º), etc.
Tudo clausulas de um vinculismo legal acentuado que as partes não quiseram assumir, ou porventura só assumiriam (como negócio arrendatício da terra) noutras condições de prazo, de retribuição, de responsabilidade e de indemnização por benfeitorias, e por aí adiante...!

11 . O que, tudo, nos leva ao seguinte quadro de conclusões que, em síntese, fundamentam a decisão que se lhes segue:
- A aplicação judiciária do Direito não pode limitar-se à mera subsunção lógica- formal a conceitos legais; mas, partindo do facto, aplica-lhe a norma concretizadora do Direito de que, ele, facto, é revelação, como sua emergência social.
- A decisão assumirá a função concretizadora do Direito, realizando-o, no momento da sua aplicação, sendo, então, que o Direito vive para se realizar. (8)
Concretamente:

- Quando o cultivo e a fruição do sobreiro, da oliveira, do mato, do azinho e da lenha, continuam a pertencer ao dono da terra bem como as instalações agrícolas para desempenho da agricultura do dono da terra, não pode ser qualificado como de arrendamento rural, previsto pelo artigo 1º, n.º1, do Decreto - Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, um contrato em que as partes declaram, expressamente e por escrito, querer acordar na celebração de uma exploração de pastagem por cinco anos, mediante a contrapartida monetária anual de 1.000.000$00, ficando o utilizador da terra autorizado a realizar nela as benfeitorias necessárias à boa qualidade e proliferação das pastagens que são o único objecto negocial.
- Se as partes querem celebrar um contrato de arrendamento rural, porque de um negócio formal se trata, não podem as suas declarações negociais valer com um sentido que não tenha no texto do documento respectivo, o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, pela exigência interpretativa contida no artigo 238º-1, do Código Civil.
V
Decisão
Termos em que, acordam no Supremo Tribunal de Justiça (7ª secção) em conceder provimento à revista, revogando a decisão recorrida, ficando a subsistir, nos termos requeridos (Ponto 1, IV), a sentença de Primeira Instância.
Custas pelo recorrido.

Lisboa, 13 de Julho de 2004.
Neves Ribeiro
Araújo Barros
Oliveira Barros
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(1) Sobre este aspecto, pode ver-se, entre vários, Menezes Cordeiro, Estudos de Direito Civil Volume I, páginas 214/215.
(2) Direito Civil , do Professor Francisco Amaral Neto, páginas 50/51, edição mais recente (2003 - em conformidade com o novo Código Civil Brasileiro), e ainda, citando Luigi Mengoni, in Il método della ricerca civilistica, na Rivista critica del diritto privato, pagina 18.
(3) Interrogações à Justiça - respostas de 36 Juízes - páginas 303, Editora TENACITAS, Ano 2003.
(4) Por todos, pode ver-se o Professor Mota Pinto Teoria Geral do Direito Civil páginas 431. E mais actualizadamente, o Professor Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição, páginas 253, notas 1 e 2.
(5) Entre as várias conclusões do Congresso sobre os Juízes da Europa organizado pelo Conselho da Europa, em Évora em 9 e 10 de Abril de 2003, consta a seguinte: «O erro (a propósito da matéria de formação dos juízes) está fundamentalmente na apreciação da matéria de facto - o que traduz a incapacidade judiciária de avaliar a vida, através da argúcia na imediação da prova - o que deve constituir preocupação principal do formador» . (Ponto 3, Parte III - conteúdos formativos). E consta ainda : « a formação deve realizar-se em função da aplicação do direito ao facto, que não pode ver-se isolado, mas explicado num contexto social a que pertence, orientando-se pedagogicamente, não no sentido do dogma ou do interesse, mas essencialmente no sentido do valor, o que quer dizer que a formação judiciária não deve ser uma manifestação de cultura normativista ou de técnico- burocrata que não tem, ou pode não ter, nada a ver com a realidade» (conclusões 3 e 4 ; Parte II- Formação).
(6) O Professor Baptista Machado, Introdução ao Discurso Legitimador páginas 370/371, acaba por afirmar que o Direito não é uma ciência por não ter uma função que permita integrá-lo no sistema das ciências, embora tenha uma dimensão científica.
(7) Assim Professor Vaz Serra, «o artigo 238º-1 do CC não tem aplicação aos casos em que o negócio formal não seja sujeito por lei a forma especial». - R.LJ Ano 108º, páginas 23, ponto 1.
(8) A interpretação jurídica é o momento do continuum da realização do Direito pelo que há que ajustar a norma à evolução entretanto sofrida pela introdução de novas normas ou decisões valorativas.
Respectivamente: Castanheira Neves, Interpretação Jurídica, na Enciclopédia Polis, páginas 697 III; e Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, páginas 191.
Ihering, disse o mesmo por outras palavras: « O direito vive para se realizar, a realização é a vida e a verdade do próprio Direito, ela é o próprio Direito» (Esprit du Droit Romain, tradução de ºMeulenaere III, vol. Páginas 16 - citação do Professor Castanheira Neves, na R.L.J, ano 130, n.º 3722, páginas 180, e nota n.º 5).