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ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
ACTUALIZAÇÃO
JUROS DE MORA
SEGURO DE GARAGISTA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
DIRECÇÃO EFECTIVA
Sumário
I. Tendo sido actualizada a indemnização dos danos patrimoniais ou não patrimoniais, de forma expressa ou tácita, ao abrigo do disposto no art. 562º, nº 2 do Cód. Civil, a concessão de juros de mora incidentes sobre aquela, apenas deve ser efectuada para o período temporal posterior à data da sentença actualizadora, nos termos do art. 805º, nº 3 do mesmo diploma, interpretado restritivamente. II. O contrato de seguro de garagista previsto no art. 2º, nº 3 do Dec.-Lei nº 522/85 de 31/12, abrange os danos causados pelo tomador do seguro quando circula com veículos automóveis no âmbito da sua actividade profissional. III. Estão assim, em princípio, cobertos por este seguro os danos que o mecânico causa a terceiros na condução dos mesmos veículos, quer na actividade de experimentação daqueles, quer na condução dos mesmos, com vista à sua devolução aos seus donos, após o serviço de reparação. IV. A actividade do garagista consistente na condução do veículo reparado, com destino à devolução do mesmo ao seu proprietário, é realizada no interesse do mesmo garagista, pelo que este tem, então, a direcção efectiva do mesmo veículo, para os fins do art. 503º, nº 1 do Cód. Civil.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
"AA", BB e CC intentaram acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, no Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, para efectivação de responsabilidade civil, emergente de acidente de viação, contra Companhia de Seguros Empresa-A, alegando, em síntese, que no dia 18-11-1998, na estrada municipal n.º 616-1, no lugar de ... freguesia de Ourilhe, concelho de Celorico de Basto, ocorreu um acidente de viação em que interveio o veículo CQ, propriedade de DD e conduzido por EE e no qual FF – marido da primeira autora e pai dos demais autores - foi atropelado, e cuja culpa na sua eclosão imputa ao condutor daquele, e em virtude do qual o FF veio a falecer, estando a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pela circulação desse veículo transferida para a ré, pelo que conclui pedindo que a ré seja condenada a pagar à 1ª autora a quantia de 7.000.000$00 e aos 2º e 3ºs autores, a cada um, a quantia de 4.000.000$00 a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros, à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento.
Regularmente citada, veio a ré Companhia de Seguros Empresa-A, contestar, impugnando a versão factual do acidente aventada pelos AA., cuja responsabilidade imputa à conduta do falecido FF. Alega, ainda, desconhecer a ré a que título é que o condutor do veículo CQ o fazia, se o fazia no exercício da sua actividade de mecânico, sendo que caso não se venha a demonstrar tal facto, tratando-se o seguro em causa de um seguro de garagista, encontra-se arredada a responsabilidade da ré.
Face a tal contestação, vieram os autores apresentar a réplica de fls. 42.
A fls. 45 e seguintes, vieram os autores requerer a intervenção principal provocada como réus de EE, DD e do Fundo de Garantia Automóvel.
Cumprido o contraditório, foi proferida decisão que admitiu a intervenção dos chamados (cfr. fls. 55 a 60).
Citados os chamados, vieram os mesmos contestar.
O Fundo de Garantia Automóvel no que concerne à versão do acidente e das suas consequências subscreve a contestação da ré Companhia de Seguros Empresa-A e no que respeita à sua responsabilidade aduz que havendo seguro válido deverá ser a referida companhia a responder pelos danos.
O chamado DD veio defender-se por impugnação e por excepção, alegando nesta sede a sua ilegitimidade, porquanto na data da ocorrência do atropelamento já não detinha a propriedade do CQ, que havia vendido, em 31-08-1998, a GG.
Também o chamado EE se defendeu por excepção e impugnação, sendo que em sede de impugnação aduziu que a responsabilidade do atropelamento é do falecido FF, e como excepção alega a sua ilegitimidade, arguindo que no momento do acidente conduzia o CQ no exercício da sua profissão, pelo que sendo válido e eficaz o contrato de seguro celebrado com a ré, deverá ser esta a responder pelos danos.
