CONTA BANCÁRIA
CONTA CONJUNTA
TRADIÇÃO DA COISA
ANIMUS DONANDI
COISA MÓVEL
DOAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
Sumário

I - A conta bancária conjunta é meio idóneo para efectuar a tradição da quantia depositada, se, simultaneamente, se provar o animus donandi.
II - A doação de coisa móvel, quando haja tradição, pode ser provada por prova testemunhal, não sendo exigível o documento escrito.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
"A" e B moveram a presente acção ordinária contra C e D, pedindo que as rés fossem condenadas;
- a reconhecer que o dinheiro depositado em determinadas contas de que eram contitulares pertencia apenas à contitular E;
- a restituir à herança aberta por óbito desta última as quantias levantadas, após a morte daquela, acrescidas dos juros de depósitos a prazo, que, se não tivessem ocorrido os levantamentos, as quantias depositadas teriam vencido.

As rés contestaram.
As autoras replicaram.

O processo seguiu os seus trâmites e, a final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu as rés do pedido.
Apelaram as autoras, mas sem êxito.
Recorrem as mesmas, novamente, apresentando, em síntese, nas suas alegações de recurso as seguintes conclusões:

1) Nos termos do art. 947º nº 2 do C. Civil, a doação de bem móvel, se não for acompanhada da respectiva tradição, deve constar de documento escrito.
2) Quer a jurisprudência, quer a doutrina consideram que a tradição significa entrega: AcSTJ de 28.06.55, BMJ 49 - 416 e Menezes Cordeiro Dir. das Obrigações 1980 1º 419 nota 81.
3) O acórdão recorrido entendeu existir uma doação, sem que se tenha provado que a doadora entregou às donatárias o dinheiro que depositara no banco em seu nome e das contitulares.
4) O depósito num banco, em nome do seu proprietário e de um terceiro não pode considerar-se documento bastante para esse efeito, uma vez que dele não resulta a intenção de doar a esse terceiro.
5) O art. 655º nº 2 do C.P. Civil ao dispor que "quando a lei exija para a existência ou para a prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada", postula a cedência do princípio da livre apreciação da prova perante a existência da prova legal, in casu por documento escrito e a impossibilidade de substituir essa exigência legal por simples prova testemunhal.
6) O acórdão recorrido aceitou, contra lei expressa, a prova testemunhal para colmatar a inexistência de documento escrito.
7) Tal prova é, por isso, nula e como tal deverá ser reavaliada - art. 712º do C. P. Civil.
8) Ou, em alternativa, ser declarada nula, nos termos da alínea c) do nº 1 do art. 668º do mesmo código.
9) Finalmente, se for caso disso, deve ser reconhecida a inconstitucionalidade da interpretação do nº 2 do art. 947º do C. Civil, feita pelo acórdão recorrido, por violação dos art.s 2º e 6º da CRP.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
As instâncias deram por assentes os seguintes factos:

1 - "E" faleceu em 10.06.86.
2 - Por seu óbito procedeu-se a inventário, que corre termos no 2º Juízo Cível da comarca Vila Nova de Gaia, sob o nº 3595.
3) Autoras e rés foram habilitadas no inventário referido em 2, sendo as funções de cabeça de casal desempenhadas pela ré C.
4 - À data do óbito da inventariada existiam 6 contas bancárias - as indicadas em 4 a fls. 390 - em seu nome e no de C, bem como outras 3 - as indicadas em 4, a fls, 390 e 391 - em nome da mesma inventariada e no de D.
5 - "C" procedeu ao levantamento dos 6 primeiros depósitos referidos em 4, respectivamente, em 08.08.86, 13.11.86, 30.06.86, 01.09.86, 12.11.86 e 12.11.86.
6 - "D" procedeu ao levantamento dos restantes três depósitos referidos em 4, respectivamente, em 13.11.86, 13.11.86 e 13.11.86.
7 - A "C" e a D omitiram à instituição bancária o falecimento da inventariada quando procederam aos levantamentos.
8 - Os valores dos depósitos referidos em 4 foram obtidos pela E, através do seu trabalho e de um casamento bem sucedido.
9 - As rés tinham conhecimento dos factos referidos em 8 e, apesar disso, actuaram conforme consta dos nsº 5 a 7 e esconderam a existência daqueles depósitos das autoras.
10 - Em sinal de agradecimento pelo carinho e apoio que as rés lhe prestaram, a inventariada E constituiu inicialmente depósitos a favor daquelas nas contas referidas em 4.
11 - Nessas contas, ao longo dos anos, as rés foram creditando os juros remuneratórios das quantias depositadas.
12 - A "E " deu a entender às rés que pretendia que do montante que constava dos depósitos referidos em 4 fosse retirada a quantia de 2.400.000$00 e que esta fosse distribuída pelos herdeiros de todos os seus 6 irmãos, de modo a caber 40.000$00 a cada ramo.
13 - A dita E apenas figurava nas contas referidas em 4 por mera deferência das sobrinhas rés.
14 - Sendo cada uma destas quem autonomamente geria as respectivas contas, constituindo e renovando contratos de depósito, efectuando levantamentos e recebendo os atinentes juros ou simplesmente capitalizando-os.
15 - As rés dispunham do dinheiro e dos juros livre e exclusivamente.
16 - As rés figuravam como titulares das contas referidas em 4.
17 - A correspondência era-lhes endereçada pela entidade bancária.
18 - Procedendo a tais depósitos como sendo as suas proprietárias exclusivas, que sempre consideraram coisa exclusivamente sua e como tal era considerado pelos parentes mais próximos e mormente pela desditosa E.

