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MINISTÉRIO PÚBLICO
INQUÉRITO
INSTRUÇÃO
IMPEDIMENTOS
PROMOÇÃO DE REJEIÇÃO
NOTIFICAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
RECLAMAÇÃO HIERÁRQUICA
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
CONTAGEM DE PRAZO
Sumário
I - A intervenção do MP no domínio do processo penal é multifacetada, em função das suas diferentes fases. Na fase do inquérito, de que é o dominus (art. 263.º do CPP), actua como autoridade judiciária; exerce poderes de decisão e de conformação processual, vinculado, Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça Secções Criminais Número 109 - Janeiro de 2007 26 como sempre, a critérios de legalidade e objectividade (art. 2.º do EMP), dos quais decorre, naturalmente, o dever de imparcialidade e de objectividade. Já nas fases posteriores, da competência do juiz, não tem poderes decisórios; tem, antes, a posição de parte, enquanto se tomar o conceito num sentido puramente formal, já que o MP nunca prossegue no processo penal interesses particulares. II - A possibilidade de o mesmo magistrado do MP participar nas diferentes fases de um mesmo processo é admissível porque, funcionalmente, esse magistrado está sempre vinculado a critérios de legalidade e de objectividade, cuja observância poderá conduzir à tomada de atitudes processuais de contornos diferentes das anteriormente desenvolvidas. III - Sintomático desta vinculação é o próprio art. 401.º n.º 1, al. a), do CPP, que confere ao MP legitimidade para a interposição de recursos no próprio interesse do arguido. IV - Por isso mesmo, relativamente ao MP, uma das «adaptações» impostas pelo art. 53.º, n.º 1, do CPP ao regime de recusas e escusas é a de o fundamento de recusa e escusa previsto no n.º 2 do art. 43.º não ser aplicável ao magistrado do MP por ter intervindo no inquérito: se nesta fase tem a posição de dominus, com os inerentes poderes de decisão e de conformação processual, compreendendo-se a cautela e a garantia da imparcialidade e da objectividade de quem tem a responsabilidade pela sua condução, nas fases posteriores a garantia de actuação imparcial coloca-se em termos diferentes, porque não decide e porque a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos intervenientes processuais está, nessas fases, a coberto da garantia judicial. V - Não se verifica qualquer violação do princípio do contraditório se o assistente, requerente da abertura de instrução, não é notificado da promoção do MP que sobre o requerimento respectivo recai - no caso, no sentido da rejeição. VI - Arquivado o inquérito nos termos do art. 277.º do CPP, o respectivo despacho pode ser sindicado nos seguintes termos: - no caso de processo por crime que não admita a constituição de assistente, exclusivamente por via hierárquica, nos termos do art. 278.º, contando-se o prazo aí previsto da data daquele despacho; - no caso de processo por crime que admita a constituição de assistente: a) por via judicial, através de requerimento de abertura da instrução; b) não tendo esta sido requerida, por intervenção hierárquica, a exercer apenas depois de decorrido o prazo para aquele requerimento; c) no caso de renúncia à abertura da instrução, por intervenção hierárquica eventualmente suscitada pelo interessado, sem possibilidade, naturalmente, de posteriormente se confrontar esta decisão com a abertura da instrução. VII - O pedido de intervenção dirigido ao imediato superior hierárquico do titular do processo, no decurso do prazo para requerer a abertura da instrução, significa necessariamente renúncia a essa faculdade; não pode o recorrente, não tendo ali obtido ganho de causa, vir depois requerer a instrução a que renunciara, e cujo prazo para o efeito há muito estava esgotado. VIII - Esta interpretação do art. 278.º do CPP não afronta o disposto nos arts. 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.º 7, da CRP, dado que se entende que o assistente tem ao seu dispor a possibilidade de, por meio rápido e eficiente, impugnar judicialmente a decisão de arquivamento do inquérito, e, se não tiver usado desse direito, pode ainda eventualmente ver consagrada a sua pretensão de acusação por via da intervenção do imediato superior hierárquico do autor do despacho. *
* Sumário elaborado pelo Relator.
Texto Integral
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
1. 1.1. Instaurado inquérito na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, na sequência de denúncia apresentada pelo Senhor Advogado AA contra o Senhor Juiz de Direito BB, então em funções na 3ª Secção da 7ª Vara Cível da comarca de Lisboa, foi o mesmo arquivado, nos termos do nº 1 do artº 277º do CPP, por despacho de 21.05.05 da respectiva titular.
Notificado dessa decisão, o Denunciante requereu a sua reabertura, nos termos do articulado de fls. 89 e segs., e a sua constituição como assistente.
Pelo despacho de fls. 124 foi-lhe outorgada essa qualidade.
Reaberto o inquérito, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta voltou a determinar o seu arquivamento, por despacho de 28.06.06 que foi notificado ao Assistente por carta registada expedida no dia seguinte (fls. 205).
O Assistente reagiu, apresentando, em 19.07.06, reclamação hierárquica dirigida ao Senhor Procurador-Geral Distrital de Lisboa (fls. 207 e segs.), mas que foi apreciada e decidida pelo Senhor Conselheiro Procurador-Geral da República que, pelo seu despacho de fls. 215 e segs., lavrado em 26.07.06, a indeferiu.
1.2. Notificado desta decisão por carta registada expedida em 05.09.06 (fls. 222vº), o Assistente requereu, em 08.09.06, a abertura da instrução nos termos do requerimento de fls. 224 e segs.
Por despacho de 09.10.06, a Senhora Desembargadora instrutora rejeitou o pedido, argumentando do modo seguinte:
Nos termos do art° 287° n° 1 do Cód. Proc. Penal "a abertura de instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento".