Face à contestação do chamado EE vieram os autores apresentar a réplica de fls. 90 a 92, defendendo que segundo a versão do chamado EE, indo este proceder à entrega do veículo em questão a pedido do seu cliente, esta actividade não está coberta pelo seguro de garagista, pelo que se o chamado não era titular de qualquer outro contrato de seguro, o seguro de garagista não cobre a sua responsabilidade no acidente dos autos.
Os autores apresentaram, ainda, réplica à contestação do chamado DD, impugnando a matéria por si alegada em sede de excepção (cfr. fls. 96).
O chamado EE veio treplicar nos termos constantes de fls. 101.
A fls. 117 e seguintes, vieram os autores, considerando a alegação do chamado EE de que ia entregar o veículo ao seu cliente HH, requerer a intervenção principal provocada deste, a qual depois de cumprido o contraditório, foi admitida por despacho de fls. 147.
Citado este chamado, veio o mesmo contestar arguindo a sua ilegitimidade porquanto o veículo era conduzido pelo mecânico EE, o qual havia transferido para a ré a responsabilidade relativa à circulação de veículos que lhe fossem confiados para reparar.
Face a tal contestação, os autores vieram replicar nos termos constantes de fls. 167 a 170.
Foi proferido despacho saneador onde foram julgados presentes e válidos todos os pressupostos de regularidade da instância, com fixação dos Factos Assentes e elaboração da Base Instrutória, o qual foi objecto de reclamação por parte da ré (cfr. fls. 233 e 234).
A fls. 290 e 291 foi proferido despacho a indeferir a referida reclamação.
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal e gravação dos respectivos depoimentos, após o que o Tribunal proferiu a decisão sobre a matéria de facto (cfr. fls. 416 a 421), a qual não foi objecto de reclamações, sendo em seguida proferida sentença em que se condenou a ré Empresa-A em parte do pedido dos autores e absolveu-a do demais peticionado e absolveu, ainda, os demais chamados totalmente do pedido.
Inconformados, vieram os autores e a ré Empresa-A apelar daquela sentença, tendo a Relação de Guimarães julgado improcedentes ambos os recursos.
Mais uma vez inconformados vieram os autores e a ré Empresa-A interpor as presentes revistas.
Os recorridos Fundo de Garantia Automóvel e EE contra-alegaram defendendo a manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.
Como é sabido – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, a que pertencerão todas as disposições a citar sem indicação de origem – o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Antes de passar para a apreciação concreta do objecto de cada uma das revistas interpostas, há que especificar os factos que as instâncias deram por provados e que são os seguintes:
1. FF nasceu no dia 3 de Abril de 1929 (alínea A) dos factos assentes).
2. E faleceu no dia 15 de Novembro de 1998, no estado de casado com a 1ª autora AA (alínea B) dos factos assentes).
3. Sobreviveram-lhe dois filhos – os 2º e 3º autores – BB e CC (alínea C) dos factos assentes).
4. Cerca das 19.00 horas, do dia 15 de Novembro de 1998, ocorreu um atropelamento na estrada municipal n.º 616-1 – em ... – Ourilhe – Celorico de Basto, em que interveio o veículo CQ, conduzido por EE e o peão FF (alínea D) dos factos assentes).
5. EE conduzia o referido veículo no sentido Ourilhe – Caçarilhe (alínea E) dos factos assentes).
6. FF caminhava pela referida estrada municipal no sentido Caçarilhe – Ourique (alínea F) dos factos assentes).
7. Nas referidas circunstâncias de tempo e local, o CQ seguia com o seu sistema de iluminação accionado, com os faróis dianteiros comutados na posição de médios (alínea G) dos factos assentes).
8. O seu condutor accionara também os faróis de nevoeiro desse veículo (alínea H) dos factos assentes).
9. No local referido no ponto 4. existem casas e estabelecimentos comerciais de um e do outro lado da via, que deitam directamente para a via pública (resposta ao artigo 4º da base instrutória).
10. Na altura em que ocorreu o atropelamento não existia trânsito automóvel nas proximidades (resposta ao artigo 5º da base instrutória).
11. Estando a estrada livre e desimpedida de veículos (resposta ao artigo 6º da base instrutória).
12. O veículo CQ embateu com a parte da frente do lado direito no corpo do FF (resposta ao artigo 8º da base instrutória).
13. O peão FF após o embate ficou caído na berma do lado direito, considerando o sentido do veículo CQ (resposta ao artigo 9º da base instrutória).