III
Apreciando

1) Os factos assentes indiciam que determinada pessoa manifestou a intenção de doar determinadas quantias, sendo que, para o efeito, constituiu contas conjuntas com os donatários.

A primeira questão que cumpre apreciar é a saber se houve, ou não, tradição das quantias doadas, dado que, de acordo com o art. 947 do C. Civil, os requisitos formais da doação de móveis, dependem da existência da referida tradição.
A tradição é uma forma de conferir a alguém a posse de determinado bem, que se concretiza pela sua entrega feita pelo possuidor ao adquirente da posse e desdobra-se, por isso, na cessação da relação material com a coisa por parte do primeiro e no seu empossamento por parte do segundo: cf. o art. 1263º alínea b) do C. Civil e Penha Gonçalves - Curso de Direitos Reais 2ª ed. 273-.
Diz este preceito que a tradição tanto pode ser material como simbólica. O que bem se compreende, uma vez que a disposição material de uma coisa - a sua posse - tanto pode resultar dum acto que confere de imediato essa disposição, como de um que apenas a torna possível.
Em qualquer das hipóteses o que releva é que o acto de entrega torna efectivo o apossamento da coisa.
No caso das contas conjuntas, que podem ser livremente movimentadas por qualquer dos seus titulares, o simples facto de existirem não significa que tenha havido a tradição das respectivas quantias entre os seus contitulares. O proprietário pode permitir que outrem disponha de coisa sua, sem que necessariamente queira com isso significar que lha dá. Pelo que a disponibilidade do contitular configura-se como mera detenção, por não ser a aparência de qualquer direito real.
Contudo, se também se provar que foi intenção do titular que depositou o numerário, que este passasse a ser propriedade do outro titular, podendo dele dispor como entendesse, então estamos face a uma doação acompanhada de tradição do bem doado.
E existe aqui tradição, uma vez que, que o animus donandi é acompanhado duma entrega, aqui o depósito ou seja um meio susceptível de tornar efectivo o apossamento, nos termos atrás consignados.
Por outras palavras, a conta conjunta, que pode ser livremente movimentada por qualquer dos seus contitulares é um meio idóneo para operar a tradição entre eles das quantias depositadas.

2) Deste modo, a decisão recorrida, quando entendeu que, no caso em apreço tinha existido tradição, não merece censura.
Nas conclusões do recurso, as recorrentes impugnam tal decisão por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, porque entendem que não houve tradição.
Em segundo, porque, dado não ter havido tal tradição, a única forma de provar a doação seria o documento escrito, que não existiu, por o depósito por si só ser insuficiente para provar a intenção de doar. Logo era impossível a prova da mesma doação através de prova testemunhal, como se fez.
Como referimos, está provada a tradição pelo que não se põe a questão da necessidade de forma escrita para o contrato de doação, nem da impossibilidade da prova testemunhal.
Por outro lado, na decisão sob recurso, não se dá ao art. 947º a interpretação que lhe é imputada pelas recorrentes - ou seja - não se diz que, apesar da lei exigir forma escrita, a doação pode ser provada através de testemunhas. O que se refere é que a hipótese é outra, a da 1ª parte do nº 2 do preceito- doação com tradição - mais se consignando que a tradição pode ser demonstrada por prova testemunhal. Que o mesmo é dizer que se a doação não tiver de obedecer a forma escrita pode ser provada por testemunhas. Do que aliás as recorrentes parecem não discordar.

3) Assim, a inconstitucionalidade levantada pelas recorrentes, derivada da interpretação do nº 2 do art. 947º do C. Civil que teria sido feita na decisão em causa, nunca poderia proceder pela simples razão de que, na realidade, a Relação não fez a interpretação de que falam as recorrentes.
Acresce, aliás que nunca poderia proceder porque a defesa dos direitos individuais, tal como são citados no recurso, nada tem a ver com uma norma que é meramente instrumental, visando a obtenção da certeza do direito em concreto e não o conteúdo abstracto dos direitos patrimoniais. E é este último que a Constituição tem em vista.
Por outras palavras, perder uma causa, não é perder a garantia constitucional do exercício dos direitos.

Termos em que improcede o recurso.

Pelo exposto, acordam em negar a revista e confirmam o acórdão recorrido.

Custas pelas recorrentes.

Lisboa, 3 de Março de 2005
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida,
Noronha do Nascimento.