Conforme supra se referiu, o despacho que determinou o arquivamento dos autos, foi proferido a 28/6/2006, tendo o assistente Dr. AA sido notificado do mesmo, por carta registada, expedida a 29/6/2006 (vg. Fls.205 e v.) [tendo sido expressamente notificado para, querendo, requerer a abertura da instrução no prazo de 20 dias] pelo que, de acordo com o disposto no art° 113°, nº 2, do C.P.P. se presume notificado no 3° dia útil posterior ao do envio da mesma.
O requerimento de abertura de instrução deu entrada em Juízo no dia 8/9/2006.
Como assim, o requerimento de abertura de instrução entrado em juízo no dia 8/9/2006 é, necessariamente, extemporâneo já que, o requerimento apresentado pelo Assistente no qual suscitou a intervenção hierárquica do Mº Pº não interrompe ou suspende o prazo para requerer a abertura de instrução, – não sendo sequer possível convalidar o acto mediante o pagamento da multa prevista no art. 145°, n° 5, do CPC (aplicável em processo penal ex vi do art. 107°, n° 5, do C.P.P.).
A apresentação intempestiva do requerimento de abertura de instrução por parte do assistente, Dr. AA, conduz inevitavelmente à sua rejeição, art. 287°, nº 3 do C. P. P.
Pelo que, e sem necessidade de mais considerações, se rejeita o requerimento de abertura de instrução, apresentado pelo assistente, Dr. AA, por manifestamente extemporâneo».
Notificado deste despacho por carta registada expedida em 09.10.06, o Assistente arguiu, em 16 seguinte, a «nulidade processual cominada no artº 201º, nº 1, do CPC», por não ter sido notificado da promoção do Ministério Público que o antecedeu, onde a Senhora Procuradora-Geral Adjunta propugnou a rejeição do requerimento da instrução (cfr. fls. 254) – arguição essa que foi indeferida pelo despacho de fls. 262, datado de 30.10.06.
Antes, porém, no dia 26.10.06, interpôs recurso do despacho que rejeitou o requerimento de instrução, cuja motivação culminou com as seguintes conclusões:
«1ª - O despacho recorrido é nulo por omissão de pronúncia sobre um elemento essencial da matéria de facto: a data em que o Assistente deduziu reclamação hierárquica e sua correlação com o termo do direito de impugnar jurisdicionalmente o acto administrativo definitivo que ela corporiza.
2ª - A existência de acto administrativo definitivo peticionado na vigência do direito de requerer abertura de instrução, e a sua notificação ao reclamante, é que fixam o início do prazo para o exercício daquele.
3ª - Todo o acto administrativo proferido por inferior hierárquico admite reclamação para o seu superior, e só é definitivo quando integrado pelo deste.
4ª - Todo o acto administrativo é impugnável jurisdicionalmente, por força do disposto no art° 268°, n° 4, da Constituição, desde que respeitado o prazo estabelecido na lei com respeito pelos princípios consignados no art° 18°, n° 2, da mesma LEI.
5ª - Só a reclamação hierárquica deduzida depois de extinto o direito à obtenção da tutela jurisdicional efectiva, fica privada de impugnabilidade contenciosa.
6ª - Face ao disposto na Constituição e na lei, o despacho impugnado é nulo, impondo-se a declaração e suprimento respectivos, ou a sua revogação e substituição por outro que declare tempestivo o requerimento de 8.9.2006.
7ª - A natureza monocrática do Ministério Público, impõe a impugnabilidade graciosa dos actos dos seus agentes, e a impugnabilidade contenciosa do acto definitivo.
8ª - A jurisprudência dos nossos tribunais é no sentido de que o prazo para requerer abertura de instrução, quando a reclamação hierárquica tenha sido deduzida na vigência de tal direito, só começa a correr após notificação do despacho definitivo.
9ª – Pelas razões expostas, a norma aplicada no despacho recorrido é inconstitucional por violar as normas dos artºs. 20º, nºs 1 e 4, e 268º, nº 4, da Constituição».
Notificado daquele despacho de 30 de Outubro, alargou o objecto do recurso a esta decisão, como, aliás, havia anunciado na motivação, concluindo que:
«1ª - O despacho de 30.10.2006 é nulo por ter deixado de pronunciar-se sobre as questões efectivamente postas no requerimento de 13.10.2006: aplicação de normas jurídicas conformes às normas e princípios consagrados na Constituição.
2ª- O dito despacho enferma de erro de julgamento ao qualificar os autos de instrução como autos de inquérito com efeitos substanciais quanto à representação do Ministério Público no inquérito e na instrução, e quanto [à] exigência de notificação prévia do requerente, de actos do representante deste na instrução contendo questões novas relativamente ao despacho de arquivamento.
3ª A norma aplicada nos despachos de 9.10.2006 e 30.10.2006, segundo a qual o requerente de abertura de instrução não tem de ser previamente notificado de promoção do representante do Ministério Público em autos de instrução, em que se suscitam questões novas relativamente às vertidas no despacho de arquivamento, e prejudiciais ao deferimento das suas pretensões, é inconstitucional por violar as normas e os princípios dos art°s 20°, nºs 1 e 4, e 2° da Constituição, sendo estes directamente aplicáveis ex vi art° 18°, n° 1, da mesma».
A Senhora Procuradora-Geral Adjunta respondeu, concluindo pela improcedência do recurso.
O Senhor Procurador-Geral Adjunto do Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se sobre a verificação dos pressupostos formais do recurso e nada viu que obstasse ao seu conhecimento.
Corridos os vistos legais, vieram os autos à conferência para decisão.