14. Depois do embate o veículo CQ ficou parado a uma distância de 36 metros (resposta ao artigo 10º da base instrutória).
15. No local do atropelamento a estrada tem uma inclinação ascendente no sentido de marcha do veículo CQ (resposta ao artigo 11º da base instrutória).
16. No local onde ocorreu o atropelamento a via configura uma curva à esquerda, considerando o sentido de marcha do veículo CQ (resposta ao artigo 15º da base instrutória).
17. Existia vegetação na margem esquerda da referida curva, considerando o sentido de marcha do veículo CQ (resposta ao artigo 16º da base instrutória).
18. Era noite (resposta ao artigo 17º da base instrutória).
19. Havia dois postes de iluminação pública, no local do atropelamento, um cerca de 20 metros antes, do lado esquerdo da estrada, considerando o sentido Ourilhe – Caçarilhe, e outro cerca de 17 metros depois, do lado direito da estrada, atento o mesmo sentido Ourilhe – Caçarilhe (resposta ao artigo 18 da base instrutória).
20. A faixa de rodagem media no local do atropelamento 5,80 metros de largura, sendo bordejada, de ambos os lados, por bermas transitáveis, com cerca de 1 metro de largura (resposta ao artigo 20º da base instrutória).
21. Nessa ocasião a berma do lado direito da estrada, atento o sentido de marcha do veículo CQ, encontrava-se transitável (resposta ao artigo 21º da base instrutória).
22. O peão FF não transportava qualquer foco de luz (resposta ao artigo 26º da base instrutória).
23. O peão trajava roupas escuras (resposta ao artigo 27º da base instrutória).
24. O peão foi embatido com a parte dianteira direita do veículo CQ (resposta ao artigo 30º da base instrutória).
25. No dia, hora e local mencionados no ponto 4, o chamado EE ia proceder à entrega do veículo CQ ao chamado HH, residente no lugar e freguesia do Rego, concelho de Celorico de Basto (resposta ao artigo 34º da base instrutória).
26. O chamado EE havia procedido à reparação do veículo CQ na sequência do que consta no ponto 27 (resposta ao artigo 35º da base instrutória).
27. HH mandou reparar o seu veículo na oficina de EE, dando-lhe a conhecer que o pretendia consertado impreterivelmente até segunda-feira de manhã (resposta ao artigo 36º da base instrutória).
28. Em consequência do violento embate FF sofreu:
- hematoma encefálico devido a fractura do parietal direito;
- hemotorax à direita devido a fracturas das quinta, sexta e sétimas costelas à direita com perfuração pulmonar;
- ferida lacero contusa na região frontal com oito centímetros de comprimento;
- fractura do ombro direito;
- fractura do cotovelo esquerdo e
- fractura das pernas ao nível do terço médio (resposta ao artigo 40º da base instrutória).
29. Lesões traumáticas crâneo-encefálicas e toráxicas que foram causa directa e necessária da sua morte (resposta ao artigo 41º da base instrutória).
30. Do local do acidente FF foi transportado para o Hospital de Celorico de Basto (resposta ao artigo 43º da base instrutória).
31. À data do acidente, a vítima era saudável e fisicamente bem constituída (resposta ao artigo 49º da base instrutória).
32. Os autores amavam intensamente o seu marido e pai (resposta ao artigo 50º da base instrutória).
33. No que eram inteiramente correspondidos (resposta ao artigo 51º da base instrutória).
34. Constituíam uma família harmoniosa e feliz (resposta ao artigo 52º da base instrutória).
35. Também por isso sentiram intensa e amargamente a sua morte tão trágica (resposta ao artigo 53º da base instrutória).
36. A 1ª autora ficou, de um momento para outro, privada da sua companhia, do seu apoio amigo, afectuoso e da sua ajuda (resposta ao artigo 54º da base instrutória).
37. Num momento da sua vida, quando caminha para a última etapa, em que mais carecia da sua ajuda, desse carinho e dessa companhia (resposta ao artigo 55º da base instrutória).