Tudo visto, cumpre decidir.
2. Decidindo:
Em bom rigor são dois os recursos a apreciar:
a) o interposto do despacho que rejeitou a instrução;
b) o interposto do despacho que indeferiu a arguição da alegada «nulidade processual».
Com efeito, não tem aqui aplicação a doutrina nem do artº 670º nem do artº 686º, do CPC, nem do nº 3 do artº 379º do CPP, pois não foi posta em causa qualquer deficiência, obscuridade, irregularidade ou nulidade da decisão final, mas antes a pretensa inobservância de uma determinada disposição legal, antes de proferida a mesma decisão.
Deste modo, manda a lógica que comecemos o nosso julgamento pelo segundo recurso, já que a sua eventual procedência determinará a anulação do próprio despacho de rejeição, nos termos do artº 122º, nº 1, do CPP.
Vejamos então.
2.1. Do recurso do despacho que desatendeu a arguição da nulidade:
Requerida a instrução, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta que titulara o inquérito ordenou que os autos fossem remetidos à distribuição, lavrando logo promoção no sentido da rejeição do requerimento, por duas ordens de razões:
- a primeira, porque, tendo havido reclamação hierárquica do despacho de arquivamento, o pedido de abertura da instrução é inadmissível;
- a segunda, porque, mesmo que assim não se entendesse, o requerimento em causa sempre teria sido apresentado para além do prazo estabelecido no nº 1 do artº 287º, nº 1, do CPP, já que a dedução de reclamação hierárquica não suspende o seu curso.
A Senhora Desembargadora instrutora decidiu nos termos que no início referimos. Em suma, o prazo de 20 dias fixado no artº 287º, nº 1 foi excedido, mesmo tendo em conta a possibilidade concedida pelo artº 145º, nº 5, do CPC, pois a reclamação hierárquica nem o interrompe nem suspende o seu curso.
O Assistente protestou por não ter sido notificado dessa promoção, porquanto, diz, essa omissão o impediu de exercer «o correspondente contraditório, em violação frontal com a norma fundamental consagrada nos artºs 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (…) e 3º, nº 3, do Código de Processo Civil …, concretizadora, no plano da lei ordinária, da garantia constitucional consignada no artº 20º, nºs 1 e 4, da Constituição da República, e decorrente dos princípios plasmados no artº 2º da mesma Lei Fundamental».
A Senhora Desembargadora instrutora julgou a arguição improcedente porque aquela promoção não se enquadra na previsão do artº 417º do CPP e porque «estes autos são de inquérito em 1ª instância, funcionando este Tribunal da Relação como tal, face ao disposto no artº 12º, nº 2 do CPP, [razão por que] não tinha o Assistente ora arguente de ser notificado do teor da referida promoção…».
O Assistente recorreu nos termos da «motivação adicional» de que se transcreveram as respectivas conclusões.
2.1.1. O Recorrente começa por arguir a nulidade desse despacho por omissão de pronúncia, «por ter deixado de pronunciar-se sobre as questões efectivamente postas no requerimento…: aplicação de normas e princípios consagrados na Constituição».
Não tem, contudo, razão.
Insurgiu-se, como vimos, por não ter sido notificado da promoção do Ministério Público «para exercer o contraditório, em violação da norma fundamental consagrada nos arts. 417º, nº 2…».
Aceita-se que tenha querido fundamentalmente acentuar a violação do princípio do contraditório, expressamente consagrado no nº 3 do artº 3º do CPC e no nº 2 do artº 417º do CPP, também invocados, princípio esse implícito no direito de acesso aos tribunais constitucionalmente conferido a todos pelo artº 20º, nºs 1 e 4, da CRP.
A verdade, porém, é que foi na concreta dimensão conferida por essa «norma fundamental» que a violação do contraditório foi arguida. Por isso é que alegou que a notificação é imposta pelo artº 417, nº 2, do CPP, interpretada em conformidade com o entendimento do Tribunal Constitucional e que a interpretação dessa norma «no sentido de a mesma não ser aplicável em sede de instrução é inconstitucional».
Ora, o despacho recorrido, certo que de maneira sumária, disse muito claramente que o disposto no nº 2 do artº 417º não se aplicava nesta fase do processo e que, por isso, o Assistente não tinha que ser notificado da referida promoção – o que tem implícito que o Tribunal não acolheu a tese da inconstitucionalidade da sua não aplicação. E, como se sabe, o tribunal não tem que se debruçar sobre argumentos aduzidos pelos sujeitos processuais cuja apreciação tenha ficado prejudicada pela solução dada a outros.
Não ocorre, pois, a nulidade arguida.
2.1.2. Argumenta, depois, que o despacho enferma de erro de julgamentoao qualificar os actos como de instrução, com consequências ao nível da representação do Ministério Público: na instrução a sua representação tem de ser assegurada por outro Procurador-Geral Adjunto, por só assim se garantir «a objectividade imposta por lei aos actos desse órgão de administração da justiça.
É evidente que tem razão quando alega que, na altura em que a Senhora Procuradora-Geral Adjunta proferiu aquela promoção polémica, o inquérito já estava encerrado, atento o disposto no artº 276º, nº 1, do CPP. E também é certo que, com o requerimento de instrução, se inaugurou uma nova fase processual – a da instrução.
Mas isso não tem implicação alguma que o favoreça.
De facto, a única consequência que retira desse «erro de julgamento» é a de que «sendo os actos do representante do Ministério Público titular do inquérito objecto de comprovação judicial, e atento o disposto no Estatuto do Ministério Público, os autos de instrução têm por objecto também os actos do titular do inquérito, e a sua representação tem de ser assegurada por outro Procurador-Geral Adjunto».
Só que a conclusão não tem qualquer fundamento legal, designadamente ao nível do Estatuto do Ministério Público de que, sintomaticamente, não destacou qualquer preceito em que se pudesse ter apoiado. É que tal norma não existe realmente, há que dizê-lo. Se fosse como quer, o que aconteceria numa comarca, como ainda há algumas, com um só Magistrado do Ministério Público? A circunstância de, por razões de serviço, de especialização e de operacionalidade, o Estatuto prever a existência de departamentos especialmente vocacionados e exclusivamente votados ao inquérito e a instrução, quando requerida, ser seguida por outro magistrado, é fruto das relações hierárquicas e interorgânicas do Ministério Público e não consequência de qualquer proibição legal no sentido de que, mesmos nesses casos, o mesmo magistrado não possa seguir o processo desde o inquérito até à fase do julgamento. Por isso é que no Estatuto existe uma norma como a do artº 68º, nº 2.
A alegada necessidade de na instrução ter de intervir magistrado do Ministério Público diferente do que presidiu ao inquérito parece assentar no regime dos impedimentos, recusas e escusas cuja disciplina o artº 55º do CPP remete para as disposições sobre a mesma matéria aplicáveis aos juízes, previstas nos arts. 39º e segs. do mesmo Código. Por isso é que invoca garantias de objectividade.
Vejamos a situação nesta perspectiva.
A intervenção do Ministério Público no domínio do processo penal é multifacetada, em função das suas diferentes fases. Na fase do inquérito, de que é o dominus (artº 263º do CPP), actua como autoridade judiciária; exerce poderes de decisão e de conformação processual, vinculado, como sempre, aliás, a critérios de legalidade e objectividade (artº 2º do EMP), dos quais decorre, naturalmente, o dever de imparcialidade e de objectividade. Já nas fases posteriores, da competência do juiz, não tem poderes decisórios; tem, como é costume dizer-se, a posição de parte, enquanto se tomar o conceito num sentido puramente formal, já que o Ministério Público nunca prossegue no processo penal interesses particulares (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, I, 4ª edição, 249). Como órgão de justiça dotado de autonomia, o CPP, no seu artº 53º, reafirma o princípio da objectividade por que deve pautar a sua intervenção: compete-lhe colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito.
Do exposto se há-de concluir que, relativamente ao Ministério Publico, uma das «adaptações» impostas pelo artº 53º, nº 1 àquele regime é a de que o fundamento de recusa e escusa previsto no nº 2 do artº 43º não é aplicável ao magistrado do Ministério Público por ter intervindo no inquérito. Se nesta fase tem a posição de dominus, com os inerentes poderes de decisão e de conformação processual, compreende-se a cautela e a garantia da imparcialidade e da objectividade de quem tem a responsabilidade pela sua condução – objectividade e imparcialidade que, como vimos, caracterizam o estatuto de autonomia do órgão que, por sua vez, constitui a garantia de direitos fundamentais dos destinatários das suas decisões, postulados, além do mais, pelos princípios da igualdade e da legalidade. Nas fases posteriores, a garantia de actuação imparcial coloca-se em termos diferentes, porque não decide e porque a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos intervenientes processuais está, nessas fases, a coberto da garantia judicial.
A possibilidade de o mesmo magistrado do Ministério Público participar nas diferentes fases de um mesmo processo é admissível porque, funcionalmente, esse magistrado está sempre vinculado a critérios de legalidade e de objectividade, cuja observância poderá conduzir à tomada de atitudes processuais de contornos diferentes das anteriormente desenvolvidas. Sintomático desta vinculação é o próprio artigo 401° nº 1 alínea a), do Código de Processo Penal que confere ao Ministério Público legitimidade para a interposição de recursos no próprio interesse do arguido.
2.1.3. Finalmente, temos para nós que a decisão de indeferimento não merece censura.
A invocação da violação do contraditório constitui, quanto a nós, um falso problema.
Como nos parece evidente, não há qualquer fundamento para pretender aplicar aqui a norma do artº 417º, nº 2, concebida para a fase do recurso que nenhuma analogia tem com a fase de instrução (cfr. o artº 4º do CPP).
O contraditório há-de ser assegurado por outras vias, a via geral do artº 3º, nº 3, do CPC, concretização do princípio inscrito no artº 20º, nºs 1 e 4, da CRP.
O direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva, integrante do princípio material da igualdade, conferido para a tutela de quaisquer direitos e interesses legalmente protegidos – o assistente tem assegurados os direitos que a lei ordinária lhe confira, entre os quais o de requerer a instrução contra o despacho de arquivamento do Ministério Público (arts. 32º, nº 7, da CRP e 69º e 287º, do CPP) – inclui, entre outros, o direito a um processo equitativo e leal, no sentido de que este deve assegurar a cada uma das partes, além do mais, o poder de expor as suas razões, de facto e de direito, perante o tribunal antes de este tomar uma decisão. Cada uma das partes deve poder exercer uma influência efectiva no desenvolvimento do processo – a essência do princípio do contraditório (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Política Anotada”, Tomo I, 192 e segs. e Gomes Canotilho e Vital Moreira, “CRP… Anotada, Volume I, 414 e segs.) . Como diz Irineu Cabral Barreto, em “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 94, o princípio do contraditório e da igualdade de armas são elementos incindíveis de um processo equitativo assegurado pelo artº 6º da Convenção.