38. EE exercia, na data do atropelamento, a actividade profissional de mecânico (alínea I) dos factos assentes).
39. Nessa qualidade outorgou com a ré Companhia de Seguros Empresa-A, contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 4101563301, mediante o qual transferiu para esta a responsabilidade civil para com terceiros, decorrente da condução por si efectuada no exercício da sua profissão de mecânico, ou seja, no desempenho de funções relativas a essa actividade, na experimentação de veículos que lhe houvessem sido entregues para conserto pelos seus clientes, sendo objecto do seguro a actividade de garagista – Carta n.º BR- 140336 (alínea J) dos factos assentes).
40. À data do atropelamento, o veículo CQ não era objecto segurado em qualquer Companhia de Seguros, não tendo HH transferido a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros decorrentes da circulação do referido veículo (alínea K) dos factos assentes).
41. DD vendeu, na qualidade de proprietário do veículo CQ, este veículo, em 31 de Agosto de 1998, a GG (alínea L) dos factos assentes).
42. Este por sua vez vendeu-o a HH um mês antes do atropelamento (alínea M) dos factos assentes).
43. HH é comerciante de veículos automóveis (alínea N) dos factos assentes).
44. E tinha já entabulado negociações para o vender durante a semana que precedeu o acidente (alínea O) dos factos assentes).
45. Havendo acertado a respectiva entrega para o dia 16 de Novembro de 1998 (alínea P) dos factos assentes).
Vejamos agora cada uma das revistas admitidas, pela ordem da sua interposição.
I. Revista dos autores.
Estes recorrentes nas suas alegações formulam conclusões que por falta de concisão não serão aqui transcritos
Da análise das mesmas se vê que estes recorrentes, para conhecer neste recurso, levantam apenas a seguinte questão: Não tendo a douta sentença de 1ª instância procedido à actualização dos danos patrimoniais e não patrimoniais de forma expressa ou tácita, deviam os montantes fixados como tal vencer juros desde a citação ?
Esta questão foi já levantada na apelação dos autores onde foi rejeitada, mal se percebendo a razão da insistência dos autores na mesma pretensão tão clara é a sua improcedência.
Com efeito, tal como a douta sentença de 1ª instância entendeu, o acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2002, de 9/05, publicado no DR I Série-A, nº 146, de 27-06-2002, fixou a seguinte jurisprudência:
“ Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do art. 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos arts. 805º, nº 3 ( interpretado restritamente ), e art. 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação “.
Desta forma, acolhendo esta doutrina, há que ver se a sentença que fixou os montantes de indemnização por danos não patrimoniais tomou em conta os valores da moeda actualizados à data da prolação da sentença, caso em que os juros de mora devidos serão contados apenas a partir da data da mesma sentença e não da citação, como pretendem os autores.
Defendem estes que a mesma sentença não operou a actualização dos danos patrimoniais e não patrimoniais – embora só estejam pedidos e concedidos danos não patrimoniais na presente acção -, pelo que os juros de mora deviam ser contados desde a citação.
Porém, a douta sentença expressamente refere a fls. 452 e 453 o seguinte:
“Dispõe o artigo 805º, n.º 3 do Código Civil, nos casos de responsabilidade por facto ilícito, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos do estabelecido na primeira parte da referida disposição legal.
Contudo, na compensação pelos danos não patrimoniais não se justifica tal solução, uma vez que não se trata de uma dívida de valor. Assim, nestes casos, o juiz, no momento da fixação da indemnização, dentro das demais circunstâncias do caso, deverá ter em conta a desvalorização da moeda, justificando-se a condenação em juros com referência ao tempo posterior à data da decisão e até efectivo pagamento da indemnização (neste sentido vide o Acórdão para Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002, de 9/05/2002).
Assim, no caso em apreço, como na fixação da quantia indemnizatória por danos não patrimoniais já se atendeu à desvalorização da moeda, não são devidos os peticionados juros de mora sobre aquele quantitativo desde a citação da ré, mas apenas lhe assistirá o direito a esses juros desde a presente decisão até efectivo e integral pagamento.”
Logo a mesma sentença tomou em conta os danos já actualizados na data da prolação da mesma, pelo que, aplicando a doutrina do citado acórdão, se tem de reduzir os juros de mora pedidos ao lapso de tempo decorrido a partir da mesma data da sentença e até integral pagamento.