No caso concreto, foi o Assistente quem iniciou o pleito, tomando iniciativa de requerer a instrução. Por isso o contraditório a observar, na lógica da sua própria argumentação, era relativamente ao Ministério Público. Este é que tinha o direito de contradizer e impugnar as suas razões. Não houve, assim, violação daqueles princípios. O Assistente requereu e o Ministério Público respondeu. Cada um expôs as suas razões, em total plano de igualdade, não sendo correcto afirmar que a Senhora Procuradora-Geral Adjunta, na sua promoção, suscitou questões novas relativamente ao despacho de arquivamento. Nem sequer se pode aqui falar, por outro lado, de uma excepção ou questão prévia suscitada pela mesma Magistrada a que o Assistente tinha o direito de responder por constituir para ele novidade, porquanto já no requerimento em que pediu a intervenção hierárquica se referia à matéria, afirmando que o despacho de arquivamento «não releva sequer como termo a quo dos prazos dos arºs 287º e 278º do CPP» (cfr. 1ª linha de fls. 208)
Não ocorreu, pois, violação do contraditório.
Improcede, assim, este o recurso.
2.2. Recurso do despacho de rejeição da instrução
São duas as questões suscitadas neste recurso:
- a nulidade do despacho, por omissão de pronúncia
- a tempestividade do requerimento de instrução
2.2.1. Abordemos a primeira:
A nulidade arguida resulta, no entendimento do Recorrente, da circunstância de o despacho em crise não se ter pronunciado sobre a correlação da data em que «deduziu reclamação hierárquica… com o termo do direito de impugnar jurisdicionalmente o acto administrativo definitivo que ela corporiza».
Mas, manifestamente, não tem razão.
O despacho diz expressamente, por um lado, que o prazo para requerer a abertura da instrução se conta da notificação do despacho de arquivamento que identifica como sendo o de fls. 28.06.06, isto é, o que foi proferido pela Senhora Procuradora-Geral Adjunta; por outro, que «o requerimento apresentado pelo Assistente no qual suscitou a intervenção hierárquica do Mº Pº não interrompe ou suspende o prazo para requerer a abertura da instrução…».
Saber se a reclamação hierárquica tem a relevância que pretende é entrar na apreciação da questão de fundo: se, no caso daquela intervenção, o prazo para requerer da abertura da instrução se conta apenas a partir da notificação da decisão hierárquica.
Sobre o tema, não temos mais do que repetir, no essencial, a fundamentação do acórdão deste Tribunal de 16.03.05, proferido no Recurso nº 147/05-3ª Secção de que foi Relator o mesmo que subscreve este, o qual, por sua vez, seguiu de perto anterior acórdão também desta Secção, de 15.12.04, Recurso nº 2027/04.
Escreveu-se então:
No referido Pº nº 2027, … a questão que constituía o objecto desse recurso era exactamente a mesma que aqui vem suscitada – se o prazo do artº 287º, nº 1 do CPP, no caso de requerimento do assistente, se conta do despacho de arquivamento do magistrado do Ministério Público que dirigiu o inquérito, ou, antes, como defende o Recorrente, do despacho de arquivamento definitivo proferido «ao nível do último escalão hierárquico». Ou, noutra perspectiva: se, no caso de arquivamento do inquérito, nos termos do artº 277º, o assistente ou a pessoa com a faculdade de se constituir como tal pode optar entre a reclamação hierárquica e o requerimento para a abertura da instrução e, no caso de aquela ser indeferida, se pode ainda requerer a instrução, contando-se então o prazo do artº 287º da notificação da decisão prevista no artº 278º.
Fez aí [no processo 2027] vencimento a tese de que aquele prazo se conta, no que agora releva, do despacho de arquivamento previsto no artº 277º do CPP, isto é, do despacho do magistrado titular do inquérito… Para se chegar a essa conclusão, considerou-se que a intervenção hierárquica prevista no artº 278º e o requerimento de abertura da instrução não constituem formas sucessivas de reacção contra o despacho de arquivamento. O controlo de tal despacho ou é feito por via jurisdicional, através do requerimento de instrução ou, não tendo esta sido requerida, pelo superior hierárquico, nos termos daquela disposição legal. Requerida ou verificada esta, o interessado já não poderá requerer aquela, até pela preclusão do respectivo prazo.
[O voto de vencido nele exarado] assenta, a nosso ver, em duas ideias nucleares: se o requerimento da abertura da instrução preclude a intervenção hierárquica, desde logo porque, com ele, iniciando-se uma nova fase processual, cessam as competências de intervenção do órgão titular da fase anterior (o Ministério Público), já o recurso a esta não impede o primeiro que poderá ser apresentado depois de o interessado «obter despacho que constitua a última intervenção possível no domínio do encerramento do inquérito». Nesta lógica, «a decisão relevante para poder ser judicialmente confrontada com a abertura da instrução só pode ser aquela que tiver, no processo, a função de encerrar o inquérito, tomada no âmbito das competências próprias (simultaneamente internas e processuais) do órgão, e não de um seu concreto titular, ao qual compete a direcção do inquérito e a decisão sobre o seu encerramento».
…Que dizer?
…Vejamos, em breve apontamento, a evolução legislativa:
No domínio do DL 35007, se o Ministério Público não formulasse acusação, disso deveria ser notificado o denunciante que, se fosse pessoa com a faculdade de se constituir assistente, poderia reclamar para o Procurador da República da falta de acusação – artº 27º.
Na falta de reclamação, os autos seriam conclusos ao juiz que, se entendesse estarem verificados os pressupostos da acusação, lavraria despacho com as suas razões, subindo os autos ao Procurador da República que decidiria – artº 28º:
Relativamente a processos por crime público a que correspondesse processo de querela, que não conduzissem à acusação, seria enviada trimestralmente ao Procurador da República a respectiva relação, o qual, no prazo de 30 dias, poderia mandar formular acusação, mandar prosseguir a investigação ou suscitar o deferimento da instrução à Polícia Judiciária.
O controlo da decisão de não acusar era, assim, feito sempre por via hierárquica, através de reclamação do interessado, por promoção do juiz ou oficiosamente, nos termos da última das disposições legais citadas.
De modo idêntico se processava esse controlo no domínio do DL 605/75, que instituiu o inquérito como forma de averiguação de infracções criminais, cujo artº 6º-A, introduzido pelo DL 377/77, de 6/9, era do seguinte teor: «quando o Ministério Público deixar de requerer o julgamento ou de deduzir acusação, após o encerramento do inquérito preliminar ou da instrução preparatória, será disso notificado o denunciante, o qual, se tiver a faculdade de se constituir assistente, poderá, no prazo de 5 dias, reclamar hierarquicamente».
No Código actual, na versão inicial, face às normas dos arts. 277º, 278º e 287º, a questão desse controlo foi solucionada em temos substancialmente diferentes. Encerrado o inquérito por despacho de arquivamento, nos termos do artº 277º, - a) no prazo de 30 dias contado da data desse despacho, o imediato superior hierárquico do Ministério Público [entenda-se do magistrado que proferiu esses despacho], se não tiver sido requerida a instrução, podia determinar que fosse formulada acusação ou que as investigações prosseguissem – artº 278; - b) no prazo de 5 dias (20 dias, a partir do DL 317/95, de 29/11) a contar da notificação do mesmo despacho, o assistente podia requerer a abertura da instrução.
A Lei 59/98, de 25 de Agosto, provinda da Proposta de Lei 157/VII, alterou, além de outros, o artº 278º. Enquanto na versão inicial o prazo da intervenção do imediato superior hierárquico era de 30 dias a contar da data do despacho de arquivamento, agora esse mesmo prazo passou a contar-se da data desse despacho ou da sua notificação ao assistente ou ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente, se a ela houver lugar.
Mas, como antes, a intervenção hierárquica só podia ocorrer se não tivesse sido requerida a abertura da instrução.
… A pretensão do Recorrente pressupõe que a lei tenha conferido ao assistente ou a quem tenha legitimidade para o ser o direito processual de reclamar hierarquicamente do despacho de arquivamento do titular do inquérito.
Mas, como se vê da evolução legislativa atrás esboçada, o CPP87 aboliu a reclamação hierárquica como instrumento processual de reacção contra essa decisão. Esse controlo passou a ser feito pela intervenção oficiosa do imediato superior hierárquico desse magistrado ou por recurso à via judicial, através do requerimento de abertura da instrução. O direito de reclamação hierárquica esse ficou confinado ao despacho que tiver deferido ou recusado a reabertura do inquérito, nos termos do artº 279º, aliás a única via de sindicar esta decisão [Com efeito, tendo a Associação Sindical dos Juízes Portugueses sugerido que este despacho pudesse ser controlado judicialmente, a respectiva proposta não foi acolhida em sede de votação na especialidade, com a justificação de que «permitir ou admitir a intervenção (pela 2ª vez) do juiz de instrução (mediante requerimento de instrução) seria anómalo – era como controlar a abertura [do inquérito]...»; relativamente aos inquéritos por crime em que lesado é o Estado, porque «quem representa o Estado é o Ministério Público e não o juiz» – Cfr. “Projecto de Revisão do Código de Processo Penal”, Ministério da Justiça, 36 e 200 e “Código de Processo Penal – Processo Legislativo”, Vol. II, Tomo II, 169].
Enfim, como referiu Cunha Rodrigues, antes da revisão de 98, mais precisamente em 12.05.95, o CPP clarificou o conceito de hierarquia e comprimiu o seu conteúdo «... ao excluir a reclamação hierárquica do despacho de arquivamento e substitui-lo por um procedimento de controlo, delimitado no tempo, e titulado pelo imediato superior hierárquico...Ao mesmo tempo, o despacho de arquivamento passou a ser objecto de oposição jurisdicionalizada e ficou esclarecido que a hierarquia comporta apenas um grau – cfr. “Sobre o modelo de hierarquia no organização do Ministério Público”, in Revista do Ministério Público, nº 62, 24.
Dir-se-á, no entanto, que, podendo o superior hierárquico intervir nos termos referidos, nada obstará a que essa intervenção seja sugerida pelo particular interessado na alteração do despacho de arquivamento. Isto é, o «ofendido» sempre gozaria da faculdade de provocar tal intervenção.
Todavia, essa eventual faculdade não podia, na versão inicial do Código, ser encarada como opção ao requerimento de abertura de instrução porque a lei não garantia o seu exercício eficaz com a finalidade de controlar o despacho de arquivamento. Basta ver que o prazo do artº 278º se podia esgotar antes mesmo de o interessado ter tido conhecimento desse despacho.
…. Os prazos para a intervenção hierárquica e para a abertura da instrução, corriam, de facto, de modo autónomo e não necessariamente em paralelo. Tal circunstância, além de arredar a existência de um direito de reclamação e de poder comprometer a eficácia da aludida faculdade, permite-nos tirar conclusões sobre a articulação entre os dois instrumentos processuais.
Claro que, se fosse requerida a instrução, a questão da intervenção hierárquica não se colocaria, porquanto se iniciava assim uma nova fase processual da titularidade de autoridade judiciária diferente.