É certo que a sentença contém um lapso que consistiu em ter dito: “Os juros são devidos à taxa legal de 7% até 30-04-2003 e à taxa legal de 4% desde 1/05/2003 até integral pagamento – cf. art. 559º do Código Civil e Portarias nºs 263/1999, de 12/4 e 291/2003, de 8/04.”
Ora segundo aquela sentença, sendo os juros de mora apenas devidos após a data da sentença em causa que tem a data de 22-03-2006, não faz sentido fazer referência à taxa de juros de 7% que era a legal até à portaria nº 291/2003 de 8/04 que já não estava em vigor na data da mesma sentença.
Tal lapso deve-se, certamente, a ter sido tal expressão extraída de uma outra decisão por cópia informática, esquecendo-se de fazer a respectiva adaptação ao caso.
Soçobra, assim, este fundamento do recurso e com ele toda a revista dos autores.
II. Revista da ré Empresa-A.
Esta recorrente nas suas alegações formula extensas conclusões que, por isso, também não serão aqui transcritas e das quais se deduz que a mesma, para conhecer neste recurso, levanta as seguintes questões: a) Sendo o contrato de seguro em causa, de garagista, não abrange este a indemnização aqui em causa quer por a acção do condutor do veículo atropelante segurado na recorrente se não integrar na actividade de garagista, quer por aquele não ter, aquando do acidente, a direcção efectiva do veículo ? b) O dano da perda do direito à vida da vítima deve ser reduzido a € 30.000,00 ?
Vejamos estas questões.
a) Nesta primeira questão a recorrente entende que a ocorrência não está ao abrigo do contrato de seguro que celebrou com o condutor atropelante do acidente em causa.
Por outro lado, defende a recorrente que não se tendo provado a culpa do condutor segurado na ré, este - e consequentemente a recorrente - só responde se aquele, aquando do acidente, tiver a direcção efectiva do veículo o que se não verifica neste caso.
Começando pela primeira parte da questão, temos que interpretar o contrato de seguro em causa, actividade esta que a recorrente não facilitou muito, pois tratando-se de contrato formal e sendo notificada para juntar a respectiva apólice, limitou-se a juntar a fls. 32 um duplicado das condições particulares da mesma apólice que apenas contém a identificação das partes e o número da apólice, a identificação do seguro como “ de garagista – carta nº BR-140336 ”, o limite do seguro e a data de início de vigência, ficando-se na dúvida sobre se existem outras condições gerais ou especiais do mesmo contrato que pudessem ajudar na interpretação do mesmo.
Nesta actividade há que, em primeiro lugar, recorrer ao disposto no art. 236º do Cód. Civil segundo a qual a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não poder razoavelmente contar com ele. E continua aquele dispositivo que sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Por seu lado, tratando-se de negócio formal, o art. 238º do mesmo código estipula que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
Além disso, na interpretação daquela declaração há que atender a todas as circunstâncias do caso concreto, todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta.
Dos factos provados apenas se apurou com interesse para a decisão desta questão a seguinte factualidade:
- EE conduzindo no dia 15-11-98, pelas 19 horas, o veículo automóvel nº CQ, em ..., Ourilhe, Celorico de Basto, atropelou o peão BB, resultando da ocorrência a morte deste;
- O EE havia procedido à reparação do mesmo veículo e ia proceder à entrega do mesmo a HH que o havia mandado reparar na oficina daquele EE, dando-lhe a conhecer que pretendia o veículo consertado impreterivelmente até ao dia 16-11-98;
- EE exercia, na data do atropelamento, a actividade profissional de mecânico;
- Nessa qualidade outorgou com a ré Companhia de Seguros Empresa-A, contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 4101563301, mediante o qual transferiu para esta a responsabilidade civil para com terceiros, decorrente da condução por si efectuada no exercício da sua profissão de mecânico, ou seja, no desempenho de funções relativas a essa actividade, na experimentação de veículos que lhe houvessem sido entregues para conserto pelos seus clientes, sendo objecto do seguro a actividade de garagista – Carta n.º BR- 140336;
- À data do atropelamento, o veículo CQ não era objecto segurado em qualquer Companhia de Seguros, não tendo HH transferido a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros decorrentes da circulação do referido veículo;
- DD vendeu, na qualidade de proprietário do veículo CQ, este veículo, em 31 de Agosto de 1998, a GG;
- Este por sua vez vendeu-o a HH um mês antes do atropelamento;
- HH é comerciante de veículos automóveis;
- E tinha já entabulado negociações para o vender durante a semana que precedeu o acidente;
- Havendo acertado a respectiva entrega para o dia 16 de Novembro de 1998.