Para além dessa eventualidade, a intervenção hierárquica, porque o respectivo prazo corria independentemente da notificação ao «ofendido» do despacho de arquivamento, só podia ter sido concebida, em primeira e fundamental linha, para controlo desse despacho, quando proferido em inquérito por crime que não admitisse a constituição de assistente. Por sua vez, o requerimento para abertura da instrução constituía o meio processual conferido ao «ofendido» para reagir contra o mesmo despacho. Nem sequer se podia falar, então, em alternativa. O particular, em termos da realização da sua pretensão de ver revogado o despacho de arquivamento, apenas dispunha de um único instrumento plenamente eficaz – o requerimento de abertura da instrução.
Mas, sendo assim, qual o sentido do segmento «se não tiver sido requerida a abertura da instrução», condicionante daquela intervenção?
Em nossa opinião, a sua razão de ser residia no seguinte: a normalidade suposta pela lei era a de que, dada a diferença dos prazos previstos nos arts. 278º e 287º, o deste se esgotaria antes do facultado ao imediato superior hierárquico para intervir. Assim, decorrido o prazo para requerimento da abertura da instrução, sem que o interessado a tivesse requerido, o superior hierárquico ainda poderia intervir, por iniciativa própria ou por sugestão daquele, não interessa, no âmbito de processos por crimes que admitissem a constituição de assistente. Esta intervenção, só possível se não tivesse havido instrução, constituía, assim, a válvula de segurança do sistema, no que toca a tais processos.
No entanto, sendo facultativa a instrução, parece que nada impedia o «ofendido» de, renunciando a ela, suscitar, desde logo, perante o superior hierárquico a revisão do despacho de arquivamento, se este ainda estivesse em prazo de intervir. Mas, depois, se essa intervenção não lhe fosse favorável, não poderia requerer a abertura da instrução: porque a ela tinha renunciado e porque certamente o respectivo prazo já estaria ultrapassado.
Com a Lei 59/98, de 25 de Agosto, a filosofia inicial do Código não foi alterada.
Como nos diz a exposição de motivos da Proposta de Lei que está na sua origem, a alteração que se quis introduzir no artº 278º – a de o termo inicial da intervenção hierárquica passar a contar-se da notificação do despacho de arquivamento, e não da sua data – visava harmonizar o prazo dessa intervenção com o prazo do requerimento de abertura da instrução.
A redacção final que veio a ser dada ao preceito e que hoje vigora não foi contudo essa. Resultou de uma proposta de substituição apresentada pelo Partido Socialista, aprovada por unanimidade pela AR, a qual, segundo a declaração de voto do respectivo grupo parlamentar, pretendeu «em harmonização com o regime de abertura da instrução, permitir, em momento posterior, no caso de esta não ter sido requerida, a intervenção do superior hierárquico do Ministério Público, permitindo, assim, uma dupla possibilidade de controlo da decisão» (sublinhado nosso). E acrescentou: «Estabelecem-se termos iniciais de contagem do prazo diferentes, de acordo com as circunstâncias do caso». (Sobre esta evolução, Cfr. “... Processo Legislativo...”, cit. 108, 118 e 155).
O que se pretendeu foi, afinal, esclarecer e harmonizar a articulação entre os dois mecanismo de controlo.
Esclarecer que a intervenção hierárquica, nos processos por crime que admitam a constituição de assistente, repete-se, ocorrerá (só deverá ocorrer) em momento ulterior, no caso de a instrução não ter sido requerida, isto é, depois de esgotado o respectivo prazo.
Harmonizar a intervenção hierárquica com o regime da instrução, porque de facto, na versão inicial do CPP, como vimos, apesar de serem substancialmente diferentes os prazos para a intervenção hierárquica e para requerer a instrução (30 dias para a primeira; 5 dias, depois 20, para a segunda), diferente era igualmente o termo inicial de cada um deles (a partir da data do despacho de arquivamento e a partir da notificação desse despacho, respectivamente) – o que poderia, no limite, conduzir a que já estivesse esgotado o primeiro antes mesmo de o segundo ter começado a correr. Agora, em relação a esses processos, os dois prazos correm a partir do mesmo facto – a notificação ao assistente ou quem tiver a possibilidade de o ser – e o primeiro prolonga-se necessariamente por mais 10 dias, depois de esgotado o segundo. Tudo de modo a permitir uma «dupla possibilidade de controlo» porque, não exercido o direito de requer a abertura da instrução – o instrumento normal do particular reagir contra o despacho de arquivamento –, o superior hierárquico ainda pode intervir, ainda que a pedido daquele.
Com tais esclarecimentos, fica agora mais claro que a articulação entre os dois mecanismos de controlo do despacho de arquivamento só pode ser a que já antes deixamos enunciada: nos processos por crimes que não admitam a constituição de assistente, em que não pode ser requerida a instrução para comprovação do despacho de arquivamento (cfr. artº 287º, nº 1-b), o único meio de controlo é a intervenção hierárquica, cujo prazo corre da data do referido despacho, independentemente da sua notificação, nos termos do nº 3 do artº 277º; nos processos por crimes que a admitam, a primeira só é possível depois de esgotado o prazo para o segundo – por isso que, coincidindo o termo inicial de ambos os prazos e sendo o do artº 278º mais longo do que o do artº 287º, a válvula de segurança pode funcionar no diferencial de 10 dias, novamente por iniciativa própria ou provocada. E continuamos a não ver obstáculos à renúncia ao direito de requerer a abertura da instrução, com as possibilidades e consequência que antes ficaram apontadas.
Esta solução, para além do que foi dito, tem claro apoio no elemento gramatical. Com efeito, sendo o referente da contagem dos prazos do artº 278º e do artº 287º gramaticalmente o mesmo – o despacho de arquivamento – e se, no caso do primeiro, o despacho de arquivamento não pode senão ser o previsto no antecedente artº 277º, não se vê como, no caso do segundo, o referente tanto possa ser esse despacho como o proferido no uso dos poderes de intervenção hierárquica, o qual, todavia, nem a lei nem a praxis designam de despacho de arquivamento. Se o visado fosse o despacho do superior hierárquico, a lei tê-lo-ia seguramente dito de forma expressa, como, para situação com alguma semelhança, acontece na hipótese do artº 686º do CPC.
Por outro lado, a ideia de controlo sucessivo, duplo, não só conflitua com aquela explicação em sede de votação parlamentar da Lei, de que se visava uma dupla possibilidade de controlo – o que é substancialmente diferente da consagração de um controlo duplo, sucessivo –, como com uma das ideias base do novo Código de Processo Penal – a da celeridade processual –, como finalmente destoa do princípio geral em matéria de controlo das decisões judiciais de um só grau de recurso (como previa inicialmente o Código e ainda hoje é tendencialmente válido).
… Em resumo:
Arquivado o inquérito nos termos do artº 277º do CPP, o respectivo despacho pode ser sindicado nos seguintes termos:
- no caso de processo por crime que não admita a constituição de assistente, exclusivamente por via hierárquica, nos termos do artº 278º, contando-se o prazo aí previsto da data daquele despacho;
- no caso de processo por crime que admita a constituição de assistente:
- por via judicial, através de requerimento de abertura da instrução;
- não tendo esta sido requerida, por intervenção hierárquica, a exercer apenas depois de decorrido o prazo para aquele requerimento.
- no caso de renúncia à abertura da instrução, por intervenção hierárquica eventualmente suscitada pelo interessado, sem possibilidade naturalmente de posteriormente se confrontar esta decisão com a abertura da instrução.
… No caso sub judice, o pedido de intervenção dirigido ao imediato superior hierárquico do titular do processo, no decurso do prazo para requerer a abertura da instrução, significa necessariamente renúncia a essa faculdade. Por isso que o Recorrente, não tendo ali obtido ganho de causa, não pode agora requerer a instrução a que renunciara. De qualquer modo, o prazo para o fazer há muito se havia esgotado. Como vem decidido, aliás…»
Não vemos razões para mudar de opinião.
No nosso caso, o Assistente foi notificado do despacho de arquivamento previsto no nº 1 do artº 277º (despacho proferido depois da reabertura do inquérito) por carta registada expedida em 29.06.06 (cfr. talão de fls. 205), presumindo-se, assim, nos termos do nº 2 do artº 213º, que a notificação foi efectivada no dia 4 de Julho seguinte.
A partir desta data começou a correr o prazo para requerer a instrução que terminaria no dia 24 de Julho seguinte.
A verdade é que provocou a intervenção hierárquica no decurso desse prazo, mais concretamente em 19 de Julho, o que, como vimos, significa ter renunciado ao direito de requerer a instrução, estando-lhe consequentemente vedado, depois de ter visto a sua pretensão recusada, o recurso àquela via de controlo do despacho de arquivamento.
Por outro lado, constituindo a data da notificação daquele despacho da Senhora Procurador-Geral Adjunta o momento a partir do qual se conta o prazo do artº 287º, a consideração da regra da continuidade dos prazos estabelecidos por lei (a nossa hipótese) estabelecida nos arts. 104º, nº 1, do CPP e 144º, nº 1, do CPC, sempre ditaria a extemporaneidade do requerimento de fls. 224 e segs, apresentado em 08.09.06, como bem decidiu a Senhora Desembargadora instrutora (não releva a disposição do artº 107º, nº 6, do CPP porque nada foi oportunamente requerido com vista à eventual prorrogação do prazo).
O Recorrente alega, no entanto que a norma aplicada no despacho recorrido – no sentido de que, no caso de recurso à fiscalização hierárquica, o prazo do artº 287º, não se conta da notificação da respectiva decisão – é inconstitucional por violar os arts. 20º, nºs 1 e 4, e 268º, nº 4, da CRP.
Volta, contudo, a não ter razão.
O direito à tutela jurisdicional efectiva está garantido, nos termos sobreditos: o controlo à via judicial é o instrumento adequado à sindicação do despacho de arquivamento. O Recorrente, todavia, não quis seguir esse caminho. Preferiu a reclamação hierárquica. Bem, é um direito que lhe assiste. O que não pode é exigir uma segunda via de controlo.
O assistente tem ao seu dispor a possibilidade de, de forma rápida e eficiente, impugnar judicialmente a decisão de arquivamento do inquérito. E se não tiver usado desse direito, pode ainda eventualmente ver consagrada a sua pretensão de acusação por via da intervenção do imediato superior hierárquico do autor do despacho. A sua tese é que iria provocar, ela sim, o protelamento da solução do problema por mais algum tempo, decorrente da adição dos prazos dos arts. 278º e 287º.
Por sua vez, o direito a um processo equitativo não se mostra minimamente beliscado. A lei ordinária – e o direito de o assistente intervir no processo tem a conformação constitucional prevista no nº 7 do artº 32º, isto é, é-lhe reconhecido o direito que a lei ordinária lhe conferir –, já o vimos, confere-lhe as possibilidades necessárias e adequadas para defender efectivamente os seus interesses, possibilidades que o Recorrente usou como soube e quis.
Também este recurso improcede
3. Nesta conformidade, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimentoaos recursos interpostos.
Custas pelo Assistente/recorrente, fixando-se a taxa de Justiça em 10 (Dez) UC’s.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2007
Sousa Fonte
Santos Cabral
Oliveira Mendes