Com estes factos, há que interpretar o contrato em causa, não ajudando muito, como dissemos já, o conteúdo da apólice dada a exiguidade da mesma, ou, pelo menos, da parte da mesma que a recorrente juntou aos autos.
Assim, do texto da mesma apólice apenas se sabe tratar-se de um seguro de garagista, não estando juntas outras cláusulas das quais se pudesse deduzir o conteúdo concreto desse tipo de seguro, sua abrangência e suas exclusões.
O contrato de garagista foi previsto no art. 2º, nº 3 do Dec-Lei nº 522/85 de 31/12 como obrigatório, ao lado da obrigação do proprietário (...) que o seu nº 1 estipulou, tendo aquele primeiro preceito a seguinte redacção:
“Estão ainda obrigados os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controle do bem funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional”.
Ora a condução pelo mecânico no âmbito do contrato de prestação de serviços de reparação do mesmo veículo, quer se trate de actividade de experimentação quer de devolução do veículo ao seu proprietário, actividade esta que cause danos a terceiros, deve ser englobada no âmbito do referido contrato de seguro, pois é a convicção a que um declaratário normal colocado na posição do declaratário real chegaria.
Com efeito, a actividade de reparação automóvel, sobretudo em meios pequenos, abrange frequentemente o transporte do veículo do domicílio do cliente para a oficina e a entrega do mesmo no citado domicílio.
É de lembrar que a actividade de reparação de automóveis é exercida com frequência em locais afastados dos meios urbanos, com vista a afastar uma actividade económica ruidosa dos locais habitacionais, sendo o referido transporte pelo mecânico um meio de cativar o cliente e desonerá-lo de duas deslocação à oficina, com a inerente volta ou ida, sem possibilidade de utilizar o seu veículo que ficara a reparar.
Por isso, o mecânico como declaratário normal da declaração contratual da seguradora, consubstanciada na proposta do seguro em causa, consideraria razoavelmente que a sua actividade de condução do veículo após a reparação, com vista a entregá-lo ao seu dono, estaria ao abrigo do mesmo contrato.
Além disso, tendo em conta que a condução do veículo aquando do acidente se deveu ao mesmo contrato de reparação do veículo, condução esta que, como dissemos já, é frequente na referida actividade profissional e tendo o respectivo condutor um seguro de garagista, não era razoável obriga-lo a celebrar um outro seguro para abranger apenas a concreta situação fáctica em causa.
Desta forma e na falta de cláusulas contratuais mais explícitas sobre a abrangência da responsabilidade do referido contrato, de acordo com as citadas regras legais de interpretação daquele, se tem de concluir que o mesmo abrange os danos causados pelo mecânico na condução do veículo quando o vai entregar, na sequência do conserto do mesmo, ao respectivo proprietário, tal como decidiu num caso com contornos fácticos semelhantes aos dos presentes autos, o acórdão deste Supremo Tribunal de 27-05-2003, proferido no recurso nº 1124/02 – 6ª secção e de que foi Relator o Cons. Nuno Cameira.
Assim, improcede este argumento da recorrente.
Esta ainda defende que não se tendo provado a culpa dos intervenientes no acidente, não deve responder a seguradora do condutor por este não ter então a direcção efectiva do veículo.
Esta questão tem sido tratada de forma pouco consensual na nossa jurisprudência, tal como se deduz das citações feitas nas alegações das partes.
Porém, parece-nos que a melhor interpretação será a oposta à defendida pela recorrente, tal como decidiu o citado acórdão de 27-05-2003.
No caso dos autos foi decidido sem impugnação que para a eclosão do acidente se não apurou a culpa efectiva ou presumida de nenhum dos intervenientes, pelo que responderá a parte onerada com a responsabilidade objectiva, ou pelo risco.
O art. 503º, nº 1 do Cód. Civil estipula que aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
O Prof. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, I vol. , pág. 548 e 549, ensina que “ a direcção efectiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo e constitui o elemento comum a todas as situações, sendo a falta dele que explica ao mesmo tempo, nalguns desses casos, a exclusão da responsabilidade do proprietário. Tem a direcção efectiva do veículo aquele que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a que, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento.“
É certo que no caso, o veículo também circula no interesse do proprietário, pois este, no fundo, é o interessado na reparação e na devolução do veículo.
Porém, para tanto entrega-o ao mecânico para que este proceda à sua reparação e o devolva. Este em virtude do acordo de prestação do serviço de reparação é quem passa a ser o detentor do mesmo e o dono deste não tem a menor possibilidade de controlar o modo como a reparação e a condução é feita pelo mecânico, confiando o dono o veículo ao garagista, não para que este actue como comissário, ou seja, por conta de outrem, mas para que cumpra o acordo de reparação a que se obrigou.
O garagista é interessado na utilização do veículo, pois exerce a actividade profissional de mecânico e, por isso, tira proventos dessa actividade em cujo desempenho conduzia o veículo.
O risco da circulação do automóvel deixado na oficina para reparação recai sobre o dono desta até que este proceda à efectiva entrega do mesmo veículo ao seu dono. Este não tem possibilidade de tomar as providências indispensáveis a assegurar o seu bom funcionamento. O garagista é que deve decidir da forma como deve efectuar a reparação e quem o pode conduzir para o efeito, inclusivé, quando o veículo é conduzido pelo garagista para ser entregue, como combinado, ao dono daquele.
O garagista não exerce a sua actividade sob a direcção do dono do veículo e não existe uma relação de subordinação ou de dependência entre ambos.
Já assim também decidiu o acórdão deste Supremo de 21-10-92, BMJ 420º, pág. 531,que concluiu que “o proprietário de uma viatura automóvel que a entrega a uma oficina para reparação perde a direcção efectiva do veículo a favor deste, durante o período de reparação e enquanto se encontrar em poder do garagista, o que, desde logo, é indiciado pela existência de um direito de retenção do garagista sobre o proprietário, no caso de não pagamento das despesas efectuadas por aquele ( arts. 754º e 755º , nº1 alíneas c) e d) do Cód. Civil ).”
Desta forma improcede este segundo argumento da recorrente.
b) Resta apreciar a questão da alegada sobrevalorização do direito à vida.
Os autores pediram, em 6-11- 2001, o valor de 8.000.000$00 que hoje corresponde a cerca de € 40.000,00, pedindo aqueles juros desde a citação.
A douta sentença de 1ª instância, em 22-03-2006, a esse título concedeu a indemnização de € 35.000,00, actualizada a esse momento e, por isso, atribuiu juros de mora sobre esse montante desde a prolação dessa sentença, o que foi confirmado pela Relação.
Defende a recorrente a redução desse valor para € 30.000,00.
Parece-nos que a recorrente não tem razão.
Sendo o direito à vida um direito pessoal, inerente à personalidade, de aquisição automática, a sua perda é indemnizável.
Para fixar a mesma indemnização, há que atender aos critérios fixados no art. 494º do Cód. Civil , aplicáveis por força do disposto no art. 496º do mesmo diploma legal.
Assim, há que atender à equidade e ao grau de culpa do agente, à situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
A equidade traduz-se na observância das regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida, dos parâmetros de justiça relativa e dos critérios de obtenção de resultados uniformes.
Não se provou culpa efectiva ou presumida no caso, desconhecendo-se a situação económica da vítima, sendo a ré uma das maiores seguradoras portuguesas.
Por outro lado, o valor do dinheiro a considerar é o da data da prolação da sentença, ou seja, 22-03-2006.
Além disso, este Supremo Tribunal tem vindo recentemente a fixar como valor para compensar a perda do direito à vida valores à volta de € 50.000,00 – cfr. acs. de 14-11-2006, no recurso nº 3485/06 e de 7-11-2006, no recurso nº 2873/06, ambos desta 6ª secção.
Desta forma, facilmente se detecta que a verba fixada pelas instâncias para compensar a perda do direito à vida da vítima se não mostra excessiva.
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso e com ele toda a revista.
Pelo exposto, nega-se as revista pedidas.
Custas por cada revista pelo respectivo recorrente.
Lisboa, 5 de Julho de 2007
João Camilo ( Relator )
Fonseca Ramos
Azevedo Ramos.